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Não há livro de economia que tenha aturdido os sismógrafos da História como O Capital de Karl Marx. Isso não se deve à sua contribuição à teoria econômica, mas à sua dimensão evangélica: para um comunista ortodoxo, O Capital é a Bíblia ; e é blasfêmia dissecá-lo como um texto de economia pura, como se faz com Adam Smith, Ricardo, Walras, Marshall ou Keynes. Para quem não gosta de engolir dogmas, essa dissecação é imperativa. Há, no entanto, muitas dificuldades a transpor, e a primeira é a isenção emocional. Pelo seu conteúdo ideológico, O Capital é um livro que se pode estudar com simpatia ou antipatia, mas não com indiferença. Num caso, exaltam-se os acertos de Marx; noutro, os seus erros. Qualquer grande economista, ali,pode ser focalizado sob esses dois ângulos. Este paper apresenta uma análise crítica das teses de Marx em O Capital.
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Número especial sobre Marx e a revolução de Von Neumann
Mario Henrique Simon$sn
Introdução
Não há livro de economia que tenha aturdido os sismógrafos da História como O Capital de Karl Marx. Isso oiro se deve à sua contribuição à teoria econômica, mas à sua dimensão evangélica: para um comunista ortodoxo, O Capital é a Bíblia ; e é blasfêmia dissecá·lo como um texto de economia pura, como se faz com Adaro Smith, Ricardo, Walras, Marshall ou Keynes. Para quem não gosta de engolir dogmas , essa dissecação é imperativa. Há, no entanto , muitas dificuldades a transpor, e a primeira é a isenção emocional. Pelo seu conteúdo ideológico, O Capital é um livro que se pode estudar com sim- patia ou antipatia, mas não com indiferença. Num caso, exaltam-se os acertos de Marx; noutro, os seus erros. Qualquer grande economista, aliás , pode ser focaliza- do sob esses dois ângulos. Com boa vontade, há quem conclua que quase tudo o que há de relevante em matéria de economia se encontra ou nas linhas ou nas en- trelinhas de A Riqueza das nações. Com má vontade, Adarn Smith pode ser apre- sentado como um habilíssimo teorizador de obviedades. Em Marx , o espectro das avaliações não apenas é magnificado pela carga emocional, mas por duas outras razões. Primeiro, O Capital é obra inacabada , e durante sua elaboração as concep- ções de Marx evoluíram consideravelmeote. O Livro I, publicado em 1867, possui extraordinária unidade e força dogmática, e é muito fácil de criticar. Mas os Livros II e IH, editados por Engels após a morte de Marx, contêm inúmeras idéias novas, muitas das quais contradizem a primeira parte da obra. A mensagem ideológica é a mesma, mas a teoria subjacente é outra. Marx não viveu o bastante para unificar a sua doutrina econômica, e isso é o suficiente para que ela admita mais de uma in- terpretação. Seguindo oTivro I, pode-se afirmar, como Samuelson, que Marx pos- tulou que os preços de mercado eram proporcionais às quantidades de trabalho so- cialmente necessárias à produção de cada mercadoria. Lendo-se o Livro 111 J pode-se asseverar, como Morishima, que Marx reconheceu que numa economia ca- pitalista não há paridade entre preços e valores.
R. bras. Econ. Rio de Janeiro abriJljunho de 1984
Segundo, ao contrário de muitos economistas hodiernos, Marx teve muito mais idéias do que capacidade analítica para as desenvolver. Como a maioria dos economistas de seu tempo, onde Cournot e Walras eram a exceção, Marx era um grande erudito em história, filosofia e economia, mas apenas um principiante em matemática. Assim) muitas das idéias contidas em O Capital, sobretudo nos Livros li e 1II, foram bloqueadas pela in suficiência dos meios de expressão. Aliás, ainda que Marx conhecesse toda a matemática de seu tempo, o impasse não seria resolvi· do ) pois a lingu agem formal de que O Capital necessitava só ve io a desenvolver-se no século XX. O objetivo do presente texto é reexaminar a obra de Marx com o aux11io dessa linguagem matemática. Esse tipo de exame, embora só gere ceticismo para os interessados na dimensão evangélica de O Capital, é profundamente gratifi- cante para quem deseja compreender a teoria econômica marxista. Como economista puro, Marx dispôs-se a enfrentar um programa ciclópico, e que reduziria o equilíbrio geral walrasiano a simp le s miniatura. O Capital apre- senta uma teoria geral de formação dos preços fundada no valor-trabalho; uma teoria de exploração do homem pelo homem cujo fulcro é o fenômeno da mais- -valia: nas regras do jogo capitalista) uma hora de trabalho se compra por muito menos do que aquilo que o trabalhador produz em uma hora; uma teoria da acu- mulação e do cre.scimento assentada no reinvestimento da mais-valia apropriada pelos capitalistas; uma teoria de inovações poupadoras de trabalho e que se encar- regariam de aferrar os salários ao nível d~ subsistência; uma teoria das crises alicer- çada na contradição entre su bconsumo e acumulação contínua de capital; uma teoria de concentração monopolista que deixaria os poucos ricos cada vez mais ricos e o proletariado cada vez mais pobre. E, como fecho apocalíptico, uma teo- ria da taxa decrescente de lucro que levaria o capitalismo à autodestruição pelas suas contradições internas. Lutando em tantas frentes de trabalho com modesto equipamento bélico, Marx só podia construir uma teoria econômica repleta de erros. Com um mínimo de cálculo diferencial, B6hm-Bawerk e seus di scípulos não (iveram dificuldade em refutar, ponto por ponto, as teses de Marx. Uma religião, no entanto, não se derruba com alfinetadas lógicas. Além do mais, a réplica marginalista se baseava num modelo de produção com funções diferenciáveis e ampla substitutibilidade dos fatores, uma invenção dos economistas que jamais foi aprovada pelos enge- nheiros, e que os marxistas não tinham por que e~golir. Por certo tempo, as dife- renças ideológicas entre os economistas se traduziam nos seus modelos de produ- ção: a esquerda trabalhava com proporções fixas, a direita com funções de pro- dução diferenciáveis. O modelo de Arrow-Debreu mostrou que essa controvérsia não passava de grossa tolice. Marx, realmente, abstraiu qualquer efeito-substitui- ção, tanto na produção quanto no consumo, mas não é por aí que se pegam as fa- lhas da sua teoria. O Capital foi gerado sob duas grandes influências, a lógica de Hegel e a economia clássica inglesa. Embora ideologicamente rebelde, Marx nunca deixou de
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uma maneira alternativa e muito interessante de focalizar o problema da transfor- mação. Por último , o item 7 introduz o consumo dos capitalistas no modelo de Von Neumann. Trata-se de uma sofisticação devida a Morishima, e que permite um reexame mais fiel dos problemas de crescimento e reprodução. Cem anos após a morte do autor de O Capital, é fácil criticar as suas cons- truções teóricas. O v.lor-trabalho é um fundamento frágil par. um. teoria de preços; a lei férrea de salários é uma conjectura sem apoio empírico ; as inovações numa economia com rendimentos constantes não podem, simultaneamente , de- primir salários e taxas de lucro, e assim por diante. Pode-se daí concluir que, como economista puro, Marx errou na tese. Mas certamente construiu a mais provocado- !a antítese de toda a história do pensamento econômico.
Requisitos par. a leitura do texto
Do ponto de vista estritamente formal, o presente texto dispensa qualquer conhe- cimento prévio de análise econômica. A familiaridade com as teorias do crescimen- to econômico e do equilíbrio geral é desejável apenas para que o leitor possa bem situar as limitações dos modelos de inspiração marxista. A mais séria dessas limita- ções é a hipótese de proporções fixas no consumo dos trabalhadores: presume-se que uma hora de trabalho se compre por uma cesta de mercadorias dada. O que ac.ontece quando se muda essa cesta é o ponto central da teoria de Sraffa. A leitura dos dois primeiros itens poucos conhecimentos pressupõe, em ma- téria de matemática: álgebra elementar e rudimentos de cálculo diferencial. O mo- delo ricardiano, na formalização de Pasinetti , apresentado no item 1, leva a um sis- tema de equações diferenciais. A convergência para o estado estacionário, no en- tanto, pode ser entendida com um simples diagrama de fase. Os demais itens presumem algumas noções de álgebra linear, topologia do Rn e análise convexa. Em matéria de álgebra linear, supõe-se apenas que o leitor conheça as operações elementares com matrizes. Os modelos de Leontief envol- vem vários teoremas mais ou menoS sofisticados sobre matrizes não negativas, mas tais teoremas são demonstrados nos itens 4 e 5. No Rn ,-um vetor x = (x 1 ; X2 , .•• ,Xn) é dito não-negativo quando todas as suas coordenadas são maiores do que ou iguais a zero; semipositivo , quando for não-negativo, com pelo menos uma coorde- nada positiva; positivo, quando todas suas coordenadas forem positivas. (1 ) O produto interno de dois vetores x = (x" x" ..., x,,), Y = (y; , Y2 , ... Yn) é o núme,o real (x, y) = x,y, + x,y, + ... + xnYn. A norma de um vetor x é indicada por 11 x 11, sendo o real não-negativo dado por:
Ilx ll = +. v'(x,x) = v'xl +X1 +. ... +xh n n (l) R+ é o conjunto dos vetores não negativos do R. n n R+ .+ o conjunto dos vetores positivos do R.
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correspondendo, geometricamente, à distância do ponto x à origem. A distância d(x, y) entre· os pontos ou vetores x e y é dada por d(x, y) '=' Ily-x 11. Uma se- qüência [xml de pontos do -R n^ diz· se convergente para o ponto XE Rn quando a todo E> O corresponder um inteiro positivo M =M(E), tal que m >M implique IIxm - x \I < E. Intuitivamente, isso equivale a dizer que , a partir de · certa ordem, os elementos da seqüência se tornam todos tão próximos de x quanto se queira. Uma função f(x) definida num subconjunto C do Rn e com valores no RP diz·se contí- nua no ponto Xo E C quando a todo real E > O corresponder um real 8 = 8 ( EI > O tal que XE C e IIx - xo 11 < 8 implique 1I[(x) - [(x (^) o) II < E. Isso significa que é pos- sível tornar [(x) tão próxima quanto se queira de [(x (^) o)' desde que se tome x con- venientemente próximo de xo ' Um subconjunto C do Rn diz-se limitado quando existe um real positivo M tal que para todo x E C se tenha Ilx II < M. Isso é o mesmo que dizer que C está contido em alguma bola de centro na origem e raio finito. Um conjunto C de pontos do Rn é dito fechado quando toda seqüênc ia convergente ' [x (^) m l de pontos de C tiver o seu limite x pertencente a C. Conclui-se trivialmente que a intersecção de uma coleção de conjuntos fechados é um conjun- to fechado_ C diz-se compacto se for ao mesmo tempo fechado e limitado (defi- nição que s6 serve ao Rn). A partir dessas definições provam-se os poucos teoremas de topologia do Rn usados no texto. O ponto inicial para as demonstrações é o teorema do supre- mo no conjunto dos reai s. Seja G um conjunto de reais limitado superiormente, isto é, tal que exista um real M tal que x " M, qualquer que seja x E G. Diz-se que
ponder um pontox (E) EG tal quex (E) > Z - €. Isso é o mesmo que dizer que z é o menor limite superior para os pontos de G. O teorema do supremo afirma que to- do conjunto de reais HIfI:tado superiormente possui um e um único supremo (o qual pode pertencer ou não ao co njunto). Com o teorema do supremo, demonstra-se, primeiro, para o conjunto dos reais, e depois, po r induç[o finita, para o Rn, a segu inte proposição: no Rn , de toda seqüência limitada é possível extrair uma subseqüência convergente. Segue-se daí que se C é um subconjunto compacto do Rn, e se [xml é uma seqüência de elementos de C, então de [xm l é possível extrair uma subseqüência que convirja para um ponto x E C. Um outro resultado que será utilizado é o teorema do máximo: toda fun- ção contínúa [(x) definida num subconjunto compacto C do R n^ e com valores reais admite um máximo. Em outras palavras, existe XOE C tal que f(;<o) ;;. f(x) para todo XE C. Em matéria de análise convexa usaremos apenas as definições básicas de con- junto convexo ~ de função côncava, o teorema de separação e o t~orema de Kuhn e Tucker. Um subconjunto C do Rn diz-se convexo quando, para quaisquer x e y per- tencentes a C e para qualquer reaI O " a" I , se tiver (l-a) x + ay E C. Isso equi- vale a dizer que o segmento de reta que une dois pontos quaisquer de C está intei-
INTRODUÇÃO^7
Para enunciar esse teorema, admitamos que C sej a um subconjunto convexo
p E C associa um subconjunto F(P) de C. A correspondência diz-se semicontí- nua superiormente quando se verifica a seguinte propriedade: se [xm1 e [ym são seqüências convergentes de pontos de C, com limites x e Y. respectivamente, e se Ym E F(xm) para todo inteiro m, então Y E F(x). No caso, semicontinuidade superior equivale a dizer que F(P) é uma correspondência de gráfico compacto. O teorema de Kakutani afirma que se F(P) é semicontínua superiormente e se, para cada p, F(P) é convexo e não vazio, então existe Po E C tal que Po E F(Po). A fi- gura a seguir ilustra o teorema de Kaku tani para o caso em que C é o intervalo [O ; 1] da reta.
,^ , / " //^ "
~
/"^ " , / " "" " "
"
/ "
/ "^ "
/ /"^ " //^ " / " p
INTRODUÇÃO 9
1.1 O desenvolvimento da teoria clássica dos preços
Até que o cálculo diferencial se intrometesse na análise econômica, praticamente todas as teorias de formação de preços se erguiam a partir de uma observaçãO con· tábil: o preço pelo qual uma mercadoria é vendida é igual ao seu custo de produ- ção mais o lucro de quem a negocia. Essa observação está longe de constituir uma teoria: trata-se apenas de uma tautologia que define o que seja lucro. Contudo, com algum esforço taxionômico, foi possível partir desse truísmo para a constru- ção de uma teoria dos preços. O primeiro trabalho nessa direção foi classificar os custos de produção em quatro grupos:
a) as despesas com matérias-primas e com o uso dos bens de capital; b) as rendas pagas aos proprietários de terras; c) os salários pagos aos trabalhadores; d) os pagamentos a capitalistas, a título de lucros, juros e aluguéis. Haveria um quinto grupo, o dos impostos pagos ao Governo, mas os economistas, desde Adam Smith até Marx, se concentraram em explicar a formação dos preços antes da inci- dência dos impostos. O segundo foi um exercício de regressão nas etapas de produção: as despesas com matérias-primas e o desgaste das máquinas e equipamentos representavam, numa etapa anterior da produção, a soma de outros quatro grupos de custos e remuneraçOes de terra, trabalho e capital. Assim, integrando as várias etapas da produção, se cancelariam as despesas com matérias-primas e depreciações, poden- do-se desdobrar os preços em três componentes: a renda da terra, os salários e o lucro (como tal entendido o conjunto dos lucros propriamente ditos, mais os juros e aluguéis). Essa redução do preço das mercadorias a três componentes se encontra
Um terceiro trabalho foi o de estabelecer as tendências ã equalização: a) terras de igual fertilidade e igual distância dos mercados deveriam receber a mesma renda por hectare; b) trabalhadores de igual habilidade e aplicação deveriam auferir iguais salários;
R.bns.E_co_n. _~R_i_o_d_e_J_an_e_u_o~v.3_8 L-n~2___1L-p..l_0-3_3~I_abru·~nunh___O_de__l_9 84
do-se a analisar apenas um deles, o valor de troca, que tinha como expressão mo- netária o preço da mercadoria. Ricardo, no primeiro capítulo dos seus Principios de economia politica e tributação, introduziu uma ponta de veneno nessa dissocia- ção de conceitos, ao observar que a utilidade, embora não seja medida do valor de troca, é essencial ã existência desse valor. Um bem que não pudesse contri- buir de alguma forma para a nossa satisfação, por escasso que pudesse ser, ou fosse qual fosse a quantidade de trabalho necessária para obtê-lo, seria fatalmen- te destituído de valor de troca. Mas também Ricardo não conseguiu ir além desse ponto, e a conciliação do valor de uso com o valor de troca só se estabeleceu mui- to mais tarde, com o desenvolvimento da teoria marginalista.
A segunda observação, que constitui o objeto do capítulo 7 de A riqueza das nações, é que o preço de mercado pode desviar-se, mas tende a flutuar em tor- no daquilo que Adam Smith denomina o "preço natural". O Capítulo em questão começa por notar que existe em cada comunidade ou região um índice normal de salários para cada ramo de trabalho, de renda para cada tipo de terra, e de lucro de capital. Esses níveis normais variam conforme a riqueza de cada comunidade e o seu ritmo de progresso. Quando o preço de determinada mercadoria remunera a terra, o trabalho e o capital exatamente nesses índices normais, diz-se que a mer- cadoria é vendida ao seu preço natural. Os desajustes entre a oferta e a procura podem desviar o preço de mercado do produto do seu nível natural. Se a oferta for insuficiente, ou a procura excessiva, o preço subirá acima do natural. Mas, aí, o mercado exercerá o seu efeito corretivo: as altas rendas, salários ou lucros es- timularã'O o afluxo de mais fatores para a produção da mercadoria. Com o aumen- to da oferta, o preço de mercado tende a voltar ao nível natural. O raciocínio in- verso, obviamente, se aplica ao caso em que a oferta é excessiva em relação ã pro- cura. Embora sem dizer exatamente como, Adam Smith admite que a procura es- teja ligada ã utilidade dos bens. Com isso fica claro por que não sobrevivem os ca- pitalistas que se lançam na produção de bens inúteis: simplesmente, porque não conseguirão remunerar terra, trabalho e capital pelos seus índices naturais.
A segunda dificuldade a transpor nas teorias do custo de produção residia na escolha das unidades de medida. Na realidade, essa dificuldade poderia ser con- tornada se a preocupação viesse a ser, como mais tarde se fez com as equaçOes de Walras, a de explicar como se formam os preços relativos, e não os preçoS abso- lutos. Mas, Adam Smith pretendia encontrar uma unidade estável de medida para os valores, como na física o são o metro, o quilograma ou o segundo. Embora a humanidade ainda não tivesse ingressado na era inflacionária do papel-moeda, as oscilações de preços em termos de ouro ou prata já eram suficientemente impor- tantes para que não se aceitasse a moeda comO uma unidade estável de valor. Adam Smith, no capítulo 5 de A Riqueza das nações,imaginou encontrar uma s0- lução para o problema admitindo que o preço real de uma mercadoria fosse o ex- presso em unidades de trabalho, em contraposição ao preço nominal, que se esta- belece em dinheiro. Na realidade, a distinçãO entre preço nominal e preço real não
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tinha maior profundidade do que dividir a equação (1.1) pelo salário unitário w, transformando-a em: p/w = at/w + n + lcr/w (1.2)
o que de fato significa passar de uma tautologia a outra. Mas, a idéia de exprimir os valores em unidades de trabalho inspiraria nova concepção, que seria amplamen- te explorada primeiro por Ricardo e depois por Marx: a teoria do valor-trabalho. A dificuldade mais substantiva das teorias do custo de produção, efetivamen- te, residia na ausência de um denominador comum que pudesse ser cancelado na determinação dos preços relativos. Na equação (1.1) existem três coeficientes téc- nicos, que se supOem determinados pelos melhores métodos conhecidos de produ-
e T. Como a proporção em que se empregam terra, trabalho e capital não é a mes- ma na fabricação de diferentes produtos, os preços relativos não se podem deter- minar apenas em função dos coeficientes tétnicos. Não há como escapar, assim, a uma teoria que explique como se formam a renda da terra, os salários e as taxas de lucro, ou, pelo menos, as relações entre essas remunerações de fatores.. A situação é muito diversa da que ocorreria se só existisse um fator de pro- dução, e esse ponto foi muito bem entendido por Adam Smith em A Riqueza das nações. Se admitíssemos que o trabalho fosse o único fator de produção, a re- lação de preços de duas mercadorias seria igual à relação entre o número de ho- mens-hora empregados na respectiva fabricação. Adam Smith apresenta essa teo- ria de formação dos preços como válidâ para uma sociedade primitiva, onde as ter- ras ainda não foram apropriadas e onde o trabalho manual não seja ajudado pelas máquinas e equipamentos. Mas, logo a descarta para as sociedades m"ais sofisti- cadas, onde se tenham estabelecido a propriedade da terra e a acumulação de ca- pital. Note-se que com um único fator de produção é dispensável saber como se forma a sua remuneração, para explicar a determinação dos preços relativos. Simplesmente, essa remuneração é o denominador comum que se cancela. As construções unificadas, todavia, exercem enorme fascínio intelectual, e a idéia de que o valor de uma mercadoria pudesse exprimir-se pelo número de horas necessárias.à sua produção, isto é, a teoria do valor-trabalho, não iria morrer com tanta facilidade quanto imaginava Adam Smith. EmA Riqueza das nações, trata-se apenas de uma teoria aplicável às sociedades rudimentares. Ricardo, apesar de sua estupenda formação lógica, conseguiu, nos seus Princípios de economia política e tributação, o aparentemente impossível: em alguns capítulos consagrar, e em outros refutar a teoria do valor-trabalho. Até que veio Marx, para erguê-Ia à cate- goria de religião.
1.2 Do impressionismo de Adam Smith ã lógica de Ricardo
A celebridade de A Riqueza das nações se deve a pelo menos duas características. De um lado, a de ter sido o primeiro livro importante escrito sobre economia. De
DE SMITH A RICARDO 13
planejador oficial, julgar O que mais lhe convinha, Adam Smith induziu que a mão invisível nA"o apenas era capaz !ie operar, mas também de operar com maior efici- ência do que a intervenção.governamental. Smith não era um panglossiano a ponto de acreditar que todos vivessem no melhor dos mundos. Não apenas a intervenção governamental, mas também os monopólios e coalizões de produtores o inquieta- vam. Sua preocupação, por outro lado, não era combater o socialismo, que só iria ganhar corpo no século XIX, mas o mercantilismo, tão em moda na época. Ao des- cobrir, pela lógica, que o sistema de mercado era ordenado por mão invisível, Adam Smith partiu, não por um silogismo, mas por uma extrapolação analógica,
vam-se menos em construir grandes edifícios dedutivos a partir de umas poucas premissas, do que em alinhavar observações extraídas da realidade. Essa é a linha
Ricardo só se tornam perfeitamente claros com o auxl1io de um manual interpre- tativo. Na realidade, Ricardo possuía formidável propensão à abstração e, do pon- to de vista lógico, as suas construções se tornariam muito mais precisas se fossem apresentadas na embalagem moderna de um modelo matemático. Ao invés, Ricar- do apresenta seus raciocínios com base em fastidiosos exemplos sobre a composi- ção do preço do trigo. Não se pode criticar Ricardo por não ter apresentado os
a época, segundo porque, em 1821, um livro de economia repleto de equações di- ficilmente encontraria leitores. ~ natural, todavia, que numa exposição Dioderna do pensamento de Ricardo se recorra a equações interpretativas, com o que se ga- nha muito em tempo e em precisão. Como compensação pela aridez, Ricardo realmente consegue construir uma teoria de determinação dos preços dos fatores de produção. O leitor desprevenido
sentam não apenas uma, mas, às vezes, duas teorias conflitantes para explicar a mesma coisa..Por exemplo, a formaçA"o de preços primeiro é explicada pela teoria do valor-trabalho, depois a partir da teoria de determinação da renda da terra, dos salários e dos lucros. Do mesma. modo, há duas teorias de salários: a ''lei férrea", segundo a qual os salários tendem ao nível de subsistência, e a "lei do fundo de salário", que, expressa em linguagem moderna, admite que os salários sejam proporcionais à relação capital/mio-de-obra.
da teoria do valor-trabalho como primeira aproximação, mas não tarda a iden- tificar as suas imperfeições e a necessidade de substituí-la por outra explicação mais precisa. As duas teorias de salários são apresentadas em horizontes tempo- rais distintos: a teoria do fundo se aplica a curto prazo, a lei férrea representa a
DE SMITH A RICARDO 15
tendência a longo prazo. O elo entre as duas se estabelece pela combinação da lei dos rendimentos decrescentes com a teoria malthusiana da população. A explicação da renda da terra como o resultado do diferencial de fertili- dade, apresentada no capítulo 2 dos Principios de economia política e tributação, constitui uma das contribuições mais originais de Ricardo à análise econômica. Nos seus aspectos fundamentais, a teoria continua aceita até hoje. A teoria do lu- cro surge naturalmente como resíduo: a produção de uma sociedade é função da extensão e qualidade das terras cultivadas, da mão-de-obra empregada e do esto- que de capital aplicado. A sobra, após o pagamento dos salários e da renda da ter- ra, é o lucro. Obtém-se a taxa de rentabilidade, evidentemente dividindo o lucro total pelo estoque de capital. Ricardo poderia ter parado aí, e já teria construído uma teoria estática de formação dos preços dos fatores de produção. Contudo, os Princípios de econo- mia política e tributação se preocupam em elaborar uma teoria dinâmica, que leva a importantes exercícios de futurologia. As hipóteses desse modelo dinâmi- co são, basicamente, duas: primeiro, que os lucros são automaticamente reinvesti- dos e transformados em mais capital; segundo, que, na linha malthusiana, a popu- lação cresce a taxas tanto maiores quanto maior for o excedente dos salários s0- bre o nível de subsistência. A conclusão de Ricardo é que, numa economia em que todas as terras fér- teis já tenham sido ocupadas, a mecânica dos rendimentos decrescentes necessa- riamente conduz ao estado estacionário ao nível da miséria. A população chegaria ao seu limite compatível com a escassez de alimentos, e o seu crescimento seria freado pela equalização das taxas de mortalidade às de natalidade. Os proprietá- rios de terras se apropriariam de uma proporção extorsiva do produto, os salários cairiam ao nível de subsistência e a acumulação de capital cessaria, pela exaustão dos lucros. Contudo, o pessimismo de Ricardo não é incondicional. A lei dos rendi- mentos decrescentes só se aplica aos países onde a produção de alimentos é deti- da pela escassez de terras férteis, como se admitia ser a Grã-Bretanha. Em outros países, dotados de abundância de terras em relação à população, nada deteria o progresso da sociedade. Mesmo para os países premidos pela escassez de terras, Ricardo aponta uma solução: a abertura ao comércio internacional, importando alimentos e exportan- do manufaturas. Nesse sentido, o Capítulo 7 dos· Principios de economia polí- tica e tributação oferece mais uma das notáveis invenções de Ricardo: a doutrina das vantagens comparativas. Como conclusão de sua análise, Ricardo não havia apenas construído uma teoria dinâmica de formação dos preços dos produtos e dos fatores de produção. Mas, também, apresentava uma mensagem programática para a Grã-Bretanha da
os marxistas afirmem que Ricardo desenvolveu toda a sua teoria porque era liga- do aos capitalistas, adversários dos proprietários rurais. O fato é que os Princi-
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Com alguns exemplos numéricos, Ricardo conclui que a teoria do valor-trabalho não serve para determinar os preços relativos de mercadorias que se fabriquem com diferentes relaçOes capital/mão-de-obra. Isso o leva, nas seções restantes, a re- conhecer que os preços relativos das mercadorias não podem ser determinados apenas a partir dos coeficientes técnicos de produção. Havendo mais de um fator de produção, e as proporções de emprego dos fatores não sendo-as mesmas para os diferentes produtos, nio mais existe um denominador comum que se possa can- celar. O leitor propenso à crítica tem o direito de indagar por que Ricardo dedica
derrubar a teoria do valor-trabalho. e possível qu~, didaticamente, o método não seja dos melliores. A impressão que se tem é que Ricardo aceitava a teoria do va- lor-trabalho como primeira aproximação, mas que julgava absolutamente neces- sário apontar as suas imperfeições e substituí-la por outra mellior. Seja como for,
1.4 A teoria da renda da tem
da terra, não apenas é muito original, mas também muito didático, trazendo em- butida a lei dos rendimentos decrescentes. O capítulo 3 estende os mesmos prin-
Ricardo começa por observar que, num país subpovoado e com abundância de terras férteis, não haveria renda da terra. O que faz sutgir essa renda é a neces- sidade, com o crescimento demográfico, de ocupar Dio apenas as melliores terras, mas também outras de menor fertilidade. O preço do trigo é o mesmo, quer ele provenha de uma terra mais ou de outra menos produtiva. Mas, a quantidade de capital e trabalho necessária à produção de uma tonelada de trigo é menor na terra mais fértil. Como o preço do trigo deve remunerar o capital e o trabalho emprega- dos na terra de pior qualidade, o proprietário da terra mais fértil se beneficiará de uma renda, como fruto do seu diferencial de fertilidade. Em termos analíticos simples, suponhamos que o método mais econômico
dades de capital, na terra de pior qualidade que esteja sendo cultivada. Essa ter- ra, segundo Ricardo, não faz jus a qualquer renda; de modo que o preço de uma tonelada de trigo será dado por:
sendo w o salário e r a taxa de lucro. Admitamos, agora, que numa terra mais fér-
18 R.B.E.2/
que now + ko" < nl w + k (^) l ,. Como o preço do trigo produzido nas duas terras
(l.4)
ou seja:
(1.5)
Naturalmente, o aumento da população num país com relativa escassez de terras obriga o aproveitamento de áreas cada vez piores. O resultado é o progressi- vo aumento da renda das propriedades mais férteis. Nesse sentido, Ricardo deixa bem claro que a renda da terra é efeito, e nlIo causa, do encarecimento dos ali- mentos: ''Portanto, a razão pela qual os produtos primários aumentam em valor com- parativo é o emprego de mais trabalho para produzir a ítltima porção obtida, e não o pagamento de renda ao proprietário de terra. O valor do cereal é regulado pela quantidade de trabalho aplicada à sua produçlo naquela qualidade de terra,
encarece por causa do pagamento da renda, mas, ao contrário, a renda é paga por- que o cereal encarece e, como acabamos de observar, nenhuma redução ocorreria no seu preço, mesmo. que os donos de terras renunciassem à totalidade das suas
valheiros, mas do reduziria a quantidade de trabalho necessária para obter pro- dutos primários nas terras menos produtivas que se cultivassem." A teoria da renda da terra tal como apresentada por Ricardo nlIo apenas é muito hábil. Ela continua substancialmente válida para explicar niIo só a renda da terra e das minas, mas também a de todos os bens que nlIo silo susceptíveis de re- produção (inclusive máquinas usadas, embora, aqui, a sua remuneraçlo niIo corra o risco de se transformar em problema social). Naturalmente, a renda da terra nlIo depende apenas da sua fertilidade, mas também da sua proximidade dos centros consumidores. um ponto apenas lembrado de passagem por Ricardo. Também o progresso tecnológico pode alterar substantivamente a estrutura das rendas e frear a tendência ao seu aumento. Mas, nas linhas mestras, o capítulo 2 dos Princípios de economia polftica e tributação incorporou-se sem maiores reparos à teoria eco- nômica moderna.
lários e lucros 510 sUficientemente importantes e insuficientemente cl~os para pe- direm uma análise interpretativa. A falta de clareza resulta, em primeiro lugar, da
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teoria do capital se desenvolveu por linhas tortas. Mux continuou com a id~ do período fixo de produçio, embora tivesse o cuidado de incluir, no capital cir~ culante, 1110 só o valor dos'salários adiantados aos trabalhadores, mas também o das matérias-primas adquiridas. Em certo ponto, Mux tentou livrar-se da unifor- midade do período de produção, mas por um artifício pouco fecundo: o de intro- duzir diferentes coeficientes de rotação do capital. A escola austríaca, embora contribuísse com observações notáveis quanto 1 natureza e o papel do capital, em- brenhou-se num túnel igualmente escuro, ao imaginar que o. aumento da rela- ção capital/mIo-de-obra de uma sociedade equivalesse a um alongamento do pe- ríodo médio de produçfo. A teoria do capital só alcançou a maioridade quando os economistas perceberam que, embora il prodUçIo capitalista exigisse tempo, nem era necessário nem desejável agarrar-se 1 idéia do período de produçfo. A teoria do fundo de salários estabelece imediatamente uma lei de determi- nação a curto prazo da remuneração do trabalho. Num determinado instante, po- dem considerar-se como dados o estoque de capital K da economia e a força de trabalho N, a qual corresponde a uma fração ativa da população total. (Nem Ricar- do nem seus contemporâneos, 1 possível exceção de Malthus, cogitavam da hipó-
ficaria determinado pela relação w = KfN. Ricardo 1110 enuncia 'explicitamente a teoria do fundo de salários, mas admite claramente que: a) a procura de mio-de-obra seja determinada pelo estoque de capital, a oferta pelo tamanho da população; b) os salários cresçam, permaneçam estacionários, ou decresçam, conforme o es- toque de capital se expanda a taxas maiores, iguais ou inferiores 1 oferta de tra- balho. Essas duas hipóteses equivalem 1 aceitação da teoria do fundo de sal4rios, ou pelo menos de algo muito próximo. Vejamos agora o segundo pilar do modelo de Ricardo: a lei dos rendimentos decrescentes. A origem dessa lei se encontra na teoria malthusiana da população. Em seu famoso 'ensaio, Malthus anteviu a catástrofe a que estava condenada uma sociedade onde a população tendia a crescer em progressio geométrica, enquanto que os recUrsos para a alimentar cresciam apenas em progreSSio aritmética: a humanidade· parecia caminhar inexoravelmente para a estagnação ao nível da misé- ria, onde o tremendo aviltamento dos sal4rios se encarregaria de frear o crescimen- to demognlfico, elevando as taxas de mortalidade até o ponto em que igualassem as de natalidade. O remédio pregado por Malthus era a planificação familiar da época: a abstenção sexual voluntária, nenhum homem se casando antes dos 25 anos, nem antes de ganhar o suficiente para sustentar a mulh!,r e seis filhos. As progressões de Malthus implicam uma lei logarítmica de correlação entre a produçlo agrícolay e a força de trabalho N nela empregada:
Nessa lei está embutido o problema dos rendimentos decrescentes: a produ-
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çllO agr~cola aumenta sempre que se emprega um homem a mais: mas o adicional de prooução conseguido pelo óltimo trabalhador se toma cada vez menor. (No caso particular da lei logarítmica, esse adicional é inversamente proporcional ã
força de trabalho,já que - = -.) dN N A fórmula malthusiana de crescimento demográfico não é exatamente uma progressão geométrica, pois Malthus admite que, em certo ponto, a miséria se en- carregue de frear o crescimento demográfico pela ascensão das taxas de mortali- dade. Deve-se supor, conseqüentemente, que quando os salários caírem a um nível
formalizar esse raciocínio consiste em slipor que a taxa de crescimento da popula- çllo seja proporcional ao excesso do salãrió efetivo sobre o mínimo de subsis- tência:
I dN N dt
= k(w - wO>. (1.8)
Por essa fórmula se .conclui que, se o salário mantiver um excesso constan- te sobre o míniino de subsistência, a população crescerá a uma taxa constante, is- to é, em progressão geométrica. As equações (1.7) e (1.8) são suficientes para corroborar as previsões de Malthus: a população não cessará de crescer enquanto o salário nio cair ao nível de subsistência. E, ainda que toda a produção agrícola fosse entregue aos trabalha- dores, isto é, ainda que, pela eliminação de todos os lucros e de todas as rendas da terra se tomasse w = Y IN, a população acabaria por se expandir até o ponto em que os salários caíssem ao mínimo de subsistência, como na figura 1.1.
y
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