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Neste artigo, analisaremos Pollyanna e Pollyanna Moça, traduções das obras de Eleanor H. Porter realizadas por Monteiro Lobato em 1934. A pesquisa é.
Tipologia: Esquemas
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Submetido em 30/09/2015 Aceito em 10/11/
Giovana Cordeiro Campos de Mello* Priscilla Vieira de Biasi Cordeiro* A tradução como movimento discursivo Neste artigo, analisaremos Pollyanna e Pollyanna Moça , traduções das obras de Eleanor H. Porter realizadas por Monteiro Lobato em 1934. A pesquisa é delineada por conceitos dos Estudos da Tradução e pelo referencial teórico-‐‑ metodológico da Análise do Discurso francesa – AD. Os Estudos da Tradu-‐‑ ção surgem a partir de uma visão da tradução como um complexo processo sócio-‐‑histórico e político-‐‑ideológico. Venuti (2002), por exemplo, defende ter a tradução o enorme poder de formar identidades culturais, podendo funcionar como elemento de resistência ou de manutenção do status quo de acordo com as estratégias de tradução escolhidas pelo tradutor. A resistên-‐‑ cia é proposta pelo estudioso em referência à estratégia da estrangeirização , por meio da qual o tradutor opta por manter o diálogo intercultural entre as culturas de partida e de chegada, evidenciando a procedência estrangei-‐‑ ra do texto. A domesticação, por sua vez, consiste na redução do texto es-‐‑ trangeiro em favor dos valores culturais da língua de chegada. Em nossas análises, usamos os conceitos de domesticação e estrangeirização, mas para resistência e assimilação adotamos a reelaboração desenvolvida por Mello (2010) a partir da AD francesa de Michel Pêcheux ([1975] 1988). Assim, re-‐‑ sistência e assimilação são entendidos como processos discursivos (des)conhecidos do sujeito que traduz. O termo resistência para se referir à prática tradutória de Monteiro Lobato foi usado em trabalhos anteriores: na dissertação de mestrado For Whom the Bell Tolls, de Ernest Hemingway e suas traduções no contexto brasileiro
(Campos, 2004); na tese de doutorado Assimilação e Resistência sob uma Pers-‐‑ pectiva Discursiva: o caso de Monteiro Lobato (Mello, 2010); e em trabalhos como “The Resistant Political Translations of Monteiro Lobato” (2006) e “The Resistant Translations of Monteiro Lobato” (2010), ambos de John Milton. Nosso trabalho se orienta pela proposta de Mello (2010) que, a par-‐‑ tir da AD, procura analisar como o sujeito-‐‑tradutor atua discursivamente a partir das marcas materiais dos movimentos do sujeito na forma tanto da resistência – entendida como instauração e fortalecimento de discursos dis-‐‑ sidentes – como da assimilação – percebida como repetição de discursos ins-‐‑ tituídos – , trazendo à tona posições ideológicas que podem chegar a ser contrárias ao que o sujeito supõe defender conscientemente. A AD propõe a categoria de discurso como efeito de sentidos entre interlocutores. Resumidamente, a AD entende que a ideologia constitui o discurso e o sujeito, sendo que as circunstâncias da enunciação e o contexto sócio-‐‑histórico e político-‐‑ideológico materializam-‐‑se na língua, sem que o sujeito tenha acesso direto a esse funcionamento e nem controle absoluto sobre o dizer: É a ideologia que fornece as evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, um patrão [...], evidências que fazem com que uma palavra ou enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem’ e que mascarem, assim, sob a ‘transparência da linguagem’, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados. (Pêcheux, [1975]1988, p.160). As palavras somente têm sentido pela interpelação ideológica, por meio da qual o sujeito está assujeitado à ideologia a partir das formações ideológicas – FIs – e de suas respectivas formações discursivas – FDs. As FIs são entendidas como uma gama complexa de atitudes, valores, repre-‐‑ sentações etc. que se relacionam com as posições de classe, as quais, pelo materialismo histórico, sabemos serem conflitantes. As FDs representam a manifestação das FIs em uma situação de enunciação; ou seja, para Pêcheux ([1975] 1988 ), a FD é a matriz de sentido que regula o que pode e deve ser dito (e o que não pode e não deve ser dito, já que a FD comporta a contra-‐‑ dição). As palavras e expressões têm sentido a partir das posições de sujeito 10.17771/PUCRio.TradRev.
Pollyanna , de Eleanor H. Porter, foi publicado como livro em 1913, tendo enorme sucesso, dentro e fora dos Estados Unidos, o que gerou continua-‐‑ ções. Há mais de um século Pollyanna vem ensinando o “jogo do contente” a diversas gerações, tendo se tornado um referente cultural. O livro tem como tema uma órfã de nove anos que tenta sobrepor os percalços da vida a partir de um pensamento positivo constante. Para isso, a protagonista se vale do “jogo do contente”, brincadeira que consiste em encontrar o lado bom de qualquer situação. O jogo surge como artifício do pai para que Pollyanna fosse feliz, apesar da perda da mãe e das dificuldades. A menina tenta ensinar o jogo a todos de Beldingsville, onde passa a morar com a tia após a morte do pai. Nos últimos capítulos, ela sofre um acidente e corre o risco de jamais andar novamente. Nesse momento, sua Tia Polly, antes si-‐‑ suda, aprende finalmente o jogo do contente e, no fim, não apenas a meni-‐‑ na se restabelece, mas também o romance anteriormente interrompido da tia com o Dr. Chilton. O livro seguinte, Pollyanna Grows Up (1915), aborda a vida da prota-‐‑ gonista dos treze aos vinte anos. A narrativa é dividida em duas partes: na primeira, Pollyanna viaja a Boston para visitar a triste Sra. Carew, que pro-‐‑ cura pelo sobrinho, o qual vem a ser Jimmy Bean, órfão e amigo de Pollyanna no primeiro livro; na segunda parte, a menina deve novamente ajudar Tia Polly, que perde o marido e sua boa condição financeira. A personagem Pollyanna é comumente tomada como símbolo de idealização, a ponto de o nome próprio funcionar também como adjetivo (e de forma dicionarizada), representando uma pessoa exageradamente oti-‐‑ mista. Críticas recentes, porém, sustentam que Pollyanna não representa simplesmente um estereótipo de otimismo irreal, pois a história apresenta uma dupla face: a menina/moça olha sempre para o lado bom dos fatos, mas o leitor também é conscientizado de que coisas ruins acontecem. Kok-‐‑ kola e Harde (2014), a partir de cartas de Porter, discutem que a autora pre-‐‑ tendia criar uma combinação de alegria e resiliência (p. 5). Robinson (2014) e Mills (1999) sugerem haver grande ambiguidade na construção da prota-‐‑ gonista. Para Mills, Pollyanna é tanto uma vítima quanto uma hábil mani-‐‑ puladora, disfarçada de uma adorável e inocente criança. Além disso, sus-‐‑ tenta que a menina rompe com a autoridade de figuras patriarcais (Mills 10.17771/PUCRio.TradRev.
apud Robinson 2014, p. 47). Robinson (2014, p. 49) salienta que, embora a construção do primeiro livro conduza ao reencontro de Tia Polly com o Dr. Chilton, endossando um desfecho ideológico significativo, ainda assim são apresentadas fraturas no modelo tradicional de família: há solteiros de co-‐‑ rações partidos, viúvas e as famílias tradicionais existentes não são particu-‐‑ larmente felizes. Assim, ainda que prevaleçam as leituras da idealização em Pollyan-‐‑ na , outras questões são suscitadas pela obra. Vemos por parte da protago-‐‑ nista ações e posturas não condizentes com o que se esperaria de uma me-‐‑ nina no início do século XX: dormir do lado de fora da casa (capítulo 7), insistência em conversar com estranhos – incluindo adultos do sexo mascu-‐‑ lino (capítulo 9), passear sozinha (capítulo 13), atrasar-‐‑se e não se importar com isso ainda que já advertida a não fazê-‐‑lo (capítulo 9), para citar alguns. Nossa investigação dos movimentos de Lobato na e pela língua se pauta por essa forma de ler a obra. A Biblioteca das Moças é uma coleção de aproximadamente 176 vo-‐‑ lumes, especializada em literatura para meninas e jovens mulheres, e pu-‐‑ blicada no Brasil entre 1920 e 1960. A partir da década de 1930, quando a Companhia Editora Nacional – C.E.N. era comandada por Lobato, a cole-‐‑ ção recebeu o acréscimo do adjetivo “nova”, mas continuou a publicar os títulos anteriores. Os livros geralmente possuíam enredos com uma estru-‐‑ tura bem definida: um herói nobre e rico e uma heroína plebeia e pobre, perfazendo uma trama complexa que finalizava com o casamento feliz. O casamento, então, seria a principal meta da mulher, e todos os romances terminavam com o encontro do herói com a "ʺmocinha"ʺ (Kirchner, 2013, p. 3). A partir da própria escolha das obras a serem traduzidas já é possível percebermos um movimento de filiação (e, portanto, assimilação) a discur-‐‑ sos hegemônicos que sustentam o papel principal da mulher na sociedade brasileira como sendo o de esposa, com a circulação de sentidos que reme-‐‑ tem à busca pela ascensão social através do enlace matrimonial. Pela AD, sabemos que os dizeres (e fazeres) não se originam no exercício da vontade, mas nos chegam (e nos constituem) por nossas identificações (ou não) com discursos em circulação a partir da interpelação ideológica. Lobato era seu próprio editor e detinha poder de decisão na C.E.N.. Ao retomar a coleção, 10.17771/PUCRio.TradRev.
inferior das crianças brasileiras frente à riqueza das inglesas é de Lobato, não de Barrie. Esses movimentos, em que há uma intervenção direta de Lobato no texto, são também nosso objeto de pesquisa. Como editor-‐‑tradutor^2 , Lobato foi fundamental na política tradutó-‐‑ ria do Brasil, tendo sido responsável pela circulação de diversos títulos es-‐‑ trangeiros em português, principalmente advindos de contextos de língua inglesa. Na década de 1930, a influência cultural era europeia, predominan-‐‑ temente francesa, e por acreditar que o leitor brasileiro precisava se desgar-‐‑ rar dessa dominação cultural, Lobato proporcionou-‐‑lhe o contato com grandes nomes da literatura mundial, como Kipling, Staden, London, Da-‐‑ foe, Andersen e Hemingway, para citar alguns. Ao mesmo tempo, o editor-‐‑tradutor buscou valorizar o nacional, em um momento em que a sociedade brasileira copiava os modelos europeus, incluindo o modo de falar francês. Lobato nutria ainda grande admiração pelo contexto estadunidense, e a experiência como adido comercial nos Estados Unidos entre 1927 e 1931 aumentou seu interesse pela literatura daquele país. Lobato não se conformava com os graves problemas do Brasil e sustentava opiniões muitas vezes divergentes em relação a assuntos deli-‐‑ cados, as quais perpassaram seus escritos. Insistia, por exemplo, na explo-‐‑ ração do petróleo no Brasil, enquanto o discurso do Estado Novo de Var-‐‑ gas, baseado em relatórios de especialistas estrangeiros, indicava sua ine-‐‑ xistência. A década de 1930 foi especialmente significativa, pois represen-‐‑ tou a fase em que Lobato mais atuou na causa do petróleo e da mineração. Na obra não ficcional O Escândalo do Petróleo (1936), Lobato denunciou a burocracia federal, a ação das empresas estrangeiras e a submissão da elite brasileira aos interesses estrangeiros. Meses depois de seu lançamento, a obra foi proibida pelo governo, vindo a ser liberada somente em 1945, com o fim da ditadura Vargas. A batalha de Lobato também era travada na fic-‐‑ ção. Em 1937, escreveu O Poço do Visconde , cuja primeira edição trazia o subtítulo “Geologia para Crianças”. O didatismo lobatiano se fazia presen-‐‑ (^2) Usamos editor-‐‑tradutor, com o termo “editor” na frente, para marcar a questão de Lobato ser seu próprio patrocinador. Como abordado em outros trabalhos (Campos, 2004; Mello, 2010), Lobato deter-‐‑ minava a forma como os textos seriam traduzidos em suas editoras. No caso da C.E.N., mesmo quando vendeu suas ações para o sócio, Octalles Marcondes Ferreira, era Lobato quem decidia quem seria publicado e como, o que incluía as traduções. 10.17771/PUCRio.TradRev.
te: o subtítulo suscita o objetivo da obra – ensinar aos jovens, de forma lú-‐‑ dica, que havia petróleo no Brasil: “E então aconteceu um fato espantoso. O Brasil, que não tinha Petróleo, que estava oficialmente proibido de ter petróleo , passou a ser o maior produtor de petróleo do mundo” (Lobato, 1937, p. 160, grifos nossos). As sequências discursivas grifadas materializam um movi-‐‑ mento de resistência de Lobato, ou seja, uma contraidentificação do sujeito com a forma-‐‑sujeito de uma FD discursiva sobre o petróleo no Brasil que impedia a circulação de sentidos favoráveis à sua exploração. O tradutor também se faz presente, uma vez que a obra ficcional em questão pode ser considerada uma tradução intralingual da obra adulta e não ficcional O Escândalo do Petróleo (1936) para o público infanto-‐‑juvenil^3. Com relação à forma como a mulher é discursivizada, também são encontradas posições discursivas divergentes ao pensamento hegemônico nos dizeres de Lobato. Há enunciações em que ele deixa entrever algum tipo de igualdade entre os gêneros feminino e masculino. Em carta de 1928 ao cunhado Heitor, Lobato defende uma espécie de teste antes do casamen-‐‑ to, por meio do qual o casal, com o consentimento das famílias, poderia ter experiências sexuais sem um casamento formal. Se não desse certo, ambos, e não somente o homem, poderiam retornar às respectivas famílias, cada um para o seu lado (Mello, 2010, p.188). No que tange à valorização da mu-‐‑ lher, citamos a construção da boneca Emília, que representa a inteligência e autonomia dadas a personagens femininas (cabe lembrar que Emília divor-‐‑ cia-‐‑se de Rabicó quando o Estado brasileiro ainda estava longe de legitimar tal prática). Emília era tão assertiva e contestadora que Lobato afirmava “Tão independente que nem eu, seu pai, consigo dominá-‐‑la [...] Cada vez mais, Emília é o que quer ser, e não o que eu quero que ela seja” (Lobato, 1955, p.341-‐‑342). Um movimento de resistência interessante encontra-‐‑se em sua tra-‐‑ dução de For Whom the Bell Tolls (1940), de Ernest Hemingway, publicada em 1941 e realizada na época em que Lobato estava preso. Há uma cena de sexo entre os protagonistas – Jordan e Maria – e o tradutor resume a cena e usa uma linha de pontos. Em um primeiro momento, podemos interpretar (^3) Análise proposta por Maria Clara Castellões de Oliveira, então professora da UFJF, em conversas com Mello em 2003. 10.17771/PUCRio.TradRev.
Lobato acreditava que traduzir era ouvir uma história e recontá-‐‑la com palavras próprias, por isso ele remodelava e alterava os textos apli-‐‑ cando seu próprio estilo, efetuava cortes, abrasileirava a linguagem e inclu-‐‑ ía seus “desabafos” – trechos em que Lobato inseria e registrava de algum modo sua opinião sobre as questões políticas do Brasil (Mendes, 2002; Mel-‐‑ lo, 2010). Tendo em vista sua postura ao traduzir, Lobato se portava como au-‐‑ tor do texto, vendo no texto traduzido a oportunidade de expor seus pró-‐‑ prios pensamentos e críticas sobre as questões do Brasil, na tentativa de promover algum tipo de deslocamento ideológico. Um exemplo é que Lo-‐‑ bato defendia haver em circulação um falar já brasileiro, não mais portu-‐‑ guês. Em sua busca por uma mudança radical de mentalidade, suas obras como escritor e tradutor representavam um espaço de luta ideológica: “Es-‐‑ tou também traduzindo a ‘História da Bíblia’, do Van Loon. Minha espe-‐‑ rança é que com a publicação deste livro uns dez mil leitores fiquem de miolos transtornados” (Lobato, 1955, p. 51). A questão que desejamos susci-‐‑ tar é que, se conscientemente o sujeito busca a forma da luta, discursiva-‐‑ mente se constitui pela tensão; ou seja, em termos discursivos, há resistên-‐‑ cia, mas também assimilação. Movimentos tradutórios de Lobato em Pollyanna e Pollyanna Moça : o fio do discurso Passemos a alguns exemplos do cotejo das obras. Para melhor distinção entre as obras, usaremos: “PGU” em referência a Pollyanna Grows Up, “PM” para Pollyanna Moça , “PP”^ para o livro Pollyanna de Porter e PL para a tra-‐‑ dução de mesmo título feita por Monteiro Lobato. Estrangeirização e Didatismo Tanto Pollyanna (1913) quanto Pollyanna Grows Up (1915) foram traduzidos por Lobato em 1934. O primeiro foi intitulado Pollyanna e o segundo Pollyanna Moça. Observamos que Lobato manteve a designação da perso-‐‑ nagem na escrita inglesa. O nome foi cunhado por Porter pela junção dos nomes de suas tias (“Polly” + “Anna”) e, a partir do sucesso da obra, entrou 10.17771/PUCRio.TradRev.
no rol de nomes da língua inglesa. Lobato, em uma postura estrangeiriza-‐‑ dora, manteve a diferença ao não abrasileirar a escrita (não substituiu o “y” por “i” e deixou o “n” duplo). Observamos nas duas obras vários momentos em que Lobato pro-‐‑ curou produzir algum ganho de conhecimento, ampliando o vocabulário das leitoras dentro da própria língua da tradução ou introduzindo termos de línguas estrangeiras. Segundo Milton (2006; 2010), Lobato tinha como carac- terística promover o enriquecimento de vocabulário por meio de suas adaptações. Em Peter Pan , por exemplo, Dona Benta explica o significado de palavras como “pigmento”, “cinegética”, “excêntrico” e apresenta a etimologia do nome do navio do Capitão Gancho (Milton, 2006, p. 217). Em Pollyanna e Pollyanna Moça, chamou-‐‑nos a atenção o modo como o tradutor estrangeiriza mesmo quando há termos correspondentes em português. Vemos nessa postura uma tentativa de marcar a origem an-‐‑ glófona do texto e ainda uma forma de didatismo, uma vez que o tradutor parece ter como objetivo ensinar inglês às leitoras. Um exemplo é “Someti-‐‑ mes it'ʹs just the 'ʹThank you'ʹ she gives when somebody insists on givin'ʹ us their seat...” (PGU, 78, itálico nosso) que Lobato traduziu como “Às vezes é o simples ‘Thank you!’ que ela dá a quem lhe cede o lugar...” (PM, p. 7 4 , itálico nosso). A expressão poderia ser facilmente traduzida por “obriga-‐‑ do”. O tradutor não apenas marca o texto (e as personagens) como estran-‐‑ geiras, mas também ensina às meninas e moças brasileiras que a forma de agradecer em inglês é “Thank you”. Do mesmo modo, são usados nas tra-‐‑ duções termos como “Gee”, “Okey”, “break-‐‑down”, “drug-‐‑store” e a cita-‐‑ ção de um livro por Jimmy Bean é deixada em inglês, seguida de uma tra-‐‑ dução entre parênteses (PL, p. 84). O recurso do didatismo, inclusive no que se refere a termos estrangeiros, está presente também nas obras de Lo-‐‑ bato como escritor^4. Em outras passagens, notamos um movimento que vai além da ma-‐‑ nutenção de termos em língua inglesa: há o acréscimo de palavras e expres-‐‑ (^4) No já citado Poço do Visconde , de 1937, há um grande número de termos em inglês. No caso dessa obra em particular, percebemos que o autor, por meio de suas personagens, estaria ensinando o funcionamento das máqui- nas para exploração do petróleo, sendo que os termos tecnológicos eram usados em inglês (como ainda acontece atualmente no que tange à tecnologia em geral). 10.17771/PUCRio.TradRev.
gado que, pela importação do francês, os dois termos fazem parte da cultura brasi- leira. No entanto, uma postura de resistência, tal qual explicitada por Lobato em suas cartas, seria a de não usar termos franceses, seja pela proposta de uma descri- ção ou pela substituição dos mesmos termos por algo correspondente na “língua da terra” (Lobato, 1955, p. 276) 7 . Nas obras analisadas, o didatismo também opera na forma de uma tradução intralingual, ou seja, o tradutor procura apresentar às leitoras (público feminino) palavras novas no próprio português, como forma de ampliar o vocabulário das leitoras. Em um diálogo entre Pollyanna e Nan-‐‑ cy, a palavra ‘ skeleton ’ aparece apenas uma vez, sendo retomada pelo pro-‐‑ nome ‘ it’ : “ Some says he'ʹs crazy, and some jest cross; and some says he'ʹs got a skeleton in his closet. ‘Oh, Nancy!’ shuddered Pollyanna. ‘How can he keep such a dreadful thing? I should think he'ʹd throw it away !’” (PP, p. 56, itálicos nossos). Na tradução, um sinônimo em português é acrescentado e marcado com aspas, na indicação de ser uma palavra menos usual e, por-‐‑ tanto, possivelmente nova para o vocabulário das leitoras: “Muita gente diz que é maluco; outros dizem que tem um ‘escaleto’ no armário. -‐‑ Oh, Nancy! Protestou a menina com um arrepio. Como poderia ter tal coisa em casa? Com certeza já jogou o esqueleto fora.” (PL, p. 77, itálico nosso). Lobato usa o termo considerado estranho, marca a diferença com aspas (note-‐‑se que elas não existem no texto de partida) e, mais adiante, traduz o termo dentro da própria língua portuguesa, usando uma palavra mais corrente “esquele-‐‑ to” no lugar que seria de um pronome – “it”. Domesticação e remodelação Lobato é conhecido por resumir, cortar e modificar os textos que traduz. No cotejo das obras, corroboramos a postura domesticadora quanto à forma, pois ele “abrasileira” a linguagem, efetua a “poda de foice” (Loba-‐‑ to, 1955, p. 60) e remodela o texto pelo uso de seu próprio estilo, privilegi-‐‑ ando a língua de chegada e facilitando o acesso do público infanto-‐‑juvenil doméstico. Um dos recursos é o uso recorrente do diminutivo afetivo. Na passagem "ʺListen ter that, will ye? Ain'ʹt that the real thing, now? Just you (^7) Acrescentamos que as cartas de Lobato estão repletas do uso de termos franceses (ver Mello, 2010). 10.17771/PUCRio.TradRev.
wait while I introDOOCE ye!"ʺ (PGU, p. 81), que é traduzida por “– Está vendo? Uma companheirinha das boas. Vou apresentá-‐‑los...” (PM, p. 77 , itálico nosso), Lobato domestica, traduzindo o trecho com foco no público receptor e optando por uma expressão que poderia ser facilmente entendi-‐‑ da no universo infantil. A nosso ver, ele tenta reconstruir o que acredita ser um diálogo entre duas crianças brasileiras, o que também é demonstrado pelo acréscimo de “das boas”, uma marca de expressão usada na oralidade. O acréscimo do diminutivo é recorrente. Para “Pollyanna skipped gleeful-‐‑ ly” (PP, p. 27) e “We’ve played it always, ever since I was a little, little girl...” (PP, p. 28), Lobato remodela para “Pollyanna saltou para o chão, com agilidade duma veadinha” (PL, p. 39, itálico nosso) e “Em casa brincá-‐‑ vamos disso, desde que eu era assimzinha. ” (PL, p. 40, itálico nosso), res-‐‑ pectivamente. Lobato se vale de seu próprio estilo, usando termos da cul-‐‑ tura receptora. Do mesmo modo, em vez do nome “Pollyanna”, surge o termo “diabrete”: “Pollyanna was still revolving round and round her aunt” (PP, p. 127) é traduzido por “O diabrete continuava a voltear-‐‑lhe em redor.” (PL, p. 135, itálico nosso). Lobato, então, apresenta às leitoras traços de oralidade e coloquiali-‐‑ dade e, com isso, de brasilidade. Os movimentos tradutórios também ope-‐‑ ram no sentido de privilegiar seu próprio estilo – o uso de superlativos, diminutivos, expressões regionais, interjeições, inversões de termos nas orações – o que também representava uma forma de facilitar o entendimen-‐‑ to por parte do público infantil. Esse movimento está em consonância com sua proposta da tradução como um processo de remodelação, em que o tradutor ouve e reconta uma história com palavras próprias. A questão do feminino Por meio de cartas, prefácios, traduções, e mesmo a partir de personagens, como a já citada boneca Emília, percebemos na escrita de Lobato uma pos-‐‑ tura por vezes contrária aos discursos hegemônicos sobre as mulheres. Ao mesmo tempo, porém, sua editora lança uma coleção destinada a meninas e moças cujo tema recorrente é o percurso até o casamento. Há, portanto, 10.17771/PUCRio.TradRev.
à obediência a determinadas regras; já “meninos decentes”, por outro lado, não encontra usos tão naturalizados (e comuns) quanto “meninas decen-‐‑ tes”. Outro exemplo da filiação do sujeito-‐‑tradutor a discursos conservado-‐‑ res está em "ʺSee here, why don'ʹt you find some one your own age to talk to?"ʺ (PP, p.70, itálicos nossos). Lobato restringe a opção da menina, que deveria conversar com alguém não só de sua idade, mas também do sexo feminino: “Escute, por que não procura uma menina da sua idade para conversar?” (PL, p. 56, itálico nosso). Um exemplo interessante foi observado na passagem em que um enfermeiro entra em cena para cuidar de Pollyanna após um acidente. No texto de Porter é usado o substantivo “nurse ” , que não carrega marcas de gênero em inglês, mas que é tomado pela autora como sendo do gênero masculino. Na tradução, porém, a referência é alterada para o gênero femi-‐‑ nino: enfermeira. Existem especialidades profissionais que são discursiva-‐‑ mente construídas como sendo estritamente masculinas ou femininas – a enfermagem é um exemplo do segundo caso, pelo menos no Brasil. Esse pré-‐‑conceito é constituído historicamente. Segundo Costa (2002), na década de 1930, “a enfermagem deveria se tornar uma profissão ‘nobre’, destinada a mulheres ‘de família’ e interessadas pelo saber científico” (s/p). O sujeito-‐‑ tradutor se identifica com esse discurso e, para não causar estranheza às leitoras, traduz “nurse ” como sendo uma enfermeira, e não um rapaz, co-‐‑ mo está no contexto de partida: “ a young man (a trained nurse from the nea-‐‑ rest city)” (PP, p.117, itálicos nossos) é traduzido como “ uma jovem enfermei-‐‑ ra , contratada na cidade próxima” (PL, p.89, itálicos nossos). Os exemplos mostram restrições às possibilidades de sentidos, sendo que Lobato inter-‐‑ vém pela sua filiação a discursos hegemônicos, que passam também pela identificação do sujeito com uma FD capitalista, bem como com uma FD sobre as mulheres. Os exemplos mostrados também demonstram o recurso do didatismo, pois as leitoras estariam entrando em contato com instruções comportamentais (nos casos apresentados, na forma da identifica-‐‑ ção/assimilação a discursos instituídos). 10.17771/PUCRio.TradRev.
Os desabafos de Lobato Outra característica presente nas traduções de Lobato é o que Mendes (2002) chamou de “desabafos lobatianos”, que se referem a trechos em que o sujeito-‐‑tradutor intervém no texto inserindo sua própria opinião sobre questões políticas do Brasil. Como já comentado, Lobato foi muito atuante nas causas brasileiras, o que incluía a exploração do petróleo e a siderurgia, e sua luta perpassou seus escritos. Assim como Mendes ( 2002 ), Campos (2 004 ) e Mello (2010), também encontramos exemplos desses desabafos. Na passagem “ ’Yes, but some folks don’t want to be revolutionized’, smiled Pollyanna” (PGU, p. 188, itálicos nossos), algo que era parcial na tradução é transformado de modo a produzir sentidos que sugerem uma total negação em relação à revolução, tomando o Brasil como contexto. O objeto da revolução deixa de ser “algumas pessoas” para ser “o mundo”, que pode ser entendido como o contexto brasileiro: “– Mas ninguém deseja ver o mundo revolucionado, sorriu Pollyanna.” (PM, p.1 62 , itálicos nossos). Sustentamos que essas modificações não são fruto da fala da personagem Pollyanna, tampouco das filiações discursivas da autora Eleanor Porter, mas sim do ativista Monteiro Lobato, que utiliza seu trabalho tradutório (e autoral) para movimentar e veicular posturas ideológicas próprias na tenta-‐‑ tiva de suscitar mudanças na sociedade brasileira. O pronome indefinido “ninguém” pode ser interpretado em referência ao governo do Brasil, o qual Lobato considerava retrógrado ao não reconhecer e apoiar a causa do petróleo. Outro exemplo interessante é a ampliação do sentido de “real po-‐‑ verty ” , que em “For the first time in her life Pollyanna had come face to face with real poverty ”. (PGU, p. 1 08 ) foi traduzido por “Pela primeira vez na vida dava de cara com a pobreza – com a pobreza, real, profunda, comple-‐‑ ta ” (PM, p. 91, itálicos nossos). A pobreza a que o tradutor se refere e que se torna maior e mais intensa que a do texto de partida é a pobreza do Brasil, o que é materializado no texto da tradução pelo acréscimo dos adjetivos “profunda” e “completa”. Temos o sujeito-‐‑tradutor se marcando e a seu contexto no fio do discurso. A crítica, na tradução, é à miséria que Lobato vê no Brasil, que o incomoda e contra a qual ele tanto queria lutar. 10.17771/PUCRio.TradRev.
INDURSKY, F. Formação discursiva: ela ainda merece que lutemos por ela? In: INDURSKY, F. e FERREIRA, C. L. (orgs). Análise do discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007, p. 163-‐‑
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