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Tipologia: Notas de estudo
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Titulo Original: Night's Daughter
Ano de Lançamento: 1985
Sobre os Halflings de Atlas-Alamésios
No princípio era serpente, e mais tarde foi dito entre os homens que o clã da serpente surgiu primeiro e ajudou as mãos dos Criadores a dar forma aos homens. Seja como for, naqueles dias os que traziam o sangue da Serpente não eram conhecidos como Halflings, mas como Homens ou, também, Filhos do Macaco.
Naqueles primeiros dias, assim foi dito, no centro do Ano, quando o Sol inicia seu retorno, na Noite da Grande Escuridão, o Senhor da Serpente copulou no Grande Ritual com a Sacerdotisa da Noite. Assim foi que o sangue da Serpente (todos o diziam naqueles dias) penetrou no clã da Casa da Noite e no sangue da sacerdotisa. A primeira entre as sacerdotisas, que naqueles dias eram chamadas de Filhas da Lua e das Estrelas, passou a ser conhecida como Rainha da Noite; ou, mais tarde, como Rainha Estrela.
E desde que o clã da Serpente elevou-se às alturas do pensamento e da inteligência consciente dos homens, em sua vaidade de criação, os reis-sacerdotes da Casa do Sol produziram outros Halflings. Eles criaram a raça das focas e dos golfinhos, para descerem às profundezas dos oceanos e trazerem ostras para as mesas, pérolas para adornar a guirlanda da Rainha Estrela e a coroa dos Sacerdotes-Sol; eles também reuniam peixes para as redes dos pescadores.
Mais tarde criaram a raça dos Pássaros na esperança de que teriam servos que voariam, levando mensagens entre suas cidades; mas nisto falharam, pois a raça dos Pássaros foi tão elaborada e estruturada que suas asas não podiam suportá-los. (Os Criadores tinham decidido que, antes de mais nada, todos os Halflings deveriam ser a imagem e semelhança dos homens.) Além disso, o clã dos Pássaros era apenas parcialmente inteligente; alguns deles tinham talento suficiente para se tornarem cantores e músicos nas cortes da Rainha Estrela e dos Sacerdotes-Sol. Entretanto, a experiência não foi um sucesso, e, à época de nosso conto, poucos eram os membros da raça dos Pássaros que permaneciam em Atlas-Alamésios.
Também criaram Halflings da raça dos Cães, na esperança de terem servos da maior confiança; e nisto foram extremamente bem-sucedidos, pois os membros da raça dos Cães eram inteligentes, porém não muito, já que sua maior felicidade consistia em servir àqueles que amavam. Também criaram o clã dos Gatos; mas estes eram demasiadamente rebeldes, e fugiram para o interior, onde estavam os remanescentes do Povo-Que-Fora-Antes (dizia-se que eles foram os primeiros Criadores) e lá viveram de pilhagens. E criaram a raça dos Bois, que podiam suportar grandes fardos, e pelo seu trabalho foram construídos colossais pirâmides e templos, cujas ruínas, em meio à selva castigada por chuvas intensas, resistem até os dias de hoje.
Não se sabe por quanto tempo os homens e os Criadores viveram em paz com os Halflings. Todas as civilizações guardam lembranças e lendas que se referem a uma Idade de Ouro, quando as pessoas viviam em paz. Talvez tenha sido assim um dia, talvez não.
Mas, não se sabe como ou por que (embora haja rumores de que tudo começou com o clã da Serpente), tornou-se patente mesmo para os Criadores que nem tudo estava bem entre eles e os Halflings. Não apenas os homens escarneciam dos Halflings, mas os Halflings, que tinham bem pouco do verdadeiro sangue humano, começaram a se sentir imperfeitos, inferiores e desprovidos do que era essencial a
estava velho e morrendo, em casar-se com o herdeiro presuntivo, um jovem de tipo sóbrio e sacerdotal conhecido como Sarastro, e dele ter um herdeiro que reuniria o sangue das casas reais de Atlas-Alamésios, a do Grande Templo da Mãe da Noite e a da Casa Real do Sol.
Embora a Rainha Estrela já estivesse passando da idade de conceber, concordou com isso; os dois casaram-se no Templo da Luz, e um ano mais tarde a Rainha Estrela deu à luz uma criança, uma menina que eles chamaram de Pamina. Quando esta menina, herdeira da Rainha Estrela e da Casa da Luz, viesse a sentar no trono de Atlas-Alamésios, então (pensou a Rainha Estrela) sua filha Pamina anularia o que a Rainha Estrela considerava como fraqueza e loucura da Casa da Luz.
Mas a trégua entre o Sacerdote da Luz e a Sacerdotisa da Velha Deusa da Noite não poderia durar. No segundo ano, antes que Pamina deixasse de mamar, Sarastro e a Rainha Estrela já brigavam por causa do tratamento cruel que ela dispensava aos seus servos halflings, e que ela não abrandava nem alterava. Assim a Rainha Estrela abandonou o palácio dos reis-Sol e levou Pamina consigo para o Templo da Noite. Lá, jurou ódio eterno a Sarastro e à Casa da Luz. Sarastro ficou magoado, pois, apesar de todo o orgulho e arrogância da Rainha Estrela, ele a amara com toda a força de seu coração, e ainda a amava. Mas seu pai, que detestava a mulher com quem casara seu filho, disse: ―Deixe-a partir; ela é uma criatura má, como são todos os de seu clã. Um dia você se casará com uma outra mulher que lhe dará um filho sem a mácula da Serpente.‖
Logo após isto, o grande sacerdote e rei de Atlas-Alamésios morreu, e Sarastro ascendeu ao trono de seus antepassados. Não se casou, preferindo esperar que Pamina se tornasse adulta para governar ao lado de seu esposo como sua sucessora.
E aqui começa nossa história.
Havia sangue na lua. Da varanda, a Princesa Pamina, frágil e delicada, olhava temerosa a névoa sombria e rubra que, sorrateira, avançava sobre a face do disco lunar, rastejando sobre a face da Lua. Jamais vira algo assim. Lá embaixo, a cidade era apenas manchas muito escuras contra a noite, e ela ouvia um som abafado como um lamento; lamento distante, de terror pelo lodo vermelho que corrompia a pureza prateada da face da noite. Sentiu que também deveria lamentar-se, ajoelhar-se e chorar de terror e arrependimento.
Mas Pamina tinha nove anos, e era a filha mais nova da Rainha Estrela; fora ensinada a manter-se com dignidade mesmo na solidão de seus aposentos, e um dia governaria todas aquelas pessoas. Não poderia correr e se esconder em seu quarto para chorar de medo, embora o terror estivesse dentro dela. O que havia de errado com a noite, e por que sua mãe, que era a Senhora da Noite, não a corrigia logo?
Ela percebeu movimentos em seus aposentos; então, viu atrás de si a forma sombreada de sua meia-irmã Disa, filha mais velha da Rainha Estrela.
Ainda assim as palavras de Disa eram estranhamente reconfortantes. Sua mãe sabia que havia algo de errado no céu; não era ela a Rainha Estrela? Alguma coisa seria feita, então, para dar fim a esta cor horrível na Lua, esta terrível escuridão cobrindo a noite. Obedientemente, entrou em seu quarto, onde sua serva halfling, da raça dos Cães, uma femeazinha roliça de orelhas macias e caídas, esperava por ela com três trajes de procissão suspensos por suas mãos estendidas que lembravam patas.
Sua voz não era nem latido nem grunhido, embora tivesse as qualidades de ambos, e era agradável e familiar a Pamina. Tinha certeza de que para Rawa ela era o centro do mundo; e suas primeiras lembranças evocavam aqueles braços peludos que a embalaram e aquele peito macio que a aconchegara. Mas desde que começara a tomar conhecimento das coisas, fora-lhe incutido que Rawa, sendo um cão halfling, não poderia decidir e escolher coisa alguma por si mesma; como todos os membros da raça do Cão, recebia ordens de seu senhor ou senhora.
Pamina voltou-se para Disa, sem saber o que escolher para esta procissão tão imprevista. Carrancuda, Disa examinou os trajes estendidos.
Pamina agarrou-se a Rawa quando Disa deixou o quarto. O corpo macio da mulher- cão estava tremendo.
pensamento de que Rawa era um Halfling, um cão halfling, e deles não se pode esperar que tenham qualquer discernimento.
O ganido suave de Rawa alertou-a para o som de passos do lado de fora; Disa estava voltando. Ela empurrou Papaguena para trás de uma das cortinas e voltou-se para encarar sua meia-irmã.
Não foi Disa que entrou, mas uma meia dúzia de guardiãs, lideradas pela mais jovem de suas irmãs. Kamala não era tão alta quanto Disa, seu corpo era mais cheio e, embora Pamina jamais tivesse parado para refletir sobre isso, ela pensou que Kamala parecia sutilmente mais humana. As guardiãs usavam negros saiotes lisos e couraças; Kamala, entretanto, estava em seus trajes de procissão. Olhou severamente para Rawa, que gania e grunhia excitada, e disse:
Logo a seguir, Papaguena foi arrastada de trás das cortinas, tremendo diante das guardiãs.
A chefe das guardiãs, uma mulher amável, com alguns traços, talvez, da raça dos Cães, disse:
Ela moveu-se, pensou Pamina, como uma serpente pronta para o bote. Kamala falou em voz baixa:
Pamina olhava sua irmã com olhos arregalados. Sentiu como se nunca antes tivesse visto suas meias-irmãs. Ocorreu-lhe pela primeira vez: elas também são Halflings. Ela sempre soubera que Kamala, Disa e sua terceira irmã, Zeshi, tinham por pai a Grande Serpente, mas até aquele momento não tinha se dado conta do que isto significava.
―Serei uma Halfling também; então, também posso ser levada ao sacrifício?‖, perguntou-se. Mas não; ela era a filha da Rainha Estrela.
E elas também eram...
Mas Pamina recusou-se a deixar a trêmula Papaguena, e Disa ordenou, furiosa:
De repente fez-se silêncio no quarto. As guardiãs, ofegantes, ajoelharam-se. Mesmo Disa e Kamala curvaram-se, enquanto Rawa, ganindo de terror, lançou-se contra a parede. A Rainha Estrela perguntou:
Apenas Pamina não demonstrou medo. Correu para sua mãe e pediu:
A Rainha Estrela olhou para sua filha mais jovem com um rápido e terno sorriso.
A Rainha Estrela sorriu e disse:
Mesmo depois de ter passado muito tempo, quando Pamina lembrava aquele sorriso, ele a congelava. Mas a voz da Rainha era suave, e Pamina pensou que aquele olhar tinha sido fruto de sua imaginação.
CAPÍTULO DOIS O deserto estendia-se diante dele, aberto e vazio; alguns arbustos recortavam o horizonte à distância. Olhar para tão longe feria-lhe os olhos. Ele podia ver morros e alguns contornos indistintos que lhe pareciam construções.
―Por que‖, perguntava-se Tamino, ―este deserto imenso era chamado Terras Mutáveis? Mais exato seria chamá-las Terras Imutáveis.‖
Ele estava viajando há mais de uma lua; no começo da jornada a Lua estava cheia. Agora aparecia outra vez, um pálido disco circular nas bordas da noite, e ele ainda não sabia se havia alcançado seu objetivo.
Tamino, olhando a face pálida da Lua, lembrou-se de que não havia comido nada desde o amanhecer. Colocou seu alforje no chão e vasculhou-o. Pouco sobrara das provisões com as quais iniciara a jornada: poucos pedaços de frutas secas e nacos de carne-seca, sobras de sua última caçada - o corpo de um pequeno animal do deserto, não maior que um esquilo, embora diferente de qualquer esquilo jamais visto por ele em toda a sua vida. Talvez amanhã pudesse caçar de novo: quem sabe encontraria alguma espécie de caça nesta imensidão estéril.
Cuidadosamente, desatou o odre da cintura. Amanhã, o mais tardar, precisaria de água também. Pensou em fazer uma fogueira para ter companhia - a visão de algumas faíscas contra este deserto desolado e silencioso seria agradável. Mas havia pouco o que queimar, apenas alguns ramos e talos secos de arbustos estéreis. Mas ainda assim, secos e inóspitos, eram as únicas coisas vivas que ele via; e relutou tirar deles, sem necessidade, a pouca vida que possuíam. Esta noite ficaria no escuro.
Tomou uns poucos goles de água e mastigou, pensativo, as frutas secas.
Um ano antes, uma lua antes, não teria acreditado que se encontraria num lugar como este. Enrolou-se no seu manto gasto de viagem - fora belo e novo há não muito tempo, mas desde então lhe servia de coberta, agasalho e proteção em qualquer tempo e com isto envelheceu. ―Como eu próprio‖, pensou Tamino.
Até a última lua nova, Tamino era nada mais que o mimado filho mais jovem do Imperador do Oeste; não passara dificuldades e, salvo os jogos com seus companheiros e alguma caçada, vivia despreocupado.
Ordenaram-lhe então que partisse, sabendo apenas que era vontade de seu pai, o Imperador, que viajasse até o grande Templo da Sabedoria em Atlas-Alamésios - do qual ele só sabia que distava a um mês de jornada - para se submeter aos Ordálios. Durante a jornada perguntava-se sobre o que seriam os Ordálios, quando
começariam e se esta jornada já seria, de fato, a primeira deles. Segundo as instruções recebidas, tinha ultrapassado as montanhas que limitavam o Império do Oeste, atravessado o Grande Deserto, que separava o Império das Terras do Grande Atlas, e entrado nas Terras Mutáveis, que, conforme sabia, não mudaram nada.
Mesmo agora, deitado sob as estrelas distantes, tremendo um pouco, pois a noite estava fria e seu manto era mais apropriado para o clima ameno das terras de seu pai, começou a pensar se, na verdade, esta imensidão e a jornada não teriam, afinal, produzido uma mudança nele. Talvez já não fosse o mesmo Tamino que, trinta dias antes, partira da casa do pai. Pelo menos estava mais magro. Nunca em sua vida perdera uma refeição, e nesta jornada perdera muitas. Realmente, muito do que comera fora conseguido por sua habilidade de caçador.
Nem sabia o que era estar sozinho ou sentir medo. Não que a jornada fosse muito perigosa. Mas era solitária; nunca antes lamino sentira falta de conselho ou companhia. Não havia ninguém para lhe aconselhar sobre a melhor estrada, o caminho mais seguro nos desfiladeiros; ninguém para guiar sua mão ou flecha quando atirava durante a caça.
Não tinha guia, senão toscas instruções para seguir o sol nascente; nenhum conselheiro; nenhum conselho que não a lembrança daqueles dados por seus conselheiros de infância - e tomou consciência do pouco uso que fizera daquela orientação.
Não mais sentia medo como no início da jornada. Não mais ansiava por alguém para conversar, nem para o guiar. Não apenas seu corpo estava forte, mas a ele parecia que seu espírito e determinação estavam mais revigorados, mais autoconfiantes. Quando preparava uma flecha e atirava, sabia que seu vôo seria rápido e certeiro. Não se tratava mais de um jogo, de uma competição para provar superioridade, quando, na maior parte do tempo, os companheiros escolhidos pelo Imperador para seu filho hesitavam em suplantá-lo no jogo. No deserto, se a flecha não atingisse o alvo, dormiria sem jantar, mas não sem antes encontrar a seta errante, já que não haveria outra para substituí-la.
―Não‖, pensou, ―ainda sou Tamino, mas um Tamino mais forte, talvez‖ - o pensamento era hesitante, quase envergonhado -, ―mais digno de ser chamado príncipe.‖ Ainda que mais nada lhe viesse dessa jornada, se ele tivesse de ir até os limites do mundo para nada encontrar, salvo o monótono mar, mesmo que os Ordálios fossem apenas uma ilusão, e que nada houvesse para fazer senão voltar- se sobre os próprios passos e tomar o rumo de casa, ainda assim não se arrependeria da jornada, nem a consideraria inútil.
Deitado, ele olhava as estrelas. Não se lembrava de ter percebido outras estrelas que não as lanternas brilhantes que adornavam os tetos do palácio de seu pai. E de preferência quando ele tinha que arrumar as lanternas trocadas ou repostas, Desde que começara a viajar tinha visto mais auroras, crepúsculos, Lua, Sol e estrelas do que em toda a sua vida. Ele precisava contar com estas coisas; a claridade do sol e do céu lhe dizia que poderia viajar sem se perder, a luminosidade da Lua e das estrelas que poderia dormir ao relento sem precisar procurar proteção numa caverna ou mesmo junto a uma moita ou arbusto. Em casa, dormia até o sol estar alto, protegido por cortinas de seda, e quando, por acaso, uma caçada o mantinha fora até o entardecer, sua única preocupação era que este momento do dia poderia
Desviando o pensamento das construções, voltou-se para outras direções a fim de verificar se havia nas proximidades alguma chance de renovar seu suprimento de comida e água. Não vira coisa alguma na noite passada, mas caminhara até escurecer e bem podia ter-lhe escapado alguma coisa no crepúsculo.
Voltou-se para apanhar o manto que lhe servira de coberta, parou e esfregou os olhos. Tinha certeza de que na noite passada dormira ao relento; podia lembrar-se de ter deitado e olhado as estrelas. Certamente não estava enganado, mas realmente não teria visto as estrelas através dos ramos de uma árvore alta?
Não, pois ele se lembrava que, pouco antes de adormecer, notara a ausência de vegetação, exceto alguns arbustos secos e espinhosos. Agora, acima de seu manto amarrotado que ainda trazia a marca de seu corpo, balançava o caule alto de uma tamareira e aquele cacho compacto, dourado e marrom, entre as folhas, de fato era um punhado de tâmaras maduras e douradas.
Tamino piscou e esfregou os olhos outra vez. Essa visão fez voltar um dos antigos medos que marcaram os primeiros estágios da jornada: de que a solidão pudesse enlouquecê-lo. Uma tamareira, e ainda por cima uma tamareira carregada de tâmaras maduras! Quando fora dormir - exatamente embaixo dela, por estes olhos que a terra há de comer - não havia nada disto.
O tronco rugoso e compacto mostrou-se sólido e resistente quando ele o escalou. Tamino provou uma tâmara fresca e macia. Não era como as tâmaras doces e requintadas, banhadas em calda e recheadas, que comera na mesa do Imperador, mas ainda assim lhe pareciam suficientemente boas para um banquete imperial. Comeu mais algumas tâmaras frescas e colocou um punhado em seu alforje.
A comida fora encontrada, a menos que - e não levou a sério este pensamento - fosse um sonho bizarro nascido da fome e da solidão, e ele ainda estivesse dormindo de tão cansado sob um arbusto seco e estéril.
Saciada a fome, voltou-se para o problema cada vez mais premente da sede. Normalmente as tamareiras não crescem em lugares áridos. Ele ouvira dizer que elas só crescem em oásis. Será que enquanto dormia fora levado para um oásis de tamareiras com suas características nascentes ao centro? Não; a tamareira solitária sob a qual parecia ter dormido, sem saber, era a única neste deserto estéril. Era um enigma que não podia decifrar.
Seguramente ele estava acordado. A única solução plausível, e que era tão louca quanto todas as outras, era que aquele arbusto seco e espinhoso, de alguma maneira, se transmutara enquanto ele dormia; transmutara-se numa tamareira justamente onde nenhuma tamareira poderia crescer. Então seria esse o motivo por que chamavam tal deserto estéril de Terras Mutáveis?
As tâmaras eram reais e alimentavam; pelo menos assim pareciam ao seu paladar e ao estômago. Pena que não trouxessem consigo o oásis.
Um pouco mais ao norte havia uma grande pedra, não muito alta; mas como o terreno era bem plano, talvez servisse como ponto de observação, de onde ele poderia descobrir se havia alguma quebra no terreno árido e estéril, algum sinal de oásis ou mesmo vegetação que indicasse a presença de água. Tamino subiu na rocha e, lentamente, olhou em todas as direções. O Sol agora estava alto, e a luz não lhe permitia uma nítida visão do Leste. Tamino, apertando os olhos contra a claridade do sol, viu então não apenas o indefinido horizonte recortado por formas
distantes notadas por ele ao amanhecer, mas. um pouco antes da linha do horizonte, o verde das palmeiras e um brilho que bem poderia ser água.
A visão desse quadro era tão inverossímil quanto a transformação noturna de um insignificante arbusto numa tamareira carregada de cachos de tâmaras maduras e doces. Seria miragem? Dez dias no deserto lhe haviam ensinado algo sobre esse perigo. E já que as impossíveis tâmaras se constituíram num excelente desjejum, era bem possível que pudesse matar a sede naquele oásis não menos inacreditável.
Não demorou mais que um segundo para juntar seus pertences: o alforje que agora continha apenas restos de carne-seca e as maravilhosas tâmaras; o manto que, um tanto gasto, em vez de usar trazia cuidadosamente amarrado na cintura; o arco e poucas flechas restantes; e o punhal que levava na cintura mais como instrumento útil para limpar caça e cortar lenha do que como arma.
Partiu em direção ao oásis. Após trinta dias era um caminhante rijo e incansável, de passos resolutos. Os arbustos secos e espinhosos quebravam-se aos seus pés, e embora tivesse protegido as pernas com o que sobrou de uma velha túnica, os arbustos atrapalhavam sua caminhada. Estranho que agora houvesse muitos deles; ontem eles eram esparsos como toda a vida no deserto. Olhou para o chão com curiosidade. Eles estavam maiores e não tão espinhosos como antes - tratava-se de uma nova planta com menos espinhos e algumas folhas. Folhas, folhas verdes neste deserto estéril?
Sim. Folhas, folhas verdes com a parte de baixo áspera e as extremidades dentadas. E, ao contrário dos arbustos espinhosos, cresciam esparramadas como vinhas, carregadas - Tamino parou, perguntando-se outra vez se seus olhos o enganavam - de amoras maduras.
Ele provou uma. Tinha o mesmo gosto de qualquer outra amora, talvez um pouco mais doce; ou era ele que passara tempo demais comendo frugal-mente? Continuou, abrindo caminho através do espesso emaranhado de arbustos, enchendo suas mãos com amoras maduras, que também matavam sua sede.
Ouviu um som de coisa se partindo, entre os arbustos que se tornavam cada vez mais espessos. Ante o olhar surpreso de Tamino, uma gazela cruzou aos saltos a clareira à sua frente e desapareceu enquanto ele ainda a olhava admirado.
Ele piscou e continuou, um pouco aborrecido. Deveria estar com seu arco preparado, mas não esperava algo assim no deserto. Era um deserto ainda? Quando observara o terreno ao redor da rocha, ainda era o mesmo deserto estéril no qual dormira na noite anterior. Agora, parecia ter adquirido características de uma selva. Indiscutivelmente, o solo estava mais macio sob seus pés, e logo a seguir ouviu o som suave e definido de suas botas calcando terreno úmido. Terras Mutáveis?
Bem antes de alcançar o que identificara como um oásis, quando observara a região, encontrou um pequeno lago alimentado por uma fonte cristalina. Descansou um pouco aí, lavou seu rosto queimado de sol e bebeu bastante água, pois era a primeira vez que o fazia em muitos dias.
Ainda não estava livre do medo de que tudo isso não passasse de um sonho louco. Em seus vinte anos, nunca antes encontrara uma região onde tamareiras surgissem por mágica, ou deserto que se transformasse em pântano sem qualquer transição -
pernas cruzadas e tirou a pele do esquilo - com cuidado e sem desviar seus olhos -, destripou-o e fez um espeto; depois acendeu uma fogueira e colocou a carcaça para assar.
Logo começou a crepitar e a exalar o mais apetitoso dos cheiros. Enquanto a carne estava assando, Tamino lavou e encheu seu odre, e, tirando toda a roupa, mergulhou no lago para refrescar seu corpo poeirento e queimado de sol. Lavou sua túnica imunda e as perneiras, pendurou-as para secar em um dos arbustos. Bebeu outra vez a deliciosa água do lago. Depois de tanto tempo no deserto começara a pensar que morreria de sede.
Seminu, refestelou-se na margem do lago, mastigando o esquilo assado. A carne tinha um gosto estranho, como se o animal tivesse se alimentado de amoras desagradavelmente ácidas, mas era carne e satisfazia, e Tamino entregou-se ao prazer de tomar uma refeição verdadeiramente apetitosa em muitos dias. Quando terminou, a túnica e as perneiras estavam secas e ele foi pegá-las nos arbustos. O sol estava ameno no lago, e ele demorou-se um pouco para se vestir.
No lago as águas se agitaram e ouviu-se um barulho: uma carinha peluda, bigoduda e inquisitiva examinava Tamino. Embora à primeira vista ele pensasse que fosse um animalzinho aquático, talvez uma lontra, percebeu rapidamente que havia inteligência humana por trás daqueles olhos escuros: um Halfling! Já ouvira falar deles, mesmo no distante Império do Oeste; mas, na verdade, nunca antes colocara os olhos sobre um deles, embora soubesse que muitos anos atrás tais criaturas haviam sido levadas à corte do Imperador como curiosidades. Contara-se até que um macaco jogara xadrez com a Imperatriz, mãe de Tamino, e a vencera.
A lontra halfling rastejou devagar até a margem. A forma era a de uma mulher pequena e peluda, o rosto tão redondo e com bigodes tão grandes que Tamino só pôde ter certeza de que se tratava de uma fêmea por causa do par de peitos em sua barriga. Também tinha pêlos cobrindo suas costas - embora houvesse menos em seus seios e barriga, seus braços e mãos eram anormalmente, quase grotescamente, pequenos, terminando em dedos curtos em forma de pata. Menos parecidas com pés e menores que a metade de um torso, suas pernas eram curtas e também tinham a forma de patas. Tamino olhou-a, dividido entre a fascinação por sua estranheza e a repulsa por esta paródia da forma humana. Uma lontra verdadeira teria lhe agradado, e um encontro com uma mulher real, após tantos dias sem o menor sinal de criatura humana, seria mais do que bem-vindo. Mas não estava absolutamente certo de que queria encontrar-se com este estranho ser. Ela o examinou tão atentamente que Tamino percebeu de repente que estava nu. Ele agarrou sua túnica e vestiu-se rapidamente pela cabeça. Por que ficaria tão acanhado na presença de um animal? E, quando olhou para ela, descobriu que estava muito intimidado por sua feminilidade, como não teria ficado diante de um animal verdadeiro. Estava consciente de que não se tratava de um animal e sim de uma mulher, que deveria ser tratada como tal.
Pancadas mais fracas na água do lago alertaram para a presença de três ou quatro carinhas peludas, réplicas da mulher halfling; seus filhos, protegidos pela água, examinavam Tamino, emitindo pequenos ruídos. Ele se perguntava se a Halfling podia falar como ser humano, e se seria proveitoso perguntar-lhe a direção a tomar. Deu um passo em direção a ela, que deslizou com rapidez para o lago, fazendo girar seu flexível pescoço não humano quase completamente para olhar Tamino com desconfiança. Estaria pensando que ele pretendia lhe fazer mal?
Constrangido, ele tossiu e disse:
Os filhotes peludos emitiram pequenos guinchos, mas a mulher-lontra apenas olhou, os olhos castanhos, fixos nele com curiosidade e ceticismo. Era acima de tudo uma mulher, apesar de bem estranha; talvez tivesse razão em temer forasteiros encontrados num lugar ermo como este. Não se sentia atraído sexualmente por ela, mas de alguma maneira estava convencido, sem saber por que motivo, de que talvez outros homens a tivessem desejado, o que justificaria os temores dela. Ela continuou olhando para ele, e aquele intenso olhar escuro transmitiu a Tamino a sensação de que por ser meramente humano, como ele era, integralmente humano, de alguma maneira a teria humilhado, o que o deixou com raiva. Não tinha culpa de ser um homem, um príncipe do Oeste.
Silêncio. Enquanto a mulher halfling encarava-o com seus grandes olhos escuros, os filhotes peludos sussurravam. Ele desejou que ela, se fosse capaz de falar, que o fizesse de imediato.
Rapidamente, ela, com um braço curto, apontou para o nordeste; então submergiu, deixando círculos evanescentes na superfície do lago. Da mesma maneira, os quatro filhotes mergulharam atrás dela.
Por um momento antes de partir, Tamino ainda olhou o movimento ondulante da água. Bem, encontrara a primeira das coisas estranhas que ele sabia que deveria enfrentar nas Terras Mutáveis, e estava certo de que veria coisas ainda mais estranhas, enquanto estivesse nas terras dos Reis-Sacerdotes de Atlas-Alamésios.
Juntou as sobras de sua comida e estava para enterrá-las junto ao lago. quando se perguntou se as lontras eram carnívoras. Supôs que, por viverem nos lagos, elas se alimentassem mais de peixe, mas no caso de gostarem de carne, deixou-lhes os restos. Se preferissem não comê-los, pensou ao mesmo tempo em que se perguntava por que estava chateado, os insetos da beira do lago dariam contas deles. Pegou seu arco e suas poucas flechas restantes, apanhou seu manto e amarrou-o em volta da cintura, apagou cuidadosamente a fogueira e partiu.
Tomou a direção nordeste, como a mulher-lontra o indicara, mas o aspecto da terra mudara e ele se achou viajando por uma floresta espessa. Era quase impossível enxergar qualquer coisa mais à frente ou atrás em qualquer direção, pois havia muitas árvores, um emaranhado de trepadeiras e arbustos densos, que algumas vezes eram tão compactos que ele quase não podia ver o céu. Achou incrível que na noite anterior tivesse dormido num deserto estéril; com certeza, se esta floresta estivesse aqui, ele a teria visto em algum ponto do horizonte vazio. Aqui e ali na floresta cada vez mais densa, que se tornava rapidamente uma selva, ele vislumbrou grandes ruínas e portentosas construções, e mais de uma vez ouviu um felino predador rosnar.
Aos poucos, na medida em que se movia, mais sentia calor; mesmo sua túnica fina estava pesada. Tirou-a, mas lembrou-se de que não estava mais sozinho nesta imensidão desabitada. Onde havia uma criatura dotada de consciência poderia haver outras, e ele poderia encontrar a qualquer momento os habitantes deste lugar. E se encontrasse, preferia que isto não ocorresse com ele seminu.
Então, o príncipe ouviu um rugido e sentiu calor, um vento abrasador passou por sua cabeça. Tamino olhou para cima e viu um dragão erguer-se sobre ele.
Naquele momento de terror, pôde apenas perceber uma coisa monstruosa, com asas escamadas, umas coisas que pareciam penas, desfechando com o focinho um golpe cruel sobre sua cabeça. Voltou-se, procurando desajeitadamente seu arco, retesando-o o mais rápido que pôde; entretanto, o dragão avançou e Tamino, abaixando-se, rastejou sobre os mosaicos em ruínas e a relva da clareira. Quase automaticamente ajeitou uma flecha no arco e atirou.
Devia ter acertado o alvo, pois ouviu a criatura urrar e investir outra vez para matar. Estava muito próximo agora para que seu arco tivesse alguma utilidade. Ainda tinha a faca, mas sabia que ela estava longe de ser uma arma. Viu-se absolutamente desarmado diante do maior perigo de sua vida.
Lançou-se cegamente. As asas do dragão lhe cercavam, dificultando-lhe a visão. O mau hálito do dragão queimava-lhe a nuca, quando se voltou cegamente e começou a correr. Era inútil lutar; humano algum poderia enfrentar tamanha fera. Amaldiçoou o destino que o enviara desarmado, lamentou que sua jornada terminasse ali e entristeceu-se por todas as coisas novas que jamais veria ou saberia, e pelos Ordálios aos quais nunca teria chance de se submeter.
Gritou desesperadamente e atacou outra vez com a faca. Pelo menos morreria lutando, não se deixaria devorar pelas costas. Desejou que alguém informasse seu pai de como havia morrido, e achou-se pensando freneticamente se havia alguma coisa após a morte ou se isto seria o fim. O rugido do dragão era ensurdecedor. Atingiu de novo o dragão com a faca; ele o ferira e foi banhado por um sangue escuro e fétido, mas o dragão ainda lutava, e ele nem sequer tinha ferido o dragão seriamente.
Então, num terrível pesadelo de sangue, mau cheiro e luta, ouviu vozes do alto, vozes femininas. Viu pontiagudas lanças de metal trespassando o dragão, viu, incrédulo, que ele caía e morria. Viu no alto rostos de mulheres: três mulheres vestidas com armadura de couro que levava uma lua crescente. Elas pareciam, pensou num último esforço, com as mulheres coroadas dos mosaicos embaixo dos seus pés. Seria um sonho, seriam os espíritos guardiães deste lugar? Seriam apenas as últimas fantasias agonizantes de seu cérebro, teria sido afinal morto pelo dragão?
Exausto, mergulhou numa noite sem estrelas.
Disa chutou o corpo morto do dragão, depois abaixou-se para arrastá-lo, fazendo sinal para que suas irmãs viessem ajudá-la. Zeshi abaixou-se para ajudar, mas Kamala permaneceu imóvel, olhando fixamente o rosto do jovem inconsciente.
Relutante, Kamala tirou seus olhos do corpo inerte de Pamino e puxou, com as irmãs, o corpo do dragão. Enquanto puxava disse ressentida:
Zeshi concordou passando a língua nos lábios.
Disa riu com malícia.
Disa concordou com ar sombrio.