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Teatro Ateniense: Ascensão e Declínio dos Gêneros Trágicos e Cômicos, Notas de aula de Literatura

Uma análise histórica e literária do teatro ateniense do século v a.c., enfatizando as diferenças sociais, religiosas e literárias entre as tragédias e comédias gregas. Além disso, discute as origens, desenvolvimento e transformações dos gêneros literários na antiguidade grega, destacando a importância da linguagem oral e da interação entre o texto e o espaço teatral na construção da identidade cidadã ateniense.

O que você vai aprender

  • Como as produções teatrais do século V a.C. contribuíram para a construção da identidade cidadã ateniense?
  • Qual foi a importância da linguagem oral na cultura grega e como ela influenciou o desenvolvimento do teatro?
  • Quais foram as principais diferenças entre a tragédia e a comédia gregas do século V a.C.?
  • Quais foram as principais figuras e obras da comédia grega do período clássico?
  • Quais foram as origens e as transformações dos gêneros literários na antiguidade grega?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Rafael86
Rafael86 🇧🇷

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LITERATURA, TEATRO E GÊNERO CÔMICO NA ATENAS
CLÁSSICA
Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro
1
RESUMO
O século V a. C. viveu a ascensão e o apogeu do antigo teatro ateniense, por meio das tragédias e
comédias das quais apenas uma pequena parte ficou para a posteridade. Os gêneros teatrais do período
clássico ateniense, no entanto, configuram-se como mais uma das criações artísticas e sociais dos
antigos atenienses e servem para compreendermos o desencadear das ações políticas, culturais e
sociais que formaram e transformaram aquela sociedade. A mímesis presente nas obras do teatro grego
é uma forma de expressão das identidades representadas e moldadas conforme a feitura da realidade.
Nesse sentido, este texto apresenta a literatura e mais especificamente o gênero cômico atenienses não
como produções com desenvolvimento linear, mas alteradas pela ordem na qual estavam inseridas.
Palavras-Chave: Comédia Antiga; Mímesis; Produção Cultural.
ABSTRACT
Century V a. C. lived the rise and the apogee of ancient Athenian theater, through the tragedies and
comedies of which only a small part was for posterity. The theatrical genres of the Athenian classical
period, however, are configured as one of the most artistic and social creations of the ancient
Athenians and serve to understand the outbreak of political, cultural and social activities that formed
and transformed that company. This mimesis in the works of the Greek theater is a form of expression
of identities represented and shaped as the making of reality. In this sense, this paper presents the
literature and more specifically the comic genre Athenians as productions with linear development, but
changes in the order in which they were inserted.
Keywords: Old Comedy; Mimesis; Cultural Production.
Sabe-se que os gêneros teatrais dos antigos gregos perpassaram o tempo não apenas
através de seus grandes autores, mas também como inspiração para o teatro romano, medieval
e moderno, além de ser uma das bases para o teatro contemporâneo. No entanto, deve-se
salientar que esses não são gêneros semelhantes, muito pelo contrário, estão permeados por
peculiaridades de diversas matizes que os delimitam no espaço e no tempo. Ao observar a
construção dos gêneros teatrais atenienses do século V a. C. e seu desenvolvimento,
percebemos algumas informações gerais que são importantes e por vezes negligenciadas pelos
estudiosos. Primeiramente, ao identificar aquilo a que chamamos de "teatro grego" no século
V a. C. como produções de literatura, não podemos separá-los das relações sociais, religiosas
1
Mestre em História Política pelo PPGH-UERJ, onde desenvolveu pesquisa acerca das implicações políticas na
comédia de Aristófanes, no que se refere à temática da pederastia, orientado pela prof. Dra. Maria Regina
Candido. É membro do Leitorado Antiguo-UPE e do NEA-UERJ.
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LITERATURA, TEATRO E GÊNERO CÔMICO NA ATENAS

CLÁSSICA

Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro^1

RESUMO

O século V a. C. viveu a ascensão e o apogeu do antigo teatro ateniense, por meio das tragédias e comédias das quais apenas uma pequena parte ficou para a posteridade. Os gêneros teatrais do período clássico ateniense, no entanto, configuram-se como mais uma das criações artísticas e sociais dos antigos atenienses e servem para compreendermos o desencadear das ações políticas, culturais e sociais que formaram e transformaram aquela sociedade. A mímesis presente nas obras do teatro grego é uma forma de expressão das identidades representadas e moldadas conforme a feitura da realidade. Nesse sentido, este texto apresenta a literatura e mais especificamente o gênero cômico atenienses não como produções com desenvolvimento linear, mas alteradas pela ordem na qual estavam inseridas.

Palavras-Chave: Comédia Antiga; Mímesis ; Produção Cultural.

ABSTRACT

Century V a. C. lived the rise and the apogee of ancient Athenian theater, through the tragedies and comedies of which only a small part was for posterity. The theatrical genres of the Athenian classical period, however, are configured as one of the most artistic and social creations of the ancient Athenians and serve to understand the outbreak of political, cultural and social activities that formed and transformed that company. This mimesis in the works of the Greek theater is a form of expression of identities represented and shaped as the making of reality. In this sense, this paper presents the literature and more specifically the comic genre Athenians as productions with linear development, but changes in the order in which they were inserted.

Keywords: Old Comedy; Mimesis; Cultural Production.

Sabe-se que os gêneros teatrais dos antigos gregos perpassaram o tempo não apenas através de seus grandes autores, mas também como inspiração para o teatro romano, medieval e moderno, além de ser uma das bases para o teatro contemporâneo. No entanto, deve-se salientar que esses não são gêneros semelhantes, muito pelo contrário, estão permeados por peculiaridades de diversas matizes que os delimitam no espaço e no tempo. Ao observar a construção dos gêneros teatrais atenienses do século V a. C. e seu desenvolvimento, percebemos algumas informações gerais que são importantes e por vezes negligenciadas pelos estudiosos. Primeiramente, ao identificar aquilo a que chamamos de " teatro grego " no século V a. C. como produções de literatura, não podemos separá-los das relações sociais, religiosas

(^1) Mestre em História Política pelo PPGH-UERJ, onde desenvolveu pesquisa acerca das implicações políticas na comédia de Aristófanes, no que se refere à temática da pederastia, orientado pela prof. Dra. Maria Regina Candido. É membro do Leitorado Antiguo-UPE e do NEA-UERJ.

e políticas vividas pelos atenienses naquele período. Ademais, quando se fala em " teatro grego ", tende-se a imaginar uma continuidade inexistente nas produções literárias; além de haver claras diferenças literárias, rituais e políticas entre tragédia e comédia, esses gêneros em separado não foram produções coesas ao longo do tempo. Segundo Eric Csapo e Margaret Miller (2007, p. 3), autoridades nos estudos sobre as origens do teatro ático, a historiografia não chegou até hoje a um consenso, mas o que se pode afirmar é que não há uma ligação evolutiva no desenvolvimento dos espetáculos, e sim uma relação entre a ação ritual a Dioniso e a prática de tragédia, comédia e peças satíricas. No entanto, esta relação nem sempre era clara e não era semelhante de um gênero para outro, nem de uma peça para outra. Os autores, os financiadores e o momento social e político da pólis foram determinantes para as produções das peças no teatro ateniense. Drama, mímesis e diálogo: estas são palavras que podem ser utilizadas para definir brevemente o teatro grego ateniense do século V a. C. No entanto, o teatro, entre ascensão do gênero, consolidação e decadência, durou por menos de dois séculos em Atenas 2. Pode-se afirmar, consequentemente, que a vida útil do teatro na e para a Atenas clássica, objeto espaço-temporal de estudo neste ensaio, durou enquanto se sustentou o sistema político democrático, isto é, até o final do século V a. C. Nesse sentido, o teatro grego é mais uma das composições do vasto campo literário dos antigos gregos ao longo de séculos de produção cultural e tem marcado início, ascensão e declínio de seu desenvolvimento. Esse vasto campo literário dos gregos possui em sua estrutura uma forte originalidade, tal como afirma em clássico estudo o helenista Edward Capps (1901). Para esse autor, não houve uma tradição literária anterior que permeasse o início da produção literária entre os gregos. Segundo Capps (1901, p. 2), a capacidade de criação dos gregos resultou em conscientes esforços para representar os temas requeridos em forma artística, fazendo com que fossem revestidos de características universais 3. Capps (1901, p. 3) defende ainda que os gregos instituíram um progresso que visava à perfeição e, por isso, houve um desenvolvimento dos gêneros literários com sua consequente transformação, que fora tratada por aqueles como 'crescimento normal' 4.

(^2) Para Jacqueline de Romilly (1998, p. 8), as tragédias gregas obtiveram seu auge na Grécia Antiga enquanto durou a expansão política de Atenas; a autora defende, assim, que o desenvolvimento da tragédia tem um forte cunho histórico e político. Isabel Castiajo (2012, p. 7) também é rígida ao afirmar que o século V a. C. vivenciou o apogeu do teatro ocidental, presente na cultura democrática ateniense. 3 "A originalidade dos gregos na literatura foi apresentada em cada especialidade que eles propuseram, tanto em arosa quanto em poesia [ The originality of the Greeks in literature was shown in every branch which they attempted, both in prose and in poetry 4 ]" (CAPPS, 1901, p. 2, tradução livre). "[Talvez a mais instrutiva característica da literatura grega, considerada ao longo de seu desenvolvimento, é o fato de que seu progresso em direção à perfeição foi um crescimento normal [ Perhaps the most instructive

não negligencia essa virada apontada por Havelock e corrobora a ideia de salto tecnológico e desenvolvimentista após a emergência da técnica da escrita, que forneceu mais suporte à comunicação entre os gregos. A estrutura literária dos gregos foi concebida e consolidada ao longo de todo o período arcaico através de uma cultura oral, valorizando a palavra, que era, nesse sentido, prova da existência de uma memória a ser preservada. Isto é, o surgimento da literatura estava a serviço de uma tradição cultural ao relacionar-se à perpetuação de uma memória. Segundo Francisco Rodríguez Adrados (1999a, p. 270), as épicas homéricas são produções que fornecem em certa medida uma unidade cultural no sentido de serem os gregos filhos de uma mesma estirpe. Para esse autor, as línguas literárias presentes nas epopeias arcaicas são provas da intenção dos gregos em valorizar uma raiz comum 5. Os gêneros literários arcaicos, segundo esse autor, possuíam formas de expressar próprias, que eram gerais à medida que se punham como compreensíveis para todo o mundo grego; nas palavras de Adrados (1999a, p. 270, tradução livre), eram " línguas internacionais ". Para Eric Havelock (1996), interessado em estudar as consequências da fixação de uma cultura escrita e letrada entre os gregos, a tradição poética ali agia não só com função de lazer, mas para transmitir conhecimento, o que traz um paradoxo ao seu intento, pois demonstra um valor maior dado pelo grego à oralidade em detrimento da escrita. Independente do valor dado pelos gregos à oralidade (questão a ser abordada adiante), Havelock (1996, p. 74) é firme em sustentar a tese de que a escrita revolucionou o olhar das sociedades que com ela tiveram contato: "entrar no mundo do que chamamos "literatura grega", de Homero em diante, é encontrar uma dimensão mais vasta da experiência humana, mais diversificada, pessoal, crítica, sutil, cheia de humor, apaixonada, irônica e refletida". Havelock ressalta, no entanto, que os gregos eram caracterizados por uma linguagem oral e que seus processos de comunicação foram orais ao longo de vários séculos de formação cultural, desde o segundo milênio até o advento do século V a. C. Assim, os gregos possuíam o que esse autor apontou como consciência criada pela oralidade. Por isso é que a estrutura literária ali estava permeada e a serviço de uma cultura oral.

(^5) A tradição homérica, afirma Adrados (1999a, p. 270 , tradução livre), "[...] herdeira do antigo aqueu épico, absorveu elementos eólios e, sobretudo, jônicos: a partir de desenvolvimentos antigos que eram interpretados assim (por sua atribuição dialetal em data posterior). Pois bem, esta língua literária, artificial, era cantada e entendida em todas as partes. Contribuía para a unidade dos gregos [ heredera del antiguo aqueo épico, absorbió elementos eolios y, sobre todo, jónicos: ello a partir de rasgos antiguos que eran interpretados así (por su adscripción dialectal en fecha posterior). Pues bien, esta lengua literaria, artificial, era cantada y entendida en todas partes. Contribuía a la unidad de los griegos ]".

O serviço prestado pela literatura a uma cultura oral é mais claramente compreendido na concepção de Havelock se percebermos sua defesa de que toda cultura escrita é posterior a uma cultura oral. A língua é o exemplo supremo dessa concepção. A cultura oral, nesse sentido, é concebida como as formas de comunicação presentes na vida cotidiana a partir da oralidade, como a política, a justiça e os modos de expressão, que têm relação ancestral com os recursos da memória. Em culturas orais, as palavras têm forte poder sobre as coisas a que estão referidas; esta concepção é defendida por Ana M. O. Galvão e Antônio A. G. Batista (2006, p. 409), que afirmam que nessas culturas o pensamento funciona sob o signo da linguagem: "as pessoas pensam de acordo com a maneira que possuem para se expressar naquela cultura" (GALVÃO e BATISTA, 2006, p. 410). Esses autores mobilizam a teoria do filósofo e historiador Walter Ong (1998), para quem existem certas características na oralidade que lhe são peculiares. Além de determinar o funcionamento do pensamento e da ação, o pensar oral é menos analítico e mais agregativo; exemplo desse caráter é, como afirmam Galvão e Batista (2006, p. 410), o grande número de adjetivações na oralidade. Outro caráter da oralidade diz respeito a seu valor mais aditivo do que subordinativo, o que resulta em menos relações de causa e consequência (isto não quer dizer que não haja estas relações, mas que elas são menos comuns). Esta teoria é ratificada por Havelock (1996), ao afirmar que em culturas orais recorre-se frequentemente às narrativas épicas, repletas de ação e com pouco ou nenhum pensamento abstrato. Uma literatura com essa característica, ao contrário de servir apenas como entretenimento, age como formadora ao promover a propagação de informações por meio das ações apresentadas. Outra autora que ratifica a importância da ação na literatura e na oralidade é Romilly (1984, p. 40), quanto aos gregos; segundo essa autora, "Homero jamais analisa; mostra seus personagens em plena ação - armando-se ou combatendo, festejando ou navegando. Os verbos nele são mais frequentes do que os substantivos". Por fim e não sem ligação com os caracteres anteriores, Ong (apud GALVÃO e BATISTA, 2006, p. 411) considera que na oralidade se recorre com bastante frequência ao mecanismo da repetição, apontando para o caráter conservador e tradicionalista da cultura oral. Esse último caráter não quer dizer, no entanto, que não há originalidade, mas que ela se manifesta de forma diferente da cultura escrita e está no tipo de repetição: "... a cada narração, deve-se dar à história, de uma maneira única, uma situação singular, pois nas culturas orais o público deve ser levado a reagir, muitas vezes intensamente" (ONG apud GALVÃO e BATISTA, 2006, p. 411).

O que se conhece de mais recuado sobre a literatura grega são as epopeias homéricas, aceitas como produções do século VIII a. C., obras que trazem marcas de períodos recuados até o século XII a. C. 6. Acerca desta literatura, afirma Romilly (1984, p. 17) sobre Homero e seus poemas: "de qualquer forma ele serviu de modelo a todos os poetas subsequentes, e os gregos viram nele, desde então, a base de sua educação e o ponto de partida de todas as suas reflexões". As epopeias homéricas nos são importantes aqui, pois são consideradas um marco na produção literária dos gregos. Elas apresentam uma tradição a ser seguida. A referência aos aedos , mestres da palavra cantada, que a recebiam por inspiração das musas - isto é, a partir do recurso da memória eles promoviam seus cantos - é prova desta tradição. Podemos afirmar, então, a tradição oral em que estiveram inseridos os gregos, uma vez que esses mestres, além de poetizarem através da repetição do que estava na memória, pelos ensinamentos homéricos, deveriam ser altamente respeitados. Ainda no arcaico, é possível nos referirmos às poesias líricas e as poesias jâmbicas, relacionadas à musicalidade na qual estavam pautadas, que foram muito comuns, e à emergência da filosofia, dita pré-socrática, além de outras formas poéticas. Excetuando-se a filosofia, as poesias do período arcaico não tiveram uma regularidade de formas, temas e implicações. De todo modo, algumas características dessas poesias foram determinantes para o desenvolvimento da estrutura literária entre os gregos: estavam presentes em rituais e cada vez mais tinham apelo pessoal. "Os poetas daí em diante, fizeram o que Hesíodo já havia feito, mas de modo ainda mais nítido; eles falaram de si mesmos, de seus amores ou de suas aventuras, ou então do que desejavam para sua cidade, seja na guerra, seja na paz" (ROMILLY, 1984, p. 50). Esses cantos eram promovidos em espaços festivos, tanto religiosos, quanto cívicos e profanos. Esse era um mecanismo de divulgação e perpetuação da palavra do poeta, que ficaria marcada e relacionada àquele acontecimento. Na poesia arcaica, o indivíduo passou gradativamente a ganhar voz no espaço da coletividade, onde antes só se denominava a partir de grupos. Essa voz, todavia, não exaltava a si em detrimento da coletividade, mas solicitava um reconhecimento. Exemplo dessa característica é a emergência dos jogos olímpicos: "celebrando os vencedores, a poesia lírica

(^6) Além de fazer referência à Guerra de Troia, relato mítico travado no século XII a. C., as epopeias homéricas contam com a contribuição linguística de tempos e espaços diferentes, o que mostra seu caráter transitivo, como aponta Romilly (1984, p. 21): "tudo isso prova que a língua homérica, mesmo independentemente das metamorfoses que lhe impuseram primeiro a atualização posterior, e depois as intervenções dos copistas, já refletia toda uma história, e que ela repousava na transmissão de textos épicos, de versos e de fórmulas anteriores em muitos séculos a Homero. Os diferentes substratos da língua que se avizinham no texto revelam a existência de modelos anteriores, chegados mais ou menos puros até o poeta".

coral, que assinala a última fase da história desse gênero de poesia, cantava simultaneamente um herói, uma cidade e um ideal de vida" (ROMILLY, 1984, p. 51). Junto a essa voz individual, outra característica passa a compor a literatura no final do arcaico: as poesias serviram também como exposição de um pensamento moral. Os poetas, por sua voz individual, passaram a fazer juízos morais de questões presentes em sua realidade nas mais diversas esferas. A soberania da literatura, assim, não é uma sobreposição ao universo que a rodeia, mas sim o inverso: a literatura é que está relacionada à soberania social. Nesse sentido, os gregos não possuíam algo que na modernidade emergiria, "autodeterminação" 7. Os gregos viviam direcionados ao cosmos do seu mundo. A liberdade grega é mais ligada à lei do que ao indivíduo em prol da ordem do mundo. Para compreender a relação da estrutura literária dos gregos com o mundo que a rodeia, é necessário destacar o significado da mímesis , que é fundamental para compreendermos a arte grega como um todo também como um fenômeno histórico e social. A origem de mímesis de Platão e Aristóteles vem de poiesis , que significa criar/fazer e deriva de uma transposição de mundo. Para Luiz Costa Lima (2012), poiesis quer dizer uma ação social simbolicamente investida na arte mimética, que é dependente da linguagem estética, indireta e conotativa, isto é, metafórica. Lima concebe este raciocínio em conformidade com a "filosofia das formas simbólicas", de Ernst Cassirrer (2001), para quem o homem é um ser que atua simbolicamente em seu meio. Para esse filósofo, a arte e a linguagem se assemelham por serem movidas simbolicamente; ou seja, a percepção delas torna-se sensível através de seu valor simbólico. A mímesis de um artista depende de imbricações sociais, políticas, culturais e econômicas no universo de seu autor, isto é, depende da representação que seu autor é capaz de transpor sobre as experiências concretas. A mímesis , em suma, é um processo de construção social e envolve comunicação, compreensão e linguagem. Tal como afirma Aristóteles ( Poética , 1448b), na experiência prática contemplamos as coisas exatas ao observarmos sua representação ruim, como se faz ao olhar um cadáver; isto é, para o filósofo antigo, a mímesis nos fornece exemplos de como agir e como não agir. Em suas palavras: "tal

(^7) Para o filósofo Alain Renault (1998, p. 11), a individualidade dos antigos gregos se difere da moderna devido à ideia de autodeterminação surgida com o humanismo renascentista, que prega a automação do sujeito, fazendo-o ter uma individualidade que tenta se afastar e não reconhecer forças coletivas, enquanto que na antiguidade ocorre um movimento inverso. Nas palavras do filósofo, entre os gregos, "alguns são feitos para comandar, e outros, para obedecer"

Nesse sentido, para Adorno (2003, p. 66), "a referência ao social não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela". Essa referência ao social é, ademais, uma forma de falar do não dito, isto é, do subentendido premente nas formações imaginárias, que delimitam campos de ação política e social: "obras de arte, entretanto, têm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde. Seu próprio êxito, quer elas queiram ou não, passa além da falsa consciência" (ADORNO, 2003, p. 68). Embora discordando de partes dos argumentos de Adorno, Lima segue o desmembramento de sua teoria e vale-se de outros autores para isso, como Arnold Gehlen, que defende ser a mímesis uma "racionalidade imaginativa" (apud LIMA, 2012, p. 100). Em linha oposta, nos é apresentada a concepção de David Carroll, que define o objeto em questão como uma representação social. Lima afirma que para Carroll a mímesis é uma representação que funciona como cópia da realidade e, por isso, torna-se um parasita que deve ser extinto; uma representação desse tipo, para Carroll, deve ser excluída, sob o risco de tornar passiva a literatura. Lima serviu-se da interpretação e da alcunha de Carroll para a delimitação de seu questionamento ao que deveria ser a mímesis. Para ele não se deve sepultar a mímesis por ser ela um parasita, mas sim inseri-la no meio social de onde ela emerge. Lima (2012, p. 102) defende que "[...] a mímesis , em vez de se confundir com o agente principal do controle do ficcional, se mostra como o núcleo que cunha sua especificidade". Ele propõe, pois, que a mímesis é um motor propulsor para a ação artística e, consequentemente, a representação social; é nesta teoria que nos apegamos para refletir sobre a arte literária dos gregos. Presente na arte dos poetas do arcaico grego, a mímesis , pois, permitiu-lhes, em seus juízos literários, agir em prol de representações. A literatura, assim, nunca deixou de ser relacionada ao universal. A referência à oralidade, obtida com as epopeias homéricas, somada à importância ritual e valorização individual das poesias dentro da coletividade, são exemplos desse caráter da estrutura literária dos gregos. É com estas configurações que o teatro emerge na Atenas do século VI a. C., fundamentado em uma cultura baseada na oralidade, com forte cunho social e político, para no século seguinte dar cada vez mais importância à palavra individual na coletividade. Consolidado em festas rituais em homenagem ao deus Dioniso, o teatro tem funções nítidas e específicas, mas que marcam sua relação com outras formas literárias anteriores. Além disso, é no teatro que há uma sublimação das outras artes gregas, tal como afirma

Aristóteles ( Poética , 1447a), pois há uma conjunção entre poesia, música e dança, com o objetivo de mimetizar ações de agentes, ou seja, ocorre ali a apresentação de um drama^8. O teatro em Atenas, desde sua emergência, esteve relacionado a festas e rituais religiosos. Os ditirambos e os cantos fálicos, que foram a base da tragédia e da comédia, respectivamente, ratificam esta relação 9. O próprio desenvolvimento dos gêneros teatrais é resultado e reflexo dos contatos com as festas e o sentido religioso. Adrados (1999b) afirma que, devido à proximidade com os ritos, o teatro é flexível, pois o drama é assinalado com mitos. Através dos mitos é que o teatro promovia debates acerca de problemas sociais, nomeadamente os de poder e de sexo, na concepção de Adrados (1999b). Na concepção antiga de Aristóteles ( Poética , 1449b), o teatro funcionava como uma extensão das emoções suscitadas pela epopeia e pelas poesias jâmbicas. Portanto, era, em grande medida, uma continuidade da estrutura literária presente no arcaico. Para o filósofo, a epopeia era o desencadear da ação de homens, passando por dificuldades dos mais variados tipos; por isso é que a epopeia estava repleta de mitos. Os gêneros teatrais, no entanto, para serem mais palpáveis ou para serem compreendidos em uma curta apresentação, se propunham como a imitação de certo número de ações limitadas, se apegando a um mito em especial e o desenvolvendo-o no drama proposto. Os argumentos literários - isto é, a mímesis produzida no teatro - eram mais breves do que na literatura arcaica. Assim, o desencadear das ações deveria ocorrer de forma a não tornar enfadonho o drama , conforme depôs Aristóteles. [...] o limite suficiente de uma tragédia é o que permite que nas ações uma após outra sucedidas, conformemente à verossimilhança e à necessidade, se dê o transe da infelicidade à felicidade ou da felicidade à infelicidade. (ARISTÓTELES, Poética , 1451a, 45.6) Outra caracterização presente no teatro que merece destaque ao observá-lo como desenvolvimento da estrutura literária entre os gregos é quanto à participação dos atores no drama. Inicialmente, o teatro era fundamentalmente composto por cantos corais, uma vez que foi compilado por esses cantos, tanto pelas poesias jâmbicas dos cantos fálicos, no caso das comédias, quanto pelos ditirambos no caso das tragédias. Além disso, o próprio nome da tragédia ( tragos = bode; oidos = canto) refere-se a uma versificação cantada. Gradativamente, o corifeu , personagem destacado do coro, passou a ganhar espaço e foi necessário impor diálogos, fazendo com que o corifeu interagisse com outro personagem, o protagonista

(^8) Na obra aristotélica ( Poética , 1448b, 29), as produções que são mímesis de ações ( δράω - dráo ) e dos agentes ( δρώντας - drôntas ) são denominadas como drama ( δράματα ). "Daí o sustentarem alguns que tais composições se denominam dramas [drámata], pelo fato de se imitarem agentes [drôntas]" (ARISTÓTELES, Poética , 1447a, 11.29, grifo do autor). 9 Vários autores partilham desta concepção, como é o caso de Eric Csapo e Margaret C. Miller (2007), Francisco Rodríguez Adrados (1999), Clifford Ashby (1999), entre outros.

extensão simbólica do público dentro do drama. (CSAPO e MILLER, 2007, p. 5, tradução livre) 10 Além da extensa participação da comunidade na montagem, execução e na audiência das peças, não podemos esquecer que os dramas trágicos e cômicos se situavam em momentos festivos em honra a Dioniso. Por isso é que Csapo e Miller (2007, p. 7-8) alertam que devemos entender as tragédias e comédias do século V a. C. como " dramas-rituais ", pois não se pode negar os laços entre a existência histórica do teatro ateniense e os rituais dionisíacos. A vida religiosa não era deslocada da vida social e uma parte significativa das práticas sociais eram dedicadas às atividades cívicas e religiosas; dentre essas práticas, o as produções do teatro eram significativas, pois mobilizavam a pólis como um todo. O Drama era originalmente (e para a maioria da antiguidade normalmente) apresentado em festivais religiosos. Em Atenas (que teve o papel principal na formação do drama), tragédia, comédia e peça satírica foram realizadas exclusivamente em honra de Dioniso e em teatros ligados a santuários de Dioniso. Em Atenas, o drama é descrito em textos oficiais como um "coro para Dioniso" e foi realizado, após as orações e sacrifícios, na presença do (o ícone do) Deus. (CSAPO e MILLER, 2007, p. 5, tradução livre) 11 Assim como esses autores, Jorge Ferro Piqué (1998, p. 208) não negligencia a origem ritual das produções do teatro e afirma que ele era composto sobre uma dupla ambientação: o campo religioso e o político. Com base nestas concepções, observa-se que as ideias e sentimentos presentes na sociedade são o que permeia uma produção literária entre os atenienses. Assim é que Romilly (1998, p. 10) afirma que " existe, evidentemente, uma relação entre a evolução puramente exterior das formas literárias e a renovação das ideias e dos sentimentos ".


Mais próximo aos problemas do cotidiano do que as tragédias, que estavam mais relacionadas a questões de ordem metafísica, estava o específico desenvolvimento do gênero cômico, que em Atenas esteve intimamente relacionado às questões políticas e sociais. A historiadora Elina Miranda Cancela (2010, p. 7), que considerou a comédia como um

(^10) "[...] the total annual requirement for choreuts at Attic festivals was sufficiently high to suggest the participation of most citizen males in a choral (if not strictly dramatic) performance at some time in their life, a factor that created a bond of community and empathy between audience and the majority of performers. A conservative estimate would put the annual demand for choreuts for dithyramb and drama in Attica at just under5,000, or something between 10 and 20 percent of the average male nonslave population for the Classical period. A number of recent studies have focussed on the choral function as both a ritual element within drama and 11 as a symbolic extension of the audience within the drama" (CSAPO e MILLER, 2007, p. 5). "Drama was originally (and for most of antiquity normally) performed at religious festivals. In Athens (which took the chief role in shaping drama), tragedy, comedy, and satyrplay were performed exclusively in honour of Dionysus and in theatres attached to sanctuaries of Dionysus. In Athens, drama is described in official texts as a “choros for Dionysus” and was performed, after prayers and sacrifice, in the presence of (the icon of) the god" (CSAPO e MILLER, 2007, p. 5).

fenômeno histórico e literário, defende que a inter-relação entre a comédia, seu público e sua teoria foi o que permitiu possibilidades de desenvolvimento temporal maior desse gênero em detrimento da tragédia. Desde a concepção do herói dramático, os intentos da comédia e da tragédia são díspares. Enquanto o herói trágico passa por muito sofrimento e dor, resultado de ações que empreende no drama , e tenta se afastar dessas ações, o herói cômico serve-se das ações conflituosas para seu desenvolvimento (CANCELA, 2010, p. 28). O herói cômico, então, participa de um universo de zombarias, constituindo uma atmosfera de fantasias para atingir o êxito. Nesse sentido, a comédia caminha nos limites do absurdo, rompendo com a estabilidade para revelar fissuras na ordem estabelecida. Esta concepção é partilhada também por Paul Cartledge (1990), que defende que as representações dramáticas da comédia de Aristófanes têm um compromisso com o contexto espaço-temporal em que emerge e por isso deve ter caráter social e político. O riso da comédia, então, é um elemento político e social com contornos dionisíacos, pois pode se apropriar, entre outras coisas, de selvageria, bestialidade, espontaneidade, julgamento por causa e consequência e prazer. Para Cancela (2010, p. 11), estudar a comédia é ver o desenvolvimento da própria pólis, uma vez que ela se desenvolve junto às transformações em ebulição desde o início do século V a. C. O pioneirismo nas manifestações cômicas, inclusive, é questão polêmica para Cancela (2010, p. 13). Várias comunidades gregas reclamam para si as origens da comédia, o que nos faz questionar se houve um ou mais lugares incentivadores da afirmação desse gênero. O fato de várias comunidades desejarem defender para si a origem da comédia indicam a importância que esta obteve entre os gregos do período clássico, apesar da recusa de Aristóteles ( Poética , 1449a) em aceitá-la como valorizada, já que a considerou como "gênero inferior" 12. De qualquer modo, como afirmou Cancela (2010, p. 28), se as informações sobre o gênero cômico não afirmam com certeza sua originalidade ou pioneirismo, certamente deixam claro como deve ter se desenvolvido a comédia como um todo. As possíveis origens geográficas da comédia, apontam Cancela (2010, p. 14) e Albin Lesky (1989, p. 261), são várias. A Magna Grécia possui Epicarmo, com origem megarense, o

(^12) Ressaltamos não só para a definição de comédia, mas também de tragédia, que Aristóteles viveu durante o século IV a. C., quando a tragédia já não vivia o ápice de seu desenvolvimento e já não mais atraía forte atenção e a comédia transformou-se em gênero de entretenimento, para a discussão de questões de ordem familiar, comercial, etc., mas sem o cunho político do século anterior. Não negligenciamos, no entanto, os apontamentos do filósofo, uma vez que ele foi um dos precursores da crítica literária. Tal como afirma seu tradutor Eudoro de Souza (2003, p. 36), a Poética , inclusive, foi uma proposta que se equivaleu em seu tempo a uma enciclopédia da arte poética entre os gregos.

derramavam suas piadas - frequentemente em versos - a direita e a esquerda sobre os presentes. A rígida indecência de tais brincadeiras tinha suas raízes no rito. Em último termo, ainda que não se tenha consciência disso em épocas posteriores, está sob todas estas provocações a representação da força apotropaica do obsceno. [...] Compreendemos agora que a surpreendente obscenidade de Aristófanes e a inclinação da Comédia Antiga ao ataque pessoal indubitavelmente têm suas raízes em costumes antigos. (LESKY, 1989, p. 261, tradução livre) 15. Entre os autores cômicos, aquele que obteve mais sucesso foi o ateniense Aristófanes (446-386 a. C.), que é o único de quem se tem obras completas. As comédias de Aristófanes em muito se diferenciavam dos jogos cômicos daqueles que o precederam e também são claramente distintas da obra de Menandro (o único autor da comédia nova^16 grega com uma obra preservada). Para Cancela (2010, p. 28), as disforizações propostas por Aristófanes, por exemplo, visavam a servir como um catalisador na vida cotidiana da pólis, ao rebuscar a tradição e apresentá-la como o verdadeiro ensinamento da mímesis cômica 17. A comédia, por este viés, pode ser considerada um gênero que se preocupou em agir de maneira restauradora ao transpor a ordem. As burlas cômicas, tal como afirma Lesky (1989), serviram de julgamentos para com questões mal resolvidas. O real vivido pelo poeta foi preponderante na sua produção, sendo a base de seu texto. As questões do momento funcionaram como relações de força com argumentos convincentes, suscitando lembranças que fazem parte da memória coletiva sobre valores, acontecimentos, lugares e personagens. Dentre as especificidades da comédia está a função denunciativa. Como afirma Maria de Fátima Silva (1987), a comédia tinha a função de denunciar mazelas sociais. Segundo Maria Regina Candido (2005, p. 625), “o dramaturgo usa o teatro como espaço de denúncia, visando a promover o debate e a reflexão para educar o cidadão”. Já para Francisco Oliveira

(^15) "[...] en todo tiempo expresan una pletórica plenitud de vida y aspiran a favorecer por todos los medios el joven crecimiento. Los improperios, entre alegres y groseros, que intercambian los participantes son un elemento indefectible. Lo encontramos en una forma especial en la fiesta primaveral ática de las Antesterias, de donde tal costumbre pasó a la procesión de las Leneas. Gentes alegres circulaban en carros y derramaban sus burlas - frecuentemente estarían en verso - a diestra y siniestra sobre los presentes. La burda indecencia de tales bromas tenía sus raíces en el rito. En último término, aunque ya no se tenga conciencia de ello en épocas posteriores, está detrás de todas estas bufias restallantes la representación de la fuerza apotropaica de lo obsceno. Los versos fesceninos que se cantaban en las bodas romanas y las burlas procaces que acompañaban al triunfador en el trayecto más glorioso de su vida son buenos ejemplos de ello. Comprendemos ahora que la sorprendente obscenidad de Aristófanes y la inclinación de la Vieja Comedia al ataque personal indudablemente tienen sus raíces en las antiguas costumbres" (LESKY, 1989, p. 261). 16 Considera-se como comédia nova as produções cômicas do teatro grego que foram compostas do período pós alexandrino (final do século IV a. C.) até um século mais tarde e seu principal autor, o único de quem se tem atualmente uma obra completa, é Menandro (342-290 a. C.). No teatro romano, este gênero durou pelo menos até o século II a. C. 17 De fato, como afirma Aristóteles, o teatro tinha a função de desembaraçar as emoções e as ações humanas, por isso seu fim pedagógico. Cf. ARISTÓTELES. Poética.

(1993, p. 75), a comédia no geral e mais especificamente a de Aristófanes é “definida por privilegiar a temática política, e [...] desde cedo utilizou a sua capacidade de censura e sátira para flagelar os poderosos nominalmente”, baseando-se no riso pelo ridículo, já que a sociedade da época tinha um forte sentimento de vergonha e posição social, o que demonstra as características pedagógicas formativas do jogo dramático cômico. O drama cômico possuía, no aspecto literário e textual, partes bem definidas que facilitavam a representação e a compreensão no espaço de atuação, o teatro. No entanto, a comédia não foi sempre um gênero coeso e linear, mas foi se transformando, se adaptando às necessidades literárias, políticas e sociais. Com base nisso, Cancela (2010, p. 29) afirma que na segunda metade do século V a. C. os poetas cômicos passaram a ter mais consciência dos elevados fins da obra que produziam. O comediógrafo, nesse sentido, produzia direcionando sua arte para o interlocutor que a presenciava no teatro, de forma a produzir algo que, no mínimo, era esperado e compreensível. Isso nos remete a uma característica da estrutura literária entre os gregos já relatada anteriormente, o valor da tradição. O gênero cômico trouxe também inovações ao campo literário dos gregos, mas estas estiveram intimamente relacionadas à tradição e são justificadas também com base nela. O jogo cômico no tempo de Aristófanes, que é o modelo de comédia antiga^18 que temos, era composto no geral por prólogo , coro , agôn , parábase e êxodo^19.

(^18) Definimos como comédia antiga o gênero cômico de drama desenvolvido no teatro grego, principalmente em Atenas, ao longo de todo o século V a. C. Seu principal autor foi Aristófanes, de quem há atualmente uma larga produção, com 11 obras preservadas, mesmo que esse número seja apenas uma fração de cerca de 25% de todas as suas comédias. Aristófanes é também o principal referencial da comédia antiga, uma vez que suas obras são as únicas com o texto integral preservado. Ao longo do século IV a. C. o gênero cômico que foi representado no teatro ateniense não possuía as mesmas exigências técnicas e os mesmos aportes políticos que um século antes; por isso, a historiografia costuma considerar a comédia desse período como comédia média. Cf. Comedia, teoria y público en la Grecia clásica 19 (Elina Miranda Cancela, 2010) e O Teatro Grego (António Freire, 1985). Levamos em consideração aqui a comédia de Aristófanes como o modelo da comédia antiga ateniense por alguns motivos: primeiramente, é o único autor de quem há uma documentação relevante para o estudo do gênero; em segundo lugar, toda a historiografia concernente ao tema da comédia antiga considera que sua obra foi a de melhor qualidade entre os cômicos do século V a. C. Cancela (2010, p. 37), inclusive, chega a afirmar que Aristófanes provavelmente foi o autor mais "metateatral" de todos os poetas cômicos e que sua obra é um expoente na história teatral e literária entre os gregos. Para essa autora, "[...] Aristófanes era também um especialista com relação ao pensamento de sua época em torno da obra literária. Não só poderia considerar-se herdeiro e continuador de critérios, teorias, como também ajudava a fixar uma linguagem técnica, de modo a tomar posições e estruturava uma teoria coerente, que ganhava sua maior significação ao aplicar-se ao gênero que cultivava" (CANCELA, 2010, p. 45) ["Aristófanes era también un "experto" en relación con el pensamiento de su época en torno a la obra literaria. No solo podía considerarse heredero y continuador de criterios, teorías, mientras ayudaba a conformar un lenguaje técnico, sino que tomaba posiciones y estructuraba una teoría coherente, que gana su mayor significación al aplicarla al género que cultiva"]. Além disso, fontes antigas, correntemente, fazem referência a ele quando se remetem à comédia - é o caso, por exemplo, de Platão, Aristóteles e Xenofonte. Aristófanes produziu comédias entre o início da década de 420 e a década de 380 a. C., todavia, a virada entre os dois séculos marcou uma perda política importante em Atenas e, consequentemente, suas produções artísticas imbuídas de cunho político, como a comédia, foram afetadas. Assim, consideramos que a produção aristofânica, como modelo para o estudo da comédia antiga, prevalece apenas no último quartel do século V a. C.

tendo ou não a ver com a obra, o contexto sociopolítico do momento ou obras anteriores. Essa participação poderia ser executada na figura do próprio autor, fantasiado e mascarado ou não ou na figura do corifeu ou mesmo no conjunto coral. A parábase funcionou, na comédia do século V a. C., como um depoimento de seu autor. Sob reflexões da filóloga especialista nas parábases aristofânicas Adriane da Silva Duarte (2000), consideramos que a parábase é algo como um termômetro moral, literário, artístico, político e pedagógico entre o poeta, seu coro e atores e espectadores. Duarte (2000, p. 13) afirma que a parábase possui função e preocupação didática e política por parte do autor. Após o agôn e a parábase a comédia praticamente se encerra, não tendo mais recursos que conduzam questões importantes no drama. O final do jogo cômico é denominado de êxodo. Geralmente festivo, com final feliz, o encerramento das comédias é muito diferente do final das tragédias. A comédia, pois, era uma proposta menos desafiadora emocionalmente do que a tragédia e agia de forma lúdica sobre as questões abordadas, enquanto a tragédia trabalhava o contraste entre terror e piedade. A interação entre o jogo cômico, seus interlocutores e o teatro funcionava de maneira expositiva, mas também questionadora. Todas essas observações em conjunto ratificam a concepção de que o teatro na antiguidade grega não foi um gênero coeso, o que nos inclina a rechaçar a expressão teatro grego e informar que o que se quer apresentar são tragédias ou comédias de tal ou qual autor e de tal ou qual período. Além disso, uma informação bastante relevante que por vezes é relegada a um segundo plano é a de que um estudo historiográfico que tenha por base documental peças do teatro grego do período clássico deve reservar atenção não só ao documento textual preservado pelo tempo, mas às questões diretas e indiretas que contribuíram para aquela produção, além de buscar observar a interação entre aquele documento e seu espaço de atuação, o teatro, que foi um mecanismo de rememoração da memória coletiva 22 na pólis de Atenas no período clássico e um dos constituintes da identidade de cidadão ateniense, devido à ação antrópica e às simbolizações a que era submetido.

(^22) O sociólogo francês Maurice Halbwachs (1990, p. 78), ao dimensionar a condição social da memória, afirma que as memórias individuais têm relação com a memória de um grupo, que deve ser concebida como uma memória coletiva. A memória individual, para ele, não se constitui sem o apoio na coletividade, ou seja, baseia- se em um sentimento de grupo. Para esse autor, a memória individual sempre acompanha alguma referência de um grupo: olhamos ao mesmo tempo com nossos olhos e com os olhos dos outros. Assim, para Halbwachs, a memória coletiva é prova da existência de um gérmen social nas ações humanas. Nesse sentido, há na memória coletiva "transformações [que] atuam muito mais diretamente sobre a vida e o pensamento de seus membros" (HALBWACHS, 1990, p. 79, grifo nosso).

Em última instância, afirmamos, com base em Marcus Mota (2011, p. 46), que o teatro grego não pode ser visto como uma evolução uniforme porque é composto por gêneros pluriformes, interartísticos e articulados a outras experiências, sendo o que esse autor caracterizou como " experimentalismo estético-social ". É importante salientar que o drama trágico e o drama cômico com os quais os atenienses tiveram contato não são pura e simplesmente as peças a que hoje temos alcance, pois toda a experiência ali produzida era única e possivelmente muito marcante para quem presenciava. Segundo Richard Green (2006, p. 163) isto ocorria pois os dramas do teatro ateniense agiam como mecanismos de comunicação como o são o cinema, a televisão, os jornais e outros meios de comunicação que observamos no espaço público nas sociedades modernas, no entanto, para os gregos a experiência daquele meio de comunicação não era contínua ao longo do ano e, por isso, eles armazenavam aquelas informações como um dos momentos relevantes de suas experiências anuais. Sob o viés teórico traçado pelo historiador das ideias Bronislaw Baczko (1985), destacamos que o teatro ateniense colaborou intensamente para o controle e a divulgação de certos símbolos na vida cotidiana daquela sociedade em detrimento de outros. Em outras palavras, o teatro ratificava o poder constituído de tradições que foram se cristalizando desde o início do período arcaico e que no século V a. C. continuaram a ser propagadas. Sobre esta difusão e controle dos símbolos, afirma-se, parafraseando Baczko (1985, p. 313), que "a função do símbolo não é apenas instituir uma classificação, mas também introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos e indicando as possibilidades de êxito dos seus empreendimentos". Para Baczko (1985, p. 298) não há impermeabilidade entre os saberes e o imaginário em uma sociedade. Esse autor defende, pois, que não se pode separar o sujeito e seus atos da imagem que ele tem de si e dos outros. Essa imagem, todavia, não é forjada individualmente, mas é permeada por concepções simbólicas coletivas, agindo como um mecanismo de defesa da coletividade. Sobre este aspecto, ele dá o exemplo de momentos de conflito. Com base nisso, este trabalho considera que a produção intelectual do teatro esteve intimamente ligada à concepção de imaginário social entre os atenienses e que em momentos de conflito as comédias e tragédias serviram como termômetros políticos e sociais da ordem estabelecida. Uma vez que o teatro, além de ter caráter pedagógico, foi também um meio de comunicação para a comunidade políade dos atenienses, podemos afirmar que ele contribuiu para a difusão de ritos e símbolos tradicionais e, consequentemente, de um imaginário social. Como afirmou Baczko (1985, p. 313), os imaginários sociais dependem dos meios de