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Literatura Marginal: Ato I, Ato II e Ato III, Esquemas de Literatura

Este documento discute a literatura marginal como um assalto ao poder da escrita, sua história, características e implicações. A literatura marginal é um gênero literário que surgiu na periferia social e se distingue por misturar elementos documentais, testemunho e ficcionalização de experiências vividas por seus autores. O texto aborda as dúvidas e questionamentos sobre os parâmetros críticos deste gênero, sua relação com a cultura popular e as elites letradas, e sua importância como expressão de voz do outro e da alteridade.

O que você vai aprender

  • Como a literatura marginal se relaciona com a oralidade e a cultura imagética?
  • Por que a literatura marginal é considerada um assalto ao poder da escrita?
  • Quais são as características distintivas da literatura marginal?
  • Como a literatura marginal se relaciona com a cultura popular e as elites letradas?
  • O que é literatura marginal?

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Literatura marginal:
o assalto ao poder da escritao assalto ao poder da escrita
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o assalto ao poder da escrita
Fernando Villarraga Eslava
Então, tudo é conteúdo. É uma forma de você ocupar a mente.
Lá dentro tem vários escritores, tem os caras que escrevem,
pegam a caneta, montam várias histórias baseadas na sua história.
A literatura é muito grande lá dentro, é infinita.
Sobrevivente André du Rap
(do Massacre do Carandiru)
A questão inicial que se coloca para quem procura se aproximar sem
preconceitos teóricos ou culturais a uma manifestação como a da
autodenominada literatura marginal é, fora de toda dúvida, a de aban-
donar as atitudes tradicionais do homem ilustrado frente aos fenôme-
nos que desajustam sua própria visão e valores, isso que antes, num
outro contexto histórico, se expressava em termos do conflito entre civi-
lização e barbárie, para encontrar o que aqui poderia ser definido como
princípio de indagação hermenêutica, caso se queira começar a deci-
frar as possíveis significações e implicações de práticas escriturais que
vem se projetando no âmbito nacional, para arrepios de alguns e espan-
to de outros1. Porque os primeiros sinais de recepção crítica indicam de
forma muito evidente que as desconfianças são muitas e as suspeitas
enormes, dado que, em virtude da insistência de seus “atos I, II e III”2
e da peculiaridade de seus respectivos projetos, algumas vozes dos cam-
pos acadêmico e jornalístico advertem alarmadas sobre os riscos, as con-
fusões e as promiscuidades que supostamente comporta a cada vez mais
visível onda dos marginais, com suas afirmações sobre a condição de
serem escritores e seus desejos de se verem reconhecidos como parte da
literatura nacional. Pois, como se diz no seu manifesto inaugural, num
gesto que lembra imediatamente uma das práticas da vanguarda
1 Algumas das idéias principais deste artigo foram expostas na comunicação apresentada no Simpósio
“O lugar, o não-lugar e o fora-de-lugar” do IX Congresso da ABRALIC, realizado em Porto Alegre,
de 18 a 21 de julho de 2004.
2 A cultura da periferia: Literatura marginal – Ato I, Ato II e Ato III, em Caros Amigos.
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Fernando Villarraga Eslava

Então, tudo é conteúdo. É uma forma de você ocupar a mente. Lá dentro tem vários escritores, tem os caras que escrevem, pegam a caneta, montam várias histórias baseadas na sua história. A literatura é muito grande lá dentro, é infinita. Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru)

A questão inicial que se coloca para quem procura se aproximar sem preconceitos teóricos ou culturais a uma manifestação como a da autodenominada literatura marginal é, fora de toda dúvida, a de aban- donar as atitudes tradicionais do homem ilustrado frente aos fenôme- nos que desajustam sua própria visão e valores, isso que antes, num outro contexto histórico, se expressava em termos do conflito entre civi- lização e barbárie , para encontrar o que aqui poderia ser definido como princípio de indagação hermenêutica, caso se queira começar a deci- frar as possíveis significações e implicações de práticas escriturais que vem se projetando no âmbito nacional, para arrepios de alguns e espan- to de outros 1. Porque os primeiros sinais de recepção crítica indicam de forma muito evidente que as desconfianças são muitas e as suspeitas enormes, dado que, em virtude da insistência de seus “ atos I, II e III” 2 e da peculiaridade de seus respectivos projetos, algumas vozes dos cam- pos acadêmico e jornalístico advertem alarmadas sobre os riscos, as con- fusões e as promiscuidades que supostamente comporta a cada vez mais visível onda dos marginais , com suas afirmações sobre a condição de serem escritores e seus desejos de se verem reconhecidos como parte da literatura nacional. Pois, como se diz no seu manifesto inaugural, num gesto que lembra imediatamente uma das práticas da vanguarda

(^1) Algumas das idéias principais deste artigo foram expostas na comunicação apresentada no Simpósio “O lugar, o não-lugar e o fora-de-lugar” do IX Congresso da ABRALIC, realizado em Porto Alegre, de 18 a 21 de julho de 2004. (^2) A cultura da periferia: Literatura marginal – Ato I, Ato II e Ato III, em Caros Amigos.

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histórica, depois de justificar suas raízes sociais e filiações artísticas: “ estamos na área, e já somos vários, e estamos lutando pelo espaço para que no futuro os autores do gueto sejam lembrados e eternizados ” 3. Portanto, sem pedir qualquer licença às autoridades da cultura oficial e canônica, e com o explícito respaldo editorial e ideológico de “caros amigos”, os su- balternos do Brasil contemporâneo decidiram invadir de forma orques- trada o espaço público para lançar suas vozes estridentes e escritas desen- gonçadas , para reclamar seu direito a um nicho na seleta república letra- da ao se considerarem expressão direta e essencial de um “ povo composto de minorias, mas em sua maioria um todo ”. Não disseram, como a mineira boliviana Domitila, se me deixam falar , porque se apropriaram de vez da palavra escrita para dar fisionomia a suas criações literárias e artísticas. As reações contra essa pretensão vêm se traduzindo em diversas de- clarações de alerta para tornar claro o que pareceria ser fundamental nas manifestações que se recolhem sob tal rótulo. Para alguns, o que pode estar motivando determinados sujeitos periféricos a tomar a caneta, às vezes literalmente pela falta de um computador, estaria ligado à lógica perversa da indústria editorial, pois, pela necessidade vital de expandir seus mercados, ela direciona suas estratégias para incentivar a produção de objetos que possam ser consumidos por um leitor acrítico, ávido de quaisquer novidades, o que explicaria, entre outras coisas, o boom da literatura carcerária e da violência. Para outros, o aspecto relevante se centraria não no fato de tais sujeitos tentarem construir sua própria re- presentação simbólica no terreno literário, o que lhes outorgaria num certo sentido algum grau de autenticidade, mas no deficitário e quase primário domínio que suas expressões revelam dos códigos e das lingua- gens mais importantes da modernidade estética, com o que suas produ- ções não conseguiriam atingir transcendência e valor plenamente artísti- cos. Para uns poucos, finalmente, o que resulta mais notório é o caráter problemático que a literatura marginal apresenta na medida em que se movimenta num território no qual vão se misturar, sem maiores distinções formais, a vontade documental, a força do testemunho e a ficcionalização das próprias experiências vividas pelos autores marginais , gerando, por conseqüência, dúvidas e interrogantes sobre os parâmetros críticos

(^3) Ferréz, “Manifesto de abertura: Literatura marginal”, Ato I.

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obrigatoriamente na perspectiva do reconhecimento da voz do outro, da chamada alteridade, com o paradoxo de ser muito comum proclamar sob as brilhantes roupagens democráticas o direito à palavra que todos teri- am, é que devem ser formuladas as indagações na perspectiva crítica preliminar de apreender a natureza, a identidade e a significação possí- veis da autodenominada literatura marginal , para evitar, logicamente, as conclusões apressadas e às vezes definitivas que a razão ilustrada nas suas diversas variantes enuncia quando sente que as sombras de corpos estra- nhos se tornam ameaçadoras para a ordem literária e cultural dominante. Sobretudo porque o que se nota nas resenhas ou comentários críticos, é a tendência genérica a desqualificar, a restringir ou a superestimar os al- cances que teria o fenômeno marginal , sem se dar atenção específica a seus componentes híbridos ou contraditórios, às aporias que percorrem suas pretensões de representação, aos múltiplos sentidos que dele brotam em virtude de reunir um conjunto de práticas escriturais heterogêneas, enfim, ao que conforma essa literatura enquanto projeto coletivo e reali- dade específica no contexto da sociedade brasileira contemporânea 5. Por isso, a questão inicial a ser enfrentada é a que diz respeito às dimensões semânticas e ideológicas da própria denominação, porque os dois termos, literatura e marginal , como se sabe, carregam uma longa his- tória de polêmicas e desencontros ao estarem atrelados a uma série de discursos com os que se nomeiam práticas humanas e sociais muito diver- sas. E o truísmo aqui não é tão evidente. Basta lembrar apenas que sob o conceito de literatura , substantivo que se escreve implicitamente com maiúscula, de acordo com uma determinada concepção, reúne-se quase sempre, nas plagas de Santa Cruz, a produção escrita que parecia se en- caixar nos moldes canônicos elaborados por algumas culturas européias. Ao extremo de que nunca se tornou necessário o uso de qualquer adjeti- vo para sua distinção. Porém, o recorte que se impõe para a delimitação do respectivo corpus em cada época, com todas as possíveis variantes segundo a orientação de seus agentes e das instituições representativas,

(^5) Na tentativa de implementar uma nova perspectiva crítica Benito Martinez Rodriguez propõe a sugestiva e pertinente expressão “Mutirões da palavra” para identificar o espírito que percorre os textos do movimento. Ver em “Mutirões da palavra: literatura e vida comunitária nas periferias urbanas”.

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nunca deixou de estar ligado à operação implícita ou explícita de silenci- ar ou de ignorar outras formas de manifestação literária que, em razão dos mecanismos expressivos e/ou dos formatos com os quais se estruturam e veiculam, são consideradas como pertencentes ao universo folclórico ou massivo ou popular. E aqui se tem sentido, para essa perspectiva, o uso do adjetivo, pois com ele se executa a profilaxia do que pode desajustar. Por outro lado, a carga denotativa do marginal associa-se até hoje com o que deve ser condenado e/ou banido, mesmo que se trate no caso de inocentes escritas que se apresentam como literárias, mas cuja legitimação passa a depender em boa medida, não por simples coincidência, dos que controlam o poder simbólico do campo. Um exem- plo bem ilustrativo é a tão polêmica e esquecida poesia marginal dos anos setenta. Daí a plena certeza de que quando se fala de literatura está-se aludindo a discursos que têm a capacidade de se diferenciar da realidade do mundo por seu alto grau de elaboração estética, por pene- trar em esferas acessíveis só a privilegiadas sensibilidades e por atingir uma dimensão universal; portanto, sem vínculo nenhum com gestos ou atitudes escriturais pertencentes a quaisquer sujeitos marginais que pre- tendam infiltrar-se no salão literário. Todavia, no que se refere ao fenômeno aqui enfocado o que precisa ser considerado é, justamente, as implicações que derivam do gesto de autodenominar sua produção textual como literatura marginal , já que com isso o “ povo da periferia/favela/gueto ” procura, sem aparentes recalques, assumir concreta e publicamente sua diferenciada identidade artística, cultural e social. É esse o dado inédito que se coloca, permitida a paráfra- se, quando novas personagens entram em cena. Dado que precisa ser enten- dido, então, como sinal evidente da emergência recente de um movi- mento que aglutina sujeitos de tribos e de galeras que, munidos da tecnologia da palavra, embora seu domínio seja muito diferenciado, co- meçam a traçar seus signos para dar vazão a energias criadoras cuja fonte inspiradora é, de maneira preferencial, a própria experiência de sobrevi- ver nos espaços marginais e marginalizados da sociedade nacional. É o que explica o fato de o movimento ser integrado por autores que, em virtude de sua origem ou condição social, se apresentam como favelados, ex-presidiários, detentos, desempregados, índios, negros, nordestinos, rappers, membros de comunidades de bairro ou de pescadores, grafiteiros,

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também a outros recursos expressivos, dado o vínculo estreito que man- tém com a cultura de rua de novas tribos urbanas. A segunda conduz, por sua vez, ao conhecido debate que se inaugura com a modernidade sobre a pertinência e a validez de executar a representação do outro, de quem se projeta como alteridade, daquele que é passível de ser transposto nos universos simbólicos e artísticos por supostamente carecer dos mecanis- mos verbais do homem letrado, tal como se registra, por exemplo, em algumas das denominadas literaturas populares , que escritores oriundos das classes médias subscrevem por suposta solidariedade ideológica com as classes oprimidas. E aqui não se pode deixar de mencionar por seu caráter ilustrativo os polêmicos CPCs da UNE na época da ditadura mili- tar com suas demandas de uma estética ao serviço da revolução popular 6. A tese fundamental que os sustenta é a do artista iluminado, como arau- to dos homens que, por sua própria condição histórica, não podem se transformar em verdadeiros sujeitos de sua representação política e artís- tica. Enfim, duas questões que remetem imediatamente ao que parece ser o cerne da problemática que acompanha a literatura marginal com sua tomada de posição sobre as tarefas que deve cumprir e o sentido muito mais que simbólico que a identifica. Ambas as questões interligadas agora na emissão de uma série de juízos valorativos por parte de certas vozes esclarecidas, as quais procu- ram a qualquer custo validar ou invalidar, imbuídas de um aparente rigor teórico e crítico, as manifestações do fenômeno marginal. Porém, as argumentações apresentadas terminam divorciadas, paradoxalmen- te, pela forte tendência a colocar em relevo as hipotéticas limitações de seus discursos ao serem postos em confronto com os que assinam as correntes canônicas modernas, da ânsia hermenêutica que em hipótese as motiva. Em tal sentido, resulta significativo o fato de se assinalar quase de modo consensual o seguinte: seja o predomínio do documen- tal sobre o estético que nelas se percebe, isto é, as deficiências ou impe- rícias que, apesar da validez outorgada ao gesto e à substância que as sustenta, terminam remetendo-as ao círculo opaco de obras e textos que não podem ser considerados parte das altas literaturas ; seja o caráter de

(^6) Para compreender algumas de suas implicações estético-ideológicas pode-se confrontar o esclarecedor artigo de Marilena Chauí, “Notas sobre cultura popular”, em Arte em revista.

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autenticidade que supostamente se desprende da perspectiva empregada no tratamento dos assuntos temáticos abordados, por corresponder, de acordo com o mesmo raciocínio, à experiência direta dos que as produ- zem, embora se formulem algumas reservas sobre o fato de suas escritas se deixarem contaminar por fatores estranhos ao mundo subalterno. Com isso se entra, então, num terreno bastante pantanoso onde se tenta preservar de qualquer maneira um conceito ilustrado de literatura e, paralelamen- te, destacar essa espécie de essencialidade ontológica que distinguiria o fazer dos que em termos canhestros recorrem ao uso da escrita; o que, conseqüentemente, coloca de manifesto muitos dos preconceitos e das ambigüidades que identificam as ainda tímidas aproximações críticas à literatura marginal. Os desdobramentos dessas visões interpretativas também se fazem sentir em relação a outros sentidos que teria essa literatura. Porque assim como alguns reconhecem a urgência de democratizar as práticas e os usos da palavra escrita, em particular a que se destina à construção e recepção de representações de ordem literária, ao mesmo tempo não se deixa de questionar ou de condenar as nefastas influências ou contaminações que mostrariam as vozes da periferia no plano de seus codificados signos lingüísticos. Parte-se implicitamente de uma espécie de premissa ontológica em torno da pureza expressiva que deveria marcar a literatura marginal. Só ela seria capaz de traduzir através de sua linguagem a contundência de certas realidades humanas, de decifrar suas camufladas essências, de desfazer as inócuas imagens que as cercam, resultado da cuidadosa operação executada, sob o pretexto geral da informação, por outros discursos. Os exageros não faltam. E não deixam de evidenciar as aporias que se colocam para sua abordagem crítica. Por exemplo: a quem pertenceria, por direito natural, no campo da ficção narrativa, a tarefa de elaborar a representação “ genuína ” dessa realidade assustadora e banali- zada que é a violência urbana? A resposta que algumas cabeças progres- sistas vêm articulando é fácil de adivinhar: aos autores marginais. Quem melhor que eles para dar a versão “ autêntica ” de como funciona esse mal assolador que perpassa todas as camadas da sociedade brasileira? Eles nasceram e cresceram no meio de seus tentáculos mortais, no dia-a-dia se enfrentam com ela, conhecem bem as entranhas do monstro, além de serem suas principais vitimas pela ausência do Estado ou a ação corrosiva

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mais. A própria adaptação cinematográfica da primeira viria confirmar que se trata de um artefato de fácil manipulação mercadológica porque reúne os ingredientes básicos para seu consumo fácil por parte de um público idiotizado. Com absoluta certeza o mesmo que devora os livros de Lair Ribeiro ou de Paulo Coelho. Dois autores que surtem de best sellers as prateleiras de livrarias especializadas e de shoppings centers. As quais também oferecem como novidades imperdíveis os títulos que ajudam a consolidar o filão da “ moda literária da estação ”: a que fornecem os auto- res das prisões. É que os meandros psicológicos da atual classe média devem ser alimentados, segundo a tese quase explícita que sustenta essa visão crítica, com o “ exotismo ” do que existe ao lado, mas só se conhece por referências imagéticas, em especial televisivas. Daí que Memórias de um sobrevivente , Diário de um detento ou Carandiru , os modelos referenciais do novo gênero, a literatura prisional , sejam absorvidos vorazmente por tal setor social na medida em que satisfazem sua curiosidade mórbida pelos heróis do banditismo. Curiosidade que se reforça quando o último desses livros é adaptado igualmente à tela do cinema. Assim, tudo indicaria que se trata de um fenômeno orquestrado por uma combinação de fatores que vão desde o simples interesse comercial, passando pela vontade exibicionista dos agentes implicados, os anseios consumistas de determi- nados grupos sociais, até, logicamente, as operações ideológicas que efe- tuam os que precisam preservar a ordem estabelecida. Como diria o poe- ta: o círculo se fecha. Porque nessa perspectiva tudo fica submetido em última instância à dinâmica feroz do grande irmão que opera sob as mais diversas roupagens. Por outro lado, de acordo com a mesma tese crítica, os efeitos nocivos que exercem sobre essa produção literária os aspectos referi- dos são agravados também pelas influências diretas ou indiretas que seus respectivos autores recebem da produção narrativa de famosos escritores ilustrados, cuja abordagem da temática da violência conta com uma boa tradição, pois, como assinalam estatísticas tácitas, nun- ca explicitadas, mas sempre esgrimidas, suas obras se tornaram verda- deiros clássicos para os leitores homogeneizados da classe média. Ali- ás, classe que se converteu em bode expiatório da maioria das mazelas culturais. É o que vem permitindo emitir o juízo condenatório sobre a suposta artificialidade da corrente ficcional que inaugurou Rubem

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Fonseca desde seus primeiros livros, e que encontra nos seus atuais segui- dores, Patrícia Melo e Marçal Aquino, para não estender a lista, uma linha de continuidade associada a uma atitude estética vouyerista , com a que se dá o registro das peripécias e aventuras de seres marginais sob os artifícios de uma linguagem próxima dos modelos cinematográficos. Daí a crescente banalização que suas obras concretizariam da temática da violência como elemento que estrutura os enredos narrativos. Inclusive, chega-se a referir dados biográficos do autor para explicar o porquê da ótica de seus narradores e do tratamento dispensado às personagens, isto é, dados cuja ressonância se faria sentir no fascínio pelas variantes da violência que se revela como uma constante de suas ficções, só que per- passadas por uma espécie de cegueira premeditada para penetrar no âmago de dita temática. Por isso, a conclusão mais evidente a que se chega é a de que, identificados seus principais procedimentos literários, a obra do referido escritor responde a dois fatores: por uma parte, ao exotismo com que trabalha em termos literários o universo do crime e de seus protago- nistas; por outra, aos interesses ditados pelas estratégias de um mercado editorial que ardilosamente explora o fenômeno da violência tanto urba- na como social. Enfim, tudo indica que ninguém está livre de culpa nesse jogo da literatura que focaliza a temática em questão, pois nem os margi- nais nem os ilustrados conseguiriam elaborar a representação autêntica e responsável da mesma, sobretudo pela carência de um ponto de vista artístico capaz de desvendar a verdadeira essência do que gera e promo- ve as práticas da violência na sociedade brasileira. Quase que se poderia dizer, então, segundo essa linha de raciocínio, que a literatura marginal às vezes chega a se tocar ou misturar com a que produzem alguns escritores nada marginais, ao colocar ambas em circulação imagens similares ou próximas da realidade que se procura representar. Não haveria uma linha divisória para sua distinção clara como manifestações de sujeitos e de estéticas pertencentes a esferas diferenciadas. O samba do crioulo doido interpretado e dançado num salão de festas bastante promíscuo, eis a imagem que se desprende dessas apreciações críticas. Perante esse quadro sintético resulta mais que pertinente perguntar, então: que é o que se nomeia em definitivo com a expressão literatura marginal? E, por conseqüência, quais seriam suas reais significações e sen- tidos? As respostas, aparentemente simples, obrigam a considerar que se

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tomada de posição por parte de sujeitos subalternos, que ela é elemento substancial de um projeto que vai além do literário, pois, além de manter vínculos estreitos com algumas expressões culturais de rua como o hip - hop e a arte dos grafiteiros, busca se constituir em porta-voz estético e ideológi- co dos que sempre foram silenciados e hoje integram o “ povo da periferia/ favela/gueto ”. Essa é a razão substancial que a impulsiona enquanto movi- mento e lhe confere seus principais signos de identidade social. E o que, justamente, vai remeter ao núcleo problemático das abordagens críticas que tentam interpretar os sentidos de práticas escriturais cuja premissa é a de serem auto-representações da condição e da experiência existencial de seus próprios artífices. Por isso, a questão nevrálgica que se coloca de ma- neira prioritária, como foi dito antes, é a de estabelecer em termos judicativos e às vezes absolutos qual seria o grau de autenticidade de suas expressões, pelo fato concreto de os subalternos assumirem a própria voz no terreno da escrita, como se isto decretasse, automaticamente, a nulidade das outras formas de representação literária nas que estes figuravam como objetos referenciais. Na verdade, a preocupação fundamental que motiva essas abordagens oscila entre as cobranças canônicas e as probabilidades simbó- licas que emanam do debate atual em torno dos rumos da cultura no mun- do contemporâneo. Sobretudo, na medida em que as teses sobre a suposta crise ou falência da modernidade servem de pressuposto para reafirmar ou questionar as diversas posturas críticas em jogo, ora as que defendem o princípio da universalidade que toda obra deve atingir para ter valor como discurso artístico, ora as que declaram o repúdio a tal princípio como parâmetro chave de valoração estética ao ser caracterizado como mero construto do homem branco ocidental. Daí as opiniões críticas sobre a lite- ratura marginal estarem inseridas, de modo quase inevitável, ainda que nem sempre em termos explícitos, no marco teórico contextual que se pro- duz com o fenômeno do pós-modernismo. Aqui resulta oportuno um pequeno parêntese para indagar se não há antecedentes de subalternos que tenham assaltado o poder da escrita antes. Ou se se trata de um fato inédito, realmente. A resposta leva a recordar que em certos momentos da vida literária brasileira apareceram algumas vozes dissonantes que despertam profundo interesse em virtude de sua origem ou condição social. Basta referir, por exemplo, que até hoje se discute qual seria o verdadeiro valor da obra de Lima Barreto, pelos

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sinais ao parecer tão pouco literários que singularizam sua escrita, resul- tado da sempre assinalada pertença do escritor ao universo suburbano. Uma situação que, com determinadas variantes, parece repetir-se com a figura e a narrativa de João Antônio. Um dos raros nomes que os escrito- res marginais destacam como modelo referencial obrigatório para sua pro- dução. Porém, trata-se de dois autores cujas respectivas obras já foram assimiladas ao panteão da literatura nacional, com todas as reservas que a historiografia e a crítica ainda possam manter a seu respeito. Mais emblemático, para o que se tenta discutir sobre a literatura em questão, seria o caso de Carolina Maria de Jesus, a autora do hoje clássi- co Quarto de despejo , por traduzir o processo de quem, vivendo nas mar- gens de uma sociedade hierárquica, enfrenta um intenso conflito ao se apropriar da palavra escrita para sua conversão em literatura, sem conse- guir que sua obra se ajuste plenamente às exigências da cultura letrada. Porque, apesar de ter vencido as barreiras para poder editar seus livros, das simpatias que despertou em alguns escritores e intelectuais de relevo nacional, de uma relativa fortuna crítica, toda sua obra está carregada de uma espécie de sina negativa que se mistura com os rumos de sua vida pessoal. Como ocorre também com Lima Barreto e João Antônio. Uma coincidência que termina abrindo espaço para a hipótese de que nos três a vida se torna extensão do que se escreve, de que a palavra está consubstanciada com a existência. Só que tal coincidência não leva ao mesmo tratamento crítico das linguagens que os identificam, porque o balance indica, quando se olham os juízos sobre cada um, que a de Caro- lina Maria de Jesus teria um sentido mais sociológico que literário 7. De qualquer maneira, o que importa ressaltar é que, seja qual for a dimensão artística dada a suas respectivas obras, elas se projetam como fatos indivi- duais e isolados com diferentes repercussões no cenário literário brasilei- ro, isto é, não respondem a uma intenção programática ou a um gesto reivindicatório de um grupo social, nem à vontade de conformar uma alternativa frente às práticas literárias dos setores cultos e dominantes.

(^7) Alguns trabalhos recentes sobre a produção da escritora começam a inverter essa visão ao tentar decifrar os alicerces de sua estética e seus processos de criação literária. Pode-se confrontar, por exemplo, o artigo de Elzira Divina Perpétua: “Aquém do Quarto de despejo : a palavra de Carolina Maria de Jesus nos manuscritos de seu diário”.

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de uma entidade privada ou das benesses oficiais; ao mesmo tempo, então, esses sujeitos estariam presos à lógica dominante do universo letrado, às expectativas e às exigências da própria cultura que sempre os silenciou ou se nega a sua aceitação definitiva. O problema é que se a literatura marginal renuncia a manter sua fisionomia lingüística e cultural, ao fazer concessões ao padrão culto na medida em que apaga da escrita o que se projeta como erro ou deficiên- cia, termina de alguma forma por revogar em parte a natureza de suas linguagens desengonçadas, ainda que pelo imperioso desafio de obter o potencial título de literárias. Quem sabe não seja isso o que está embuti- do no referido “ manifesto de abertura ” quando se proclama em tom utópi- co que “ estamos lutando para que no futuro os autores do gueto sejam tam- bém lembrados e eternizados ”. Contudo, o desejo de ser postos no patamar do que transcende artisticamente não resolve a questão das profundas tensões que suas escritas registram, pois a aparente correção gramatical de algumas não soterra seu forte hibridismo, sobretudo o que gera a pre- sença pouco visível de mecanismos expressivos pertencentes ao território da oralidade e/ou de elementos constitutivos da cultura imagética e massificada. Itens cuja relevância obriga a sua inclusão na referida agen- da crítica. Além, é claro, do que diz respeito ao sentido simbólico de orquestrar o assalto ao poder da escrita para postular que “ estamos na área e já somos vários ”, apesar de saberem que nas margens da sociedade brasileira muito se fala e se olha e quase nunca se lê. O paradoxo é abso- luto. Então: para o quê ou para quem se escreve? Eis a questão substanci- al que ainda precisa ser indagada! Porque, como diz a epígrafe de André du Rap, a título da razão que a justifica: “ a literatura é muito grande lá dentro, é infinita ”. Não apenas na prisão como em todos os sertões da vida brasileira. E a marginal está aí para perturbar a boa ou a má consciência de quem se ocupa de fazer o balanço crítico das manifestações literárias contemporâneas.

Bibliografia A NDRÉ D U RAP. Sobrevivente André du Rap, do Massacre do Carandiru. S. Paulo: Labortexto Editorial, 2002. _______. A cultura da periferia: Literatura marginal – Ato I, Ato II e Ato III , Caros Amigos , São Paulo: Casa Amarela, s/d, s/d e abril de 2004.

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Recebido em setembro de 2004. Aprovado em outubro de 2004.

Fernando Villarraga Eslava – “Literatura marginal: o assalto ao poder da ewcrita”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea , nº 24. Brasília, julho-dezembro de 2004, pp. 35-51.