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Uma defesa da ideia de que há um processo de conceitualização na linguística cognitiva que resulta no surgimento de um tipo de sinal que reúne razão, imaginação, metáfora, iconicidade e evidências de experiências corporificadas da comunidade surda. O autor apresenta fenômenos da língua brasileira de sinais (libras) e discute a iconicidade, onde a comunidade surda brasileira baseada em suas experiências corpóreo-culturais fez surgir sinais icônicos metaforizados. O texto também discute a importância dos conceitos de iconicidade e arbitrariedade em sinais de línguas de sinais, e a relação entre a cognição e as experiências sensório-motoras da cultura surda.
Tipologia: Notas de aula
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RESUMO Neste trabalho, parte adaptada de minha dissertação de mestrado, eu reflito sobre o que exatamente implica na iconicidade de algumas unidades linguísticas da Libras, principalmente naquelas que estãorelacionadas a domínios abstratos: emoções e sentimentos, por exemplo. Alicerçado nos pressupostos daproporcionando o surgimento de um tipo de sinal que reúne em sua base razão, imaginação, metáfora, Linguística Cognitiva, eu defendo a ideia de que há um processo de conceitualização iconicidade e evidências de experiências corporificadas da comunidade surda. Palavras-chave: Libras. Iconicidade. Experiências culturais METAPHORIZED ICONS AND ICONICITY IN LSB
ABSTRACT In this paper, an adapted part of my masters dissertation, I reflect on what exactly implies in the iconicity of some linguistic units of Brazilian Sign Language (LSB), mainly the signs that are linked toabstract domains: emotions and feelings, for instance. Based on Cognitive Linguistics, I support the idea that there is a type of sign that gather in its base reason, imagination, metaphor, iconicity, andembodiment experiences evidences of deaf community.
Key-words: LSB. Iconicity. Cultural experiences INTRODUÇÃO
Quem acompanhou o surgimento do Gerativismo de Noam Chomsky pôde assistir à consequente morte agoniante do Behaviorismo de Burrhus Skinner. Particularmente, não pretendo discutir as idealizações chomskyanas de falante ideal, de língua autônoma e dissociada do meio, uma vez que não há como fechar os olhos para o fato de que a relação do corpo do sujeito com o mundo à sua volta implica diretamente na construção e estruturação da gramática; muito menos pretendo fazer uma exumação no Behaviorismo, dado que os processos cognitivos são revelados pela linguagem e, portanto, são passíveis de estudos. No entanto, não posso deixar de pontuar que os primeiros passos em Linguística Cognitiva surgiram pelo desconforto diante das reflexões postuladas por Skinner (1957) e, também, pelo descontentamento de diversos linguistas^1 em face dos resultados insatisfatórios (pelo menos
(^1) Cf. Charles Fillmore (1976), George Lakoff (1987), George Lakoff e Mark Johnson (2003), Leonard Talmy (1983), Mark Johnson (1987), Ronald Langacker (1987) entre outros.
para os dissidentes) da Gramática Gerativa de Noam Chomsky, ainda nos anos 1970. O primeiro (Skinner) excluiu a mente de seus estudos, porque somente os comportamentos humanos seriam passíveis de observação; o segundo (Chomsky) encaminhou o significado para a periferia dos estudos da linguagem e acomodou a sintaxe como objeto principal de análise, mas sem levar em consideração as experiências externas do sujeito. Agora, no novo paradigma, cognição, corpo, cultura e relação do ser humano com o mundo possuem uma íntima relação, por isso compõem a agenda de investigações dos linguistas cognitivos.
Em consequência de sua vasta abrangência, a Linguística Cognitiva proporcionou um arcabouço teórico muito extenso, onde os estudos em línguas de sinais também encontram condições especialmente favoráveis para reflexões de fenômenos antes enigmáticos, vagos, ininteligíveis ou mesmo inexplorados pelas pesquisas. Neste trabalho, que é apenas um recorte adaptado de minha dissertação de mestrado, eu apresento e explico alguns fenômenos da Língua Brasileira de Sinais (Libras), um deles está relacionado com a iconicidade, onde a comunidade surda brasileira, baseada em suas experiências corpóreo-culturais, fez surgir o que chamo de sinais icônicos metaforizados. Mas antes de apresentá-los, é necessário trazer alguns conceitos importantes, explicados nas seções seguintes.
CONCEITOS E CONCEITUALIZAÇÕES
Um piscar de olho ou um olhar contumaz para alguém, uma pintura, um desenho, um sinal, uma mímica, uma palavra, um texto, enfim, tudo o que comunica possui forma e significado. Para a Semântica Cognitiva, o significado está vinculado à representação mental e é o resultado de nossas conceitualizações, construídas a partir de nossa exposição ao mundo e de nossas interações com ele. Como resultado de nossas conceitualizações, uma mesma unidade simbólica (palavra ou sinal) em dois ou mais contextos de uso pode indicar significados distintos. Isso sugere que o significado não é uma única “coisa” a ser empacotada
Outro pressuposto da Linguística Cognitiva e importante para este trabalho é o de “domínio”, entendido como uma estrutura de conhecimento. Ele surge de nossas experiências físicas (toque, abraço, carinho, dor etc.), de nossa propriocepção (equilíbrio, noção de localização espacial, movimento, orientação etc.), percepções (cores, sons, cheiro etc.), por nossas habilidades em manipular objetos e pelas experiências subjetivas que dão origem a domínios relacionados, principalmente, a emoções e a sentimentos, tais como MEDO, JUSTIÇA, HONRA, AMOR 2. Ao passo em que nossas experiências pré-conceituais acontecem, ainda quando crianças, estruturas de conhecimento formam-se no sistema conceitual e proporcionam a base para o entendimento de conceitos lexicais. Esse esclarecimento é importante porque é o fundamento para compreendermos boa parte do funcionamento, do surgimento, da organização e do uso das projeções metafóricas.
Para a Linguística Cognitiva, nosso sistema conceitual é estruturado em termos de domínios mais concretos (domínio-fonte) e outros mais abstratos (domínio-alvo). Para entender ou estruturar um determinado domínio conceitual abstrato, nossa cognição pode recorrer a um determinado domínio conceitual concreto. Isso se reflete na linguagem em termos de metáforas linguísticas, mas subjacentes a elas encontramos as metáforas conceituais, em virtude do mapeamento entre os domínios realizado pela cognição. Por exemplo, ao analisarmos a metáfora linguística “não desista de viver, continue caminhando”, percebemos dois domínios conceituais envolvidos nessa projeção: ESTRADA, domínio-fonte, e VIDA, domínio-alvo. A frase indica que o enunciador acessa o domínio-fonte ESTRADA (mais concreto) para estruturar o domínio-alvo VIDA (mais abstrato). Esse mapeamento cognitivo feito entre os dois domínios gera a metáfora conceitual VIDA É UMA ESTRADA.
Os domínios devem ser entendidos de forma abrangente. Em ESTRADA, encontramos conceitos como INÍCIO, MEIO e FIM; ESTRADA CURTA e ESTRADA (^2) Para representar conceitos, a Linguística Cognitiva utiliza todas as letras maiúsculas.
LONGA; PEDRAS, OBSTÁCULOS, TRANSEUNTES; VÁRIAS VEREDAS e assim sucessivamente. Em VIDA, temos conceitos como NASCIMENTO, ABRIR OS OLHOS, JUVENTUDE, FASE ADULTA, VELHICE, PROBLEMAS, DIFICULDADES, DOENÇAS, FAMILIARES, AMIGOS, AMORES etc. Como o domínio-fonte é a base para a compreensão do domínio-alvo, então todos os conceitos (ou boa parte deles) pertencentes a um servirão de alicerce para o entendimento do outro: ao nascer, abrimos nossos olhos pela primeira vez (entendido como início da estrada); chegamos à juventude e à fase adulta (entendido como meio da estrada); chegamos à velhice, e no momento da morte fechamos nossos olhos pela última vez (entendido como o fim da estrada); mas podemos morrer precocemente (estrada curta) ou muito velhinho (estrada longa); enfrentamos problemas, dificuldades, doenças, tristezas, decepções, frustrações (pedras e obstáculos na estrada); temos familiares, conhecemos amigos e amores, vemos pessoas estranhas (transeuntes); podemos ter religiosidade, ser pacificadores, usar drogas, entrar na criminalidade (as várias veredas), e assim por diante.
Geralmente, o mapeamento acontece quando precisamos compreender domínios conceituais mais abstratos. Contudo, mesmo um domínio concreto pode ser entendido por meio de outro concreto, ou um abstrato ser estruturado por outro abstrato. Evidências como essas, além de revelarem nossas experiências corporificadas, subjetivas e culturais, mostram como nossas interações com o mundo implicam diretamente na organização e formação de nosso sistema conceitual, incluindo-se aí a própria gramática.
ESQUEMAS IMAGÉTICOS
A partir de nossa exposição ao mundo, ainda quando crianças, antes mesmo da formação de nossos primeiros conceitos, temos acesso a diversos tipos de experiências sensoriais e motoras. Nossa posição deitado nos braços de nossa mãe dá-nos um panorama
várias outras particularidades – imagem mental. Por outro lado, o esquema imagético é esquemático, com poucos detalhes, focando apenas traços da face, nariz, olhos, boca etc., sem singularidades. Por esse viés, os esquemas imagéticos “são estruturas que organizam nossas representações mentais em um nível mais geral e abstrato do que aquele nível no qual formamos imagens mentais particulares^4 ” (JOHNSON, 1987, pp. 23-24). Conforme os padrões das informações sensoriais ficam recorrentes, essas estruturas dão origem a conceitos mais elaborados, desempenhando importante papel na conceitualização. Clausner e Croft (1999, p. 4) classificam os esquemas como domínios esquemático-imagéticos^5 , pois os concebem como um subtipo de domínio. Mesmo assim, os mesmos autores salientam o fato de domínio básico não ser o mesmo que esquema imagético.
A partir do que foi exposto, vale a pena trazer alguns exemplos de esquemas imagéticos, porém, enfrentamos um grande problema: como ilustrar elementos pré- linguísticos, i.e., como descrever um padrão esquemático não linguístico contido em nosso sistema conceitual? Evans e Green (2006, p. 180) também confirmam essa dificuldade, e destacam que em alguns casos os semanticistas precisam usar palavras e, em outros, diagramas. Usando estes últimos, é possível representar um conceito independente da língua envolvida na análise, mas é importante destacar que, embora as imagens e as palavras sejam usadas na tentativa de descrever os esquemas, estes não estão em nossas mentes como essas formas simbólicas, mas como experiências sensoriais holísticas, ou resumos de estados perceptuais “gravados” na mente (Evans e Green, 2006, p. 184). As ilustrações abaixo mostram alguns exemplos.
Ilustração 1 – Exemplos de esquemas imagéticos
(^4) A não ser que eu diga o contrário, todas as traducões de trechos em outra língua que não podem ser encontrados em Português neste atigo são de minha responsabilidade. Portanto, no original temos:structures that organize our mental representations at a level more general and abstract than that at witch we [They] are form particular mental images. (^5) Image eschematic domains.
Fonte: Elaborada pelo autor Para explicar os dois primeiros, precisamos lembrar-nos de pelo menos duas experiências pré-conceituais: nossos movimentos pelo espaço e nossa percepção e manipulação de objetos espalhados ou organizados nele. Sobre a primeira experiência, Levinson (1996, p. 179) faz uma reflexão instigante ao pressupor que “a compreensão espacial é, provavelmente, a primeira grande atividade intelectual diante da criança^6 ”. Essa experiência repetida muitas vezes em nossa vida fornece-nos o esquema imagético TRAJETÓRIA, representado pela ilustração 1.a. De forma semelhante, devido aos nossos corpos serem como são, principalmente por seu aspecto simétrico – lado direito e lado esquerdo, frente e atrás, interior e exterior, cima e baixo – agregado à nossa percepção e manipulação de objetos no espaço, possuímos vários esquemas imagéticos relacionados a essas experiências: FRENTE-ATRÁS, PRÓXIMO-DISTANTE, CIMA-BAIXO, LADO ESQUERDO-LADO DIREITO etc.
Nossas experiências diariamente repetidas com objetos em forma de recipiente também proporcionam outros esquemas corporificados^7. Esses objetos podem ser caixa, copo, jarros, quartos, salas, casas, sacolas entre outros. Johnson (1987, pp. 21 e 22) também acrescenta que, em virtude de seus formatos e suas finalidades, objetos semelhantes a esses possuem característica de abrigar entidades. Nossas interações com eles proporcionam ao nosso sistema conceitual o surgimento do esquema imagético CONTÊINER, representado pela figura 1.c. Em virtude de nossas experiências com esses objetos, nossa cognição projeta (^67) […] spatial understanding is perhaps the first great intellectual task facing the child. Assim também são chamados os esquemas imagéticos
Ilustração 1.a Ilustração 1.b Ilustração 1.c
referência a três tempos diferentes. Portanto, nesse uso metafórico, TEMPO é conceitualizado em termos de ESPAÇO, no qual as três rainhas estão em três localizações espaciais distintas, devido terem vivido em épocas distintas. Sabendo da existência dessa metáfora, é possível analisar de que forma ela está organizada cognitivamente. Em primeiro lugar, ela se baseia no esquema imagético FRENTE-ATRÁS. Observe que o enunciador descortina esse esquema ao usar seu corpo como referência para localizar “três tempos diferentes”. Observe também que a sinalização acima é um reflexo da ilustração 1.b. Em segundo lugar, como o domínio TEMPO é mais abstrato, o padrão esquemático FRENTE-ATRÁS juntamente com o domínio básico ESPAÇO organizam TEMPO à frente (futuro), no lugar do enunciador ou atrás do enunciador (passado). Assim, TEMPO é estruturado metaforicamente como localidades no espaço.
Esse tipo de projeção conceitual é comum. Para nossa cultura, o tempo pode estar bem distante para frente (futuro), pode estar atrás (passado) ou no lugar em que nosso corpo está (presente). Em Libras, sinais como FUTURO, PASSADO, PRESENTE, ANTES, DEPOIS, ONTEM e HOJE também comprovam essas projeções conceituais. A propósito, tomando como referência o nosso corpo, o tempo também pode chegar e ir embora (“chegou a sua hora”, “seu tempo já se foi”), além de ser associado a comprimento físico (“o tempo é curto”, “o tempo é longo”); e a valor (“o tempo é valioso”).
Como o domínio ESPAÇO e o esquema imagético FRENTE-ATRÁS estão sendo usados como base para a conceitualização de TEMPO, as projeções na figura 1 evidenciam pelo menos duas metáforas conceituais: TEMPO É ESPAÇO e TEMPO É ORGANIZAÇÃO DE OBJETOS (ou PESSOAS) NO ESPAÇO. Nessas situações, as conceitualizações estão estruturando o tempo atrás (passado), no lugar em que o sujeito está (presente – mas como projeção de alguém do passado) e na frente do sujeito (futuro), mostrando que os esquemas são representações analógicas de nossas experiências. Essas metáforas também fornecem evidências de que nossas conceitualizações produzem novos e diferentes significados para
uma determinada unidade linguística. TEMPO pode ser entendido como COMPRIMENTO ou como VALOR, em alguns casos – “o tempo é longo” e “o tempo é valioso” – mas na figura 1, ele possui um conceito distinto destes dois últimos. A estruturação metafórica envolvida na sinalização da figura 1 é a seguinte:
Esquema imagético: FRENTE-ATRÁS. Domínio conceitual abstrato: TEMPO. Os conceitos PASSADO, PRESENTE e FUTURO pertencem ao domínio TEMPO e também estão baseados no esquema imagético FRENTE-ATRÁS. Metáforas conceituais mais gerais: o TEMPO É ESPAÇO. o TEMPO É ORGANIZAÇÃO DE OBJETOS (ou PESSOAS) NO ESPAÇO. Metáforas conceituais mais específicas, baseadas no esquema imagético FRENTE-ATRÁS: o PASSADO ESTÁ ATRÁS DO CORPO DO ENUNCIADOR. o PRESENTE É O LUGAR EM QUE O ENUNCIADOR ESTÁ. o FUTURO ESTÁ À FRENTE DO CORPO DO ENUNCIADOR. É importante destacar também que, na figura 1, constatamos a existência das metáforas conceituais quando analisamos o discurso e percebemos evidências dos mapeamentos entre os domínios fonte e alvo. Mas seria possível uma relação metafórica entre a estrutura fonológica, a estrutura semântica e o objeto representado? Ou seja, seria possível uma conceitualização a ponto de o polo fonológico ser usado metaforicamente para o entendimento do polo semântico em analogia ao referente ou à experiência externa? Tudo indica que em língua de sinais isso é possível e comum. Há conceitualizações fazendo uso metafórico da forma para se aproximar do significado a partir das conceitualizações do
Essa unidade simbólica é constituída de uma estrutura semântica (vou representá- la pela notação [BOLA]) e de uma estrutura fonológica (vou representá-la pela notação [bola]). A primeira está fundamentada sobre várias características do objeto: tamanho, cor, forma, composição, função etc.; a segunda reúne os parâmetros configuração de mão, ponto de articulação, movimento, orientação da palma da mão e expressões faciais (se for o caso). A união do polo semântico com o polo fonológico constitui o sinal BOLA, e podemos representar a relação entre os polos por meio da notação [BOLA]/[bola], como é feito em Semântica Cognitiva (veja Langacker 1987, p. 89). Já que o espaço conceitual envolve todo o conhecimento, incluindo o pensamento, e enquanto os dois polos da estrutura simbólica BOLA possuem similaridades, então a arbitrariedade é reduzida e a iconicidade acentuada, originando uma relação de semelhança entre o polo fonológico, o polo semântico e o objeto no mundo. Em outras palavras, por meio da mediação cognitiva, polos fonológico e semântico e objeto no mundo são correlatos no sinal da Libras.
Cognitivamente, os polos também podem ser pensados em termos de espaço fonológico e espaço semântico. Enquanto este último é compreendido como um potencial conceitual no qual nossos pensamentos e nossas conceitualizações desdobram-se, o primeiro refere-se à nossa potencial capacidade de lidar com sons, especialmente os da fala (Langacker, 1987, p. 76), ou com os parâmetros dos sinais. Fundamentado nesse ponto de vista, a estrutura fonológica também é abrangida pelo espaço conceitual, assim como acontece com a semântica. A partir da organização entre os espaços, as estruturas simbólicas (sinais e palavras) podem ser caracterizadas como configurações que acontecem no espaço conceitual. Para o estudo da iconicidade em línguas de sinais, esses conceitos são importantes porque não apenas o polo semântico pode ser entendido como um resultado de conceitualizações, mas também o fonológico.
Wilcox (2004a) defende a ideia de que quando as similaridades entre as estruturas fonológica e semântica são acentuadas, ambas residem em um mesmo local do espaço conceitual, entendido como sendo multidimensional. Do contrário, i.e., se a dissimilaridade é assinalada, então as estruturas fonológica e semântica residem em locais distintos do espaço conceitual. Seria o caso do sinal PESSOA, em Libras, onde os polos da unidade linguística não possuem relações singulares entre si, nem mesmo com o referente concreto no mundo.
Figura 3 – Arbitrariedade do sinal PESSOA
Fonte: Elaborada pelo autor Fundamentado na Gramática Cognitiva de Langacker (1987), Wilcox (2004a) chama de iconicidade cognitiva (cognitive iconicity) a relação entre os polos. Usando suas palavras: “A iconicidade cognitiva é uma relação de distância entre os polos fonológico e semântico de estruturas simbólicas^8 ” (WILCOX, 2004a. p.122). O vínculo, portanto, não está entre a forma do sinal e o objeto, mas, antes, entre os espaços conceituais. Quando há um distanciamento entre forma e expressão, isso resulta no aumento da arbitrariedade e distanciamento dos espaços conceituais.
(^8) Cognitive iconicity is a distance relation between the phonological and semantic poles of symbolic structures.
Figura 3.a: Silhueta de uma pessoa Figura 3.b: Sinal PESSOA, em LIBRAS
Diante da relação [ÓDIO]/[ódio] com o tipo de experiência corpóreo-cultural da comunidade surda brasileira, quero destacar três aspectos cognitivos. O primeiro, analisando o polo fonológico, está ligado ao esquema imagético CONTÊINER. Ao realizar o sinal, a cultura surda brasileira manifesta a conceitualização do corpo humano como um contentor capaz de abrigar “ódio” (abstrato). O segundo aspecto é identificado a partir de uma observação no polo semântico, estruturado em termos de algo (conteúdo) prestes a colapsar naquele recipiente, além de sugerir aquecimento corporal. O terceiro diz respeito à semelhança entre as estruturas fonológica e semântica, as duas sugerem conceitualizações aproximadas: ÓDIO é algo comprimido dentro de um recipiente. Para percebermos essa aproximação dos polos, podemos fazer uma comparação do sinal com a palavra equivalente em língua portuguesa. As estruturas fonológica e semântica da palavra não apresentam nenhuma relação de semelhança ou de aproximação entre si, diferentemente do que ocorre com o sinal e com outras palavras da língua portuguesa, tais como “sussurrar” e “tic-tac”.
Outra observação relacionada à conceitualização da estrutura [ÓDIO]/[ódio], na figura 4, é que estamos diante de uma unidade concernente a uma emoção, portanto, não haveria algo no mundo que pudesse servir de referenciação suficientemente literal para sua estrutura, como acontece com BOLA, ÁRVORE e REVÓLVER, em Libras. Mas como nossa cognição frequentemente recorre a domínios concretos para compreender domínios abstratos, para sinal ÓDIO a cultura surda brasileira realizou uma projeção metafórica com base em suas experiências subjetivas e perceptuais, e encontrou no esquema imagético CONTÊINER e na sensação provocada pelo “ódio” a base para a construção do elo entre as estruturas fonológica e semântica. Nesse caso, as experiências subjetivas e corporais e a percepção de objetos que sugerem compressão, aquecimento e explosão, firmados no esquema imagético CONTÊINER, serviram de base para a relação metafórica e icônica dos polos.
Note que a relação metafórica ocorre a partir dos polos, não apenas no nível do discurso, como na frase “vou explodir de ódio”, em Português. Embora estejamos diante de correspondências entre dois domínios, e da metáfora conceitual ÓDIO É UM OBJETO (ou FLUIDO) EM UM CONTENTOR, não há nenhum elo metafórico entre os polos fonológico e semântico da unidade linguística “ódio”, diferentemente do que ocorre com o sinal. Mesmo assim, é possível chegar às mesmas conclusões dos estudos realizados por Kövecses (1986), Kövecses (2005) e Lakoff (1987), pioneiros nas investigações das metáforas conceituais ligadas a emoções. Em seus trabalhos, os autores defendem que nossas sensações corporais relacionadas à raiva/ódio fazem-nos associar o corpo como um recipiente pressurizado, o nosso sangue como um líquido em ebulição e a conceitualização de raiva/ódio como o resultado de mapeamentos entre domínios.
Como acontece em Libras, há frases em Português que sugerem ÓDIO como UM OBJETO (ou FLUIDO) EM UM CONTENTOR: “estou fervendo de tanto ódio” e “o meu ódio só aumenta”. Poderíamos pensar que essa mesma metáfora em Português e em Libras ocorre porque as duas línguas estão em contato, e, consequentemente, uma influencia a outra com empréstimos metafóricos. No entanto, essas semelhanças metafóricas não são próprias de línguas em contato. Mesmo culturas geograficamente distantes possuem metáforas correlatas. Essa constatação levou Kövecses (2005, p. 38) a levantar três hipóteses: (i) isso ocorre por pura coincidência, (ii) é resultado de empréstimos metafóricos entre as línguas ou (iii) existe alguma motivação universal. O autor cita o caso das metáforas conceituais “FELIZ É PARA CIMA”, “FELICIDADE É LUZ” e “FELICIDADE É UM FLUIDO EM UM CONTÊINER”, usadas por três culturas/línguas diferentes e geograficamente distantes uma da outra: chinesa, húngara e inglesa. Aliás, essas metáforas também são encontradas no contexto brasileiro.
Essas semelhanças metafóricas não acontecem somente com culturas ouvintes, as culturas surdas também evidenciam esse fenômeno. Para citar alguns exemplos, trago aqui o
correspondências neurais semelhantes, independente da cultura do sujeito e independente do distanciamento geográfico. Mas como a mediação cognitiva está entre a unidade simbólica e o mundo, as culturas surdas também geram metáforas e ícones metaforizados diferentes, ainda que diante de uma mesma experiência corporificada. Por exemplo, diferentemente das culturas surdas citadas acima, ESQUECIMENTO na Língua de Sinais Polonesa parece sugerir algo como APAGAR/ESCURECER LUZ DIANTE DOS OLHOS.
Observando a figura 4 mais uma vez, notaremos que as conceitualizações são as mesmas nas estruturas fonológica e semântica: ambas sugerem ÓDIO como UM OBJETO EM UM CONTENTOR. Porém, ao contrário do que ocorre com os sinais icônicos BOLA e ÁRVORE, a relação de semelhança entre as estruturas fonológica e semântica do item lexical da figura, em tese, não haveria razão para existir, pois sendo abstrata tal emoção não possuiria um objeto concreto no mundo que lhe servisse de referenciação óbvia, literal, não metafórica. Mas as experiências subjetivas e corpóreo-culturais motivaram o surgimento de um tipo específico de iconicidade, a qual passo a chamar de ícone metaforizado^11 , uma unidade simbólica icônica ligada a um domínio abstrato, com uma projeção metafórica em sua base lexical, unindo imaginação, razão, iconicidade e experiências corpóreo-culturais. As evidências mostram que a cognição realiza correspondências neurais que se refletem nas estruturas do item lexical, proporcionando uma conceitualização baseada em experiências corporificadas e subjetivas, fazendo [ÓDIO]/[ódio] espelhar a iconicidade e refletir a metáfora. Aliás, para a cultura surda brasileira, os fatores externos podem acionar esse objeto enclausurado e proporcionar um movimento mais ou menos violento. Nesse sentido, mesmo
(^11) Ainda não encontrei em minhas leituras reflexões sobre esse fenômeno ou hipóteses levantadas sobre esse tipo de iconicidade em línguas de sinais, como faço neste trabalho. De toda forma, é importante destacar que osestudos sobre o signo linguístico, e, consequentemente, sobre a motivação e a iconicidade nas línguas, são vastos e possuem vários pontos de vista. Os mais influentes são os de Saussure (2012), Peirce (2005) e Ullmann (1962).Minha linha de raciocínio consiste em defender, dentre outras coisas, que na LIBRAS existe uma motivação icônica com uma metáfora na base do item lexical, e não apenas quando o item lexical está em uso no discurso,onde é mais comum que haja as correspondências neurais entre os domínios.
diante de algo intangível, a cultura encontrou em um referente concreto todas as características para conceitualizar o abstrato, fazendo surgir o ícone metaforizado.
Com as hipóteses acima, podemos contrastar o ícone metaforizado com a iconicidade presente em unidades lexicais que não carregam metáforas. Ao comparar ÁRVORE e ÓDIO, a diferença icônica reside no fato de que enquanto no primeiro sinal a iconicidade é justificada pela relação de literalidade dos polos com o objeto no mundo, na segunda a justificação dá-se pelo processo de metaforização em toda a estrutura. Por exemplo, a unidade simbólica ÁRVORE e o objeto no mundo não possuem nenhuma relação metafórica, mas o item lexical manifesta iconicidade. Então, para as correspondências entre [ÁRVORE] e [árvore], há algo físico no mundo oferecendo referência não metafórica (literalidade). Já o sinal ÓDIO e o objeto no mundo possuem uma relação metafórica, onde o vínculo entre [ÓDIO] e [ódio] carrega uma motivação semântica, e o processo que o cria (metaforização icônica) possui um princípio que une razão, imaginação, experiências corpóreo-culturais e iconicidade. Além do mais, enquanto a unidade ÁRVORE está ligada a uma experiência perceptual-concreta, o sinal ÓDIO está ligado a uma experiência perceptual- subjetiva, mostrando que a metaforização icônica também descortina as experiências subjetivas e introspectivas da cultura surda.
Embora exista uma associação com o objeto no mundo na iconicidade, não há uma conexão direta deste com o significado antes da mediação cognitiva. Como para a cultura surda brasileira o ódio propriamente dito promove uma sensação corpórea situada exatamente naquela região, ocupada pelo ponto de articulação do sinal, então existe uma motivação 12 para que o sinal seja executado aí, e não em outra porção do corpo. Assim, com a motivação do (^12) Perceba que não estou usando “motivação” como equivalente de “iconicidade”. Nesse trabalho, uma unidade simbólica pode muito bem ser motivada sem ser icônica. Por exemplo, o sinal AZUL, em Libras, é motivadopela palavra “azul”, da língua portuguesa, mas não há relações icônicas entre os polos fonológico e semântico, nem da palavra em Português nem do sinal em Libras. Já nos sinais CADEIRA, ÁRVORE e REVÓLVER hámotivações icônicas. Também existem outros sinais que parecem não ter motivação alguma: PRECISAR, FAZER, PORQUE, PESSOA entre outros.