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Este texto discute as teorias políticas do estado moderno na europa, com ênfase na teoria de thomas hobbes - leviatã. O documento aborda a origem das teorias do estado moderno durante o renascimento, a centralização do poder político nas mãos das coroas europeias e a formação do estado moderno. Além disso, analisa a concepção de hobbes sobre a natureza humana, a dissociação de liberdade e soberania no estado social e a importância da obra de hobbes para a compreensão dos processos atuais.
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O presente artigo tem por objetivo oferecer um novo olhar sobre a obra clássica Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil, de Thomas Hobbes. Sustenta a hipótese de que as noções de soberania e liberdade transcendem a ideia de uma forma autoritária de governo feudal ou capitalista. Com base na dialética marxista, sugere que a concepção me- tafísica hobbesiana de Jus Naturale e Lex Naturalis sobrepõe o direito a vida à soberania do Estado, assentada em leis positivas e, do silogismo intrínseco a mesma, o direito à resistência dos súditos, a soberania limitada do Esta- do, as características universais de Estado de transição e tendência histórica dos períodos de crises revolucionárias e mudanças no modo de produção e formas de sociedade humana.
PALAVRAS-CHAVES: Hobbes, Leviatã, Liberdade, Resistência, Estado, Transição
This article aims to offer a new perspective on the classic work, Leviathan, or Matter, Form and Power of One State Ecclesiastical and Civil, of Thomas Hobbes. Supports the hypothesis that the notions of sovereignty and freedom transcend the idea of an authoritarian government of feudal or capitalist. Based on the Marxist dialectic, suggests that the metaphysical conception Hobbesian Natural Jus and Lex Naturales, overrides the right to life to the sovereignty of the state, founded on positive laws, and the syllogism is intrinsic to it, the right of resistance of subjects, limited sovereignty of the state, the universal features of transition state and the historical tendency of the periods of revolutionary crisis and changes in production methods and forms of human society.
KEY WORDS: Hobbes, Leviathan, Freedom, Resistance, State, Transition.
Aluisio Pampolha Bevilaqua Sociólogo, bolsista do CNPq no Mestrado em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará – UFC, Membro do Conselho Editorial do Jornal INVERTA e do Conselho Editorial da Revista Ciência & Luta de Classes do Centro de Educação Popular e Pesquisas Econômicas e Sociais – CEPPES.
A teoria política do Estado moderno na Europa, em que se insere a teoria do Estado de Thomas Hobbes, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil, (1651), tem seus fundamentos a partir do Renascimento, como se observa nos trabalhos do florentino Nicolau Maquiavel (1469 – 1527), sobre a unificação da Itália, que de modo geral e com certo atraso vivia o processo dos países ibéricos (Portugal e Espanha): a unificação em Estado absolutista sustentado na associação de interesses entre a nobreza feudal e a burguesia mercantil, dando curso à revolução náutica e, consequentemente, às grandes navegações ultramarina. (SKENNER, 1996). Diante deste cenário surgiram as primeiras teorias do Estado moderno e prosperaram nos séculos XVII e XVIII, através da teoria e da prática liberal, guerra civil e expe- riências parlamentares até a revolução industrial, na Inglaterra (MACPHERSON, 1979); na França, chega à máxima expressão política com a revolução burguesa e o movimento teórico conhecido como Iluminismo ou Enciclopedismo; e encerra seu ciclo com a revolução filosófica na Alemanha (MARX e ENGELS, 1973). Embora a interpretação histórica deste período não seja um consenso entre os estudiosos do mesmo, como sugere o trabalho de Barboza ao apontar a contradição entre a interpretação de Marx e Engels e a de Anderson, na medida que o debate se situa no campo do marxismo, isto permite localizar o problema metodológico e nos posicionar frente ao mesmo, sem prejuízo para o objetivo deste trabalho (BARBO- ZA, 2000). O problema que se segue ao metodológico é definir o conteúdo histórico essencial das formações econômicas e sociais na Europa, especialmente a Inglaterra, que é a base empírica da qual Hobbes e os demais pensadores da época desenvolvem seu sistema teórico. A dificuldade nesta parte é, a partir das teses sobre este período, de Marx e Engels, Anderson, Hill, Althusser, definir qual o modo de produção dominan- te, seu caráter de classe e as formas ideológicas que se expressam na superestrutura da sociedade. O passo seguinte é debater as noções de liberdade e soberania na teoria de Hobbes, a partir das principais interpretações atuais: Macpherson, Dumont e Bobbio; identificar as dificuldades destas abordagens, confrontando-as com a teoria de Hobbes, tendo em vista a hipótese desta pesquisa sobre sua obra. Superado este obstáculo, passa- remos as considerações sobre a obra de Hobbes, em torno das noções de liberdade e soberania e as relações que estas estabelecem com o caráter geral do Estado e as formas de Governo em sua teoria. Finaliza-se este artigo com uma breve consideração sobre a hipótese sustentada no mesmo. Com base nesta linha problemática o presente artigo se estrutura em sete partes: a primeira introduz o tema e aponta a linha problemática; a segunda, debate o método e as interpretações históricas do período em questão; a terceira, debate os principais comentadores de Hobbes; a quarta, analisa a obra Leviatã; a quinta, expõe a conclusão da pesquisa; a sexta, as referências bibliográficas; e a sétima, os anexos (extratos de textos da obra de Hobbes que sustentam a hipótese teórica deste artigo). O trabalho pode ser considerado a partir da tentativa de desfazer o mito sobre o Leviatã de Hobbes, que igualmente a obra de Maquiavel – como adverte Cassirer - é reduzida à escatologia do Estado autoritário, supressão das liberdades (CASSIRER, 1976), pela lógica racional da “servidão voluntária” (BOÊTIE, 1982); também supo-
e importância das transformações e mudança na estrutura do Estado aristocrático; então, conclui-se que a interpretação de Marx e Engels são críveis para efeito deste trabalho e, consequentemente, o método do materialismo dialético; além disso, que esta interpretação pode ser ampliada pelo trabalho de Anderson. Contudo, o “erro vulgar” que Anderson atribui a Marx e Engels, de “confundir o fim da servidão com o desaparecimento das relações feudais no campo” e, segundo a lógica da determinação da superestrutura pela infraestrutura, o predomínio das relações capitalistas, logo, o caráter de classe do Estado de “equilíbrio” (Engels) ou “tipicamente burguês” (Marx), é, no mínimo, questionável. Primeiro, porque atribui à Marx e Engels uma interpretação mecânica da história, contrária ao seu próprio método. Segundo, porque toma a definição conjuntural de Estado de Engels como “tradicional”, quando esta é do “Estado como resultado da luta e caráter inconciliável entre as classes” (Engels, 1984). Terceiro, porque confunde o significado histórico que Marx atribui ao Estado absolutista de “instrumento tipicamente burguês”, com o caráter do mesmo questionando a base materialista na dialética das relações de determinação da superestrutura e infraestrutura na sociedade; quando sabe que este significado em Marx é resultado, justamente, de sua análise da Renda Fundiária no Livro III de O Capital , com base em vasto material empírico e na dialética das metamorfoses históricas da categoria Renda (trabalho, produto e dinheiro), seja pelo desdobramento interno da categoria trabalho (excedente e necessário), seja pelas múltiplas relações com as categorias: propriedade, técnica, capital, dinheiro, classe, coerção e Estado; pois é nesta que Anderson se apoia. Em todo caso, a tese de Anderson não altera a definição das características essenciais do Estado absolutista sustentadas por Marx e Engels, muito menos indica uma inco- erência metodológica, como ele próprio reconhece ao cruzar perspectiva e resultado; mas, ao contrário, deixa tão somente transparecer suas próprias dificuldades com o método marxista, refletindo a velha polêmica althusseriana^2 e a deficiência teórica
2 O filósofo Althusser defendeu a tese que a ruptura epistemológica de Marx com a filosofia hegeliana, implicava a necessidade de uma filosofia para marxismo, enunciada em A Ideologia Alemã , nas Teses sobre Feuerbach.
Thomas Hobbes (1588-1679)
de sua análise, comparando-a com a de Marx e Engels em O Capital. Contudo, é referência importante para este trabalho.
“There is no royal road to learning, and the only people with any chance of scaling its sunlit peaks are those who have no fear of weariness when ascending the precipitous paths thatead up to them”.^3 (MARX, 1996, p. 23). Esta epígrafe de Marx, inspirada em Euclides^4 , indica com precisão a dificuldade para quem postula encontrar um caminho para a Ciência, o que leva a imaginar tam- bém a dificuldade de interpretação seguindo a trajetória dos teóricos clássicos que fundamentam as Ciências Sociais e quanto maior a distância da base empírica que lhe deu significado, mais o quadro empírico e teórico atual impõe novos elementos ideológicos, conduzindo o olhar sobre estas teorias clássicas para novas interpreta- ções. Este parece ser o caso da obra de Thomas Hobbes, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil, face às suas interpretações atuais, que examinaremos neste trabalho. A interpretação de Macpherson parte da premissa que o indivíduo hobbesiano manifesta todas as tendências adquiridas na sociedade de soberania imperfeita, pois ao se retirar desta todas as leis e impedimentos, chega-se ao estado de guerra permanente de todos contra todos, tomado pelos desejos de lucro e glória e amor a nós mesmos. O raciocínio chave nesta interpretação é derivar da noção de amor próprio à noção de temor, pois nela repousaria toda a lógica pela qual este indivíduo racionalmente transfere seu direito natural de liberdade a todas as coisas ao Estado soberano. Macpherson sustenta esta ideia argumentando o seguinte:
“Mas o medo não pode ser abstraído do Estado de Natureza e se ‘mostra aumentado pela ausência do soberano’. Daí se conclui que o pleno estado de natureza ou estado de guerra contra- diz a natureza (desejosa e medrosa) do homem. ‘E assim ocorre que, através do medo que temos uns dos outros, achamos convenientes ( ) e arranjamos alguns companheiros, estabelecendo ou reconhecendo um soberano capaz de nos proteger’. Portanto, as Paixões que inclinam os homens (naturais) à Paz, são o Medo e o Desejo (...) logo, o homem natural de Hobbes é o homem civi- lizado, apenas com a restrição legal removida”. (MACPHERSON, 1979: 40).
Ao se perguntar, que sociedade civilizada está na base do pensamento de Hobbes? A resposta de Macpherson é: “apenas uma espécie de sociedade, que chamo de socie- dade de mercado possessivo, preenche realmente os requisitos da argumentação de Hobbes”. E a partir disto teoriza que “a igualdade de todos em insegurança no estado natural, leva à igualdade de todos em submissão ao mercado no estado civilizado” e que o mecanismo para tal é o “cálculo racional dos proprietários (o custo-benefício) com a instituição de um soberano, com poderes de submeter todos ao desígnio do mercado”. Daí o pacto ou contrato entre os indivíduos proprietários de transferência
As teses de Althusser são consideradas estruturalistas por vários estudiosos do marxismo. 3 Não há estrada real para o conhecimento, e as únicas pessoas com alguma chance de escalar seus cismos luminosos são aqueles que não tem medo do cansaço de ascender os precipícios que conduzem até ele. 4 Euclides (c. 330 a. C. - 260 a. C.), sírio, viveu na Alexandria. Conta-se que, um dia, o rei lhe perguntou se não existia um método mais simples para aprender geometria e que Euclides respondeu: “Não existem estradas reais para se chegar à geometria”.
outro lado, o sociológico, uma contribuição salutar, mesmo incompleta, de sociedade (DUMONT, 1985). Norberto Bobbio, em comparação a Dumont, avança mais, ao analisar a teoria política de Hobbes, partindo da ideia que este rompe com as duas teses principais sobre a forma de governo na sua época: a tese sobre as formas boas e más de governo; e a tese do governo misto. Esta assertiva é sustentada nos atributos fundamentais da soberania: seu caráter absoluto e indivisibilidade. Do conceito de caráter absoluto da soberania do Estado advém a crítica à ideia das formas boas e más de governo; do conceito de indivisibilidade, a crítica ao governo misto (BOBBIO, 1997, p. 107). Bobbio sustenta que “o conceito de poder soberano advém do seu caráter absoluto, porque se não fosse absoluto não seria soberano: soberania e caráter absoluto são unum et idem”, e deste truísmo afirma que esta concepção em Hobbes é irredutível, seja em relação às leis positivas (leis constitucionais), seja em relação às leis naturais e divinas, ou do direito privado. Destaca as leis naturais e divinas que o soberano obedece, das leis positivas as quais não se subordina, mas também que a subordinação às primeiras é ao nível da consciência e não ao nível da aplicação de um poder comum, como dos súditos (BOBBIO, 1997, p. 108). Em torno da questão da liberdade parte da ideia que, em Hobbes, esfera privada é igual a estado de natureza, portanto esta distinção entre a esfera pública e a privada é negada e com a instituição do Estado se dissolve inteiramente na esfera pública, isto é, nas relações de domínio que ligam o soberano aos súditos. Justifica este pen- samento indagando: por que razão os indivíduos deixam o estado de natureza para ingressarem na esfera do Estado?
“é justamente porque o primeiro não é regulado por leis impostas por um poder comum, se resolvendo numa situação de conflito permanente (o famoso Bellum omnium contra omnes). Para Hobbes, o direito de propriedade só existe no Estado mediante a tutela estatal. No estado de natureza os indivíduos teriam um jus in omnia – um direito sobre todas as coisas -, o que quer dizer que não teriam direito a nada, já que todos tem direito a tudo” (BOBBIO, 1997, p. 108).
Quanto à perpetuação do poder, Bobbio aborda sobre a ótica do “princípio de efetividade”, ou seja, da “legitimação post factum ”. Argumenta que a legitimidade do poder em Hobbes, em última instância, remonta um movimento contínuo de legitimação de um poder pelo outro até chegar forçosamente “ao ponto do poder que, como Atlas, não tem nenhum apoio além de si mesmo, no seu ato efetivo ou capacidade própria”. Em termos conceituais, pode-se dizer no máximo que o poder adquirido por conquista ou vitória pela guerra é um poder despótico – despotes - que significa senhor ou patrão. É o domínio que o patrão tem sobre o servo, como explica Hobbes (BOBBIO, 1997, p. 110). Da noção de conservação da vida faz a analogia entre o pacto de constituição do Estado e o de legitimação do poder por conquista, como consequência lógica outor- gada ao vencedor: “quando o vencido para evitar a morte – com palavras expressas ou sinais suficientes – indica que, enquanto lhe for concedido viver e ter liberdade de movimentos, o vencedor o utilizará à sua vontade”. E desta noção “a tese que jus- tifica o despotismo ex contractu , diferentemente da tese ex natura de Aristóteles e ex delicto de Bodin”. Argumenta que ela não foge a lógica hobbesiana de passagem do indivíduo do estado de natureza ao estado civil, através da submissão a um poder
comum, suficientemente forte para impedir o emprego da força particular, assegu- rando a vida dos indivíduos (BOBBIO, 1997, p. 111).
A leitura e interpretação da noção de soberania e liberdade na obra Leviatã, de Thomas Hobbes, exige, sem dúvida, grande complexidade, um exercício quase na tradição escolástica de hermenêutica e exegese. Contudo, o método adotado para compreender estas categorias no contexto do Leviatã , o marxismo, implica analisá- -las pela ótica dialética das suas relações com o conteúdo histórico das contradições materiais, mediatizadas pelas formas ideológicas que às expressam na composição teórica de Hobbes para atingir o objetivo geral de seu trabalho. Isto implica dizer uma importância estrutural na relação interna com as demais categorias e com o objetivo geral e particular (interesse) do próprio autor. As partes anteriores deste trabalho nos poupam de uma maior caracterização do cenário de interesses econômicos e políticos que sustentam as teorias de conformação dos Estados absolutistas, cujas teses desde Maquiavel rompiam com a concepção da polis e com o método escolástico. As ciências sociais, em especial, a ciência políti- ca, desde o Renascimento, se ancoraram nas ciências exatas para romper com este método. O movimento renascentista provoca a fissura à apodrecida hermenêutica eclesiástica, que no século XVII se expressa como ruptura através da teoria dos corpos de Galileu Galilei e recuperação da matemática euclidiana, do cálculo de máximo e mínimo denominador comum. A ruptura econômica e social se desenvolve através do reflorescimento das eco- nomias europeias após a grande crise do século XIV, através do mercantilismo, mas também dos fisiocratas, primeiro movimento liberal; o método político de unificação dos Estados absolutos, com sua centralização e autoridade, sobre o manto da herança divina, repousava de fato na riqueza e alianças dos senhores feudais, para financiar exércitos, tanto para a conquista, quanto de defesa dos seus domínios territoriais, afogar as dissensões internas e proteger sua prosperidade econômica, industrial e comercial dos Estados unificados. Os dois métodos de prosperidade econômica levam a ruptura religiosa até à Inglaterra, tornando-a o primeiro país a unir a ética protestante ao espírito capita- lista, desencadeando a Reforma Religiosa e a disputa pelo domínio da Europa. A França, refúgio da nobreza papal, torna-se o centro da Contrarreforma; Portugal e Espanha a contraofensiva no domínio do além-mar, num pacto entre a nobreza, a Igreja e a burguesia mercantil (Armada, Companhia de Jesus, Companhia das Índias Ocidentais ou Orientais), que leva à revolução náutica e ao comércio mundial. Por via transversa, contribui com o desenvolvimento das ciências exatas. Na Inglaterra, através do protestantismo, a ciência avança para o método experi- mental de Francis Bacon; e na França, refém da Igreja, surge o método racionalista de René de Descartes. O primeiro, influenciado pela teoria e método de Galileu, rompendo com o método escolástico e a metafísica aristotélica; o segundo, pela matemática de Euclides, rompe com a escolástica mantendo convivência com a metafísica aristotélica. É, justamente, na contradição entre estes dois métodos e na contradição destes com a escolástica, que se forma o sistema teórico e filosófico de
o processo de reação; Itália e Alemanha, o estacionário. Marx, em sua análise sobre o período pré-capitalista como nexo histórico entre o capital monetário e a renda da terra, no Livro III de O Capital , explica sistematicamente este fato. Em termos da teoria de Hobbes, existe um nexo direto entre sua concepção do homem no esta- do de natureza sob o princípio da teoria dos corpos de Galileu, cuja igualdade de movimento livre e, por isso, conflitiva, reside na igualdade de desejos e paixões de sua propriedade corpórea, e na mimesis presente na mesma, como fator diferencial da natureza geral, que decorre do ato da gênese bíblica, como impulso inicial deste movimento. Assim, o homem hobbesiano é um corpo em movimento, vivo, em trânsito, logo em transição, cuja direção e sentido histórico depende, neste estado de natureza, da propriedade do seu corpo (força) e da utilização de um dos elementos especiais intrínseca a mesma, a mimesis (do órgão da razão) (HOBBES, 1983). O homem natural hobbesiano, abstraído do processo social de transição, é um ser social cujas paixões e desejos oscilam entre o feudalismo e capitalismo, em termos subjetivos (lucro, riqueza, honra, liberdade e soberania, religião) e em termos obje- tivos, no domínio sobre os meios de conservação da vida (a propriedade privada, comunal e feudal). Esta concepção, embora mecânica, não chega a uma metafísica de tipo aristotélica, que se observa em Descartes ao aplicar a matemática euclidia- na, como compreensão racional de uma dimensão subjetiva pelo qual se chega a Deus; mas, pela concepção materialista da teoria dos corpos, que pressupõe a razão como qualidade de mimesis , desenvolvida pelo homem em sua luta natural pela sobrevivência no estado de natureza, por conseguinte, uma qualidade material, cuja existência advém da gênese da natureza: “arte pela qual Deus fez e dirige o mundo”; logo, realidade a priori axiomática, o primeiro impulso a vida, ou seja, impulso ao movimento livre dos corpos e, portanto conflitivo, como definido anteriormente (HOBBES, 1983 p. 6 e 66). Com base nesta concepção é possível explicar a natureza do processo confli - tivo que vive a sociedade inglesa, a guerra civil, a guerra de todos contra todos; bem como se pode derivar uma dimensão antropológica e psicológica da natureza humana, propensa ao egoísmo, amoral, competitiva, prepotente e submissa, já que na lógica da matemática euclidiana o raciocínio é mera “soma e subtração”, entre o bem maior e o mal menor regulado pela gravidade da conservação da vida. Além disso, se pode concluir que no sistema hobbesiano a noção de liberdade está ligada ao livre movimento que, se por um lado, explica “a ausência de impedimentos do homem sobre todas as coisas, inclusive os corpos dos outros”; por outro, implica a destruição da vida, na medida da guerra de todos contra todos pela conservação da vida; e ainda a noção de escolha entre o bem maior e o mal menor. Também é pos- sível se compreender sua noção de soberania, que da propriedade natural sobre seu próprio corpo e dos meios de conservação da vida e ser social, avança até a soberania aos corpos dos demais homens e seus meios de subsistência e domínio territorial (HOBBES, 1983, p. 11 e 27). Mas, neste caso liberdade e soberania são uma única e mesma coisa, e esta igualdade entre ambas, leva necessariamente à contradição e guerra permanente, adiantando em muito a teoria da evolução das espécies de Darwin. Contudo, é do exercício plenamente soberano da liberdade, como experiência sensorial do homem que se desenvolve os desejos e paixões, logo, impulsos intrínsecos que se exteriorizam em movimento do corpo, cuja mimesis , trabalha no aperfeiçoamento dos artefatos da
experiência bem sucedida ou as refuta, evitando sempre o mal maior na conservação da vida, desenvolvendo a razão ou cálculo racional da efetivação dos objetos do desejo e paixões. Aqui o homem chega a compreensão racional que a conservação da vida é o bem maior, e que para tanto é necessário o mal menor, visto que liberdade e soberania em igualdade resultam no mal maior, que é a morte, e para que isto não aconteça é necessário dissociar de sua própria natureza de igualdade entre soberania e liberdade, como no resultado de um duelo em que por “sinais, palavras ou gestos claros” o derrotado escolhe o mal menor que é ceder parte da sua liberdade, o que quer dizer a soberania sob seu próprio corpo ao vencedor em troca da vida (HOBBES, 1983, p. 79-80 ). É esta a explicação para a dissociação de liberdade e soberania no estado social, pensado como teleologia e cálculo racional dos homens tendo por princípio a conser- vação da vida diante do seu conflito permanente no estado de natureza. Contudo, é necessário diferenciar a ideia da formação do Estado da analogia com a constituição da soberania pela conquista, pois nesta última trata-se da efetivação ou legitimação do poder ex delicto , enquanto na verdade o primeiro é ex contractu , resultado da mediação da razão em evento teleológico a partir da projeção do conhecimento da realidade empírica para além da aparência no estado de transição, no estado de natureza do movimento livre dos homens, cuja premissa é conservação da vida, isto é, o bem maior pelo mal menor (HOBBES, 1983, p. 222). Desta concepção, também se extrai um ideia positiva do homem hobbesiano, do homem que é a arte excelente de Deus, e por esta qualidade artífice capaz de imitar Deus copiando-se como estado projetado para seus objetivos comuns, com sobe- rania superior a todos os homens, com seu movimento mais forte e livre, pois sua propriedade corpórea é a reunião dos corpos de todos os homens, colocando sob sua órbita de domínio ou soberania, ou poder, o movimento dos homens individuais em trajetória não conflitivas e utilizando-se para tal todos os instrumentos decorrentes desta soberania como vontade única a ser atingida como finalidade coletiva (HOB- BES, 1983, p. 66). Eis aqui a explicação da supressão de parte das liberdades individuais no estado social, que explica a soberania absoluta, como artifício humano que imita a si mes- mo. Portanto, um Estado criado pelo estatuto da razão em que liberdade e soberania dissociadas se confrontam, em relações de determinação e condicionamento, e aquilo que era condição da liberdade no estado de natureza transforma-se em determina- ção desta, ao passo que aquilo que era determinação da soberania transforma-se em condição da mesma. Um pacto entre os homens que decorre da privação de parte do seu direito natural (HOBBES, 1983). Desta concepção se extrai ainda o duplo estatuto que governa este Estado Social, derivado do estado de natureza, portanto a base racional do contrato dos homens entre si e de cada um com a totalidade destes, ou seja, o conjunto de “leis naturais” e o direito e leis positivas ou civis derivadas. As primeiras normatizam e regulam os direitos e deveres da soberania do Estado; as segundas normatizam os direitos e deveres dos homens para com o Estado e destes entre si. Aqui trata-se da noção geral do processo da formação do Estado, enquanto pacto de todos os cidadãos em torno dos objetivos pelo qual, cada um abre mão de parte de sua liberdade e soberania individual em nome da liberdade e soberania do Leviatã: “o objetivo da conservação da vida” (HOBBES, 1983, p. 78-85).
fôlego e relevância para a teoria política do Estado moderno. Também, como se pode observar, desde o primeiro capítulo deste trabalho, este olhar sobre a obra de Hobbes indica a ideia que sua teoria do Estado registra algo mais do que a configuração de Estado moderno, pois sugere a noção de Estado de transição que nos remetem às noções e categorias sociais que permitem compreender melhor os processos políticos vividos pelos Estados em outras épocas históricas, como o Estado romano, durante a passagem do escravismo ao feudalismo e, atualmente, os Estados socialistas, onde se processa a transição da sociedade do capitalismo para o comunismo. Talvez seja um tanto audacioso ao estabelecer este problema para a teoria de Hobbes, e talvez, quem sabe, exigir demais do seu pensamento político. Contudo, não se pode deixar de observar que certo número de pensadores e formuladores da ciência política estão sempre às voltas com dificuldades na análise das teorias sobre o Estado moderno, ao se tomar o exemplo Macpherson, em seu trabalho sobre os fundamentos da teoria liberal para encontrar uma base sólida para solucionar sua crise; o mesmo é válido para os que se encontram no campo das teorias socialistas, cujo desaparecimento da URSS e de vários países se impôs como problema. Não se quer dizer com isto que na obra de Hobbes se encontre as respostas aos problemas cruciais para os tempos modernos, mas apenas estabelecer a noção que dadas características presentes em sua teoria, a centralização de poderes, a tendência à homogeneização e a necessidade de um esforço social ao estilo do esforço de guerra, parecem cada vez mais evidentes nestes momentos especiais. Também não é possível reduzir da teoria do Estado de Hobbes a configuração de uma forma de governo que, na tradição da literatura política, se descreve como ditatorial ou totalitário, como apresenta Bobbio. Naturalmente, não se está afirmando que na teoria do Estado de Hobbes não existam traços que permitam esta formulação; pois da mesma forma que ele construiu seu modelo de estado de natureza deduzido do estado social existente e do primeiro estabeleceu sua teoria sobre um Estado artificial, perfeito, sobre a forma de governo ditatorial, também se pode somar ou deduzir elementos para montar um modelo ou forma de governo ou Estado de nosso arbítrio. Entretanto, uma questão deve ser dita: nos parece uma atitude teórica pouco aceitável vergar sua teoria até ao nível de contrapeso da teoria da forma de governo democrática, ou da teoria do Estado liberal-democrático. Neste esforço, transparece mais o signo da discriminação dos pensadores fora dos cânones teológicos de ontem; e fora dos cânones liberais democráticos de hoje. Mas, apesar destas incongruências da ciência, sua obra resiste, e a cada dia que a socie- dade marcha para a desfiguração dos Estados nacionais e o modelo político oficial da sociedade capitalista, configurando-se em Estado imperial, suas características tendem para as características do Estado hobbesiano. Um claro exemplo deste pro- cesso podemos observar pelas características centrais dos Estados que buscaram a hegemonia mundial durante o século XX, vejam o Estado nazista ou fascista, vejam os Estados socialistas, e atualmente, os Estados Unidos. Não há dúvida que certas configurações que permeiam a teoria do Estado hobbe- siano estão presentes na atual cena histórica, como demonstra o esforço dos teóricos liberais ou democráticos de realçar apenas seu vínculo teórico com a teoria liberal e o utilitarismo de Bentham, em oposição a uma configuração mais democrática e salvadora do modelo capitalista de Estado, visíveis na valorização das teses do social liberalismo a partir de John Stuart Mill.
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c) “O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale , é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim”. “Uma lei de natureza ( lex naturalis ) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. Porque, embora os que têm tratado deste assunto costumem confundir jus e lex , o direito e a lei, é necessário distingui-los um do outro. Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria” (HOBBES, 1983, p. 78). “E dado que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição, todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão, que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos,defendermo-nos a nós mesmos” (p. 78). d) “Quando alguém transfere seu direito, ou a ele renuncia, fá-lo em consideração a outro direito que reciprocamente lhe foi transferido, ou a qualquer outro bem que daí espera. Pois é um ato voluntário, e o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos. Portanto, há alguns direitos que é impossível admitir que algum homem, por quaisquer palavras ou outros sinais, possa abandonar ou transferir. Em primeiro lugar, nin- guém pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida, dado que é impossível admitir que através disso vise a algum benefício próprio. O mesmo pode dizer-se dos ferimentos, das cadeias e do cárcere, tanto porque desta aceitação não pode resultar benefício, ao contrário da aceitação de que o outro seja ferido ou encarcerado, quanto porque é impossível saber, quando alguém lança mão da violência, se com ela pretende ou não provocar a morte. Por último, o motivo e fim devido ao qual se introduz esta renúncia e transferência do direito não é mais que a segurança da pessoa de cada um, quanto à sua vida e quanto aos meios de preservá-la de maneira tal que cabe por dela se cansar. Portanto, se através das palavras ou outros sinais um homem parecer despojar-se do fim para que esses sinais foram criados, não deve entender-se que é isso que ele quer dizer, ou que é essa a sua vontade, mas que ele ignorava a maneira como estas palavras e ações irão ser interpretadas”. (HOBBES, 1983: 80). e) “Um pacto em que eu me comprometa a não me defender da força pela força é sempre nulo. Porque (conforme acima mostrei) ninguém pode transferir ou renunciar ao seu direito de evitar a morte, os ferimentos ou o cárcere (o que é o único fim da renúncia ao direito), portanto a promessa de não resistir à força não transfere qualquer direito em pacto algum, nem é obrigatória. Porque embora se possa fazer um pacto nos seguintes termos: se eu não
fizer isto ou aquilo, mata-me; não se pode fazê-lo nestes termos: se eu não fizer isto ou aqui- lo não te resistirei quando vieres matar-me. Porque o homem escolhe por natureza o mal menor que é o perigo de morte ao resistir, e não o mal maior, que é a morte certa e imediata senão resistir. E isto é reconhecido como verdadeiro por todos os homens, na medida em que conduzem os criminosos para a execução e para a prisão rodeados de guardas armados, apesar de esses criminosos terem aceitado a lei que os condena”. f ) “Um pacto num sentido de alguém se acusar a si mesmo, sem garantia de perdão, é igualmente inválido. Pois na condição de natureza, em que todo homem é juiz, não há lugar para acusação, e no estado civil a acusação é seguida pelo castigo; sendo este força, ninguém é obrigado a não lhe resistir. O mesmo é igualmente verdadeiro da acusação daqueles por causa de cuja condenação se fica na miséria, como a de um pai, esposa ou benfeitor. Porque o testemunho de um tal acusador, senão for prestado voluntariamente, deve considerar- -se corrompido pela natureza, e portanto não deve ser aceito; e quando o testemunho de um homem não vai receber crédito ele não é obrigado a prestá-lo. Também as acusações arrancadas pela tortura não devem ser aceitas como testemunhos. Porque a tortura é para ser usada como meio de conjetura, de esclarecimento num exame posterior e de busca da verdade; e o que nesse caso é confessado contribui para aliviar quem é torturado, não para informar os torturadores. Portanto não deve ser aceito como testemunho suficiente porque, quer o torturado se liberte graças uma verdadeira ou uma falsa acusação, fá-lo pelo direito de preservar a sua vida”. (HOBBES, 1983: 84). g) “A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança... é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pes- soas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta Assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode assim ser definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos.” (HOBBES, 1983: 105-106) h) “Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e visto que quem tem direito a um fim tem direito aos meios, constitui direito de qualquer homem ou assembleia
Se o direito não pertencer a nenhuma pessoa em especial, e estiver na dependência de uma nova escolha, neste caso o Estado encontra-se dissolvido, e o direito pertence a quem dele puder apoderar-se, contrariamente à intenção dos que instituíram o Estado, tendo em vista uma segurança perpétua e não apenas temporária” (HOBBES, 1983: 119). n) “De modo que aparece bem claro a meu entendimento, tanto a partir da razão quan- to das escrituras, que o poder soberano, quer resida num homem, como numa monarquia, quer numa assembleia, como nos Estados populares e aristocráticos, é o maior que é pos- sível imaginar que os homens possam criar. E, embora seja possível imaginar muitas más consequências de um poder tão ilimitado, apesar disso as consequências da falta dele, isto é, a guerra perpétua de todos os homens com seus vizinhos, são muito piores. Nesta vida a condição do homem jamais poderá deixar de ter alguns inconvenientes, mas num Estado jamais se verifica qualquer grande inconveniente a não ser os que derivam da desobediência dos súditos, e o rompimento daqueles pactos a que o Estado deve sua existência. E quem quer que considere demasiado grande o poder soberano procura fazer com que ele se torne menor, e para tal precisará submeter-se a um poder capaz de limitá-lo; quer dizer, a um poder maior” (HOBBES, 1983: 127). o) “Passando agora concretamente à verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, quais são as coisas que, embora ordenadas pelo soberano, não obstante eles podem sem injustiça recusar-se a fazer, é preciso examinar quais são os direitos que transferimos no momento em que criamos um Estado. Ou então, o que é a mesma coisa, qual a liberdade que a nós mesmos negamos, ao reconhecer todas as ações (sem exceção) do homem ou assembleia de quem fazemos nosso soberano. Porque de nosso ato de submissão fazem parte tanto nossa obrigação quanto nossa liberdade, (...). Portanto, em primeiro lugar, dado que a soberania por instituição assenta num pacto entre cada um e todos os outros, e a soberania por aquisição em pactos entre o vencido e o vencedor, ou entre o filho e o pai, torna-se evidente que todo súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto. Já no capítulo 14 mostrei que os pactos no sentido de cada um abster-se de defender seu próprio corpo são nulos. Portanto, se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira ou mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer. Se alguém for interrogado pelo soberano ou por sua autoridade, relativamente a um crime que cometeu, não é obrigado (a não ser que receba garantia de perdão) a confessá-lo, porque ninguém (conforme mostrei no mesmo capítulo) pode ser obrigado por um pacto a recusar-se a si próprio. Por outro lado, o consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo, ou assumo como minhas todas as suas ações, nas quais não há qualquer espécie de restrição a sua antiga liberdade natural... Portanto, quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania, não há liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade. Por esta razão, um soldado a quem se ordene combater o inimigo, embora seu soberano tenha suficiente direito de puni-lo com a morte em caso de recusa, pode não obstante em muitos casos recusar, sem injustiça, como quando se faz substituir por um soldado suficiente em seu lugar, caso este em que não está desertando do serviço do Estado. E deve também dar-se lugar ao temor natural, não só o das mulheres (das quais não se espera o cumprimento de tão perigoso dever), mas também o dos homens de coragem feminina. Quando dois exércitos combatem há sempre os que fogem (...) Não se considera que o fazem injustiça, é covardia (...).
Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa de outrem, seja cul- pado ou inocente... Mas caso um grande número de homens em conjunto tenha já resistido injustamente ao poder soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo qual cada um deles pode esperar a morte, terão eles ou não a liberdade de se unirem e se ajudarem a defender uns aos outros? Certamente que a têm: porque se limitam a defender suas vidas, o que tanto o culpado como o inocente podem fazer (...) Quanto às outras liberdades, dependem do silêncio da lei. Nos casos em que o soberano não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou de omitir, conforme a sua discrição (...) Se um súdito tem uma controvérsia com seu soberano, quanto a uma dívida ou um direito de posse de terras ou bens, ou quanto a qualquer serviço exigido de suas mãos, ou quanto a qualquer penalidade, corporal ou pecuniária, baseando-se em qualquer lei anterior, tem a mesma liberdade de defender seu direito como se fosse contra outro súdito, e perante os juízes que o soberano exige por força uma lei anterior, e não em virtude de seu poder, declara por isso mesmo não estar exigindo mais do que segundo essa lei é devido (...). Se um monarca ou uma assembleia soberana outorgarem uma liberdade a todos ou qual- quer dos súditos, liberdade essa que lhe faz perder a capacidade de prover a sua segurança, a outorga é nula, a não ser que diretamente renuncie, ou transfira sua autoridade para outrem. (...) Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los. Porque o direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum. A soberania é a alma do Estado e uma vez separada do corpo os membros deixam de receber dela seu movimento. O fim da obediência é a proteção, e seja onde for que um homem a veja, quer em sua própria espada quer na do outro, a natureza manda que a ela obedeça e se esforce por conservá-la. Embora a soberania seja imortal, na intenção daqueles que a criaram, não apenas ela se encontra, por sua própria natureza, sujeita à morte violenta através da guerra exterior, mas encerra também em si mesma, devido à ignorância e às paixões dos homens, e a partir da própria instituição, grande número de sementes de mortalidade natural, através da discórdia intestina. Se um súdito for feito prisioneiro de guerra, e ou sua pessoa ou seus meios de vida se encontrarem entregues à guarda do inimigo, e se sua vida e sua liberdade corpórea lhe forem oferecidas, com a condição de se tornar súdito do vencedor, ele tem a liberdade de aceitar essa condição... O caso será o mesmo se ele ficar retido nos mesmos termos, num país estrangeiro. Mas se um homem for mantido na prisão ou a ferros, ou se não lhe for confiada à liberdade sobre seu corpo, nesse caso não pode dizer-se que esteja obrigado a sujeição por um pacto, podendo portanto, se for capaz, fugir por quaisquer meios que sejam. Se um monarca renunciar à soberania, tanto para si mesmo como para seus herdeiros, os súditos voltam à absoluta liberdade da natureza... Assim, se ele não tiver herdeiro não há mais soberania nem sujeição. O caso é o mesmo se ele morrer sem parentes conhecidos, e sem parentes conhecidos, e sem declarar quem deverá ser o herdeiro...”. (HOBBES, 1983: 133-136).