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Valor Patrimonial da Letra de Crédito: Um Instrumento de Crédito e Moeda de Troca, Provas de Direito

Este texto explica o papel da letra de crédito como instrumento financeiro e moeda de troca, baseado na confiança pessoal dos subscritores no pagamento pontual pelo sacado no vencimento. O documento aborda a natureza do sacador, o papel do título na economia, as garantias legais, o papel do endossante e a cadeia de crédito.

O que você vai aprender

  • Qual é o papel do endossante na circulação da Letra de Crédito?
  • Quais são as garantias legais que fundam a Letra de Crédito?
  • Por que a Letra de Crédito é considerada um instrumento de crédito e moeda de troca?
  • Qual é a natureza do sacador em relação à Letra de Crédito?
  • Como a confiança pessoal dos subscritores influencia a circulação da Letra de Crédito?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Roberto_880
Roberto_880 🇧🇷

4.6

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Letra de Câmbio e Direito Comercial
centrado na Empresa.
O Legado de Paulo Sendin
Evaristo MEndEs*
Nesta singela homenagem ao Doutor Paulo sEndin, vamos recordá‑
‑lo com uma evocação do seu legado no domínio do Direito Comercial
em sentido alargado, área do Direito a que mais se dedicou. O Prof.
sEndin foi um distinto discípulo do Professor antónio FErrEr corrEia,
nome grande da comercialística portuguesa do século XX
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, de quem
foi assistente em Coimbra, antes de assumir a regência da disciplina
de Direito Comercial na Faculdade de Economia do Porto. Depois de
uma temporada como bolseiro na Alemanha e estadas de investigação
em diversos outros países europeus, dedicou ‑se durante largo tempo à
actividade bancária em Portugal, na qualidade de administrador, tendo
voltado ao ensino do Direito Comercial no actual ISEG. Após a Revolução
de 1974, leccionou, ainda, na Faculdade de Direito da Universidade de
Navarra, onde concluiu a dissertação de doutoramento sobre a Letra de
* Mestre em Direito. Docente da Faculdade de Direito da UCP (Escola de Lisboa).
Co ‑coordenador do Centro de Direito Comercial e de Direito da Economia e da pós‑
‑graduação em Direito Comercial.
1
Presta ‑se aqui também homenagem a este insigne mercantilista, que foi nosso
orientador de doutoramento, evocando igualmente a memória de dois grandes nomes
falecidos da mesma Escola, o Prof. vasco lobo XaviEr, figura cimeira do Direito
das sociedades e que orientou a nossa dissertação até à sua morte prematura, e o Prof.
orlando dE carvalho, ilustre investigador do fenómeno empresarial e precursor de um
Direito Comercial centrado na empresa.
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Letra de Câmbio e Direito Comercial

centrado na Empresa.

O Legado de Paulo Sendin

Evaristo MEndEs *

Nesta singela homenagem ao Doutor P aulo sEndin, vamos recordá‑ ‑lo com uma evocação do seu legado no domínio do Direito Comercial em sentido alargado, área do Direito a que mais se dedicou. O Prof. sEndin foi um distinto discípulo do Professor antónio FErrEr corrEia, nome grande da comercialística portuguesa do século XX 1 , de quem foi assistente em Coimbra, antes de assumir a regência da disciplina de Direito Comercial na Faculdade de Economia do Porto. Depois de uma temporada como bolseiro na Alemanha e estadas de investigação em diversos outros países europeus, dedicou‑se durante largo tempo à actividade bancária em Portugal, na qualidade de administrador, tendo voltado ao ensino do Direito Comercial no actual ISEG. Após a Revolução de 1974, leccionou, ainda, na Faculdade de Direito da Universidade de Navarra, onde concluiu a dissertação de doutoramento sobre a Letra de

  • Mestre em Direito. Docente da Faculdade de Direito da UCP (Escola de Lisboa). Co ‑coordenador do Centro de Direito Comercial e de Direito da Economia e da pós‑ ‑graduação em Direito Comercial. (^1) Presta‑se aqui também homenagem a este insigne mercantilista, que foi nosso orientador de doutoramento, evocando igualmente a memória de dois grandes nomes já falecidos da mesma Escola, o Prof. vasco lobo X aviEr, figura cimeira do Direito das sociedades e que orientou a nossa dissertação até à sua morte prematura, e o Prof. orlando dE carvalho, ilustre investigador do fenómeno empresarial e precursor de um Direito Comercial centrado na empresa.

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Câmbio. Regressado a Portugal, a sua actividade docente centrou‑se na Universidade Católica, nos cursos de economia e gestão de empresas e, quando da sua criação em 1976, no curso de Direito, onde se conservou até ao seu falecimento. As áreas sobre que incidiu o seu ensino foram sobretudo o Direito Comercial, o Direito da Economia e, até certa altura, o Direito Industrial (ou Direito da Propriedade Industrial). A obra magna é a Letra de Câmbio, publicada em dois volumes em 1980 e 1982, objecto de análise no presente artigo, de que se pretende realçar as principais linhas de força. A segunda preocupação maior, reflectida nas sucessivas versões das respectivas Lições , foi com a estruturação do Direito Comercial em torno da empresa, do empresário e das instituições e negócios de empresa, reconhecendo ao artigo 230.º do Código Comercial o papel de norma qualificadora autónoma no sistema de delimitação do campo de aplicação do Direito mercantil, a par do artigo 2.º, 1.ª parte, relativo aos actos «isolados» de comércio. Como o ilustra a análise do seu pensamento empreendida no artigo incluído nesta colectânea de estudos sob o título «Modelo económico constitucional e Direito Comercial», a ideia fundamental, nesta matéria, é a de que o Direito Comercial deve regular a actividade económico‑produtiva desenvolvida no mercado e em função dele que, devido à presença dominante do factor capital , do correspondente risco e dos riscos de terceiros com ele conexos, reclama um regime especial – dela própria, com os negócios e relações profissio‑ nais através dos quais se desenvolve e organiza, das respectivas formas organizativas e dos agentes económicos («empresários» mercantis) – e uma maneira de pensar específica, mormente em face do pensamento dominante juscivilista, baseado no indivíduo e num Direito à sua medida. Às organizações produtivas assim caracterizadas, chama o autor «empre‑ sas», sendo o Direito Comercial, nessa medida, antes de mais, o Direito das empresas mercantis, em contraposição: às empresas agrícolas (com eventuais actividades comerciais e/ou industriais distintas mas acessórias), às pequenas empresas e às profissões autónomas, de carácter manual e intelectual. Porém, vistos os seus textos mais de perto, verifica‑se que, neste domínio da actividade económico‑produtiva exercida profissional‑ mente, cerne do Direito mercantil, utiliza implicitamente três critérios : um critério geral de índole empresarial – apontando às empresas comerciais uma série de requisitos, incluindo o do risco directo do capital, mormente em confronto com a «pequena empresa» – e dois complementares crité‑ rios especiais : o desse risco directo do capital, através do qual distingue, na tradicional actividade de intermediação nas trocas levada a cabo por

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da territorialidade, privilegiou uma análise funcional dos respectivos institutos, em grande parte reflectida na Convenção da União de Paris, na Lei da Propriedade Industrial de 1896 e nos sucessivos Códigos da Propriedade Industrial, onde se reúne o regime dos direitos privativos e da concorrência desleal^4 ; e estabeleceu, além disso, importantes contactos com dois dos três grandes centros de saber e investigação europeus na matéria – o Instituto Max‑Planck de Munique e o Instituto da Universidade de Santiago de Compostela – promovendo a especialização de discípulos seus neste importante sector do ordenamento jurídico. Os últimos anos da sua vida foram dedicados, em boa medida, à investigação histórica e à escrita de uma grande História do Direito Comercial, que, porém, devido às contingências da vida humana, ficou inacabada. Trabalhou também na preparação de uma segunda edição da Letra de Câmbio , tarefa esta mais próxima do seu termo, mas carecendo o texto ainda de revisão^5. Conforme se assinalou, recordam‑se a seguir os traços essenciais da sua concepção da Letra. Começa‑se por uma pequena apresentação introdutória do título.

Letra de Câmbio. Exposição introdutória

1. A letra de câmbio 6 é um título de crédito regido, no fundamental, pela Lei uniforme relativa às letras e livranças (LULL), aprovada pela respectiva Convenção de Genebra de 1930 (anexo I). A Convenção admitiu que os Estados signatários e aderentes fizessem reservas (anexo II), mas Portugal não usou dessa faculdade. Abstraindo deste aspecto, tal regime uniforme pode ser completado com regras de direito interno desde que com ele compatíveis, uma vez que a uniformização obtida

(^4) Cfr. «Uma unidade do direito da Propriedade Industrial ?», em Direito e Justiça , vol. II (1981/1986), pp. 161‑200, e Lições de Direito Comercial e de Direito da Economia , Terceira Parte. Direito Industrial , Lisboa 1979/80 (UCP, polic.), pp. 577‑708. (^5) Neste «novo» texto, o autor procurou, designadamente, identificar de forma mais explícita a sua posição, em contraposição à da doutrina obrigacional dominante, e separar as notas do corpo da exposição. Fazendo‑o preceder, ainda, de uma Introdução um pouco mais extensa que as correspondentes Notas prévias da primeira edição. Na apresentação que faremos do seu pensamento, temos em conta tal texto, juntamente com o que se encontra publicado. (^6) Ou simplesmente «letra». Para facilitar a leitura utilizaremos este vocábulo com inicial maiúscula (Letra).

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nessa Conferência foi de âmbito limitado. Nessas regras, conta‑se, por exemplo, o direito de saque constante do art. 284.º do CCom português^7.

1.1. O tipo real de Letra que presidiu à sua configuração e serviu de modelo à regulação estabelecida nessa Lei é o que existia na prática comercial da segunda metade do século XIX e primeiro quartel do século XX. Nessa altura, ela surge já desprendida do contrato de câmbio a que estivera secularmente ligada (dado que ainda se reflecte na nomenclatura adoptada – letra de câmbio ) e cumpre a função socioeconómica típica de instrumento de crédito e de moeda de troca entre os comerciantes, permitindo uma concessão generalizada de crédito entre eles.

1.2. O crédito é, como se sabe, um elemento congénito e fundamental do comércio, caracterizando‑se nessa altura pela sua acentuada descon‑ centração e disseminação pelo tecido produtivo mercantil existente 8. A Letra surge nesse contexto, simultaneamente, como «a moeda dos comerciantes » – uma moeda de criação individual, com ampla circula‑ ção entre eles e destinada a converter‑se em moeda com curso legal no termo do seu período de vida (vencimento) – e como um instrumento de concessão generalizada e recíproca de crédito desses actores económicos (permitindo aos comerciantes em geral conceder mutuamente e beneficiar de forma generalizada e recíproca desse crédito). O título encontrava‑se, pois, no coração do sistema de crédito e, desse modo, do próprio mundo dos negócios e do sistema mercantil, quer a nível nacional, quer no comércio internacional. Daí a importância, por um lado, de o sujeitar a um regime jurídico internacionalmente uniforme, que se conseguiu com a aludida LULL, após um muito longo período preparatório e de negociação, envolvendo os melhores especialistas na matéria. Por outro lado, de submeter os respectivos signatários a um especial rigor.

(^7) Cfr. também o art. 71.º do antigo CREFal. Outros ordenamentos jurídicos mantiveram igualmente ou fizeram acompanhar a adopção do regime da LULL de regras especiais. No Direito francês, por exemplo, assume particular relevo a disciplina da provisão, com larga tradição neste país (cfr. o art. L511‑7 do Code de commerce ); matéria que ficou fora do âmbito da LULL (art. 16.º do anexo II da Convenção). Acerca do direito de saque consagrado no art. 284.º do CCom, cfr. P aulo sEndin /Evaristo MEndEs, Código Comercial , Coimbra (Almedina) 2001, p. 51s. (^8) Acerca da sua posterior especialização e concentração nos bancos e sociedades financeiras, com correspondente mudança de paradigma da Letra, cfr. «infra» (1.4).

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uma forma especial de «mútuo sobre títulos» ou um negócio misto, de mútuo e dação em função do cumprimento. Deste modo, sua função his‑ tórica de título eminentemente circulante quase se perdeu. A circulação passou a ser circunscrita. Encontramos aqui, portanto, uma mudança de paradigma. O panorama circulatório pouco tem agora a ver com o do século XIX e do primeiro quartel do século XX. A Letra manteve ainda algum papel como meio de pagamento no comércio internacional. Porém, de resto, passou a ser encarada essencialmente como um título emitido para a obtenção de crédito bancário sob a forma do desconto. A correspondente viabilização de negócios a crédito entre o sacador e o sacado, inclusive nas relações de consumo, realçou a importância do aceite. E a ideia de um título que funciona como moeda de troca entre comerciantes, com ampla aceitação como tal entre eles, e é utilizado nas respectivas relações interprofissio‑ nais como instrumento de concessão generalizada e recíproca de crédito desapareceu. Quer isto dizer que para se compreender cabalmente o regime da LULL há que ter presente o aludido tipo real inspirador. Não simplesmente o que existe nos tempos actuais.

2. Para quem esteja menos familiarizado com a Letra de câmbio, mostra‑se útil assinalar que ela apresenta uma estrutura fundamental análoga à do cheque , título mais comummente utilizado por particulares, embora este também tenda a ser substituído como meio de pagamento por dispositivos electrónicos alternativos. Sendo a analogia especialmente pronunciada se o cheque for um título à ordem e a Letra tiver uma cláusula de apresentação a aceite proibida (art. 22.º II da LULL), dado que aquele é insusceptível de ser aceite^10. Este último aspecto releva sobretudo porque, apesar de tal característica, o cheque é correntemente usado como moeda de troca. O mesmo podendo portanto suceder com uma Letra não aceite.

2.1. As construções jurídicas que dela se fizeram, sobretudo na Alemanha, a partir do final dos anos trinta do século XIX, reflectem os quadros da época, mormente a contraposição entre os direitos reais e os direitos de crédito. Tendo na versão que se tornou dominante (embora com importantes pontos de divergência) um conteúdo essencialmente

(^10) Recorda‑se que a LUCh proíbe a aceitação do cheque (art. 4.º).

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obrigacional que faz corpo com um documento sobre o qual incide um direito de propriedade. Assim, para essa corrente de pensamento 11 , apesar de o título, tal como o cheque, conter essencialmente uma ordem de pagamento com um beneficiário, a sua essência jurídica não residiria aí, mas numa ou mais obrigações de pagar , assumidas pelo sacado, com o seu aceite ( obrigação principal , nas correntes mais modernas), e eventual avalista, bem como pelo sacador, pelos endossantes e seus possíveis avalistas, para o caso de o sacado não realizar pontualmente o pagamento no vencimento, provo‑ cando o descrédito do mesmo título e dos seus subscritores ( obrigações de regresso ). O acento tónico na obrigação do sacador (dador da ordem) leva mesmo à afirmação de uma substancial identidade da Letra e da livrança^12. Quer dizer, a Letra é reconduzida ao esquema do direito de crédito (do portador) e da correspondente obrigação (uma ou mais obrigações dos respectivos subscritores); a que se acrescenta a incorporação de tal direito num documento, coisa móvel^13. À circulação específica deste aplica‑se o

(^11) O autor chama‑lhe a «moderna doutrina cambiária», iniciada por EinErt no segundo quartel de novecentos, desenvolvida sobretudo por outros autores germânicos e adoptada, com mais ou menos variantes, pela doutrina de outros países, com especial relevo para os autores italianos, pela enorme influência que o pensamento jurídico transalpino teve, nesta matéria, em Portugal e nos países latino‑americanos. Na literatura portuguesa contemporânea, veja‑se, por todos, com uma exposição clara e esclarecedora da matéria, J osé EnGrácia antunEs, Os Títulos de Crédito. Uma Introdução , Coimbra Editora 2009, pp. 51‑104. Uma análise aprofundada das diversas teorias cambiárias (que têm em comum uma concepção obrigacional da Letra) encontra‑se no volume II da Letra de Câmbio do homenageado (1982), p. 1027ss. Cfr. também Lições (1980), p. 150ss. (^12) Assim, EinErt, Das Wechselrecht nach dem Bedürfnis des Wechselgeschäfts im neu‑ nzehnten Jahrundert , Leipzig (1839): a Letra e a livrança são diferentes formas da mesma realidade [cfr. §§ 11 (p. 65s) e 18 (p. 70s e 82)]. As referências a este e outros teóricos mais antigos da letra de câmbio (Liebe e Thöl) foram retiradas de um escrito do autor intitulado «Doutrina cambiária. Ensaio sobre os factores condicionantes do seu carácter obrigacional», destinado a livro de estudos em homenagem ao Prof. Doutor Paulo cunha, entretanto publicado (Coimbra, Almedina 2012). O texto encontra‑se aí nas páginas 873 a 910. (^13) Esta última remonta a liEbE. Cfr. Die Allgemeine deutsche Wechselordnung mit Einleitung und Erläuterung , Leipzig 1848, máxime, pp. 129 e 133. Note‑se que, para este autor, a Letra é um «direito de crédito sujeito a uma qualificação real, que o emitente incorpora num pedaço de papel e lança na circulação», de que o título é o «Träger» e a que corresponde uma unitária obrigação legal dos subscritores»: cfr., nomeadamente, p. XXV, XXX, XXXV, 61, 92, 101, 129s e 196. Todavia, dentro dos primeiros teori‑ zadores da Letra, defendendo a primazia do «direito cambiário» em relação ao título, como faz Paulo Sendin, cfr. thöl, Das Handelsrecht , II – Das Wechselrecht , 1.ª edição, Göttingen 1847, 4.ª edição, Leipzig 1878, máxime, p. 92. Num contexto mais alargado,

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3. baseado, inter alia , em considerações deste tipo, o Prof. Sendin empreendeu uma revisão de fundo do instituto, propondo um diferente modo de pensar e uma distinta construção do mesmo, capaz, no seu entender, de harmonizar todos os preceitos e figuras da LULL e, simul‑ taneamente, de se adequar à realidade regulada. Expõe‑se adiante este ponto de vista, desenvolvido na sua referida obra fundamental, a Letra de Câmbio , que acabou de ser publicada faz agora 30 anos 14. Antes, porém, cabe recordar alguns traços decisivos do título, tal como o texto da LULL o apresenta e caracteriza.

3.1. À semelhança do cheque, a Letra é um título «formal» e legal‑ mente típico através do qual alguém – o sacador – dá a outrem, sacado , uma ordem de pagar certa quantia, por conta dele, sacador, ou de um terceiro; ordem essa que, naturalmente, terá que ser subscrita por quem a dá (arts. 1.º, 1, 2 e 8, e 3.º III). O título tem que conter a palavra «Letra» (art. 1.º, 1) e indicar quem é o primeiro beneficiário dessa ordem de pagar por conta do sacador ou terceiro (art. 1.º, 5); ao contrário do que sucede com o cheque, a LULL não admite letras ao portador (embora permita o endosso em branco, donde resulta uma possível circulação como título ao portador). Legalmente, trata‑se de um título de crédito à ordem , ou seja, sus‑ ceptível de ser transmitido, dado em penhor ou em procuração, mediante endosso (arts. 11ss, 18 e 19), embora o sacador possa configurá‑lo como um título nominativo individual ou de legitimação nominal única ou directa ( Rektapapier ), mediante cláusula não à ordem ou equivalente (art. 11.º II). Essa condição jurídica de título à ordem tem como limite o termo do prazo para se apresentar o mesmo a protesto, por falta de pagamento pontual pelo sacado no vencimento (cfr. o art. 44.º), ou a realização desse protesto (art. 20.º). Se não se indicar a época de pagamento , o título é, como o cheque, pagável à vista (art. 2.º II; cfr. 33 I). Pode, no entanto, indicar‑se no mesmo um dia fixo (a modalidade de vencimento mais corrente) ou outro tipo de vencimento, dentro dos indicados no art. 33.º O pagamento a que a Lei se refere é aquele que resulta da configuração da Letra pelo saque (art. 1.º, 5), ou seja, o pagamento pontual pelo sacado, mediante

(^14) Cfr. P aulo sEndin, Letra de Câmbio. L.U. de Genebra , edição promovida pelo do Centro de Direito Comercial e de Direito da Economia da Universidade Católica Portuguesa, Coimbra (Almedina) 1980 (1.º vol.) e 1982 (2.º vol.)

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apresentação do título para o efeito por portador cartularmente legitimado (art. 38.º; cfr. o art. 40.º). O sacado paga a Letra, no vencimento, por conta do sacador ou do terceiro indicado pelo sacador (art. 3.º III), quer tenha aposto no título a declaração de que aceita acatar, nesse vencimento, a ordem de pagamento (ou «mandato» – art. 1.º, 2) que lhe é dada, quer não. Se o título, tal como configurado pelo sacador, o permitir (art. 22.º II), o portador pode , contudo, apresentar‑lho para o efeito (art. 21.º), e, como se assinalou, durante o século XX, generalizou‑se a prática do desconto e a transacção das Letras já com o aceite do sacado, que desse modo adquire a qualidade de aceitante, ficando obrigado a pagá‑la na data do vencimento (art. 28.º I). O sacador pode criar a Letra a favor ou à ordem de um terceiro ( toma‑ dor ) (art. 1.º, 6). Todavia, como também se referiu, ao longo do século passado vulgarizou‑se o saque à sua ordem (art. 3.º I); significando isso que a entrada em circulação do título (a colocação deste na circulação cambiária que lhe própria – cfr. os arts. 11.ºss) requer, neste caso, um subsequente endosso. Tal como no cheque à ordem, o sacador, necessariamente, e os endos‑ santes, em princípio, são legalmente garantes do pagamento pontual da Letra pelo sacado – aceitante ou não – no vencimento (arts. 9.º I e 15.º I)^15. Podendo a tais garantias acrescer garantias voluntárias, dos avalistas (art. 30.º I). Por conseguinte, se o resultado garantido e eventualmente «prome‑ tido» pelo sacado ‑aceitante – ou seja, o cumprimento pontual por este da ordem de pagar no vencimento –, não se vier a verificar, todos são legalmente responsáveis por essa ocorrência, isto é, solidariamente obri‑ gados de regresso perante o portador; via de regra desde que este faça provar atempadamente mediante protesto esse facto (arts. 43.ºss e 53.º I).

(^15) A ideia do sacador e dos endossantes como garantes «ex lege» do resultado do pagamento da Letra (mas vendo‑se a garantia como uma obrigação) aparece já em liEbE, Die Allgemenine DWO (1848), cit., p. XXXV, 61 e 92. Para uma concepção não obrigacional das garantias em causa – embora a eventual e anómala não produção do resultado garantido converta a respectiva posição de garante numa obrigação de regresso –, cfr. Paulo sEndin/Evaristo MEndEs, A natureza do aval e a questão da necessidade de protesto para accionar o avalista do aceitante , Coimbra (Almedina) 1991, p. 39ss/43ss, 96ss, e Evaristo MEndEs , «O actual sistema de tutela da fé pública do cheque», DJ XIII (1999)/1, p. 205s, 209s (a respeito do cheque).

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e sem fraude, paga a portador cartularmente legitimado, colocando‑o ao abrigo sobretudo de uma eventual falta de legitimidade material desse portador (art. 40.º III). Decorre do exposto que o portador legítimo e cartularmente legitimado de uma letra de câmbio é beneficiário de uma ordem de pagamento , em princípio por conta do sacador , ordem essa eventualmente aceite pelo sacado seu destinatário (a que corresponde então um direito de crédito sobre ele) e cujo acatamento ou bom fim – pagamento pontual pelo sacado no vencimento – é legalmente garantido pelo sacador e, em regra, pelos endossantes, a que podem acrescer garantias voluntárias de avalistas; de tal modo que, se tal resultado não se produzir e isso se fizer comprovar mediante protesto, ficará constituída a seu favor uma relação obrigacional solidária, dita de regresso , em princípio contra todos esses subscritores 17. Podendo o correspondente crédito 18 ser accionado, nos termos gerais, por via declarativa e/ou executiva^19.^20

3.2. Como salienta o Prof. sEndin, o regresso é um sucedâneo ou subs‑ tituto jurídico‑obrigacional do pagamento pontual que faltou. Respeita à minoria de Letras que não são pagas no vencimento. Por conseguinte, o título não cumpre através dele a sua função socioeconómica típica; nem nele reside a chave da sua compreensão. A anomalia respeitante a essa minoria de Letras não pode ser o principal elemento caracterizador do

(^17) Ficam de fora os incapazes, quem tiver sido desapossado do título já por si assinado (questão controvertida na doutrina, mas quem já sofreu a perda do «direito cambiário» titulado não deve, ainda, responder por uma Letra que surge na circulação com a sua assinatura mas contra a sua vontade), etc., funcionando então o aludido princípio da independência recíproca (art. 7.º) e o da responsabilidade do eventual representante sem poderes (art. 8.º); cfr. «infra», no texto. (^18) Autónomo no que respeita a excepções «ex causa», extracambiárias, nos termos do art. 17.º (^19) Cfr. os arts. 2.º.2 e 45.º do CPC. (^20) Para a compreensão da concepção e do regime legal da Letra, importa ainda ter presente que a mesma pode ser emitida em branco (art. 10.º) e circular como tal cambia‑ riamente (problema controvertido), pode ser sacada num ou em mais que um exemplares (ou vias) (arts. 64.ºss), com eventual «multiplicação anómala», podem dela extrair‑se cópias (arts. 67.ºs), pode envolver uma folha anexa e a aposição na mesma de endossos (art. 13.º), sinal da antiga extensa cadeia de transmissões, é susceptível de ser aceite e/ou paga por intervenção (arts. 55.ºss), instituto revelador sobretudo da importância para os subscritores (todos ou alguns) de não serem afectados pelo seu descrédito (cfr. a seguir, no texto), etc.

26 EVARISTO MENDES

título em geral, como, com mais ou menos variantes e matizes, entende a doutrina dominante. Na verdade, no cerne da Letra está o crédito pessoal [comercial] dos respectivos subscritores, com natural saliência para o sacador, o seu criador; não o descrédito que afecta as Letras que caem no regresso. É nessa base que ela é emitida; aí reside a explicação para a sua circula‑ ção como instrumento de crédito e moeda de troca; o protesto, para além de meio de prova da falta de pagamento pontual do título (o verdadeiro pagamento da Letra ), é um sinal de descrédito que afecta os respecti‑ vos subscritores; as próprias garantias legais desse pagamento pontual fundamentam‑se tipicamente em objectivas manifestações de confiança de que o mesmo ocorrerá (ainda que implícitas ou «pressupostas»); etc.^21 Noutros termos, a Letra é um título que tem uma circulação normal até ao vencimento e, via de regra, aí morre com o respectivo pagamento. O regresso é apenas uma eventualidade anómala , que ocorre num número limitado de casos. Se não fosse assim, o título não apresentaria interesse comercial e portanto viabilidade prática. Efectivamente, afirma aquele comercialista, quem saca uma Letra – dando a alguém, através de um título com a palavra Letra, uma ordem de pagar certo montante nela inscrito, a si mesmo ou à sua ordem (ou a um terceiro ou à ordem deste), em princípio por sua conta, à vista ou na data de vencimento nela indicada – é porque confia no seu paga‑ mento pontual pelo destinatário da ordem (sacado) nesse vencimento; caso contrário, estaria a negar o próprio «crédito cambiário» que cria. E o mesmo sucede com os respectivos endossantes e avalistas; quer o título esteja aceite – que confirma antecipadamente o bem fundado do saque – quer não. Procurando sintetizar o pensamento do mesmo autor, ainda que indo um pouco além dos respectivos textos, pode afirmar‑se que isso é assim, designadamente, por três razões. A saber: (i) o sacador é em geral um comerciante, ou seja uma pessoa que supostamente se comporta – ao criar o título e, sobretudo, quando o lança na circulação – como uma pessoa economicamente racional; só o faz, portanto, se tiver razões para crer que o sacado o pagará com pontualidade; (ii) está em causa um título que,

(^21) Importa notar, no entanto, que as garantias em causa estão ligadas à subscrição e utilização negocial da Letra pelo sacador e endossantes, excluindo‑se nomeadamente os incapazes e os desapossados do título, mas não, por exemplo, um desapossador que o endossou, mesmo não confiando (subjectivamente) no pagamento pontual; cfr. «infra», no texto.

28 EVARISTO MENDES

I

Função e modus operandi da Letra de câmbio

4. Observa o Prof. Sendin que a LULL tem subjacente a função que a Letra assumiu predominantemente a partir do séc. XIX: a de instrumento de criação e circulação , nacional e internacional, de crédito , servindo, ainda, esse instrumento, simultaneamente, em cada momento da sua circulação, como meio de pagamento. No auge da projecção económica que a mesma atingiu no século XIX, funcionava como instrumento de concessão recíproca de crédito e moeda de troca entre os comerciantes.

4.1. Na verdade, ao sacar a Letra, o sacador cria um título que se espera vir a ser convertido em dinheiro no vencimento, com o pagamento do montante nele indicado pelo sacado. Ou seja, cria desse modo, como assinalou EinErt, um valor de crédito , que se manifesta, por um lado, num valor final (decorrente desse pagamento pelo sacado no vencimento) e, por outro lado, num valor actual realizável imediatamente através de endosso 24. O endossado reconhece à Letra este valor económico actual

  • considerando‑se desde logo «pago», no âmbito da relação de negó‑ cios subjacente ao endosso, através do recebimento do título – porque, atendendo à confiança que lhe merece o sacador/endossante, confia que o título vai ser honrado pelo sacado no vencimento. E assim se passam as coisas, sucessivamente, em cada novo endosso, até ao vencimento, altura em que, com o pagamento do sacado, os pagamentos anteriores envolvidos em cada endosso são definitivamente confirmados. Explicitando melhor, a Letra tem ou representa um valor «de crédito» num duplo sentido: este só vai ser pago no vencimento; e assenta, antes de tudo, no crédito de quem a cria (perante o seu tomador ou primeiro endossado). Tal valor de crédito, fundado na confiança que merece o crédito do sacador, é também um valor actual, negociável (por endosso), equiparando‑se nessa medida a dinheiro (funciona como seu «substituto»).

de Câmbio, Lisboa (UCP) 1980, bem como do conhecimento directo desse pensamento, pelas suas aulas e em virtude de muitos anos de colaboração académica e da realização de trabalhos em comum. A exposição apresentada tem, naturalmente, como preocupação primeira o respeito pelo pensamento do autor e utiliza quadros conceptuais fundamentais do mesmo, mas sem seguir servilmente a sua maneira de o expressar. (^24) Para EinErt, um valor de crédito criado por acto unilateral do sacador e dirigido ao público, sendo recebido pelo portador, na circulação do título (um título funcionalmente circulante), livre de excepções. Cfr. Das Wechselrecht (1839), cit., p. 28s, 51s, 205 e 314, 83ss, 86s, 90s, 98 e 134.

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Em atenção a esse crédito do sacador/endossante, o seu tomador/endos‑ sado confia que a Letra será paga no vencimento e, por isso, a recebe em vez de dinheiro. Com posteriores endossos, o processo repete‑se e a «cadeia de crédito» vai‑se reforçando, com o crédito dos endossantes, a que pode acrescer o de eventuais avalistas (o crédito da Letra vai cres‑ cendo, havendo uma formação sucessiva do valor negocial do título); e, com esse reforço, intensifica‑se também a confiança no pagamento pontual, pelo sacado, no vencimento. Este pagamento, a final, confirma esse valor actual, que à Letra é reconhecido nas transacções da mesma.^25 Neste figurino da Letra – que permitia ou potenciava uma conces‑ são recíproca e generalizada de crédito entre comerciantes e em que o título funcionava nas transacções entre eles como substituto do dinheiro (moeda de troca) – ela surgia como um título circulante por excelência , envolvendo uma extensa cadeia de endossos. Inclusive, apesar do seu normalmente curto período de vida, a cadeia era por vezes tão extensa, que foi preciso criar um documento complementar (anexo) para a sua documentação (art. 13.º II) e também para a aposição dos avales (art. 31.º I).

4.2. Porém, entretanto, o uso da Letra estendeu‑se aos não comercian‑ tes e, sobretudo depois da 1.ª Grande Guerra, o crédito especializou‑se, centrando‑se a sua concessão nos bancos e desenvolvendo‑se, em particular, o desconto bancário das Letras^26. Com isso, paralelamente, a cadeia de

(^25) Vendo as coisas mais de perto, poderá afirmar‑se que estamos perante um ins‑ trumento de juridificação e mobilização do crédito comercial do sacador – que cria e utiliza a letra como moeda de troca, acreditando no seu pagamento pontual pelo sacado, em regra em virtude de uma específica mas distinta relação credora subjacente que detém com este (relação de provisão) e da confiança que ele lhe merece –, bem como de eventuais endossantes e avalistas. Noutros termos, está em causa um instrumento de , com base nesse crédito pessoal firmado no mundo dos negócios, criação formal de um valor de crédito mobilizável , capaz de funcionar como «moeda» de troca; valor esse primacialmente representado pela assinatura do sacador e posteriormente reforçado pela dos endossantes (que o mobilizam) e possíveis avalistas. Servindo o eventual aceite para confirmar antecipadamente o bem fundado do saque, ou seja, que o título criado pelo sacador é digno de crédito; e representando o pagamento a sua confirmação definitiva. Nessa medida, a posição jurídica do portador constitui um «direito‑valor» e o título é um título‑valor. (^26) Sobre a antiga concessão de crédito por banqueiros através do contrato de câm‑ bio e da Letra como seu instrumento de execução, cfr. P aulo sEndin, «Usura. Letra de câmbio e Direito Comercial», em Nos 20 anos do CSC, Homenagem aos Profs. Doutores

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mental da uniformidade, em todos os países em que vigora. Assim, sem prejuízo das reservas permitidas, nesse domínio, está excluído o recurso aos direitos nacionais. Todavia, a LU tem um âmbito de aplicação limitado; aquele em que foi possível a uniformização. Para além dele, desde que compatíveis , podem, em cada país, subsistir ou acrescentar‑se regras nacionais. É o que acontece, entre nós, com o direito especial extracambiário de saque, previsto no art. 284.º do CCom, como se assinalou. Mas outros aspectos se mostram relevantes. Assim, as transmissões de direito comum (cfr. adiante), a capacidade e representação dos subscrito‑ res, o conceito de falsidade, o leque das excepções pessoais admitidas e sua configuração jurídica, a matéria das relações causais em geral, etc., são assunto do domínio dos direitos nacionais. Ainda no que respeita à interpretação da Lei, realça‑se que esta deve ser entendida no seu todo significante, articulado e funcional, atendendo a todos os artigos e institutos que a compõem – todos e cada um, sem excepção, mesmo aqueles que perderam importância prática (com sucede com as vias e a garantia da intervenção) –, à respectiva valoração funda‑ mental e unitária e à regulamentação da realidade que traduzem. É nesta base que se propõe uma compreensão própria do regime nela contido – fiel à função socioeconómica típica e ao modelo social e económico da Letra que presidiu à elaboração da Lei, bem como às correspondentes concepções dominantes nos meios interessados (ou seja, dos comerciantes do séc. XIX e início do séc. XX) – em contraposição às construções teó‑ ricas que têm prevalecido, fundadas em dogmas, razões e esquemas que em boa medida sacrificam ou se substituem à lei e à realidade regulada.^28

6. A ideia essencial é esta^29 : (i) a Letra é um direito pecuniário de certo montante, criado por determinada pessoa, o sacador , através de um documento com a palavra Letra (direito titulado , portanto), montante que é para ser pago, diferidamente, por outra pessoa, o sacado , numa data de vencimento; (ii) o seu típico e originário valor patrimonial (transaccionável) reside – não em qualquer dever de prestar correspondente (a aceitação ante‑ cipada da ordem de pagamento que o sacador dirige ao sacado é meramente

(^28) Cfr. P aulo sEndin, Letra de câmbio I (1980), p. 5s. (^29) Cfr., nomeadamente, «Letra de Câmbio»/ Polis (1999), cit., cols. 112ss, 1117ss, 1122ss, e, mais desenvolvidamente, Letra de câmbio I (1980), p. 5ss. Veja‑se também P aulo sEndin /Evaristo MEndEs, A natureza do aval (1991), cit., p. 95ss.

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eventual e, portanto, eventual é também a respectiva obrigação) – mas na confiança que o sacador deposita no pagamento pontual pelo sacado (logo, confiança neste), e o seu reconhecimento no tráfico jurídico‑negocial como valor actual «de troca» assenta inicialmente no crédito pessoal do sacador perante o tomador ou, no saque à ordem do sacador, perante o seu endossado. Neste sentido, o «direito cambiário», no seu valor patri‑ monial – ou seja, no valor patrimonial que lhe está tipicamente associado –, é expressão da confiança e do crédito pessoal do sacador e, como se observará, dos demais signatários do título. O sacador saca a Letra, criando o direito, porque confia no seu pagamento pontual pelo sacado; e obtém o seu reconhecimento como valor de troca devido ao crédito de que goza junto do tomador ou endossado. O mesmo sucede, mutatis mutandis , com os endossantes subsequentes, no que respeita aos seus endossos. Sendo o pagamento diferido^30 , estamos perante um direito de crédito. Todavia, «o singular e característico» deste «direito de crédito cambiário», criado pelo saque, está em que, ao contrário do entendimento dominante, ele não tem um «dever de prestar correlativo»; nem mesmo quando o sacado haja nele aposto o seu aceite. O respectivo valor patrimonial não reside aí; funda‑se no saque e nos endossos – na inerente confiança depositada pelos subscritores de tais operações no pagamento pontual pelo sacado^31 , a que podem juntar‑se avalistas – e, enquanto valor transaccio‑ nável (ou valor actual de troca), no crédito pessoal desses subscritores. Dito de outro modo, em conformidade com a aludida função e a carac‑ terização sumária que lhe corresponde, a Letra documenta uma posição jurídica qualificável como «direito de crédito» – o direito de crédito cambiário. Sendo este «o direito de apresentar a letra, no seu vencimento, a pagamento ao sacado», «ficando [o sacador e] cada endossante, no seu crédito pessoal, como garante e responsável desse pagamento pontual» 32.

(^30) E expectável por parte de quem recebe a Letra como valor de troca (potenciais adquirentes) na medida do crédito e correspondente confiança pessoal que mereçam o sacador, eventuais endossantes e avalistas, confirmada ou não antecipadamente pelo sacado com o seu aceite. (^31) Confiança essa, antes de mais, do sacador, sucessiva e encadeadamente mas de forma autónoma manifestada em cada operação por este mesmo e pelos endossantes aos respectivos tomador e/ou endossados. (^32) Esta caracterização constante das expressões entre aspas foi retirada da Introdução inserida no texto destinado a uma segunda edição da Letra de Câmbio , embora a ideia já conste da primeira edição. Retira‑se daí que o chamado «direito de crédito cambiário» se reconduz, no essencial, à posição jurídica de beneficiário da ordem de pagamento dada através do título, cujo acatamento final e pontual pelo seu destinatário (sacado) se