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LEI E GRAÇA: UMA VISÃO REFORMADA, Manuais, Projetos, Pesquisas de Ética

Lei e Graça: Uma visão reformada. Mauro Fernando Meister*. É quase um paradigma para os cristãos modernos associar o Antigo Testamento à Lei e o.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

EmiliaCuca
EmiliaCuca 🇧🇷

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FIDES REFORMATA 4/2 (1999)
Lei e Graça: Uma visão reformada
Mauro Fernando Meister*
É quase um paradigma para os cristãos modernos associar o Antigo Testamento à Lei e o
Novo Testamento à Graça. Em várias oportunidades propus a estudantes de seminário e
na escola dominical estabelecer o relacionamento entre os termos e, invariavelmente, a
resposta tem sido a seguinte relação:
LEI — Antigo Testamento
GRAÇA — Novo Testamento
I. Estamos sob a Lei ou sob a graça?
Esse questionamento reflete um entendimento confuso do ensino bíblico acerca da lei e
da graça de Deus. Muitos associam a lei como um elemento pertencente exclusivamente
ao período do Antigo Testamento e a graça como um elemento neotestamentário. Isso é
muitas vezes o fruto do estudo apressado de textos como:
...sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé
em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados
pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado
(Gálatas 2.16).
Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da
graça (Romanos 6.14).
E, de fato, uma leitura isolada dos textos acima pode levar o leitor a entender lei e graça
como um binômio de oposição. Lei e graça parecem opostos, sem reconciliação — o
cristão está debaixo da graça e conseqüentemente não tem qualquer relação com a lei.
No entanto, essa leitura é falaciosa. O entendimento isolado desses versos leva a uma
antiga heresia chamada antinomismo, a negação da lei em função da graça. Nessa visão,
a lei não tem qualquer papel a exercer sobre a vida do cristão. O coração do cristão
torna-se o seu guia e a lei se torna dispensável.1 O oposto dessa posição é o legalismo ou
moralismo, que é a tendência de enfatizar a lei em detrimento da graça (neonomismo).
Nesse caso, a obediência não é um fruto da graça de Deus, uma evidência da fé, mas
uma tentativa de agradar a Deus e de se adquirir mérito diante dele. Exatamente contra
essa idéia é que a Reforma Protestante lutou, apresentando como uma de suas principais
ênfases a sola gratia.
No século XVI, os católicos acusavam os reformadores de antinomistas, de serem
contrários à lei de Deus. Até mesmo o grande reformador Martinho Lutero expressou
preocupação quanto a alguns de seus seguidores que, em seu zelo de proclamar a graça
por tanto tempo desprezada pela Igreja, acabavam por desprezar a Lei. Desde a reforma
têm aparecido movimentos enfatizando um ou outro desses aspectos, lei ou graça,
sempre de forma excludente. Um dos mais recentes movimentos nessa linha, enfatizando
a graça em detrimento da lei, é o dispensacionalismo. Essa forma de abordagem surgiu
no século XIX
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FIDES REFORMATA 4/2 (1999)

Lei e Graça: Uma visão reformada

Mauro Fernando Meister*

É quase um paradigma para os cristãos modernos associar o Antigo Testamento à Lei e o Novo Testamento à Graça. Em várias oportunidades propus a estudantes de seminário e na escola dominical estabelecer o relacionamento entre os termos e, invariavelmente, a resposta tem sido a seguinte relação:

LEI — Antigo Testamento

GRAÇA — Novo Testamento

I. Estamos sob a Lei ou sob a graça?

Esse questionamento reflete um entendimento confuso do ensino bíblico acerca da lei e da graça de Deus. Muitos associam a lei como um elemento pertencente exclusivamente ao período do Antigo Testamento e a graça como um elemento neotestamentário. Isso é muitas vezes o fruto do estudo apressado de textos como:

...sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado (Gálatas 2.16).

Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da graça (Romanos 6.14).

E, de fato, uma leitura isolada dos textos acima pode levar o leitor a entender lei e graça como um binômio de oposição. Lei e graça parecem opostos, sem reconciliação — o cristão está debaixo da graça e conseqüentemente não tem qualquer relação com a lei. No entanto, essa leitura é falaciosa. O entendimento isolado desses versos leva a uma antiga heresia chamada antinomismo, a negação da lei em função da graça. Nessa visão, a lei não tem qualquer papel a exercer sobre a vida do cristão. O coração do cristão torna-se o seu guia e a lei se torna dispensável.^1 O oposto dessa posição é o legalismo ou moralismo, que é a tendência de enfatizar a lei em detrimento da graça (neonomismo). Nesse caso, a obediência não é um fruto da graça de Deus, uma evidência da fé, mas uma tentativa de agradar a Deus e de se adquirir mérito diante dele. Exatamente contra essa idéia é que a Reforma Protestante lutou, apresentando como uma de suas principais ênfases a sola gratia.

No século XVI, os católicos acusavam os reformadores de antinomistas, de serem contrários à lei de Deus. Até mesmo o grande reformador Martinho Lutero expressou preocupação quanto a alguns de seus seguidores que, em seu zelo de proclamar a graça por tanto tempo desprezada pela Igreja, acabavam por desprezar a Lei. Desde a reforma têm aparecido movimentos enfatizando um ou outro desses aspectos, lei ou graça, sempre de forma excludente. Um dos mais recentes movimentos nessa linha, enfatizando a graça em detrimento da lei, é o dispensacionalismo. Essa forma de abordagem surgiu no século XIX, caracterizando a lei como a forma de salvação no período mosaico e o

evangelho como a forma de salvação na dispensação da igreja. Esse é, possivelmente, o movimento que mais influência exerce atualmente na interpretação do papel da lei e da graça entre os evangélicos ao redor do mundo.

Em uma direção oposta, outro grande movimento foi iniciado por Karl Barth, em seu livro God, Grace and Gospel , onde argüi por uma unidade básica entre lei e graça, direcionando seu pensamento para um novo moralismo.^2 Para termos uma boa idéia de como o debate ainda é atual, em 1993 foi publicado o livro Five Views on Law and Gospel , da coleção Counterpoints, no qual cinco escritores evangélicos contemporâneos expressam diferentes pontos de vista sobre a relação entre a lei e o evangelho (graça).^3 Sem sombra de dúvida, o assunto ainda está muito longe de apresentar um consenso entre os evangélicos.

As implicações da forma como entendemos a relação entre lei e graça vão muito além do aspecto puramente intelectual. Esse entendimento vai, na verdade, determinar toda a forma como alguém enxerga a vida cristã e que tipo de ética esse cristão irá assumir em sua caminhada. John Hesselink, um estudioso sobre a relação entre lei e graça, exemplifica que, na década de 1960, os cristãos proponentes da ética situacionista se levantaram contra leis, regras e princípios gerais, propondo uma nova moralidade.^4 Esse movimento propõe que a ética das Escrituras não é absoluta, mas depende do contexto. Nem mesmo a lei moral de Deus é absoluta; ela depende da situação. Essa proposta surgiu e se desenvolveu dentro do cristianismo tradicional, alcançando seguidores de todas as bandeiras denominacionais, praticamente sem restrições. A lei não tem mais qualquer papel determinante na ética cristã; o que determina a ética cristã é o “princípio do amor,” conclui o movimento. A conseqüência dessa conclusão é que a graça suplanta a lei. As decisões éticas devem ser tomadas levando em consideração o princípio do amor. Tome-se por exemplo a questão do aborto no caso de estupro. Aprová-lo nessas circunstâncias é um ato de amor baseado no princípio do amor à mãe que foi estuprada. Ou mesmo a questão da pena de morte. Ela não se encaixa no princípio do amor ao próximo e, portanto, não pode ser uma prática cristã. Até mesmo situações como o divórcio passam a ser aceitáveis pelo princípio do amor. A separação de casais passa a ser aceitável pelo mesmo princípio. O mesmo acontece com o homossexualismo. Aceitar o homossexualismo passa a ser um ato de amor, e portanto, essa prática não pode ser considerada como pecado, ou, se assim considerada, é um pecado aceitável.

Mas seria essa a verdadeira conclusão do cristianismo e o verdadeiro ensino das Escrituras sobre a lei? É isso que o estudo das Escrituras e o cristianismo histórico nos

ensinam? Nas páginas a seguir avaliaremos o pensamento de Calvino a respeito dessa questão e a aplicação calvinista refletida na Confissão de Fé de Westminster (CFW).

II. O Uso da Lei

Para entendermos bem o uso da lei precisamos entender o que são o pacto das obras e o pacto da graça. Assim, é prudente começarmos por esclarecer o que são esses pactos e qual o conceito de lei que está envolvido na questão.

Pacto das Obras e Pacto da Graça^5 é a terminologia usada pela Confissão de Fé de Westminster^6 para explicar a forma de relacionamento adotada por Deus para com as suas criaturas, os seres humanos. Mais do que isso, essa terminologia reflete o sistema teológico adotado pelos reformados, conhecido como teologia federal.^7 De forma bem resumida, podemos dizer que o pacto das obras é o pacto operante antes da queda e do pecado. Adão e Eva viveram originalmente debaixo desse pacto e sua vida dependia da

Testamento; por exemplo, prescreve os sacrifícios e todo o simbolismo cerimonial.

(c) Lei Moral – representa a vontade de Deus para o ser humano, no que diz respeito ao seu comportamento e aos seus principais deveres.

A. Toda a Lei é aplicável aos nossos dias?

Quanto à aplicação da Lei, devemos exercitar a seguinte compreensão:

(a) A Lei Civil tinha a finalidade de regular a sociedade civil do estado teocrático de Israel. Como tal, não é aplicável normativamente em nossa sociedade. Os sabatistas erram ao querer aplicar parte dela, sendo incoerentes, pois não conseguem aplicá-la, nem impingi-la, em sua totalidade.

(b) A Lei Religiosa tinha a finalidade de imprimir nos homens a santidade de Deus e apontar para o Messias, Cristo, fora do qual não há esperança. Como tal, foi cumprida com sua vinda. Os sabatistas erram ao querer aplicar parte da mesma nos dias de hoje e ao mesclá-la com a Lei Civil.

(c) A Lei Moral tem a finalidade de deixar bem claro ao homem os seus deveres, revelando suas carências e auxiliando-o a discernir entre o bem e o mal. Como tal, é aplicável em todas as épocas e ocasiões. Os sabatistas acertam ao considerá-la válida, porém erram ao confundi-la e ao mesclá-la com as outras duas, prescrevendo um aplicação confusa e desconexa.^9

Assim sendo, é fundamental que, ao ler o texto bíblico, saibamos identificar a que tipo de lei o texto se refere e conhecer, então, a aplicabilidade dessa lei ao nosso contexto. As

leis civis e cerimoniais de Israel não têm um caráter normativo para o povo de Deus em nossos dias, ainda que possam ter outra função como, por exemplo, ensinar-nos

princípios gerais sobre a justiça de Deus. Portanto, a lei que permanece “vigente” em nossa e em todas as épocas é a lei moral de Deus. Ela valeu para Adão assim como vale

para nós hoje. Isto implica que estamos, hoje, debaixo da lei?

B. Estamos sob a Lei ou sob a Graça de Deus?

Muitas interpretações erradas podem resultar de um entendimento falho das declarações bíblicas de que “não estamos debaixo da lei, e sim da graça” (Romanos 6.14). Se considerarmos que os três aspectos da lei de Deus apresentados acima são distinções bíblicas, podemos afirmar:

(a) Não estamos sob a Lei Civil de Israel , mas sob o período da graça de Deus, em que o evangelho atinge todos os povos, raças, tribos e nações.

(b) Não estamos sob a Lei Religiosa de Israel , que apontava para o Messias, foi cumprida em Cristo, e não nos prende sob nenhuma de suas ordenanças cerimoniais, uma vez que estamos sob a graça do evangelho de Cristo, com acesso direto ao trono, pelo seu Santo Espírito, sem a

intermediação dos sacerdotes.

(c) Não estamos sob a condenação da Lei Moral de Deus , se fomos resgatados pelo seu sangue, e nos achamos cobertos por sua graça. Não estamos, portanto, sob a lei, mas sob a graça de Deus, nesses sentidos.

Entretanto...

(a) Estamos sob a Lei Moral de Deus , no sentido de que ela continua representando a soma de nossos deveres e obrigações para com Deus e para com o nosso semelhante.

(b) Estamos sob a Lei Moral de Deus , no sentido de que ela, resumida nos Dez Mandamentos, representa o caminho traçado por Deus no processo de santificação efetivado pelo Espírito Santo em nossa pessoa (João 14.15). Nos dois últimos aspectos, a própria Lei Moral de Deus é uma expressão de sua graça, representando a revelação objetiva e proposicional de sua vontade.^10

IV. Os Três usos da Lei^11

Para esclarecer a função da lei de Deus dada por intermédio de Moisés^12 nas diferentes épocas da revelação, Calvino usou a seguinte terminologia:

A. O Primeiro Uso da Lei: Usus Theologicus

É a função da lei que revela e torna ainda maior o pecado humano. Segue o ensino de Paulo em Romanos 3.20 e 5.20:

...visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado.

Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o pecado, superabundou a graça.^13

Calvino aponta para esse papel da lei diante da realidade do homem caído. Sendo o pecado abundante, vivemos no tempo em que a lei exerce o “ministério da morte” (2 Co 3.7) e, por conseguinte, “opera a ira” (Rm 4.15).

Cabe aqui uma nota sobre a terminologia dos reformadores (especialmente Calvino) a respeito da lei. A palavra lei é usada em pelo menos dois sentidos distintos, que devem ser entendidos a partir do contexto. Em alguns casos o termo lei é usado como um sinônimo de Antigo Testamento, da mesma forma como Evangelho é usado como um sinônimo de Novo Testamento. Em outros contextos o termo lei é usado como uma categoria especial referente ao seu uso como categoria de comando, um mandamento direto expressando a vontade absoluta de Deus sobre alguma coisa, sem promessa. É dessa forma que Calvino interpreta a lei em 2 Co 3.7, Rm 4.15 e 8.15. Nesse sentido, o binômio que se confirma é o binômio Lei x Evangelho. O mandamento que não traz salvação versus a graça salvadora de Deus. Porém, não podemos esquecer que é o próprio Antigo Testamento que nos apresenta a promessa da salvação de Deus, a sua graça operante sobre os crentes da antiga dispensação.

SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.

Se a lei de Deus está impressa na mente e escrita no coração dos crentes, qual a função da lei escrita por Moisés? Ela é realmente necessária? Não basta um coração convertido, amoroso e cheio de compaixão para conhecer a vontade de Deus? A “lei do amor” e a consciência do cristão orientado pelo Espírito Santo não bastam? Não seria suficiente apenas termos a paz de Cristo como árbitro de nossos corações? (Cl 3.15).

Creio que não é bem assim. A lei, assim como no Éden, tem ainda um papel orientador para os cristãos. Embora eles sejam guiados pelo Espírito de Deus, vivendo e dependendo tão somente da sua maravilhosa graça, a “lei é o melhor instrumento mediante o qual melhor aprendam cada dia, e com certeza maior, qual seja a vontade de Deus, a que aspiram, e se lhes firme na compreensão.”^18 A paz de Cristo como o árbitro dos corações só é clara quando conhecemos com clareza a vontade de Deus expressa na sua lei. Deus expressa sua vontade na sua lei e essa se torna um prazer para o crente, não uma obrigação. Calvino exemplifica com a figura do servo que de todo o coração se empenha em servir o seu senhor, mas que, para ainda melhor servi-lo, precisa conhecer e entender mais plenamente aquele a quem serve. Assim, o crente, procurando melhor servir ao seu Senhor empenha-se em conhecer a sua vontade revelada de maneira clara e objetiva na lei.

A lei também serve como exortação para o crente. Ainda que convertidos ao Senhor, resta em nós a fraqueza da carne, que pode ser, no linguajar de Calvino, chicoteada pela lei, não permitindo que estejamos à mercê da inércia da mesma.

Vejamos alguns exemplos do relacionamento entre o crente do Antigo Testamento e o terceiro uso a lei. Primeiramente, podemos observar o prazer do salmista ao falar da lei no Salmo 19.7-14:

A lei do SENHOR é perfeita e restaura a alma; o testemunho do SENHOR é fiel e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do SENHOR é puro e ilumina os olhos. O temor do SENHOR é límpido e permanece para sempre; os juízos do SENHOR são verdadeiros e todos igualmente justos. São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais doces do que o mel e o destilar dos favos. Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, há grande recompensa. Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são ocultas. Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão. As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença, SENHOR, rocha minha e redentor meu.

Que princípio de morte opera nessa lei, segundo o salmista? Nenhum. Para o regenerado, o crente no Senhor, a lei é prazer, é desejável, inculca temor, restaura a alma e lhe dá sabedoria. Isso de alguma forma parece contradizer os ensinos do Novo Testamento. O terceiro uso da lei é claro para o salmista. A lei em si não faz nenhuma dessa coisas, mas para o coração regenerado ela traz prazer e alegria. Na lei o salmista reconhece a sua

rocha, o seu redentor, Jesus Cristo: “rocha minha e redentor meu.”

Observe também o Salmo 119.1-20:

Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do SENHOR. Bem-aventurados os que guardam as suas prescrições e o buscam de todo o coração; não praticam iniqüidade e andam nos seus caminhos. Tu ordenaste os teus mandamentos, para que os cumpramos à risca. Tomara sejam firmes os meus passos, para que eu observe os teus preceitos. Então, não terei de que me envergonhar, quando considerar em todos os teus mandamentos. Render-te-ei graças com integridade de coração, quando tiver aprendido os teus retos juízos. Cumprirei os teus decretos; não me desampares jamais. De que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho? Observando-o segundo a tua palavra. De todo o coração te busquei; não me deixes fugir aos teus mandamentos. Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti. Bendito és tu, SENHOR; ensina-me os teus preceitos. Com os lábios tenho narrado todos os juízos da tua boca. Mais me regozijo com o caminho dos teus testemunhos do que com todas as riquezas. Meditarei nos teus preceitos e às tuas veredas terei respeito. Terei prazer nos teus decretos; não me esquecerei da tua palavra. Sê generoso para com o teu servo, para que eu viva e observe a tua palavra. Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei. Sou peregrino na terra; não escondas de mim os teus mandamentos. Consumida está a minha alma por desejar, incessantemente, os teus juízos.

De onde vem esse desejo do salmista pelos juízos de Deus? Da lei que opera sobre o homem natural? Certamente que não. Mas para o homem regenerado a lei de Deus se torna objeto de desejo da alma. A lei é maravilhosa para aquele que tem os olhos abertos pelo Senhor. Amar a lei de Deus é ensino claro das Escrituras para os regenerados. Viver na lei de Deus é bênção para o cristão, para o salvo. Ela é o nosso orientador para melhor conhecermos a vontade do nosso Senhor e assim melhor servi-lo. Observe que o viver segundo a lei de Deus é considerado uma bem-aventurança, é como ter fome e sede de justiça.

Pergunto: O que seria do cristão sem a lei para orientá-lo? Como conheceria ele a vontade de Deus? (essa, aliás, é uma das perguntas mais freqüentes entre os crentes no seu dia-a-dia). Ele seria um perdido, buscando respostas em seu próprio coração, na igreja, no consenso eclesiástico, na autoridade de alguém que considerasse superior. Mas o crente tem a lei de Deus, expressando objetivamente qual é o desejo do Criador para a criatura, qual o desejo do Pai para seus filhos.

Mas essa visão da lei não nos traz de volta ao legalismo? Estamos então novamente debaixo da lei? Certamente que não. Para bem entendermos a posição bíblica expressa por Calvino sobre a lei no pacto da graça, precisamos entender também como ele relaciona Cristo e a Lei.

V. Cristo e a Lei

transgressores, ou restabelecendo sobre outras bases a possibilidade de cumprir aquilo que a lei requer. Cristo, em outras palavras, satisfez tudo o que a lei exigiu ou pode vir a exigir da humanidade. A justificação que estava associada à lei agora pertence completamente a Cristo.^20

Portanto, nossa obediência à lei não acontece e não pode acontecer sem Cristo. Tentar viver debaixo da lei, sem Cristo, é submeter-se à escravidão. Porém, obedecer à lei com Cristo é prazer e vida. Também, nesse sentido, Cristo é o fim da lei!

Conclusão

Como fica o aparente paradoxo inicial entre a Lei e Graça? Como corrigir essa visão distorcida? Mais uma vez creio que a visão correta da Confissão de Fé pode nos ajudar a entendê-lo:

Este pacto da graça é freqüentemente apresentado nas Escrituras pelo nome de Testamento, em referência à morte de Cristo, o testador, e à perdurável herança, com tudo o que lhe pertence, legada neste pacto.

Este pacto no tempo da lei não foi administrado como no tempo do Evangelho. Sob a lei foi administrado por promessas, profecias, sacrifícios, pela circuncisão, pelo cordeiro pascoal e outros tipos e ordenanças dadas ao povo judeu, prefigurando, tudo, Cristo que havia de vir; por aquele tempo essas coisas, pela operação do Espírito Santo, foram suficientes e eficazes para instruir e edificar os eleitos na fé do Messias prometido, por quem tinham plena remissão dos pecados e a vida eterna: essa dispensação chama-se o Velho Testamento.

Sob o Evangelho, quando foi manifestado Cristo, a substância, as ordenanças pelas quais este pacto é dispensado são a pregação da palavra e a administração dos sacramentos do batismo e da ceia do Senhor; por estas ordenanças, posto que poucas em número e administradas com maior simplicidade e menor glória externa, o pacto é manifestado com maior plenitude, evidência e eficácia espiritual, a todas as nações, aos judeus bem como aos gentios. É chamado o Novo Testamento. Não há, pois, dois pactos de graça diferentes em substância mas um e o mesmo sob várias dispensações (CFW 7.4–6).

Portanto, ao relacionarmos lei e graça devemos nos lembrar dos diversos aspectos e nuanças que estão envolvidos nesses termos.

Primeiramente, encontramos tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, a graça de Deus. Ele não reserva a sua graça somente para o período do Novo Testamento como muitos pensam. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento podemos ver Deus agindo graciosamente, salvando aqueles que crêem na promessa do Redentor. Assim Abel, Enoque, Noé, Abraão e todos os santos do Antigo Testamento foram remidos. Nenhum deles foi salvo por obediência à Lei, ainda que o Senhor requeresse deles, assim como requer de nós, que sejamos obedientes.

Em segundo lugar, a lei opera para vida ou morte no pacto das obras e somente para a morte no pacto da graça. No pacto das obras, por mérito, o homem poderia continuar vivo e merecer a “árvore da vida.” Portanto, pela obediência o homem viveria. No pacto da graça a lei opera para condenação do homem caído. Porque o homem já está condenado, ele não pode mais cumprir a lei e ela lhe serve para a morte.

Por último, o crente se beneficia da lei estando debaixo da obra redentora de Cristo. O

mérito de Cristo, sendo obediente à lei até as últimas conseqüências, compra-nos o benefício da salvação e a graça de conhecermos a vontade de Deus pela sua lei. O único modo de o ser humano ser salvo é submeter-se totalmente àquele que, por mérito, compra-lhe a salvação. Ainda aqui o homem é beneficiado pela Lei. Cristo a cumpre e declara justificado aquele por quem ele morre.

Portanto, o nosso gráfico do início deveria ser modificado para refletir a verdade bíblica sobre a Lei e a Graça de Deus:

Disp. do Antigo Testamento ------------ ------ Disp. do Novo Testamento

Obras Graça – obras como fruto da fé

Lei Evangelho – obediência à lei como conseqüência

Lei –justifica na

obediência

Lei – condena o não eleito

Usus Theologicus

“Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele” (João 14.21).

Notas

(^1) Sobre esse assunto, verificar o artigo W. R. Godfrey, “Law and Gospel,” em New

Dictionary of Theology , eds. Sinclair Ferguson e David F. Wright (Leicester: InterVarsity, 1988), 379.

(^2) Ibid , 380.

(^3) Greg Bahnsen et al., Five Views on Law and Gospel (Grand Rapids: Zondervan,

1996). Os cinco autores são Greg Bahnsen, Walter Kaiser Jr., Douglas Moo, Wayne Strickland e Willem VanGemeren.

(^4) John Hesselink, “Christ, the Law and the Christian: An Unexplored Aspect of the Third

Use of the Law in Calvin´s Theology,” em B. A. Gerrish, Refomatio Perennis (Pittsburgh: Pickwick Press, 1981), 12.

(^5) Calvino usa com certa freqüência a expressão pacto da graça [por exemplo,

Comentário à Sagrada Escritura: Romanos (São Paulo: Parácletos, 1997), 277; As Institutas , vol. 2, trad. Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985), 3.17.15; 4.13.6. (A numeração refere-se ao livro, capítulo e parágrafo respectivamente. A citação da página, quando necessária, vem após o parágrafo, separada por vírgula).