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Guias e Dicas
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Explorando os Ritos e Mitos dos Minkisi: Memória-Narrativa da Cozinha Sagrada de Mãe Dango, Notas de estudo de Energia

Uma memória-narrativa sobre a transmissão das danças ritualísticas de cada nkisi, com ênfase na filha-de-santo kamunjintanguelê e na cozinha sagrada de mãe dango. O texto descreve como kamunjintanguelê começou a cozinhar para o nkisi e a importância da observação e experiência corporificada no aprendizado das danças ritualísticas no candomblé angolano.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tucano15
Tucano15 🇧🇷

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
CÊNICAS
CRISTIANE MADEIRA MOTTA
“KUBANA NJILA DIÁ ANGOLA,
TRAVESSIAS DO ATOR-SACRÁRIO POR ENTRE AS
DIVINDADES ANGOLANAS”
(versão corrigida)
Dissertação de Mestrado apresentada à
Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo para obtenção de
título de Mestre em Artes Cênicas. Área de
Concentração: Pedagogia do Teatro. Linha
de Pesquisa: Formação do Artista Teatral
Orientadora: Prof. Dra. Elisabeth Silva Lopes
São Paulo, 2013
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Baixe Explorando os Ritos e Mitos dos Minkisi: Memória-Narrativa da Cozinha Sagrada de Mãe Dango e outras Notas de estudo em PDF para Energia, somente na Docsity!

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES

CÊNICAS

CRISTIANE MADEIRA MOTTA

“KUBANA NJILA DIÁ ANGOLA,

TRAVESSIAS DO ATOR-SACRÁRIO POR ENTRE AS

DIVINDADES ANGOLANAS”

(versão corrigida)

Dissertação de Mestrado apresentada à

Escola de Comunicação e Artes da

Universidade de São Paulo para obtenção de

título de Mestre em Artes Cênicas. Área de

Concentração: Pedagogia do Teatro. Linha

de Pesquisa: Formação do Artista Teatral

Orientadora: Prof. Dra. Elisabeth Silva Lopes

São Paulo, 2013

BANCA EXAMINADORA

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obrigada por tudo que me ensinou e que ainda ensinará. Obrigada por suas palavras tão sábias aqui compartilhadas, sempre me emociono quando as leio, pois sei que são a essência do que acredito ser o Candomblé. Peço a eterna benção de sua Mãe Kisimbi para mim e peço que minha Mãe Kayaia e Pai Kafunjê lhe cuidem sempre. Mukuiu, Mãe Dewá! Enfim, sou uma pessoa que tem mães na vida... Agradeço aos meus queridos, aos meus amores que acreditaram, aceitaram e me aguentaram nos sete meses de travessia desta pesquisa prática, que estiveram ali e dispuseram os seus finais de semana para buscar, investigar essas divindades e seus “corpos-fictícios” , e que abriram seus sacrários particulares para que os Minkisi pudessem ali se aquietar, ou não, mas que carregaram para o resto de suas vidas, pois afinal o corpo experienciou. Muito obrigada, Marilandi, Thiago, Josiane, Jhow, Micheli, Bruna, Anna Carolina, Renan e Kamunjin. Saibam que serei eternamente grata e sintam-se abençoados por todos os Minkisi, pois assim eu peço. Primeiro agradeço por ela ser minha irmã que eu amo e segundo por todos os socorros, as conversas, as palavras chiques, as dicas, informações, formações que me deu, Kayamikongojaunde, muito obrigada, muito obrigada, Pretinha!!! e agradeço também a todas as gargalhadas que demos juntas...que nossa Mãe Kayaia e Mãe Kayaia dia Mukongo nos abençoem sempre!!! Mukuiu! Muito obrigado àqueles que passaram por esta travessia, mas que a vida exigiu outros rumos, obrigada. Agradeço imensamente a todos os meus irmãos de santo que aqui contaram o que é cada Nkisi, quando contaram como eles próprios agem e são em suas vidas, meu muito obrigada, Mukuiu Madrinha Kafunjê, Pai Kasumbê, Pai Tamigê, Kota Nbomazaletambo, Mam’etu Tambocy, Kaianoximuzuengo, Kota Mulenjiminguandebá, Kota Nisalemekuitesa, Kota Kaya Zimbaguluka, Mikayasulendenji, Kanzelumuka, Tata Kiambujenkuemban, Katemugangeji, Kota Ngankakulusumbe, Katumutugangamin e a Mam'etu Tundaceli. Enfim, obrigada a toda minha família de santo, a minha comunidade, pois se entendo e sei o que é cada Nkisi é também porque convivo com cada um de vocês e assim compreendo um pouco mais o ser humano e este mundo que a gente vive. Obrigada por todas as rezas e torcidas de: “Vai dar tudo certo!” Obrigada, Lekuanditala por todas as fotos e acessórios de vídeo, e a Kanzelumuka por todos os livros emprestados. Mais uma vez obrigada a todos e mukuiu! Agradeço muito e muito a Sônia Azevedo, por fazer parte da minha vida e por todo incentivo dado para este mestrado. Minha querida Sônia Matamba, mui grata mais uma vez!!! E que Mãe Kayaia continue a te cuidar sempre. Obrigada, a minha querida Matamba Medusa Medeia descabelada Patrícia Zuppi, por todas as conversas e risadas compartilhadas, que os nossos ancestrais africanos e indígenas nos olhem e

nos cuidem sempre. Obrigada às minhas irmãzinhas de mestrado Vanessa Benites e Lívia Piccolo. Obrigado ao querido Professor Doutor John Cowart Dawsey por suas aulas de Antropologia e por suas preciosas observações no momento da qualificação. Obrigado ao querido Professor Doutor Matteo Bonfitto por lançar novos remapeamentos cognitivos em meus estudos. Agradeço muito ao Edélcio Mostaço pelo compartilhar de seu imenso conhecimento teórico sobre Teatro em suas aulas e que tantos novos horizontes me abriram. Leda Mara Rodrigues, muito obrigada por sua amizade. Obrigada a CAPES. Obrigado ao Fernandes e todos os funcionários do CAC/ECA/USP. Eu não posso deixar de agradecer à minha companheira de todas as horas, a gata mais linda do mundo, Rosca Pina Bausch. Enfim meu muito obrigado a todos!!!

ABSTRACT

This is a research that has as its axis the relationship between the rite and myth: the existent embodiment in this intersection and its relationship with the theater. From the acquisition of knowledge, study and practice of ritualistic dances and mythology of deities (minkisi) as archetypal figures from Candomble of Angola arises embodiment to be exploited by actor / performer in and for scene. This research is inserted into Anthropology of Performance, drawing upon studies by Schechner and Turner on the restoration of behavior through the transmission, manipulation and transformation of the rite and myth in the artistic process and also in the Anthropology of Embodiment with Thomas Csordas’ approach on the body which is the subject of the culture and not only the object of this culture. From the experience of “bodies-fictitious” arisen from deities emerges the Actor-Sacrarium , as a receptacle of this culture. The research was carried out in practice with a group of professional and amateur actors, in a conscious way and without religious trance, in which it was obtained the development record of efficient potencies in and for improvising from this acquired embodiment. "KEYWORDS": rite: myth: Anthropology: performance: embodiment: Candomble

SUMÁRIO

Introdução 11 Capítulo 1 - A Travessia de mim para o eu-mesma – a prática e o corpus desta experiência 16 1.1- Entre o rito e o mito: a corporeidade existente nesta interseção e sua relação com o teatro 26 1.1.1 – Antropologia da Performance – a restauração do comportamento por Turner e Schechner – transmissão, manipulação e a transformação do rito e do mito em processo artístico 38 Capítulo 2 – Candomblé – em um Terreiro de Angola 50 2.1 – Comunidade Tradicional de Terreiro de Matriz Africana Inzo Musambu Hongolo Menha – Casa do Arco-Íris e sua sacerdotisa Nengua dia Nkisi Edangoromeia- Mãe Dango 64 2.2 – Tradição Oral – Minkisi e seus arquétipos 67 Capítulo 3 – Campos de exploração: os ritos e os mitos dos Minkisi – uma atitude relegere 74 3.1 – Nkisi Mavambo – Dança e Mito do Senhor dos Caminhos 91 3.2 – Nkisi Hongolo – Dança e Mito do Senhor do Eterno Movimento e Grande Adivinho 95 3.3 – Nkisi Kafunjê – Dança e Mito do Senhor da Terra e Grande Curandeiro 100 3.4 - Nkisi Matamba – Dança e Mito da Senhora das Tempestades e Amor-Paixão 3.5 - Nkisi Kayaia – Dança e Mito da Senhora do Mar e Grande Mãe 113 Capítulo 4 – As divindades entre nós – O processo prático com o grupo de pesquisa. 121 4.1 – As percepções da corporeidade advindas dos campos de exploração 175 Conclusão 199 Referências e Fontes 202 Glossário 208 Anexo I 211 Anexo II 232 Anexo III 243

  • CAPÍTULO FIGURAS PÁGINAS
  • 01- Espetáculo Vertigens – Chrystiane Madeira –
  • 02- Espetáculo Vertigens - Chrystiane Madeira –
  • 03- Corpo-fictício Mavambo – Kamunjin Tanguelê – Espetáculo Gunzu –
  • 04- Nkisi Ndandalunda
  • 05- Nkisi Ndandalunda
  • 06- Nkisi Ndandalunda
  • 07- Nkisi Ndandalunda
  • CAPÍTULO
  • 08 – Mãe Dango
  • 09 – Mãe Dewá
  • 10 – interior do Inzo Musambu Hongolo Menha
  • 11 – Mãe Dango
  • CAPÍTULO
  • 12 – Nkisi Tawamin
  • 13 – Nkisi Hongolo /Angorô
  • 14 - Nkisi Kafunjê
  • 15 – Nkisi Kafunjê sendo banhado por pipocas
  • 16 – Nkisi Matamba
  • 17 – Nkisi Kayaia
  • CAPÍTULO
  • 18 – os atores-sacrários
  • 19 – corpo-fictício Mavambo
  • 20 - corpo-fictício Mavambo
  • 21 - corpo-fictício Mavambo
  • 22 – Nkisi Kafunjê
  • 23 - corpo-fictício Kafunjê
  • 24 - corpo-fictício Kafunjê
  • 25 – Nkisi Kafunjê
  • 26 - corpo-fictício Kafunjê
  • 27 – corpo-fictício Kafunjê
  • 28 – Nkisi Matamba
  • 29 - corpo-fictício Matamba
  • 30 – Nkisi Matamba
  • 31 - corpo-fictício Matamba
  • 32 – Nkisi Matamba
  • 33 - corpo-fictício Matamba
  • 34 – Nkisi Matamba
  • 35 – Nkisi Kayaia
  • 36 - corpo-fictício Kayaia
  • 37 - corpo-fictício Kayaia
  • 38 – Nkisi Kayaia
  • 39 – Nkisi Kayaia
  • 40 - corpo-fictício Kayaia
  • 41 – Nkisi Kayaia
  • 42 - corpo-fictício Kayaia
  • 43 - corpo-fictício Kayaia
  • 44 – Brincadeira de criança

INTRODUÇÃO

A nossa pesquisa tem como eixo de reflexão a produção de possíveis corporeidades deflagradas na interseção da fricção entre o rito e o mito das divindades do Candomblé de Angola e a relação destas com o Teatro. A ideia inicial se deu há vinte e um anos atrás e tem como fundamento a vivência/conhecimento que temos das divindades do Candomblé Angolano, bem como dos nossos conhecimentos teatrais e que deflagraram interessantes processos cênicos; alguns totalmente sem intenção e outros deliberadamente em busca de uma estética. Outro motivo que também incitou-nos a levar adiante esta dissertação foi a falta de pesquisa sistemática sobre o Candomblé de Angola. Os primeiros estudos das manifestações culturais afro- brasileiras realizados por Nina Rodrigues, Artur Ramos, Edson Carneiro e outros, apresentavam o Candomblé de Angola como uma cultura de categoria inferior ao originário de Ketu. Na década de 50, o sociólogo francês, Roger Bastide, afirmava que: “ os candomblés Nagô, Queto e Ijexá são os mais puros de todos ”^1 , e daí apresentaria apenas os estudos das contribuições culturais e manifestações religiosas destas nações. Porém, trazemos em nosso socorro para reparar o equívoco a fala de Kabengele Munanga: “Na visão dos brasileiros afrodescendentes de modo geral, consciente e inconscientemente, todos esses legados, ou bantos ou sudaneses, constituem o patrimônio histórico, sociopolítico, cultural e religioso com o qual eles constroem sua identidade. Hierarquizar as contribuições banta e sudanesa como tentaram fazer alguns estudiosos e ideólogos significa criar novas categorias de preconceito e “subracismo” na população negra brasileira que poderiam prejudicar seu processo de recuperação de uma única identidade étnica politicamente mobilizadora.”^2 Portanto, não propomos que esta ou aquela nação é a melhor entre todas, apenas usaremos o Candomblé de Angola como base para a pesquisa, pois foi nele que há vinte e um anos nos iniciamos em seus ritos sagrados e nos religamos à nossa essência e a nossa ancestralidade. Como não são muitas as referências acadêmicas em relação ao culto e até mesmo como sugestão do antropólogo Professor Doutor John Cowart Dawsey, que tivemos a honra de sua presença em nossa banca de qualificação, traremos o Candomblé de Angola pela fala dos membros de minha casa de iniciação, em entrevistas concedidas para nós, levando-nos a uma escrita performativa sobre esta (^1) BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo, Companhia Editora Nacional: 1978, p. (^2) MUNANGA, Kabenguele. Origens africanas do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Global: 2009, p. 95

Em relação ao mito, Carl Gustav Jung 5 o vê como uma narrativa tradicional com caráter explicativo e/ou simbólico relacionado a uma cultura e/ou religião. O mito procura explicar os principais acontecimentos da vida, fenômenos naturais, origens do homem e do mundo, através de deuses, semi-deuses e heróis. Estes são expressões particulares de arquétipos comuns a toda humanidade. Assim sendo, os mesmos são formas de expressão dos arquétipos, falando daquilo que é comum aos homens de todas as épocas; se referem ainda às realidades arquetípicas, isto é, situações que todo ser humano se depara ao longo da sua vida e vão além ao explicar, auxiliar e promover as transformações psíquicas tanto no nível individual como no coletivo de uma certa cultura. Toda mitologia se torna assim, uma forma de tomada de consciência; um elemento para nos identificar. Ao vivenciar-se as danças dos Minkisi, restauramos as expressões arquetípicas destes, o que permite-nos experienciar uma variedade de dinâmicas físicas, de personagens, de fluxo, de humores, de tônus muscular, de expressividades. Portanto esta pesquisa passa pelo corpo, pela tradição oral, pela prática das danças ritualísticas, pela aquisição do conhecimento dos mitos, pela observação de iniciados nos rituais e no dia-a-dia de uma comunidade de terreiro de religião de matriz afro-brasileira, o Inzo Musambu Hongolo Menha – Casa do Arco-íris. “Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é a tradição oral. A tradição oral pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas.” 6 É bom ressaltar que aqui não se faz presente o interesse pelo transe religioso ou a busca desta experiência e o conhecimento das divindades a partir deste. No Candomblé aprende-se e apreende-se grande parte do conhecimento através da observação ao mais velho e da convivência com a comunidade em que se está inserido e isto não requer o transe religioso, deixemos isto para aqueles que realmente queiram iniciar-se nos ritos afro -brasileiros. O trabalho com o grupo de pesquisa deste mestrado formado por nove atuantes, ocorreu em vinte e cinco encontros semanais por um período de quase sete meses. A performance das danças ritualísticas e o aprendizado destas, (reiterando mais uma vez), sempre foi realizado de forma consciente, sem a ocorrência de transe religioso. E, principalmente sendo nós iniciada nesta religião (^5) JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2006 (^6) VANSINA, V. A Tradição Oral e sua Metodologia In:UNESCO. História Geral da Africa I. Metodologia e Pré- História da África. São Paulo, Ática:Paris, UNESCO, 1982. p.

há vinte e um anos, temos o discernimento e a responsabilidade das consequências espirituais e até mesmo físicas de um indivíduo entrar em transe religioso e daí despertar a sua ancestralidade e com certeza não é esta a nossa busca na pesquisa. Neste processo criativo de corporeidade, na investigação deste comportamento restaurado, o nosso intento era de conduzir o ator a uma atuação enquanto experiência existencial, envolvendo assim, processos perceptivos, sensoriais, intuitivos e imaginativos, abrindo-lhe o que está fechado, o que lhe é latente, tendo como base os Minkisi (divindades) trabalhados em sua organicidade, criando possibilidades de encontrar diferentes gestos, modos de ressoar, de movimentar, de olhar, de entonações, de um “ corpo-fictício” para o ator. Queremos que o ator/performer e a corporeidade deflagrada a partir deste universo mítico angolano, adquira " um valor de instrumento potente, capaz de oferecer inúmeras possibilidades de resolução para os diferentes processos criativos ."^7 Trazemos para este trabalho o conceito de corporeidade^8 apresentado nos estudos de Thomas Csordas sobre uma Antropologia da Corporeidade e apresentada como um paradigma complementar à Antropologia Simbólica e Interpretativa. “Ao dirigir o seu foco para a experiência corpórea, Thomas Csordas defende que a abordagem da corporeidade está para além da representação e do discurso, sem, contudo, deixar de incluir essas dimensões. Essa é a pedra de toque da sua abordagem do corpo, que não é mais nem o corpo como mero instrumento, corpo significado, nem o corpo como lugar de inscrição (para fazermos uso da metáfora textualista) da cultura, mas é o corpo fenomênico, o corpo como locus da cultura, meio de sua experimentação do “fazer-se humano” em suas múltiplas possibilidades.^9 Portanto, quando Csordas afirma que “ o corpo é sujeito da cultura”^10 , e Schechner ao dizer que “performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias.”^11 , identificamos aí um ponto comum entre as referências para o desenvolvimento da nossa pesquisa. O primeiro capítulo narra algumas das nossas experiências cênicas e que nos levou a propor este projeto da maneira que se apresenta. Trataremos da relação entre o rito e o mito e na interseção destes, a existência de uma corporeidade e sua relação com o Teatro. A relação deste projeto com a Antropologia da Performance - a restauração do comportamento proposta por Schechner e Turner. (^7) BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Perspectiva, 2006 p. (^8) Usamos para o conceito de “embodiment” de Thomas Csordas, a tradução feita por José Secundino da Fonseca Erthon Secundino da Fonseca, com a revisão técnica de Carlos Alberto Steil e Luis Felipe Rosado Murillo, como “corporeidade”, apresentada na versão traduzida do livro: “Body/Meaning/Healing” (”Corpo/Significado/Cura” ) (^9) CSORDAS, Thomas. Corpo/Significado/Cura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p. 11 (^10) CSORDAS, Thomas. Corpo/Significado/Cura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p. 102 (^11) SCHECHNER, Richard. ” O que é performance?” , IN: O Percevejo , ano 11, n. 12: 25 a 50, 2003, p.

1 - A Travessia de Mim para o eu-mesma – a prática e o corpus desta experiência "A escrita é uma coisa, e o saber, outra, A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente."^14 A seguinte narração de algumas das nossas experiências cênicas se faz necessária para esclarecer a possibilidade deste projeto acadêmico como material que poderá proporcionar apoio e orientação para a formação do artista teatral. Usamos uma escrita na primeira pessoa, como uma forma performativa desta narrativa. A minha travessia de mim para o eu-mesma iniciou-se no inverno de 1992, mais precisamente em 12 de julho a 01 de agosto, onde interrompi minha vida social aos recém completos 25 anos, para principiar meu ato de “religare”^15 no rito de iniciação de uma religião de matriz africana, num Candomblé de Angola. “Existe na África, frequentemente, uma união estreita entre a mística da descida dos santos e os ritos da iniciação. É que o indivíduo não nasce completo; nasce por fragmentos sucessivos, por etapas, de modo que também não morre de uma só vez, quando dá o último suspiro; morre também pouco a pouco. O Homem só existe como homem quando possui um certo número de almas, toda uma estratificação psicológica interior, primeiro a alma do avô, depois o nome sagrado e secreto, a alma das selvas, e, por fim, o orixá que vive nele como uma espécie de anjo da guarda que o visitasse.”^16 Neste período de liminaridade, em que era um ser-transicional, fui iniciada às rezas, cantos e danças litúrgicas desta religião. Foram vinte e dois dias de total segregação “ do reino dos estados e estatutos culturalmente ordenados e definidos”^17 : de meu nome, de minhas roupas, de minha casa, da comunicação com o mundo externo, de minha posição social na sociedade campinense (nesta época morava em Campinas), dos amigos e tudo que não pertencesse àquele espaço/tempo sagrado, dentro do rumdembe ou camarinha ( quarto específico e sagrado para o recolhimento dos neófitos nos ritos de iniciação). “ A fase inicial de separação compreende o comportamento simbólico que se refere ao afastamento do indivíduo, ou do grupo, seja de um ponto fixo anterior, na estrutura social, ou de um conjunto de condições culturais (um “estado”); durante o período liminar, interveniente, o estado do sujeito ritual ( o (^14) Tierno Bokar Salif APUD: BÂ, Amadou Hampaté. A tradição viva. IN: KI-ZERBO, J (coord.) História Geral da África. Metodologia e Pré-história da África. São Paulo, UNESCO; Ática, 1980, p. 1 (^15) Religare conforme definição de Agamben: “o que liga e une o humano e o divino.” AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo, Boitempo Editorial: 2007, p. (^16) BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo, Editora Perspectiva: 1973, p. (^17) TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do ritual Ndembu. Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense: 2005, p.

“passageiro”) é ambíguo; ele percorre um reino que tem poucos ou nenhum dos atributos dos estados passado ou vindouro; na terceira fase a passagem é consumada.”^18 Ao retornar para o “ reino dos estados e estatutos culturalmente ordenados e definidos ” (após o todo que foi suspenso nesta fase), já não era mais a mesma pessoa que havia entrado naquele rumdembe, naquele refúgio sagrado e transformador, naquele “útero”. Havia morrido e novamente nascido, mas agora religada à minha verdadeira essência, ao meu sagrado, ao meu Nkisi, à minha Mãe Kayaia. Assim, nasci Kaya Mujeuin. Lembrei-me então, de uma cena criada para a aula de Interpretação do curso de Artes Cênicas (UNICAMP) ministrada pelo falecido Prof. Dr. Luís Otávio Burnier. O texto falado são trechos do livro de Clarice Lispector, “ A Paixão Segundo GH”. A descrição a seguir é a mesma entregue na época ao referido mestre. “Rephlexus I” Roteiro: (A entrada na sala deverá ser individual, pois cada um dos presentes deverá ter visto e lido que a certidão de nascimento apresentada é a minha ). Sentada na cadeira. Som de tic-tac de um despertador. O despertador toca. Pausa com tensão corporal. Um grito. Ouve-se um trecho de ópera (Carmina Burana). Ao fim desta música, uma risada. Começo a falar: Rephlexus, Plexus, Nexus, Erus – de várias maneiras. Pego a certidão de nascimento e rasgo. Sensação de vômito. Início da música: “Memories of the green”^19 3 murros na barriga. Início do meu próprio aborto. Aborto-me. Pego a placenta (o sangue dentro do saco) e rasgo por sobre a cabeça. É o meu próprio aborto se realizando. Grito de dor. Tira a música. Começo o texto de Clarice e a trocar de roupa: “Ontem, no entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo _ quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. ...Eu estava limpa de minha própria intoxicação de sentimentos. ...Sentir esse gosto do nada estava sendo a minha danação e o meu alegre terror. (Aqui eu pego a luminária e ilumino alguém da plateia e ao final da fala, apago a luz.) ...A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.”^20 “Rephlexus I” foi criada e encenada em junho de 1989, e podemos dizer que foi uma releitura do cerne dos rituais de iniciação no Candomblé pela qual ainda passaria em 1992. Sem nada saber do que iria passar nos rituais afro-brasileiros, criara, três anos antes, inconscientemente, (^18) TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do ritual Ndembu. Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense: 2005, p. 138 (^19) Trilha sonora do filme “Blade Runner” (^20) LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo GH. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1986, p. 8, 99, 175

A minha montagem cênica de finalização do curso de Artes cênicas pela UNICAMP em 1991 foi uma adaptação do livro “Um Sopro de Vida – (Pulsações)”^24 , sendo minha a concepção/encenação. Tive a supervisão final de Neyde Venezziano e uma consultoria de Carlos Simioni (LUME). O espetáculo era encenado por uma atriz apenas (no caso eu mesma) que transitava pelos dois personagens da história: o Autor (o lado esquerdo de meu corpo) e Angela Pralini (lado direito), isto é, através de um jogo corpóreo entre as lateralidades de meu próprio espaço físico, criava-se a percepção de quando era um personagem e o outro. Havia também um terceiro personagem que era mostrado somente através dos pés, mãos e voz para indicar a sua presença-ausência: a escritora Clarice Lispector, já que este é considerado o mais autobiográfico de seus livros. “.... Assim, o fio do enredo consiste na história de um autor ( o Aut or), que escreve um livro sobre uma autora (Angela Pralini) que escreve um livro sobre...si mesma como autora, ou seja, Clarice Lispector, que é ela mesma (ortônima), enquanto o autor e a autora (personagens e espécie de heterônimos)...^25 E em relação aos personagens, Gotlib escreve: “...ele é caracterizado pela lógica, equilíbrio, geometria, repressão, controle; ela é intuitiva, voluptuosa, destemida, não reprimida. Ele triângulo e reta. Ela, espiral e estrela...”^26 Benjamin Moser em sua prodigiosa e riquíssima biografia sobre Clarice Lispector também nos fala sobre a relação dos dois personagens e Clarice: “ Os dois personagens entram num diálogo encantatório que se estende por todo o livro, mudando nomes, trocando papéis e embarcando em especulações místicas que ardem com intensidade feroz à medida que a autora, neste caso a “verdadeira” autora, Clarice Lispector, sente a aproximação da morte.”^27 Criei o Autor com ênfase corpórea no meu lado esquerdo. Os dedos do pé gauche ficavam tensos para cima, juntamente com o ombro que se lançava mais a frente, com uma mão também tensa e crispada. A boca mostrava-se torta para este lado e a voz tinha um timbre grave e rouco. Era lento, vagaroso nos gestos, como se sofresse de uma artrose nas articulações. Já Angela Pralini tinha o seu acento corpóreo no lado direito. Os dedos do pé direito eram (^24) LISPECTOR, Clarice. Um Sopro de Vida: pulsações. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1978 (^25) GOTLIB, Nadia Battella. Clarice – uma vida que se conta. São Paulo, Editora Ática: 1995, p. 475 (^26) Idem 476 (^27) MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia: Benjamin Moser. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 608

tensos para cima e o ombro direito lançado mais a frente e a mão distensionada e célere para se expressar. O timbre da minha voz se apresentava em sua normalidade. Tinha uma grande destreza, leveza e rapidez física. A agilidade e tempestuosidade dos ventos era a sua característica básica. Faço a descrição destes personagens para que se possa entender melhor a relação com a pesquisa e de como surgiu a questão da possibilidade dos Minkisi serem um caminho, uma referência para o processo criativo do ator, da corporeidade que surge nesta relação entre rito e mito. “Vertigens” estreou em novembro de 1991, na sala 04 do Departamento de Artes Cênicas da UNICAMP. Existe uma gravação de uma apresentação realizada no Auditório do Instituto de Artes daquela entidade e este vídeo foi assistido por parte da minha família-de-santo^28 : Mãe Dango, Mãe Dewá, Mam'etu Ndengue^29 Mikauzelê e outros. Ao término da exibição do vídeo, minha Mama Kusasa^30 Dewá exclamou: “Kaya, você fez a lenda de seu Pai Kafunjê^31 com Matamba^32. O autor é o velho em todo seu jeito de falar, andar, agir e a Angela é a Matamba em todo modo de agir e que tira o velho para dançar. E todos ali presentes concordaram e começaram a relacionar mais ainda os personagens com as divindades. “Houve uma festa no palácio de Nzazi, onde todos os Minkisi foram convidados. Todos compareceram e se divertiam com os cantos e danças, o único que se mostrava arredio à toda aquela alegria, e que ficava sentado em um canto afastado e observando tudo e todos por debaixo de seu capuz de ráfia que lhe ocultava todo o seu corpo, era o velho e temido Senhor das doenças e da cura, Kafunjê. Ninguém tinha coragem de convidá-lo para dançar, devido ao temor dele lançar alguma doença caso ficasse insatisfeito ou contrariado por alguma coisa. Mas Matamba era tempestuosa e corajosa, viu aquele homem sozinho e arredio durante toda a festa e quis se aproximar. Ao se aproximar, seus ventos levantaram as ráfias do Velho Senhor da Terra e ela pode ver o rosto daquele tão temido homem. Porém o que ela viu não foi um homem monstruoso, marcado por doenças de pele, como se acreditava, de seus olhos emanava uma luz tão forte quanto o Sol, que o tornava tão belo quanto os outros Deuses. E Matamba o tirou para dançar e Kafunjê aceitou. Em retribuição à coragem e gentileza em tirá-lo para dançar, Kafunjê presenteou Matamba com escravos que tinham o poder de espantar os espíritos dos mortos.”^33 (^28) “No candomblé , apenas a presença de um pai ou de uma mãe-de-santo (não dos dois ao mesmo tempo) e seus filhos, é suficiente para fundar uma família-de-santo Também a família religiosa não estanca no núcleo familiar, mas se expande envolvendo irmãos,tios, primos de diversos graus, avós, bisavós, inclusive todos os ancestrais conhecidos, além de padrinhos e madrinhas, configurando-se, desta forma, uma família extensa.” in Previtalli, Ivete Miranda, Candomblé: Agora é Angola. São Paulo: Annablume; Petrobras, 2008, p. 86 (^29) Mam´etu ndengue significa Mãe Pequena, isto é, nome do cargo da autoridade maior em um terreiro de Candomblé na ausência da Mãe-de-Santo. (^30) Mama kusasa ou mãe-criadeira é a pessoa destinada para educar e cuidar do neófito durante o período da iniciação e de todas as outras obrigações da vida religiosa. Prepara a comida, os banhos, ensina as rezas, as danças, o comportamento ritualístico, etc. (^31) Nkisi Kafunjê: o Senhor da Terra, o grande curandeiro. Senhor da Cura e da Doença. Vive todo coberto com um capuz de ráfia para ocultar as feridas. Tradição oral. (^32) Nkisi Matamba: Rainha dos Raios, Ventos e Tempestades. Senhora do amor-paixão, pode ser invocada para controlar os mortos desgarrados. Tradição oral. (^33) Tradição oral