





Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Este texto explora a representação da morte na tradição grega através do confronto entre a cena decorativa do altar de pérgamo e a estátua de laocoonte. Apoiando-se em textos literários, o autor mostra como a morte se expressa semióticamente através de significados compartilhados entre as artes plásticas e a poesia. As palavras-chave deste estudo são: morte, imaginário antigo, laocoonte, pérgamo (altar de), tanatologia.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
1 / 9
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
A partir da observação de dois grupos escultóricos - um, colhido à fachada do altar de Pérgamo; outro, a fam osa estátua representando a dor de Laocoonte - pode-se verificar como esses “docum entos m udos” lidam com signos que coincidem com a representação que poetas e dram aturgos propõem , ao tem atizarem a questão da morte. Por outras palavras, a morte se pronuncia sem ioticam ente através de significantes que, adaptados conveniente mente ao m eio escultórico ou literário, equacionam a interpretação da m orte, no im aginário da A ntiguidade grega. M ais que isso: a m esm a operação sim bólica com que o im aginário antigo socializa, dom estica e vence a m orte, e que perm ite à epopéia superar os próprios ritos funerários1, no serviço de dar sobrevida ao defunctus (ao ser disfuncionalizado para esta vida), estipula que a m ím esis da m orte integre aspectos paradoxais. Se os paradoxos da morte se encontram necessariam ente cam uflados / am bigiiizados no jo g o poético, nos obje tos plásticos eles adquirem um a m aterialidade irredutível. Vamos a eles. A R epresentação da N oite (fig. 1) constitui um a das cenas de que se com põe o G ran de Friso do A ltar de Pérgam o. A identificação da soberba figura fem inina do friso norte é controvertida: ainda que denom inada N oite, é referida, o m ais das vezes, com o M orte. C ha
1 Vernant, 1989, p. 97.
m a a atenção o recipiente sustentado pela mão direita, um a jarra (píthos) onde se enroscam serpentes, que ela utiliza com o projétil. O delicado rosto e o penteado em volutas lhe confe rem um aspecto quase juvenil. O vestido sem m angas só deixa a descoberto as encantadoras sandálias, m uito em bora não esconda (ao contrário, realça) um corpo fem inino a um só tem po atraente e rijo. O m anto, atado diagonalm ente sobre o peito, ondeia para os lados, conferindo-lhe liberdade de m ovim entos, leveza e incom um controle da situação. E m sua atitude, vê-se a prontidão do guerreiro. Totalm ente outra é a situação do jovem , prestes a ser dom inado pela oponente. A desvantagem do mortal perante a deusa se cristaliza, a despeito do sum iço das partes de um tronco que principiava a desaparecer já pelo confronto: o jovem se encontra num a posição com pletam ente estranha à robustez do hoplita - o corpo contorci do apresenta o torso voltado para oriente, a cabeça para ocidente; em bora se tenha perdido a parte central do corpo do guerreiro, presum ivelm ente os braços descreveriam m ovim entos desencontrados, com binando o direcionam ento do braço direito para baixo e o anverso do braço esquerdo para o alto. O esquem a corporal se desarticula, ao m esm o tem po em que a m orte se anuncia consoante a m etáfora épica, pelo joelho ao pó2.
O rom pim ento com o m undo dos vivos e a adesão a um a condição desfibrada, desvertebrada, de que a enorm e serpente (ao alto) se faz signo, inscreve-se pelo rom pim en to dos m eniscos e pela figuração deste anti -koãros, esvaziado de hebé (força suprem a) e de kratós. A pesar de desm antelado, o guerreiro cum pre plasticam ente o estatuto da “bela mor te” (pânta kalá) literária3 - tom ba em plena juventude, com armas às m ãos. D ois paradoxos já aí se m anifestam : o m orto desaparece, mas perm anece com o parte de um processo duplo, que ocorre prim eiro no plano da natureza (ao passar do m undo físico ao m etafísico) e, independentem ente dos ritos funerários, no plano da cultura (ao se transform ar em objeto estético). Exclui-se, entretanto, o paradoxo da invencibilidade do herói, conquistada justa m ente no ato de ser vencido pelo adversário proem inente. O L aocoonte (fig. 2), obra-prim a da escultura tardo-helenística, a despeito dos pro blem as de datação, pode ter sido originalm ente esculpida no séc. I a.C. Transferido para R om a, o grupo só foi descoberto em 1506, tendo funcionado, a partir de então, com o cânon para artistas renascentistas e neoclássicos, e ponto de referência para m últiplas teorias esté ticas. D eve-se sobretudo a Lessing4 o estudo com parativo com que se desbarataram as con vicções confortáveis de que o conjunto escultórico poderia ter servido de inspiração para a com posição dos versos que V irgílio5 dedica à personagem , no Canto II da Eneida. N ão nos deterem os aqui na argum entação que Lessing desenvolve sobre as leis fundam entais que estipulam as diferenças entre as artes, nem sobre a reform ulação ao ut p ictu ra poesis
2 II. 5, 176; 11,579; 15, 332; 21, 114; 22, 335; Od. 18, 212, entre outros. 3 É pela diegese, poética e retoricamente, que a divinização do herói é conquistada 4 Lessing (1998) estabelece, no seu Laocoonte ou os limites da pintura e da poesia, obra de 1766, uma interlocução com diversos autores com que compartilhava as mesmas preocupações teóri cas. Mas as três obras que servem de base para a contra-argumentação de Lessing são o Polymetis do inglês Joseph Spence (1747), em que o autor estipula o confronto entre obras literárias e plásticas da época romana, os Quadros tirados da Ilíada (1757), do francês Caylus, e, funda mentalmente, as Reflexões sobre a imitação das obras gregas (1755) de Winckelmann. 5 Virg., En. 2, 40-56 e 201-49.
insufla respostas a perguntas que não foram formuladas (“Posêidon enviou as serpentes m ari nhas”); 2) propõe perguntas que ficam irrespondidas (“Por que aceitar um presente dos A queus?”); 3) inspira ações justas, porém mal-interpretadas (o alerta de Laocoonte e a lança arrem essada contra o cavalo); 4) causa morte inglória (Laocoonte não pode lutar - é im obili zado). É a face soturna do deus que projeta sombras sobre seu amaldiçoado. As serpentes, interpretadas com o resposta de Posêidon por sacrifícios sacrílegos que o deus rejeitava6, na verdade eram intendentes de Apoio. A interpretação correta de Laocoonte, mas tida como incorreta, sobre o perigo de receber o cavalo presenteado pelos Aqueus, é astuciosamente aproveitada por Apoio para deturpar a atitude defensiva, mas tida como ofensiva, de Laocoonte, ao disparar a lança. Com o vítim a de Apoio, Laocoonte se tom a ele próprio alvo da ironia apolínea: 1) o deus inspirador tom a desacreditado o seu sacerdote; 2) ao insulto praticado, na esfera do amor, corresponde o castigo por intermédio do animal fálico-erótico por excelên cia7; 3) não Apoio, mas a profecia, como signo divino, dom ina m etonim icam ente a cena, já que todas as m ensagens hum anas (cavalo de madeira e lança arremetida contra ele) devem ser lidas com o divinas (o cavalo como enigm a e a lança como raios lum inosos e fertilizantes do próprio Apoio, correspondendo a um simbolismo de ordem sexual). As m ensagens divinas (serpentes m arinhas), por seu turno, funcionam como hum anas (representações do silêncio erótico im posto por Laocoonte ao deus). Laocoonte morre, pois, vítim a indireta de Apoio e direta do jogo de m ensagens equivocadam ente interpretadas, verdadeira com édia de erros, no centro da qual ele se enrosca, se em aranha e perde a vida. N a boca de Laocoonte, a sua marca. Sai-lhe a vida por onde Apoio, nele, falava. A últim a im agem do sacerdote perpetua não a vida (já que perece desarm ado); não a morte (nada lhe sugere distinções fúnebres8), mas o amor fraturado de Apoio, a falta (ainda que involuntária), na esfera am orosa, razão pela qual o vazio, a carência, o vácuo sobressaem, nos lábios de Laocoonte. Seu espólio: um corpo triturado pelo animal ctônico-urânico, fálico-erótico. Trata-se, em am bos os casos, da morte figurada não como thánatos, em sua feição m asculina, associada ao ritual dos funerais, à bela morte e às estratégias sociais de preserva ção do m orto através da memória. A morte dom ada e à sua denegação enquanto tal, corres pondem aqui, inversam ente, o fascínio, a sujeição à inquietante beleza e aos poderes de atração que causam o em baralham ento de fronteiras entre o mundo dos vivos e dos mortos, o consór cio entre Éros e Thánatos, evocação do em baralham ento de corpos e da união sexual.
6 Os troianos incumbem a Laocoonte sacrifícios a Posêidon, que garantissem um retorno atribula do de seus inimigos à terra natal. 7 Ao contrário, amaldiçoado, Apoio o reduz de profeta a perjuro. A Laocoonte Apoio destina não uma morte, na perspectiva do móros grego ou da respectiva mors latina, significando parte, limite. Importante frisar que o limite se organiza como fronteira e sugere ‘transposição para’ e ‘existência de’ outro espaço. Remete, pois, à continuidade por uma certa neutralização dos efei tos da morte e perpetuação através da memória. No caso de Laocoonte temos não o limite, mas o fim. 8 Nem o pai, nem seus dois filhos rememoram os kouroi gémeos do séc. VI a.C. (Cléobis e Biton), que Heródoto (1,31) recomenda “sejam mostrados como os melhores dos homens”, representa ções do homem firme e estável (como estátua), alheio aos enredamentos de Eros, ligado pelos laços de philia.
A m orte grega figurada pelo semblante de mulher ou por signos que a representem particulariza os seus paradoxos. Aspis, a serpente venenosa, sublinha a idéia de transform ação do ser vivente em cadáver, m obilizando à repulsa e ao horror e impondo um a confrontação direta com a m orte em si, mas tam bém um desejo que se exprim e na radicalidade extrema, como desejo de morte.
A despeito do horror, esse estatuto de lugar, dimensão ou forma acima de qualquer outra cobiçável que a figuralização fem inina da morte também contém evidencia o paradoxo do próprio desejo: com o na busca às Hespérides, o objeto do desejo dem anda este afastamento inscrito no de-sider-are latino (m anter-se iluminado por esta luz que nos chega de longe e do alto - sider - , nos inflam a e orienta, mas impõe uma distância intransponível, sob a pena de, abismados no desejo, saciarm o-nos nele e até, em função dele, experim entarm os a náusea). Da mesma form a, o desejo pelas Sereias subsiste na dialética da presença ausente. M ais nitidam ente através da cena inscrita no altar de Pérgamo, à imagem da morte violenta (referida pelo ataque com o projétil) se acoplam imagens prazerosas: 1) certa evoca ção da m orte com o carícia enganosa, eivada em philótes (carícia amorosa) e apáte (engano), atributos de A frodite; 2) a prom essa de gozo e oaristys (encontro íntimo) eterno, de que os pomos de ouro guardados pelas H espérides são sím bolos; 3) os balbucios am orosos, partilhamento de artim anhas e convite aos jogos infantis, confiados pelos deuses a Pandora (e muito bem guardados em seu píthos). Ainda que evidenciando a morte violenta por excelência, os combates, assaltos e disparos não elidem a analogia entre as duas form as de reunião - oaristys, no confronto corpo a corpo entre guerreiros (sob o signo de Thánatos) e o corpo a corpo que consum a a pareceria am orosa (sob o signo de Eros). A transparência das vestes da M orte e a nudez de Laocoonte inferem o desejo tátil, que se expressa na apresentação do “confronto face a face”, em Homero, com o oaristysprom ákhon (II. 13, 291) ou do “íntim o encontro da guerra” com o polém ou oaristys (II. 17, 228). Valores eróticos da nudez se confirm am , ao final do duelo entre Heitor e Aquiles, pelos comentários dos guerreiros que lhe contem plam o cadáver: “Este H eitor é o mais doce de se apalpar” (malakóteros am phapháasthai, II. 22, 373-4), onde malakós (doce, macio, tem o) constitui signo de uma fem inilidade presente/ausente. A nudez de Laocoonte m ereceria ainda outros comentários. O poeta, que se esm eraria em trajar Laocoonte com ornam entos sacerdotais, estaria investindo na caracterização da per sonagem. O escultor, ao renunciar às vestim entas decorosas e aos tecidos rugosos, desvenci lha-se dos efeitos perniciosos da sobreposição de imagens para a evidentia (ideal de visualização) de sua representação. Lem bra Lessing que, para o artista plástico, imitar o nu é m ais honroso e evita as Kostumstreiten que tanto desviavam os críticos de arte do que efetivam ente devia ser valorizado na obra de arte9. No conjunto escultórico em questão, duas idéias catalisam a atenção do observador: a vestim enta, signo da dignidade sacerdotal de Laocoonte, tornou-
9 Lessing desafia a crítica a uma avaliação mais pertinaz, relativamente à mímesis nas artes plás ticas: “Os nossos olhos querem apenas ser iludidos e lhes é indiferente com o que eles são iludidos?” (Op. cit., p. 121).
(ékhidna), nas C oéforasn. N esta tragédia, aliás, o poeta projeta o m atricídio no rol dos crimes incestuosos, a partir de um a criteriosa seleção de vocábulos ligados ao sem a ofídico. Sempre referido por palavras m asculinas, O restes é drákonta, no relato do sonho em que a mãe dá à luz um a serpente, e óphnis ( Coéf. 527 e 915), na interpretação do m esm o sonho, por Clitem nestra; enquanto a esta cabe um sinónim o fem inino, deinês ekhídnes (Coéf. 249), víbora terrível, na m etáfora pela qual O restes dá sua versão - onírica e sim bólica - ao assassinato do pai. Suas palavras descrevem a cena protagonizada por Laocoonte: “M orreu nas espirais e nós de um a víbora terrível” (idem).
G ostaria de fechar com um a últim a im agem (fig. 3), parte do friso oriental do altar de Pérgamo, que parece sintetizar os paradoxos da m orte aqui com entados. A í se encontram um guerreiro, um gigante e A rtem is. A deusa da caça acode veloz e pisa o corpo de um gigante morto. D iante dela, um gigante com barba sofre um a m orte terrível: o cão de caça da deusa o m orde m ortalm ente na nuca. Sua fisionom ia se decom põe, e a região do estôm a go se contrai de dor. N ão obstante, vê-se um a últim a resistência, um últim o esforço deses perado: o gigante vaza um olho do cão. Pela esquerda, avança um jovem , que se opõe a Artemis, porém em lugar de cobrir-se com seu escudo, expõe-se indefeso às flechas da deusa. O utra vez o im aginário da m orte estipula relações quiasm áticas entre o guerreiro passivo e a m orte ativa; entre o últim o suspiro (do gigante) e a insubm issão fálica (na erup ção de um dedo). C om pletam ente am biguizados, os joelhos ao pó inferem a ruptura das forças represadas, seja para a guerra, seja para o amor. A m olecido, liquefeito, desm em bra do, o herói caído se coloca fisicam ente entre o enfrentam ento da m orte e a entrega am orosa, paradoxo encarnado no jo v em guerreiro, que parte, cheio de hidrism o, para os braços da morte. O que se desarticula no herói caído im pulsiona o jovem guerreiro. Falta-lhe apenas o discreto sorriso que se esconde sob a rigidez do hoplita.
ESCHYLE. A gam em non, Les Choéphores, Les Eum énides. Texte établi et traduit par Paul Mazon. Paris: Belles Lettres, 1955. HOMÈRE. L ’Iliade. Trad. Paul M azon. Paris: Belles Lettres, 1938. KUNZE, M ax; JA K O B -R O ST, Liane; BRANDT, Evelyn Klengel et alii. Breve guia M useo de Pérgamo. C olección de Arte A ntiguo/M useo del Próxim o O riente. M ainz: Verlag Philipp von Z abern, 1995. LESSING, G otthold Ephraim. Laocoonte ou os lim ites da pintura e da poesia. Trad. de Márcio Seligm ann-Silva. São Paulo: Ilum inuras, 1998 POLLITT, J. J. E l A rte helenístico. Trad. de Consuelo Luca de Tena. M adrid: Editorial Nerea, 1998.
VERNANT, Jean-Pierre. U lndividu, la mort, l ’am our. Soi-même et 1’autre en Grèce ancienne. Paris: G allim ard, 1989.
NU N EZ, Carlinda Pate “Weakness in the knee-joints” : the imagery of death in Greek tradition. C lassica, São Paulo, 15/16, p. 41-49, 2002-2003.
Fig. 1 - Representação da Noite. Parte do Grande Friso do Altar de Pérgamo. 164 - 156 a.C. Berlin, Museu de Pérgamo. Foto: Jurgen Liepe. In Kunze, M. et alii.