









Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
O texto da atuação da Companhia de Jesus em território do Rio Grande do Sul no século XVIII.
Tipologia: Trabalhos
1 / 17
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Ricardo Arthur Fitz A Companhia de Jesus e sua contextualização histórica. O século XVI foi sem dúvida um divisor de águas na História do mundo ocidental. A inserção de vastas áreas da América, África e Ásia na economia mercantil européia alterou significativamente os horizontes europeus. Não haviam mais limites ou barreiras intransponíveis. Evidentemente tais circunstâncias não são geradas de forma abrupta no período, mas são, isso sim, resultado de longa maturação, cujas raízes podem ser vislumbradas no incremento das atividades comerciais na Baixa Idade Média. No bojo desse processo desenvolveu-se o que se convencionou denominar Renascimento e que alcançou sua culminância justamente no século XVI. O Renascimento representou a primeira onda no processo de transição do feudalismo ao capitalismo. 1 As atividades capitalistas, na medida em que têm permanentemente metas a serem atingidas – a produção de riquezas – tornam as várias circunstâncias previamente existentes em fatores restritivos. “O homem não deseja continuar a ser aquilo em que se transformou, antes vivendo um processo constante de devir”^2 , uma constante transposição de barreiras, rompimento de limites e hierarquias. Consequentemente, os limites também são rompidos nas consciências humanas. Agnes Heller demonstra que a consciência da historicidade do homem é produto do desenvolvimento burguês. O Renascimento propicia, portanto, o surgimento de um conceito dinâmico de homem – em oposição a um conceito estático dominante na Antiguidade – onde o homem passa a ter uma história de desenvolvimento pessoal e a sociedade também adquire seu sentido de desenvolvimento. 3 (^1) Heller, 1982. (^2) Marx, Grundisse, apud Heller, 1982. (^3) Heller, 1982
Heller comenta que durante a Antiguidade prevaleceu um conceito estático de homem, cujas potencialidades eram limitadas. Tais limites acabaram sendo dissolvidos pela ideologia cristã medieval na medida em que tanto a perfectibilidade quanto a perversão podem constituir um processo ilimitado. Ainda assim, limites se impunham, determinados pela transcendência do início e do fim: o pecado original e o Juízo Final. Portanto, ao passo que o comportamento intelectual do homem medieval era orientado fundamentalmente pela exegese da revelação – tanto das autoridades religiosas, quanto das autoridades da Antiguidade – o (comportamento intelectual) do homem do Renascimento, influenciado pelo Humanismo, voltava-se para suas próprias potencialidades e possibilidades. De outro lado, a expansão das atividades comerciais definiu a superação das estruturas feudais nos níveis econômico e sócio-culturais. Decorre disso uma profunda mudança nas consciências acerca de tempo e de espaço. No que se refere ao tempo, Agnes Heller afirma que: Surgia com a dissolução do quadro limitado das ordens sociais feudais, a possibilidade de o indivíduo ‘subir’ ou ‘descer’, ‘aderir’ ao dinamismo objetivo da sociedade; devia ‘aprender-se’ o ‘momento certo’, de tal modo que o indivíduo pudesse movimentar-se juntamente com a corrente histórica. O ‘ritmo’ e o ‘momento’ tornaram-se essenciais e totalmente compreensíveis no interior do ‘processo’.^4 Ainda, segundo Heller, “esses conceitos de tempo não ultrapassaram (...) as generalizações da experiência quotidiana.”^5 Surgia assim uma nova concepção de tempo vinculada a uma nova ordem social – burguesia por excelência – que se afirmava. Este tempo é colocado ao lado de um tempo religioso herdado da Idade Média. Assim, “desde o final do século XV dois tempos passaram a conviver paralelamente: o tempo da Igreja, regido pelo sino e pela oração e o tempo laico, organizado matematicamente pelo relógio e pelos marcadores.”^6 Este último, ainda que voltado fundamentalmente para uma funcionalidade econômica objetiva, a saber, gerar riquezas, passa gradativamente a balizar o quotidiano ocidental e as concepções modernas de organização temporal. (^4) Heller, 1982., p. 143 (^5) Idem, p. 143 (^6) Deckman, 1991, p. 43.
É significativo o fato de que o centro de educação teológica da Igreja Católica Romana deixava de ser Paris; outros centros como Salamanca e Coimbra, menos atingidos pelas novas correntes de pensamento, tomaram seu lugar. É dentro deste contexto que é convocado o Concílio de Trento (1545-1563) e surge a Companhia de Jesus – além do reavivamento da Inquisição. A Companhia, aprovada pela bula Regimini Militantis Ecclesiae do papa Paulo III cinco anos antes da convocação do Concílio, incorpora, todavia, o espírito tridentino no que se refere ao combate às heresias e aos movimentos reformistas. Contudo, nenhuma outra ordem religiosa foi mais receptiva ao humanismo, em particular ao estudo renovado do aristotelismo, que a Companhia de Jesus, estabelecendo-se inclusive longas controvérsias entre jesuítas e tomistas. No dizer do teólogo sueco (luterano) Bengt Hägglund , a nova ordem jesuítica foi de natureza eclética. 11 Jean Lacouture afirma que: É, ao mesmo tempo antes e depois da adoção do humanismo renascentista que devemos buscar e avaliar o tesouro conquistado ao longo dos anos parisienses pelos alunos de Santa Bárbara: uma nova concepção da transmissão do saber , e numa abertura para o mundo que só se manifestará mais tarde, mas que o debate dos sete pais fundadores, no momento do pronunciamento dos votos de Montmartre, permitiu antever.^12 (grifos nossos). De fato, os jesuítas não ficaram de todo imunes às mudanças ocorridas no período. Se de um lado era-lhes muito presente o espírito cruzadista medieval, – talvez por influência das experiências diretas [pessoais] de Loyola – e os seus princípios norteadores, também deve-se considerar o espírito investigativo, presente na visão de mundo do homem da época, e que de certa forma se manifestava nos componentes da Sociedade de Jesus. O espírito cruzadista, traduzido à fórmula da evangelização do oriente e das populações nativas da América, constituiu-se na versão inaciana do binômio fé/ação de Lutero. Por outro lado, o individualismo nascente é tipicamente renascentista e, também ele, de alguma forma se faz presente entre os jesuítas. A posição de Santo Inácio, expressa principalmente nos Exercícios Espirituais , privilegia a consciência, forma do individualismo inaciano, como ponto onde se decide a bondade ou a maldade da vida (^11) Hägglund., 1981. (^12) Lacouture,, p. 89. Ao utilizar as expressões “alunos de Santa Bárbara”, o autor está se referindo a Inácio de Loyola, que havia estudado no Colégio de Santa Bárbara em Paris e, ao se referir ” aos “sete pais fundadores”, está se referindo aos primeiros seguidores de Inácio.
humana. Neste aspecto há uma aproximação com Lutero: o cuidado com sua própria salvação. Os jesuítas e sua relação com o Estado espanhol. Politicamente o Concílio de Trento aproximava-se do Absolutismo Monárquico então instalado na Europa, tendo a Igreja colocando-se lado a lado ao Estado. Para que tenha seu poder reconhecido, o rei deve demonstrar estar imbuído de pensamento cristão. É essa a base do Absolutismo de direito divino. Do ponto de vista das conquistas territoriais dos séculos XV e XVI, exige-se dele compromisso cristão com as regiões conquistadas. Essa é a base da expansão religiosa do período colonial. Na Península Ibérica, não há muito tempo, o último bastião de resistência muçulmana havia sido dobrado, com a conquista de Granada em 1492. O espírito cruzadista que acompanhou a Reconquista vai marcar intensamente a Espanha recém unificada pelos “Reis Católicos”, Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Isto evidencia que “não foi o pensamento jesuítico que orientou a conversão do gentio à fé católica ou o que estimulou o espírito cruzadista dos colonizadores, pois já havia uma estrutura mental global, totalizadora e anterior aos jesuítas.” 13 Desde a primeira viagem de Colombo à América (1492) ficara claro a proximidade do Estado espanhol com a Igreja. O papa Alexandre VI, nascido na Espanha, garantiria a esta os territórios conquistados ou a serem conquistados através das bulas Inter Coetera , adiante substituídas pelo Tratado de Tordesilhas. Ao sancionar estes documentos, o papa exigia dos espanhóis levassem missionários a esses territórios. Dava-se assim continuidade a um antigo projeto medieval de constituição de um Império Universal^14 , onde o gládio material atuaria em favor do gládio espiritual. Esta relação próxima entre Igreja e Estado se materializava mediante alguns mecanismos: “Através do Régio Padroado, da Teoria do Vicariato e da Propriedade da Mão Morta, a Igreja hispânica fazia parte integrante do Estado Espanhol. O Padroado real era o direito que o monarca tinha de nomear os sacerdotes para as igrejas vagas. A Teoria do Vicariato permitia que (^13) Quevedo, 2000. p.. 21. (^14) A esse respeito veja-se o interessante trabalho de Marcos del Roio, O Império Universal e seus antípodas.
Inicialmente, a ação missionária dos jesuítas era do tipo “missão”, que consistia em incursões de missionários aos aldeamentos indígenas que, no caso do Rio Grande do Sul, eram da etnia guarani. De tempos em tempos os jesuítas visitavam as aldeias onde então era exercido o proselitismo religioso com fins de conversão. Os indígenas, portanto, permaneciam em seus locais de origem onde, senhores do território, mantinham seus hábitos e costumes seculares, seu modo de vida, organização sócio- econômica, sistema familiar, etc. do ponto de vista da ação missionária, o método se mostrou ineficaz: o proselitismo não perdura; a mensagem dos jesuítas não se incorporara solidamente no universo indígena. O modo de vida indígena era obviamente associado à sua cosmovisão e esta, tinha sua fundamentação em seu sistema religioso. O sucesso da doutrinação religiosa só poderia ocorrer se simultaneamente fosse desarticulado seu modo de vida tradicional. Outro problema enfrentado pelos jesuítas diz respeito ao fato de que os índios eram caçados tanto por portugueses como por espanhóis para submete-los a trabalhos forçados e, não raro, os padres eram associados aos apresadores de índios. Alguns deles sendo, inclusive, mortos pelos índios, como foi o caso dos “três mártires de Caaró”. Diante do fracasso de tal sistema, os jesuítas passaram a adotar o sistema “reducional”. As populações indígenas foram chamadas a abandonar seus tradicionais aldeamentos e ocupar novos espaços, as “reduções”. Estas eram pensadas de forma a se constituírem longe da áreas povoadas por portugueses ou espanhóis, evitando assim as “más influências” destes. Por este processo, os indígenas seriam “reducidos” , isto é, estabelecidos coletivamente em aldeamentos onde, além da doutrinação religiosa, seriam submetidos a um processo “civilizatório”, i.e., europeizados. A primeira experiência reducional foi em Juli, às margens do Titicaca, atualmente em território do Peru junto à fronteira boliviana. Weber procura demonstrar a nova postura do protestantismo diante do mundo, comentando que “o ascetismo cristão, que de início se retirava do mundo para a solidão, já tinha regrado o mundo ao qual renunciara a partir do mosteiro e por meio da Igreja. Mas no geral, havia deixado intacto o caráter naturalmente espontâneo da vida laica no mundo. Agora avança para o mercado da vida, fechando atrás de si a porta do mosteiro; tentou penetrar justamente naquela
rotina de vida diária, com sua metodicidade, para amoldá-la a uma vida laica, embora não para nem deste mundo.” 18 Em certo sentido, este foi, salvaguardadas as óbvias diferenças, o caminho traçado pelos jesuítas. Melhor seria, talvez, dizer que os jesuítas ampliaram o mosteiro para o mundo com a sensibilidade de compreender o mundo enquanto seculum. Os jesuítas tiveram a clareza necessária para perceber que a vida e atitude cristãs não estão identificadas com o isolamento e o afastamento do mundo. Compreenderam que o combate por Cristo implicava uma atividade plena. Assim, a obra evangelizadora dos padres da Companhia de Jesus assumiu um sentido prático. Vinha acompanhada de preocupações de se fazer presente na vida e no cotidiano das pessoas. A atitude contemplativa é substituída [ou acompanhada de] intervenções concretas no mundo secular. No caso das reduções americanas, não se tratava de, exclusivamente, converter os indígenas ao cristianismo, ainda que fosse o fim a ser alcançado. Compreendiam os jesuítas que a conversão só seria possível na medida em que a ação evangelizadora viesse acompanhada de ações que representassem concretamente mudanças radicais, ou, ao menos, significativas, no modo de vida dos futuros catecúmenos. Ficava claro para os padres que a nova religião a ser trazida para os índios somente vingaria caso o modo de vida dos mesmos sofresse radical transformação. O cristianismo é também um modo de vida. Isso significa a exigência de certos tipos de comportamento que não eram observados entre os indígenas. Isto é particularmente verdadeiro no que se refere a certas formas de comportamento presentes nas tradições indígenas que contrariavam frontalmente os princípios do cristianismo. Áreas particularmente sensíveis são a poligamia e a antropofagia. Comentamos acima que o sucesso da doutrinação religiosa só poderia ocorrer se simultaneamente à evangelização fosse desarticulado o modo de vida tradicional dos indígenas. Neste sentido, “a atuação dos jesuítas junto aos guaranis é francamente modernizadora e tem como objetivo a mudança em todos os sentidos: transformar os guaranis em homens políticos que ultrapassem o estágio selvagem e se transformem em habitantes da Polis “.^19 Isto implicava a necessidade de romper com as velhas tradições culturais das populações indígenas. Normalmente os porta-vozes destas tradições culturais eram os (^18) Weber, 2002. p. 116 (^19) Kern, 1994, p.17.
ao português Manoel Cabral Alpoim.” 25 Este gado vai alcançar, a partir de 1637 a chamada Vacaria do Mar. O período vai assistir às incursões dos bandeirantes paulistas à região em busca de mão-de-obra escrava. Segundo Bruxel, “foram cativados mais de 300 000 índios, entre 1612 e 1638, sendo vendidos em mercado brasileiro uns 60 000 escravos indígenas, entre 1628 e 1631.”^26 As freqüentes incursões dos paulistas levaram os padres a transladar as missões para a outra margem do rio Uruguai, retornando em 1687. Das antigas reduções muitas se extinguiram, umas sobreviveram parcialmente e outras foram ao longo do tempo reocupadas. Novas reduções também surgiram. Com a fundação de Santo Ângelo em 1707, completava-se o ciclo de fundações de povos missioneiros que agora contava com 30 reduções, sendo que sete delas no atual território gaúcho. O plano urbanístico das Reduções Jesuíticas e organização econômico-social As reduções apresentavam uma regularidade e simetria do plano urbanístico. Obedeciam a um modelo padrão com pequenas variantes individuais. Ao centro ficava uma grande praça quadrada com cerca de 150 metros de lado, para a qual convergiam as ruas principais. Em um dos lados da praça, ao norte ou sul, ficava a igreja, dominando a paisagem em frente a ela, no lado oposto da praça o cabildo. Junto à igreja ficavam, de um lado o cemitério e a casa das viúvas (cotiguaçu), e de outro a casa dos padres, escola, dois pátios internos, oficinas, etc.. nos fundos deste conjunto ficava a horta e o pomar do padres. Cercando a praça por três lados, se encontravam as habitações dos índios. Kern^27 chama a atenção para o fato de que a origem do conjunto que compõe a igreja, cemitério e os outros equipamentos, se encontra em mosteiros beneditinos da Idade Média. Quanto ao traçado regular das ruas onde se encontram as casas, seria uma retomada renascentista do antigo projeto helenístico de cidades planejadas. O modelo era especificado pelas “Leyes de Indias” e deveria ser aplicado nas várias povoações espanholas que vinham se constituindo na América. Nas oficinas produzia-se toda a sorte de utensílios necessários. Faziam-se trabalhos em olaria, cantaria, marcenaria, produzem-se instrumentos musicais. Em (^25) Flores, 1986, p.12. (^26) Bruxel, 1978, p 25. (^27) Kern, 1994, p 33-36.
algumas reduções até mesmo fundições (como em São João Batista) e tipografias são instaladas. Nas estâncias o gado era criado livremente, mas procurava-se separar o gado eqüino, vacum e lanígero. A delimitação aproveitava barreiras naturais como rios, banhados, matos intransponíveis. Haviam ainda os posteiros, famílias de indígenas encarregados de amansar o gado e fazer os necessários rodeios. A carne abastecia as reduções constituindo-se em seu alimento principal. As reduções também se caracterizaram pela produção em larga escala de erva- mate. A “Ilex Paraguariensis”, por estar associada às atividades xamânicas dos pajés, foi inicialmente proibida pelo governo espanhol e seu uso punido com excomunhão pela Igreja. Ainda assim, seu uso se tornava cada vez mais difundido a ponto de a proibição ser revogada e as reduções jesuíticas tornarem-se os principais produtores de erva-mate. Mais do que isto, a erva-mate tornou-se o principal produto de exportação das reduções e sua principal fonte de recursos. Os jesuítas instituíram um sistema caracterizado por um acentuado dirigismo econômico. Este modelo condizia com o que se poderia considerar uma síntese entre as concepções européia, orientada numa perspectiva jesuítica, e indígena, esta última, que vinha sofrendo brutais transformações com a chegada dos europeus. Imbuídos, do ponto de vista econômico, de uma lógica mercantilista, os jesuítas procuram integrar os indígenas em um novo contexto produtivo. Assim os indígenas são submetidos a uma nova realidade econômica. Seu modo de vida tradicional é quebrado; as formas e os processos produtivos e os tempos necessários para garantir a sobrevivência são profundamente alterados. Godelier, ao se referir a sociedades coletoras/caçadoras, comenta que: "Constatou-se, por meio de observações quantitativas precisas e prolongadas em sociedades de caçadores e de colectores, que aos membros produtores dessas sociedades bastavam pouco mais ou menos quatro horas de trabalho por dia para cobrirem todas as necessidades de pequenos grupos humanos e, mesmo perante estes factos, cai rapidamente por terra a visãos dos primitivos esmagados pela natureza e vivendo exclusivamente para subsistir. Muito pelo contrário, parece que o desenvolvimento da agricultura resultou no alongamento do dia de trabalho e quantidade de trabalho anual necessário à produção e à reprodução das condições materiais da sociedade."^28 (^28) GODELIER, Maurice. Antropologia; ciência das socieaedades primitivas? Lisboa: Edições 70.
modelo europeu resulta do fato de que a estruturação do modelo de trabalho nas reduções é fruto de uma sociedade de contato e fortemente influenciado pelo sistema de trabalho mais organizado. No entanto, mesmo assim criavam-se moldes de trabalho próprio, correspondendo a outras estruturas sociais provenientes da experiência guarani.”^32 Já os mecanismos políticos constituem uma imposição da “sociedade global espanhola”. A direção das reduções cabe a dois padres em cada povo – um com funções religiosas e outro com funções administrativas – apoiados por um conselho de caciques reunidos em um cabildo à moda espanhola. Os caciques são escolhidos pelos padres dentre as lideranças indígenas originais que pudessem colaborar com a tarefa jesuítica. Os cabildos “governam em nome dos governadores de Assunção ou Buenos Aires.” 33 As casas dos índios também são uma demonstração dessa síntese. Dispostas segundo o traçado definido pelas “Leyes de Indias”, como já comentado, elas se constituem de construções retangulares com alpendres que a cercavam nos quatro lados. A casa era uma forma revista da grande habitação coletiva indígena (oka) em que viviam famílias extensas onde, porém, devido aos necessários escrúpulos religiosos, se fez introduzir divisória internas que separassem as famílias nucleares. As reduções e suas relações com a sociedade espanhola Os objetivos dos padres são, antes e acima de tudo, religiosos e, portanto comprometidos com a conversão ao cristianismo. O cristianismo, porém, não é apenas um sistema religioso. É também um modo de vida, e, é neste sentido que os jesuítas vão procurar integrar suas ambições evangelizadoras. Os jesuítas se defrontam com problemas de toda ordem, resultantes de uma realidade multifacetada. De um lado a obediência devida ao Estado espanhol e às Leyes de Indias, de outro os princípios doutrinários da Ordem e o respeito à hierarquia religiosa. À sua frente uma multidão de indígenas as serem retirados de seu modo de vida e introduzidos no mundo cristão e, por trás o poderoso Império espanhol que os usa nas regiões fronteiriças para deter o avanço português. Por outro lado, os jesuítas se defrontavam com a necessidade de “proteger” os indígenas do contato com a sociedade espanhola. Visitantes espanhóis em geral não (^32) Neumann, 1996, p. 61. (^33) Kern, 1994, p. 22.l
eram muito bem-vindos (excetuando-se evidentemente as autoridades), tanto que o local de abrigo para viajantes – o “tambo” – ficava nas áreas periféricas do aglomerado urbano. Os indígenas reduzidos são súditos do rei da Espanha e, como tal, eram, quando necessário recrutados para o serviço de sua majestade. Kern comenta que eram constantes as “atividades bélicas das milícias guarani a serviço dos reis da Espanha contra portugueses, contra tribos nômades do Pampa e do Chaco (charruas, minuanos e guaicurus) e mesmo contra brancos revoltados em Assunção (Revolta do Bispo Cárdenas e Revolta dos Comuneros”.^34 As atividades bélicas não eram as únicas. Na região do Rio da Prata os indígenas são convocados com freqüência. Neumann sintetiza as convocações de trabalho em três grupos: facções de guerra, obras públicas e transporte e construção naval.^35 Desta forma os guaranis das reduções deixaram uma marca bem definida no cenário econômico-social da América espanhola. A Guerra Guaranítica e a decadência das reduções. Em 1750 o Tratado de Madri vai regularizar os limites das áreas que cabiam a Portugal e Espanha na região. Portugal entrega à Espanha a Colônia de Sacramento e, em troca, recebe a região dos Sete Povos. Os missionários jesuítas procuram atuar junto à Coroa espanhola no sentido de anular a decisão do Tratado. Não o conseguindo, e, por estarem ligados politicamente ao Estado, iniciam um processo de transferência para a outra margem do Rio Uruguai. O Tratado definia um prazo de um ano para a retirada das reduções. Portugal e Espanha organizam uma comissão de demarcação de limites a cargo de Gomes Freire de Andrade e do Marquês de Valdelírios. A comissão inicia suas atividades em 1752. Os jesuítas solicitam a ampliação do prazo, pois consideravam necessário pelo menos três anos para deslocar mais de 30 mil pessoas e 700 mil cabeças de gado. Além disso, ainda não havia espaço nos povoados missionários da Argentina que pudesse ser ocupado por eles. Valdelírios não admite alteração nos prazos e os padres não têm alternativa a não ser tentar convencer os guaranis a se retirarem. Um número muito grande de indígenas não acata estas decisões, particularmente nas reduções de São Nicolau e São Miguel, e vai se armar. Em 1753 (^34) Kern, 1994, p 25. (^35) Neumann, 1996, p. 76.
BRUXEL, Arnaldo. Os Trinta Povos Guaranis. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul; Porto Alegre: EST/Sulina, 1978. CATAFESTO DE SOUZA, José Otávio. Uma análise do discurso missionário: o caso da indolência e imprevidência dos Guarani. Porto Alegre : Veritas, v. 35, n. 140, Dezembro 1990. ________. Uma introdução ao sistema técnico-econômico guarani, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1987. DECKMAN, Eliane Cristina. O imaginário dos séculos XVI e XVII – suas manifestações e alterações na prática jesuítica. Disserttação de Mestrado, São Leopoldo, Unisinos, 1991 DEL ROIO, Marcos. O Império Universal e seus antípodas: a ocidentalização do mundo. São Paulo: Ícone, 1998. DICKENS, A. G.. A Reforma e a Europa do Século XVI. Lisboa: Verbo, 1971. FLORES, Moacyr. Colonialismo e missões jesuíticas. Porto Alegre: Nova Dimensão/EST, 1986. GODELIER, Maurice. Antropologia; ciência das socieaedades primitivas? Lisboa: Edições 70 HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre, Concórdia, 1981 HELLER, Agnes. O homem do Renascimento. Lisboa: Presença, 1982. KERN. Arno Alvarez. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto,
________. Utopias e missões jesuíticas. Porto Alegre: Ed. Universidade, 1994. LACOUTURE, Jean. Os Jesuítas: 1. Os conquistadores. Porto Alegre: L&PM, 1994 LUGON, Clovis. A República “comuniusta” cristã dos Guaranis: 1610-1768. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. MELIÀ, Bartolomeu. El Guarani conquistado y reducido. Asunción: Centro de Estudios Antropológicos; Universidad Católica, 1988. MONTOYA, Pe. Antonio Ruiz de. Conquista espiritualk feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. NEUMANN, Eduardo. O trabalho guarani missioneiro no Rio da Prata colonial (1640-1750). Porto Alere: Martins Livreiro-Editor, 1996.
QUEVEDO, Júlio. Guerreiros e Jesuítas na utopia do Prata. Bauru: EDUSC, 2000. _________. Aspectos das Missões no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1998. SEBE, José Carlos. Os jesuítas. São Paulo: Brasiliense, 1982. SEPP, Antonio, S. J. Continuación de las labores apostólicas. Edição de Werner Hoffmann. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1973. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2002