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Análise da obra 'je vous salue marie' de jean-luc godard por annie goldmann. Ela discute a polêmica que cercou o lançamento do filme, sua profunda espiritualidade e a maneira como godard atualiza a história de nascimento de jesus para a modernidade. A autora também aborda a representação de maria e josé, a ligação entre a fé e a ciência e a evolução da personagem de maria.
O que você vai aprender
Tipologia: Provas
Compartilhado em 07/11/2022
4.4
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Annie Goldmann Tradução: Mário Laranjeira
O perfume de escândalo que cercou o lançamento do filme de Godard obscurecen o seu verdadeiro significado. Considerado sacrílego por alguns, in- compreensível por outros, a polêmica ocultou a profunda espiritualidade, evi- dente, entretanto, desta obra. Como sempre, Godard surpreende ao mesmo tem- po pela novidade de sua abordagem, pela forma original e pela audácia da men- sagem. Diante do mistério da natividade de Jesus, Godard simplesmente pergun- tou a si mesmo: como contar essa história em nossa modernidade? Como contar um acontecimento tão extraordinário que se deu a 2 mil anos e que é o funda- mento de fé de milhões de indivíduos no mundo e, principalmente, como contá- lo em função dos modos modernos de comunicação? Enquanto Pasolini, com O Evangelho segundo São Mateus, permanece no registro são-sulpiciano da reconstituição histórica e da mensagem tradicional cristã, Godard tenta dela fazer a narrativa como se estivesse se dirigindo a crianças da nossa época, habituadas com os heróis das séries televisionadas e com a leitura das histórias em quadrinhos. É por isso que transpõe o maravilho- so cristão para o mundo imaginário de hoje, mistura de Pieds Nickeles e de Star Trek. Em vez de um anjo do outro mundo, Gabriel é um homem comum, que viaja de avião; já não é só e seráfico, mas pragmático e acompanhado por uma garota maliciosa, como a heroína de Alice no País das Maravilhas; a es- trela dos Reis Magos é substituída pela bandeirinha de um carro-socorro; Maria é filha de um frentista e membro de um time de basquete, e José é motorista de táxi... Gente simples, comum, exatamente como eram os pais de Jesus no tempo de Herodes. O lugar já não é o campo primitivo, mas a cidade com as suas ati- vidades — o trabalho de José, as relações humanas, as relações difíceis entre os homens e as mulheres, uma cidade alheia aos mistérios da fé, onde Maria vai encontrar-se sozinha para enfrentar o seu destino em meio à indiferença e ao ceticismo que caracterizam o mundo moderno. Esta opção de atualizar o acon- tecimento tem por função recolocar a problemática da mensagem cristã no mundo de hoje e não mais relegá-la ao museu imobilizado da instituição reli- giosa; os cartões repetitivos e insistentes Naquele tempo servem para marcar, ao mesmo tempo, a intemporalidade e a contemporaneidade do acontecimento. Ao transportar rigorosamente a natividade para o mundo atual, Godard atualiza por isso mesmo a mensagem milenar e lhe confere perenidade. Eis por que as duas personagens principais estão bem situadas em sua época e vivem os conflitos de um casal moderno: José tem um caso com outra mulher e Maria duvida do seu amor.
Entretanto, de acordo com a tradição, Maria é jovem, inocente e virgem. Diante da incapacidade da ciência para explicar a sua milagrosa fecundação, a moça vai aceitando pouco a pouco o inacreditável por caminhos outros que não os da razão. Como imaginar, em nossa época, semelhante acontecimento e co- mo fazê-lo aceitar aos outros? A princípio há a expectativa: a jovem espera al- go de extraordinário: "Indagava-me se algum fato notável ia acontecer na mi- nha vida" pois, contrariamente aos homens, "todas as mulheres desejam algu-
ma coisa que seja única neste mundo". Em seguida, após a Anunciação, ela vai aos poucos assumindo o seu destino e descobrindo uma outra dimensão na vida, uma dimensão secreta que não pode partilhar com ninguém, porque cada um deve fazer a sua própria descoberta da espiritualidade. "Quero que a alma seja corpo e não se poderá dizer que o corpo é alma (...) Não mais haverá sexuali- dade em mim, conhecerei o discurso verdadeiro da alma." Mas Maria é feita de carne humana, tem desejos de mulher e a castidade que se impõe lhe pesa. Nua na cama, vê-se a braços com o desejo, como todas as mulheres; e trava um combate desgastante contra a tentação; daí as alusões à masturbação recusada, que são talvez chocantes, mas que se inscrevem perfeitamente no projeto go- dardiano de tornar viva e credível a personagem. Tais tentações não empanam a espiritualidade de Maria, ao contrário, é pelo combate contra si mesma que atinge o mistério do espírito e se eleva em relação aos outros. Se tudo lhe fosse dado, se tudo lhe fosse fácil, o seu mérito seria menor. A sua ascese não está definitivamente adquirida, é o resultado de um esforço sobre a carne, sobre a vida cotidiana. Godard transgrediu a imagem tradicionalmente passiva de Ma- ria, simples receptáculo da Palavra, simples instrumento da Divindade, para lhe dar uma consciência, uma elevação pessoal que a coloca acima de todos os ou- tros. Ela adquire, enquanto mulher, uma verdadeira grandeza; ela é cheia de graça.
Para dar ao acontecimento uma significação ainda maior, Godard o liga ao cosmos. Maria está sozinha no meio dos seres humanos. "Há muito tempo não sei o que é uma conversação comum (...) Eu quisera falar como toda gente." — mas o universo inteiro participa da gestação miraculosa, os elementos e os as- tros — a lua, principalmente, astro feminino por excelência — acompanham-na; pela janela entreaberta do quarto, durante as noites solitárias e as sestas abrasa- doras, são os seus únicos confidentes, testemunhas protetoras do seu ventre que se arredonda; o vento, a água, os campos estão no segredo que os homens igno- ram. Maria está próxima do cosmos em movimento que, como Jesus, é criado por Deus. Mesmo o homem de ciência, o professor que tenta explicar aos seus alunos as leis da criação, acaba por admitir que um grande computador com uma inteligência fabulosa é o único ser que pode estar na origem da complexi- dade do universo. "A vida foi fruto de uma vontade, desejada, prevista, orde- nada por uma inteligência resoluta." A intervenção divina se dá em todos os níveis: no da criação e no da revelação através do menino que vai nascer^1. Há
(^1) Trata-se, bem-entendido, de uma análise do filme e não das minhas posições pessoais.
Ela voltou a ser uma mulher como as outras, que caminha pelas ruas da sua ci- dade, dirige o carro e se pinta. Perdeu a sua inocência e pureza. Eis por que, quando Gabriel cruza com ela por acaso e a interpela: "Ave, Maria", a lem- brança da extraordinária missão de que fora investida e que abandonou lhe aflora à mente por um instante; um véu de nostalgia e de melancolia — de culpa talvez — enrijece-lhe o rosto maquilado. Uma hesitação e... o batom se esmaga sobre a boca aberta, buraco negro, obsceno, mudo sobre o que foi e não mais será. Não haverá Mater Dolorosa nem Rainha do Céu; resta uma mulher co- mum que se juntou à materialidade do mundo. "Eu, sou algo como virgem, e nunca quis ser nada disso."
Para contar esta história moderna, Godard utiliza uma linguagem moder- na, aquela que uma criança de nossos dias conhece. O filme está construído em tomadas fixas, como figuras de história em quadrinhos bem enquadradas, legí- veis, entrecortadas de cenas paralelas que fazem alternar os dois universos, o de Maria, que sabe, e o dos outros. Aí tem cabimento o humor, as personagens estão muito próximas dos estereótipos das histórias em quadrinhos, como o anjo Gabriel, desajeitado e violento, moderado pela mocinha ("Não, não, tio Ga- briel, você está se enganando de texto."). É o universo infantil que Godard tenta reencontrar, desembaraçado de toda hagiografia^2. Mas a conclusão per- manece amarga: a oportunidade dada à humanidade foi perdida e esquecemos que ela nos foi dada.
(^2) Em dois lugares, entretanto, ele parece fazer concessões à imaginária tradicional: quan-
do do nascimento de Jesus, algumas tomadas de neve, de uma vaca e de um jumento in- serem-se artificialmente, e quando o rapazola atribui aos seus companheiros de brinca- deiras os nomes de seus futuros discípulos. Por outro lado, a frase "Eu sou aquele que é." pronunciada pelo menino parece uma interpretação abusiva, tendo sido dirigida por Deus a Moisés e certamente não por Jesus.
Annie Goldmann é diretora de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales (França) e participante de dois Cafés Acadêmicos no IEA em 1988.