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A Presença da Inveja na Cultura Universal: Origens e Relacionamento com o Ciúme, Notas de estudo de Cultura

Este texto discute a presença universal da temática da inveja na cultura, explorando suas fontes e origens, relacionando-a ao ciúme. O autor reflete sobre a importância da inveja na formação do ego e sua relação com a triangularidade, apontando para sua essencialidade humana.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Nazario185
Nazario185 🇧🇷

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Boletim Formação em Psicanálise
Ano XXVI - Vol. 26 | Nº 1 - 2018
Inveja na
triangularidade:
Ciúme, precursor da
Inveja?
Envy in the triangularity: Jealousy,
predecessor of Envy?
Cecília Noemí Morelli Ferreira de Camargo
Resumo:
O texto faz uma observação sobre a pre-
sença do tema da inveja na cultura universal.
Além disso, há uma reflexão sobre as fontes e
origens da inveja, diversificando e ampliando
a proposta anterior da linha inglesa de pen-
samento, ao relacioná-la ao ciúme, propondo
que este possa surgir concomitantemente ou
mesmo antes que a inveja.
Palavras-chave:
Inveja; Ciúme; Origens; Desencadeadores.
Abstract:
The text makes an observation about
the presence of the theme of envy in the
universal culture.In addition, there is a re-
flection on the sources and origins of envy,
diversifying and broadening the previous
proposal of the English line of thought, by
relating it to jealousy, proposing that it may
arise concomitantly or even before envy.
Keywords:
Envy; Jealousy; Origins; Triggers.
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Boletim Formação em Psicanálise Ano XXVI - Vol. 26 | Nº 1 - 2018 35

Inveja na

triangularidade:

Ciúme, precursor da

Inveja?

Envy in the triangularity: Jealousy,

predecessor of Envy?

Cecília Noemí Morelli Ferreira de Camargo Resumo: O texto faz uma observação sobre a pre- sença do tema da inveja na cultura universal. Além disso, há uma reflexão sobre as fontes e origens da inveja, diversificando e ampliando a proposta anterior da linha inglesa de pen- samento, ao relacioná-la ao ciúme, propondo que este possa surgir concomitantemente ou mesmo antes que a inveja. Palavras-chave: Inveja; Ciúme; Origens; Desencadeadores. Abstract: The text makes an observation about the presence of the theme of envy in the universal culture. In addition, there is a re- flection on the sources and origins of envy, diversifying and broadening the previous proposal of the English line of thought, by relating it to jealousy, proposing that it may arise concomitantly or even before envy. Keywords: Envy; Jealousy; Origins; Triggers.

Artigos Inveja na triangularidade: Ciúme, precursos da Inveja? 36

Cecília Noemí Morelli Ferreira Camargo ILUSTRAM O INÍCIO da apresentação deste texto imagens do filme Amadeus^1. Este texto foi escrito como homenagem à Melanie Klein, na comemora- ção dos sessenta anos da publicação de Inveja e Gratidão : tema controverso, universal e disseminado na cultura. Esta comemoração recoloca em desta- que a antiguidade do tema, que aparece já nas histórias do universo que fa- zem parte da cultura, referido mesmo antes da existência do ser humano 2. Encontrei no texto “Olhos de Caim” ideias que expressam meu pensamento: Uma das paixões mais características da natureza humana está presente na literatura, nos contos, nos mitos, nas narrações, nos aforismos, no fol- clore, na cultura popular e, dada a sua relevância, foi tratada por diferentes pensadores ao longo da história. Dentre eles, podemos citar: Aristóteles (384-322 a.C.), Ovídio (43-17? a.C.), Francis Ba- con (1561-1626), Freud (1856-1939), Melanie Klein (1882-1960), Lacan (1901-1981) e muitos outros. (figueiredo; ferreira, 2008, p.181) Quero lembrar que, ao me referir à longevidade e à amplitude da presença dos relatos sobre inveja, aponto para o fato de que estas são indicativas de uma ‘essencialidade’ intrínseca à inveja, uma inerência ao humano, e dele indissociável, anterior a qualquer ocorrência de frustração ou falta na vida de seu portador (figueiredo; ferreira, 2008). Assim, assumo que tal como Melanie Klein, entendo a inveja como a representante direta da pulsão de morte, com alta potencialidade destrutiva, e todas as implicações daí decorrentes. Mesmo que se pense que a inveja só pode aparecer com a primeira vi- vência de falta, seria possível relacioná-la ao desamparo desse ser vivente que seria disparado no nascimento, primeira vivência de falta e de separação. Não nos esqueçamos de que a atribuição de inveja até a seres ‘sobre- -humanos’, anjos, por exemplo, é feita em relatos construídos por seres hu- manos: ou seja, o relato refere-se a fantasias de seres humanos, tentando explicar e fazendo teorias sobre questões humanas; enfatizo o fato de que 1 Cenas do filme AMADEUS - Uma história verdadeira, apresentadas no evento MELANIE KLEIN - Inveja e Gratidão - 60 anos: “Even now, now, very now...”, realizado no Instituto Sedes Sapientiae em 21/9/2017. De 00:31 a 02:30min. 2 Texto apresentado no evento MELANIE KLEIN - Inveja e Gratidão - 60 anos: Even now, now, very now..., realizado no Instituto Sedes Sapientiae em 21/9/2017.

Artigos Inveja na triangularidade: Ciúme, precursos da Inveja? 38

Cecília Noemí Morelli Ferreira Camargo teira, entre outras. Outra origem etimológica possível é o prefixo ‘in’ desig- nando uma negativa, uma exclusão, de modo que in + videre pode significar a inveja daquele que se recusa a ver e reconhecer as diferenças entre ele e o outro, uma vez que esse outro possui ‘bens’ de que ele necessita. O desejo é substituído por uma ânsia de que o outro não os tenha, já que esta posse é vivida como uma ameaça e a inveja seria, então, uma forma de cegueira. Marco sua presença em alguns elementos da cultura. É interessante notar como em tempos em que há uma tecnologia bastante avançada, sejam encon- trados tantos sites da internet com títulos como: Como Lúcifer foi expulso do paraíso e transformado em Satanás? Ou, Nem sempre o capeta foi do mal. A exis- tência paralela de dois elementos tão opostos como o avanço da tecnologia, de um lado, e, de outro, a permanência de crenças em anjos e demônios, nos faz lembrar de Freud quando aponta a forte relação do homem com o animismo, mas também, de certo modo, de uma ‘libertação’ do mesmo. (freud, 1996) Alguns desses artigos contam que no segundo dia da criação, Deus teria criado o céu e nesse mesmo dia teriam surgido os anjos. Um deles, que im- pressionava por sua beleza, seria Lúcifer. Lúcifer seria um belíssimo anjo que teria pecado e por isso teria acaba- do por ser expulso do céu. O pecado de Lúcifer teria sido deixar sua beleza e alta posição na hierarquia celeste lhe dominarem a razão, recusando um pedido de Deus de louvar a nova criatura, o homem, feito à imagem e seme- lhança divinas. Lúcifer consideraria o ser humano inferior – afinal, ele teria sido criado antes. (LIMA, 2017) Orgulhoso, teria decidido construir seu trono acima do de Deus. Para enfrentar a batalha pelo paraíso, ter-se-ia transformado num terrível dra- gão. O lado fiel a Deus, o do bem, teria sido comandado pelo arcanjo Miguel, representado com um escudo com a frase latina “Quis ut Deus?” (“Quem é como Deus?”), pergunta que teria sido feita por Miguel a Lúcifer. O exército dos rebeldes não teria sido suficiente para vencer as hostes celestiais e os perdedores teriam sido enviados para o inferno onde deve- riam arder no fogo por toda a eternidade. Lúcifer teria pago um preço maior: teria sido transformado em Satanás e jurado vingança, prometendo destruir a raça humana. Como teria mantido seu poder angelical de mudar de apa- rência, disfarçar-se-ia de serpente para se insinuar no Jardim do Éden, onde teria convencido Eva a provar e dividir com Adão o fruto da árvore da vida, causando a expulsão do casal. Qual teria sido o grande motivo disparador de tão grave punição? A expulsão de Lúcifer está relacionada à atitude de questionar o poder divino do criador que, estabelecido, deve ser acatado e não questionado. Po-

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der-se-ia conjeturar que a não obediência absoluta é o sinal da existência de outro ser pensante, o que ameaçaria a plenitude desejada e suposta. E, ainda, que a existência de outro ser pensante introduz a relatividade que, por sua vez, conduz ao terreno da falibilidade insuportável. Onde está o ‘pecado’? Em quem questiona, pensa e com isso revela a existência da autonomia ou em quem não suporta ser questionado, nem, não cegamente acatado? E, o que dispara tal situação? A mim, é importante sublinhar a existência desse fenômeno no âmago da cultura, expressando uma dor que é aguda no invejoso: dor de ter que viver presenciando a existência do ‘bem’ como fazendo parte do outro de quem precisa receber; mais ainda, não podendo sentir esse ‘bem’ como in- trínseco à sua própria existência, mas sim a do outro de quem depende. Lembro-me de referências bíblicas onde aparece a mesma lógica: Caim e Abel; Esaú e Jacó, José e seus irmãos; a parábola do filho pródigo da qual existe representação em pintura de Rembrandt. Ainda no texto “Olhos de Caim” (figueiredo; ferreira, 2008), encon- tramos referências a Aristóteles (em 4 a.C.) que, na Retórica , trata a inveja

como uma das catorze paixões que caracterizam a alma humana. Oví-

dio (43 a.C.), em Metamorfoses , diz:

A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sem- pre trevas espessas [...]. A palidez cobre seu rosto e seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tár- taro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor [...]. Assiste com des- peito o sucesso dos homens e esse espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício. São Tomás de Aquino define a inveja como tristeza pelo bem alheio, o que a diferencia da cobiça ou voracidade, que é querer o que o outro é ou tem; na inveja há lamento e dor pela felicidade do outro e exultação por sua desgraça. (Informação verbal) 3 3 Palestra O pecado envergonhado. Citação de Tomás de Aquino, em 03:54min.

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Betty Joseph (1992), em A inveja na vida cotidiana , confirma a presen- ça disseminada da inveja e afirma que é curioso notar que, apesar de sua ubiquidade, o fenômeno até recentemente era pouco presente na literatura psicanalítica. Diz que Freud se refere à inveja do pênis e não se dedica mais longamente ao assunto. Salienta que apenas após a publicação de Inveja e Gratidão é que o tema passou a ter a notoriedade que lhe cabe. Por outro lado, aponta que o ciúme é tema mais presente na literatura psicanalítica. Diz que: [...] ciúme refere-se a relacionamento que envol- ve três pessoas: sente-se ciúme porque alguém a quem se ama, ou a quem se está ligado, demons- tra mais interesse ou afeição por outrem. Mas, de modo geral, isso é considerado normal, penso que porque o ciúme está baseado em amor, ou afeição por uma pessoa (...). Mas, com a inveja o quadro é diferente: ela envolve basicamente duas pesso- as e inveja-se o que a outra pessoa possui, ou suas capacidades, conquistas, qualidades pessoais, etc. A inveja envolve, em maior ou menor grau, uma qualidade espoliadora, ou pelo menos, hostilidade para com as boas capacidades da outra pessoa. (jo- seph, 1992, p.186) Priscilla Roth (2008, p.1), na introdução do livro Inveja e Gratidão revisitadas , aponta que: É impossível entender a discussão de Melanie Klein sobre o poder destrutivo da inveja separadamente de sua crença de que sua perniciosidade está preci- samente em sua interferência fundamental no es- tabelecimento do bom e amado objeto dentro do ego – a fundação para esperança, confiança e fé na bondade. Proponho-me a refletir sobre a proposta de Ignês Sodré (2008) em Even now, now, very now .... Para isto preciso voltar-me para o início da vida do bebê e perguntar o que teria desencadeado tão sérias consequências: - agravando uma dotação desfavorável ou – ocasionando, mesmo, as graves perturbações no desenvolvimento. Melanie Klein refere-se à inveja como uma experiên-

Artigos Inveja na triangularidade: Ciúme, precursos da Inveja? 42

Cecília Noemí Morelli Ferreira Camargo cia dual, diferenciando-a do ciúme. Ela descreveu também as fantasias do bebê sobre os pais combinados em uma relação sexual contínua e satisfató- ria -oral, anal e genitalmente falando. Em Inveja e Gratidão (1991), ela fala da inveja como despertando durante os mais precoces estágios do complexo de Édipo precoce, que inclui fantasias sobre o seio da mãe e sobre a mãe contendo o pênis do pai. Melanie Klein diferencia o que ela chama de inveja primária de outras formas de inveja subsequentes: inveja primária (a do seio materno) fica como um protótipo e persiste, prossegue e se amplia atingindo um espectro muito maior que ultrapassa os relacionamentos com o pai, com o interior materno, indo além das capacidades de gerar bebês e de amamentá-los; aqui nos permitimos pensar que chegando aos relacionamentos interpessoais em geral. A proposta de Ignês Sodré parece estar apoiada nesta ideia de Melanie Klein: e penso que é como se na dualidade própria do sentimento de inveja houvesse um desdobramento, uma vivência de triangularidade, que propicia, assim, uma nova organização das ideias sobre a relação da inveja com o ciúme. A ideia de triangularidade na experiência de inveja nasce da proposta de que a mesma surge no momento da diferenciação, no momento em que a separação sujeito/objeto é percebida. Nestes momentos em que ocorre esta percepção surge a fantasia, a crença de que o ‘bem’ necessitado está sendo dado a ‘outro’, um terceiro, mesmo se este terceiro for apenas a percepção de outros aspectos do próprio self (ou do objeto). É como se uma parte do sujeito (a que não está sendo alimentada) sentisse inveja/ciúme de outra parte de si mesmo (a fantasiada a partir da vivência do estado transitório de não falta, quando estava sendo alimentada). Sodré descreve este momento como um movimento da crença “o seio é a bondade” incluindo “e o seio sou eu”, para um quadro estático, no qual “o seio tem a bondade“ incluindo “e eu não o tenho, já que o seio não sou eu”. Esta triangularidade ou presença do terceiro (que estaria recebendo o que faz falta nesse momento) contém as sementes do que será o complexo de Édipo já desenvolvido; em sua aparição mais primitiva se relaciona a fan- tasias de satisfações orais, anais e genitais vividas na dupla seio/bebê. Sodré coloca as raízes deste processo na precoce relação de alimentação mãe/bebê, na qual em momentos de separação, a criança observa/ relembra de si mesma ao seio e percebe a alimentação da ‘criança ela mesma’, como a de um outro. Podemos supor, então, que experiências de frustração na relação com o seio, incrementariam o surgimento das fantasias da relação prazerosa do seio com o outro com quem o ‘bem’ estaria sendo compartilhado.

Artigos Inveja na triangularidade: Ciúme, precursos da Inveja? 44

Cecília Noemí Morelli Ferreira Camargo as atitudes espoliadoras e a impossibilidade de receber qualquer coisa do outro, características inerentes à inveja. A autora apresenta, também, uma reflexão sobre a relação da inveja com o ciúme e se refere à triangularidade, mas o faz de forma a mostrar não estar falando da triangularidade edípica. Vejamos: Na identificação precoce com o seio da mãe está o caráter narcisista da fantasia. (...) Mas, a mãe era ela mesma, um objeto duplo consistindo de duas partes: ela própria e suas posses: o pai, ou seu pê- nis (...) era uma de suas posses, das quais ela de- veria ser roubada. As posses da mãe consistiam de seus seios, do leite e o conteúdo de seu corpo: fe- zes, crianças e o pênis do pai; de tudo isso, ela de- via ser despojada. (...) a origem dessa fantasia é na fase oral erótica e oral sádica do desenvolvimento (...). Minha descrição mostrará sua derivação tam- bém da fase sádica de atacar os conteúdos do cor- po da mãe. Homens não eram pessoas reais ou ob- jetos totais para o inconsciente da paciente. Eram apenas o pênis ou possuidores de pênis. Mulheres eram objetos parciais, apreendidas como divisíveis em objetos parciais. Sem dúvida, a medida da ver- dadeira genitalização tinha sido conquistada; mas, o que eu quero comentar nesta situação ‘triangular’ que deve expressar o peso do objeto de amor é que esta deve estar enraizada no narcisismo. Ciúme e infidelidade podem ter suas fundações nos impul- sos sádico-orais. E, em pessoas cuja composição física inclua ciúme ou infidelidade como padrão, minha conclusão é que a ‘perda do amor’ ou a ‘bus- ca do amor’ se refere a algo mais profundo do que uma relação genital com o pai ou a mãe desejados. (riviere, 1932, p.7)^6 Vemos assim que a autora se refere a processos e fenômenos muito iniciais que, em sua proposta, teriam ocorrido antes da vivência da conflitiva edípica. 6 Tradução livre do original “Jealousy as a Mechanism of Defence”.

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Joan Rivière também apresenta uma relação entre ciúme e inveja e no mes- mo artigo diz: Gostaria de mencionar a confusão comum entre as palavras ’inveja’ e ‘ciúme’ que encontra uma derivação bem precisa na experiência da cena oral primária na qual os dois sentimentos seriam indis- tinguíveis. Esta e só esta experiência fornece a base racional para o agudo e desesperado sentido de falta e perda, de intensa necessidade, de vazio e desola- ção sentidos pelo ciumento de um triângulo. (...) Minha descrição das forças inconscientes atuando em toda situação física da paciente não faz justiça à parte desempenhada pela ansiedade e ação do supe- rego precoce na formação de uma situação de fan- tasia tão dominante como a descrita. Tais impulsos erótico-orais e sádico-orais governam toda a vida psíquica. (...) Sem dúvida, um motivo principal des- ta fantasia-chave era o da vingança sobre a mãe por toda privação imposta à criança, de sua posse dos desejados prazeres com o seio (...). (1932, p.8)^7 Estas reflexões de Ignês Sodré e Joan Rivière mostram pontos de conflu- ência entre os fenômenos da inveja e do ciúme, que se imiscuem e acabam formando um terreno onde ocorre uma espécie de ‘estancamento’ no de- senvolvimento tanto do superego que acaba por manter características pri- mitivas extremas, como consequentemente, também no desenvolvimento afetivo, como um todo. A reflexão sobre as ideias que estas autoras (Melanie Klein, Betty Joseph e Joan Rivière) propõem sobre a inveja e ciúme, reconduz à ideia da ‘es- sencialidade’ como característica da inveja, diferentemente do que acontece com a gratidão; embora o ‘quantum’ da essencialidade da inveja interfira na gratidão, esta pressupõe uma construção, um processo, um trabalho. Se na inveja a existência do ‘bem’ no outro é insuportável, na gratidão, o reco- nhecimento da existência do outro de quem se recebe é aceito e bem-vindo. Para Melanie Klein, gratidão é “essencial na construção da relação com o bom objeto e (...) e na apreciação do ‘bem’ nos outros e em si mesmo, um 7 Tradução livre do original “Jealousy as a Mechanism of Defence”.

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sem ser tão ameaçado pelo que lhe falta e de, assim, ter que aprender a viver fora do paraíso sonhado... e perdido. Esta talvez seja a saga da qual não pode escapar... Desejando não se sentir ameaçado, sonha com seres plenos dos quais, no entanto, não sente que faz parte. Fantasia algo muito malévolo que o priva deste pertencimen- to. E, esse ‘algo’ precisa ser castigado por este pecado imperdoável, tendo a existência negada e extinta. Ao apropriar-se daquilo que lhe falta, como se sempre tivesse lhe pertencido, condena-se a viver na mais absoluta solidão e isolamento... Sob a pena de ter de reconhecer a quase insuportável e amarga falibili- dade, não a enfrenta e não desfruta do banquete que a vida é. Aos que tiverem podido viver a ideia de ter recebido ‘o bem’, podendo guardar em si mesmos o doce sabor do presente sonhado e recebido, será possível sentir gratidão pelo ‘algo’ que lhe foi presenteado, compartilhando com ele o néctar da vida. Aos que não tiverem podido libertar-se do ciúme daquele que invejam por possuírem o que lhes falta, sem perceberem o que recebem, restará o vazio. Sendo a gratidão o sentir reconhecimento por ter recebido a doçura do essencial para a vida, e, implicando a inveja o não poder receber, o invejoso está fadado a viver no amargor da impossibilidade de se sentir grato a quem supõe estar compartilhando o ‘bem’ com o outro.

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Cecília Noemí Morelli Ferreira Camargo REFERÊNCIAS AMADEUS. Direção de Milos Forman. Produção de Saul Z. Intérpretes: Tom H. Roteiro: Peter Shaffer. Música: Neville Marriner. Estados Unidos: Warner Bros, 1985. 1 (180 min.), DVD, son., color. Legendado. CAMÕES, L. Lírica-épica-teatro-cartas. São Paulo: Moderna, 1990. 200 p. FIGUEIREDO, M. F.; FERREIRA, L. A. Olhos de Caim. Coleção Mestrado em Linguística , Franca, v. 3, p.181-197, 2008. Anual. Disponível em: <http://publi- cacoes.unifran.br/index.php/colecaoMestrado Em Linguistica/article/view- File/417/344>. Acesso em: 30 jun. 2018. FREUD, S. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. JOSEPH, B. A inveja na vida cotidiana. In: JOSEPH, B. Equilíbrio psíquico e mudança psíquica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 185-194. KLEIN, M. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-163). Rio de Janeiro: Ima- go, 1991. 398p. LIMA, C. C. Como lúcifer foi expulso do paraíso e transformado em Satanás. 2017. Disponível em: <https://mundoestranho.abril.com.br/curiosidades/como-lu- cifer-foi-expulso-do-paraiso-e-transformado-em-satanas/>. Acesso em: 02 jul. 2018. O PECADO ENVERGONHADO: a inveja. Produção de Cpfl. Realização de TV Cultura. [s.l], 2017. (50 min.), son., color. Série Sete prazeres capitais – pe- cados e virtudes hoje. Citação de Tomás de Aquino. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=eGBSgFcf1gY. Acesso em: 02 jul. 2018. RIVIERE, J. Jealousy as a Mechanism of Defence. International Journal of Psy- cho-analysis , [s.l], v. 13, p.414-424, 1932. SHAKEASPEARE, W. Otelo. Porto Alegre: L&pm, 2017. 176 p. SODRÉ, I. Even now, now, very now ...: On envy and the hatred of love. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Org.). Envy and gratitude revisited. Londres: Karnac,

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