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Abordagens Existenciais em Psicopatologia: Heidegger, Sartre e a Análise do Projeto, Esquemas de Psicopatologia

Este artigo aborda as abordagens existenciais em psicopatologia, com ênfase na filosofia de heidegger e sartre. A primeira parte discute a daseinanalyse de binswanger e a psicopatologia fenomenológica-existencial, enquanto a segunda parte explora a análise existencial de sartre e sua aplicação à psicopatologia. O artigo reserva-se para a designação de análise existencial na acepção de análise do projecto existencial.

O que você vai aprender

  • Quais são as principais abordagens existenciais em Psicopatologia?
  • Qual é a importância da filosofia existencial para a psicopatologia?
  • Como Sartre desenvolveu a análise existencial do projecto existencial?
  • Que é a Daseinanalyse e como ela difere da psicopatologia fenomenológica-existencial?
  • Como as abordagens existenciais influenciam a compreensão da perturbação mental?

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Carnaval2000 🇧🇷

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As abordagens existenciais em Psicopatolo-
gia, tal como as abordagens fenomenológicas,
não se constituem como uma posição unificada e
incluem vários pontos de vista. Fundamentam-se
primordialmente na procura do significado da
existência desenvolvida nas obras filosóficas de
S. Kierkegaard (1813-1855), F. Nietzsche (1844-
-1900), M. Heidegger (1899-1976) e J.-P. Sartre
(1905-1980), cujos temas essenciais foram a an-
gústia, a razão/desrazão, a morte, a liberdade, a
autenticidade e os valores (Olson,1962).
A analítica do Dasein de Heidegger, enquanto
clarificação filosófica da estrutura transcendental
ou apriorística do ser-no-mundo, e a psicanálise
existencial de Sartre na qual o Homem aparece
como hermeneuta do seu-mundo através da sua
própria história e através do seu projecto exis-
tencial, aparecem como os dois pilares principais
das abordagens existenciais.
A primeira constitui o suporte fundamental da
Daseinanalyse introduzida por L. Binswanger e
continuada por M. Boss como análise psicopato-
lógica (empírico-fenomenológica) dos modos e
formas da existência perturbada, tomando como
ponto de partida as categorias diagnósticas da
Psicopatologia.
A segunda, desinteressando-se da análise me-
tafísica ou ontológica do ser, centrou-se na
análise da existência concreta (não do ser, mas
sim do seu-mundo) tomando como ponto de
partida, não as categorias da Psicopatologia,
mas a existência total com o objectivo de trazer à
claridade as escolhas que o Homem faz para se
tornar uma pessoa (o quem) e que Sartre desen-
volveu em obras como «Baudelaire», «O Idiota
da Família», «Flaubert» e «Saint Genet, Come-
diante e Mártir», entre outras. As suas concep-
ções inspiraram Martín Santos, Rollo May, R.
Laing e D. Cooper, entre outros.
Por vezes existe certa confusão entre o pensa-
mento fenomenológico e as abordagens existen-
ciais em Psicopatologia. Tal facto resulta essen-
cialmente da tradução da designação Daseinana-
lyse – utilizado para denominar o método desen-
volvido por Binswanger no quadro de uma abor-
dagem fenomenológica – por análise existencial
(Ionescu, 1991). Como referem Boss e Condreau
(1975), esta tradução envolve concepções muito
diversas e uma série de métodos terapêuticos
195
Análise Psicológica (1997), 2 (XV): 195-205
Introdução às abordagens fenomenológica
e existencial em psicopatologia (II): As
abordagens existenciais
JOSÉ A. CARVALHO TEIXEIRA (*)
(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada.
Coordenador do Grupo de Estudos de Psicologia e
Psicopatologia Fenomenológicas e Existenciais.
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As abordagens existenciais em Psicopatolo- gia, tal como as abordagens fenomenológicas, não se constituem como uma posição unificada e incluem vários pontos de vista. Fundamentam-se primordialmente na procura do significado da existência desenvolvida nas obras filosóficas de S. Kierkegaard (1813-1855), F. Nietzsche (1844- -1900), M. Heidegger (1899-1976) e J.-P. Sartre (1905-1980), cujos temas essenciais foram a an- gústia, a razão/desrazão, a morte, a liberdade, a autenticidade e os valores (Olson,1962). A analítica do Dasein de Heidegger, enquanto clarificação filosófica da estrutura transcendental ou apriorística do ser-no-mundo, e a psicanálise existencial de Sartre na qual o Homem aparece como hermeneuta do seu-mundo através da sua própria história e através do seu projecto exis- tencial, aparecem como os dois pilares principais das abordagens existenciais. A primeira constitui o suporte fundamental da Daseinanalyse introduzida por L. Binswanger e continuada por M. Boss como análise psicopato-

lógica (empírico-fenomenológica) dos modos e formas da existência perturbada, tomando como ponto de partida as categorias diagnósticas da Psicopatologia. A segunda, desinteressando-se da análise me- tafísica ou ontológica do ser, centrou-se na análise da existência concreta (não do ser , mas sim do seu-mundo ) tomando como ponto de partida, não as categorias da Psicopatologia, mas a existência total com o objectivo de trazer à claridade as escolhas que o Homem faz para se tornar uma pessoa (o quem ) e que Sartre desen- volveu em obras como « Baudelaire », « O Idiota da Família », « Flaubert » e « Saint Genet, Come- diante e Mártir », entre outras. As suas concep- ções inspiraram Martín Santos, Rollo May, R. Laing e D. Cooper, entre outros. Por vezes existe certa confusão entre o pensa- mento fenomenológico e as abordagens existen- ciais em Psicopatologia. Tal facto resulta essen- cialmente da tradução da designação Daseinana- lyse – utilizado para denominar o método desen- volvido por Binswanger no quadro de uma abor- dagem fenomenológica – por análise existencial (Ionescu, 1991). Como referem Boss e Condreau (1975), esta tradução envolve concepções muito diversas e uma série de métodos terapêuticos

Análise Psicológica (1997), 2 (XV): 195-

Introdução às abordagens fenomenológica

e existencial em psicopatologia (II): As

abordagens existenciais

JOSÉ A. CARVALHO TEIXEIRA (*)

(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Coordenador do Grupo de Estudos de Psicologia e Psicopatologia Fenomenológicas e Existenciais.

que, por vezes, estão em oposição entre si. Neste artigo reserva-se a designação análise existencial na acepção de análise do projecto existencial, inspirada nas concepções de Sartre.

Em artigo publicado anteriormente (Teixeira,

  1. identificaram-se pontos de convergência nas abordagens fenomenológicas e existenciais e introduziram-se as correntes principais da psico- patologia fenomenológica: fenomenologia descritiva e compreensiva de K. Jaspers, feno- menologia genético – estrutural de E. Minsko- wski e a psicopatologia fenomenológico – exis- tencial ( Daseinanalyse ) de L. Binswanger. Pre- tende-se agora promover uma introdução às abordagens propriamente existenciais em Psico- patologia.
  1. FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS

A análise do Dasein de L. Binswanger repre- sentou uma espécie de «casamento» entre a filo- sofia existencial de Heidegger e a metodologia psicanalítica de Freud, tomando como ponto de partida as categorias diagnósticas da Psicopato- logia e não o Homem na sua totalidade, com uma preocupação essencialmente onto(pato)ló- gica e psiquiátrica. Assentou na ideia de que o patológico seria o que se afastaria da estrutura apriorística do ser (dos existenciais temporali- dade, espacialidade, etc.) e se tornou estrutura existencial modificada. É análise da existência (Da SEIN ), do sujeito transcendental, e não do existente ( DA sein). Para Sartre é do existente ( DA sein) mesmo que se trata. A psicanálise existencial é a análise do existente , de como se estrutura o seu-mundo particular, concreto (Villegas, 1994). É análise do Homem como ser, cuja existência precede a essência. A vida não é determinada nem ante- cedida de nenhuma realidade ideal, pelo que a existência é contingente e gratuita. Deste modo, o Homem fica obrigado a inventar a sua própria vida, com uma responsabilidade total e irredu- tível. Mesmo que não queira tem que escolher: não escolher já é, em si mesmo, uma escolha. O ser do Homem é uma carência de ser (um nada), uma ausência. Assim sendo, existir ( ex- -istir ), no sentido de estar fora de si mesmo, é pro-jecto , é «estar adiante»: espaço temporal

através do qual se projecta o ser. O Homem é apenas o que ele projecta para si, negando os seus condicionamentos, lançando-se para a frente de si mesmo e realizando-se na direcção do futuro. Quem se projecta no mundo é o sujeito que constrói a sua história (vida), dotado de uma consciência projectante. O projecto apa- rece como o nexo estruturador da existência. Deste modo, o Homem não é uma totalidade, acabada e determinada, mas sim uma processo incompleto de totalização. Deste ponto de vista, todas as manifestações do comportamento huma- no seriam expressões do projecto existencial, projecto fundamental de autocriação e constru- ção do seu próprio destino. Em Sartre destaca-se também a ameaça que a presença do outro constitui para a minha exis- tência, porque dotado da mesma liberdade: o que eu faço aparece ao outro como objecto. Ou seja: o meu processo incessante de totalização é cons- tantemente congelado pelo outro que, objecti- vando-me, reduz-me a uma totalidade acabada na qual se perde a condição de sujeito e se passa a ser-para-o-outro , na condição de objecto. Assim, as relações interpessoais aparecem como relações essencialmente conflituais («o Inferno são os outros»), vistas como eternos lugares de alienação e de eliminação de mim enquanto hori- zonte de possibilidades e de projecto de futuro. O Homem é assim colocado perante os con- dicionamentos do seu passado e as acções dos outros. Ambos o aprisionam, mas o sujeito deve sempre tentar superar esta situação, projectando- -se para além dela, trancendendo-a e transcen- dendo-se. Assim, é nele próprio que reside a transcendência. Esta realidade humana só po- deria ser apreendida pela lógica dialéctica que abrange duas componentes: regressiva e progres- siva. A componente regressiva é a que descreve e analisa a situação e define o leque de possibilida- des dentro da qual o projecto se forma e se ex- pressa. A componente progressiva é a que capta a conduta e as suas obras como superação da situação e manifestação do projecto.

Não é possível, no âmbito deste artigo, abor- dar exaustivamente os fundamentos filosóficos das abordagens existenciais em Psicopatologia. No entanto, é desejável introduzir, de forma ne- cessariamente breve, alguns temas do existencia-

situação, mas pode escolher a sua atitude em relação à sua situação e, também, o que faz com ela. A liberdade só encontra no mundo as limi- tações que ela mesmo colocou, estabelecendo os obstáculos com os quais se vai defrontar. Assim, apenas a liberdade pode limitar a liberdade e o Homem fica prisioneiro dela, condenado a ser livre (Sartre, 1943). A liberdade aparece como um facto contingente que nasce com o ser, que não pode escolher não ser livre, como também não pode escolher ser livre.

1.4. O projecto

Com Sartre apareceu o conceito de projecto fundamental , enquanto coerência interna da ma- neira de ser de cada pessoa, que emergiria con- temporaneamente a todas as suas condutas, re- flectindo uma escolha originária (Perdigão, 1995). De acordo com ele, todas as manifesta- ções da vida humana (acções, emoções, senti- mentos, discurso) seriam diferentes expressões do projecto que, sendo dotado de certa perma- nência, não é necessariamente imutável. O projecto emerge de um desejo abstracto de ser, na medida em que para agir o Homem tem que estabelecer projectos: decidir, entre as coisas que podem ser feitas, as que ele irá fazer. A estrutura da existência do Homem é narra- tiva, a narrativa que ele faz sobre si próprio, que constitui a sua história. Tomando como ponto de partida essa narrativa seria possível analisar o seu projecto existencial, a chave organizadora da sua existência, a escolha originária que faz de si mesmo em situação, escolha livre que se identi- fica com o seu destino e que envolve as suas construções pessoais duradouras e significativas ao nível dos sentimentos, dos compromissos e da realização de si. Abriu assim caminho para uma perspectiva que não tem interesse directamente psicopatoló- gico, mas sim terapêutico (Villegas, 1994): a análise da existência como expressão de um projecto concreto, permite confrontar aberta- mente este projecto para assumi-lo e re-elaborá- -lo, na linha da autorrealização.

1.5. Os valores

Os pontos de vista existenciais referem que a vida de cada homem é marcada por perdas irre-

paráveis, pelo que os sentimentos de frustração, insegurança e dor seriam inerentes à condição humana. Esses sentimentos seriam geradores de valores que, com aquela proveniência, seriam os únicos suportes que o Homem teria para continu- ar a sua caminhada. Assim, esses valores teriam todos a mesma proveniência: a consciência de tragédia inerente à condição humana, que se manifesta na angústia e no sofrimento. Ao mesmo tempo, teriam todos a mesma fun- ção e uma mesma característica. A sua função seria a de libertar dos medos e das frustrações da vida de todos e do tédio, enquanto que a sua ca- racterística comum seria a sua intensidade. Genericamente, esses valores seriam a liber- dade de escolha , a dignidade individual , o amor e a criatividade , embora os diferentes autores não estejam todos de acordo quanto à sua impor- tância relativa (Olson, 1962).

  1. ASPECTOS GERAIS DAS ABORDAGENS EXISTENCIAIS EM PSICOPATOLOGIA

As abordagens existenciais em psicologia e psicopatologia implicam a consideração prévia de quatro princípios fundamentais (Brennan, 1994):

  • A pessoa é conceptualizada como um indi- víduo que existe como um ser-no-mundo , o que quer dizer que a existência de cada pes- soa é única e reflecte percepções, atitudes e valores individuais
  • O indivíduo é considerado como resultado do seu desenvolvimento pessoal, pelo que a sua experiência psicológica individual é a chave para a compreensão da sua existência
  • O indivíduo move-se numa trajectória vital na qual luta contra a despersonalização da sua existência que pode ser levada a cabo pela sociedade, que o pode conduzir à alie- nação e à solidão
  • O indivíduo ( o ser ) está sempre em situa- ção (no-mundo) , o que limita as suas res- postas possíveis, implica uma liberdade situada e escolhas em situação
  • O método fenomenológico é o método de investigação que permite conhecer a expe- riência individual.

Complementarmente, surge o estar compro- metido com a tarefa, sempre inacabada, de descoberta, de posicionamento e de dar sentido à sua própria existência, constantemente questio- nado por si mesmo, pelos outros e pelo mundo. O indivíduo não tem escolha a não ser a de actuar e encontrar significados nas suas próprias acções, considerando que as acções são limitadas pelas circunstâncias e que quando ele se implica, escolhendo, não conhece as consequências disso. Apesar disto, está inevitavelmente comprome- tido nas suas tarefas vitais, pelas quais é irrevo- gavelmente responsável, ao mesmo tempo que está em constante relação com os outros, relação existencial que é encontro ( estar-com ) que implica (Teixeira, 1996): a presença (de estar- -por-si ), a reciprocidade (enquanto troca ou es- tar-para-o-outro , comportamento mútuo de co- -relação), o cuidado (acolhendo o outro na sua esfera vital) e, ainda, o laço emocional entre um eu e um tu que criam um nós , mas que deixa o outro ser como é. As abordagens existenciais são abordagens compreensivas , que não estão interessadas em relações de tipo causa-efeito mas sim em enten- der o como , a totalidade da existência. Isto quer dizer que as abordagens existenciais em Psicopatologia tentam contextualizar os esta- dos psicopatológicos na totalidade da existência. O seu ponto de partida não podem ser, portanto, as categorias da Psicopatologia (as categorias diagnósticas que imobilizam e encerram o indi- víduo no seu passado e no seu presente) mas sim o existente, a totalidade da sua existência. Neste aspecto diferenciam-se radicalmente das concep- ções da Daseinanalyse de Binswanger, para o qual o ponto de partida são os estados psico- patológicos, para evidenciar neles a inflexão dos existenciais, da dimensão ontológica do Dasein. Nas abordagens existenciais, a psicopatologia ( o perturbar-se ) aparece assim como uma possi- bilidade humana universal e os estados psicopa- tológicos como fenómenos biográficos, relativi- zando-se assim a diferenciação entre normal e patológico e evidenciando-se neles um signifi- cado que se relaciona com o ser-no-mundo.

Dois aspectos essenciais merecem atenção para caracterizarmos devidamente este tipo de abordagens:

  • O que são os fenómenos psicopatológicos
  • O paciente como ser-no-mundo.

2.1. O que são os fenómenos psicopatológicos

Não é possível individualizar uma posição teórica comum às variadas e multifacetadas abordagens existenciais. No entanto, a posição teórica predominante é a que relaciona os fenó- menos psicopatológicos com a estranheza e o afastamento do indivíduo em relação a si mes- mo. Isto é, os fenómenos psicopatológicos são relacionados com inautenticidade e alienação de si. As perturbações (psicopatologia) teriam relação com o fracasso do indivíduo em relacio- nar-se de forma significativa consigo mesmo, com o seu mundo interno (« Eingenwelt »). Sem o si-mesmo (inautenticidade), o sujeito não pode- ria experimentar o ser-no-mundo, a existência. Incapaz de aceder ao seu mundo interno, seria também incapaz de aceder ao mundo interno dos outros, pelo que não lhe seria possível o encon- tro ( estar-com ) nem as interacções significativas. Teria lugar assim uma redução importante da experiência, com bloqueio do desenvolvimento pessoal. Finalmente, surgiria a angústia relacio- nada com o afastamento de si-mesmo e o vazio associado à falta de sentido.

2.2. O paciente como ser-no-mundo

A conceptualização do paciente como um ser-no-mundo é central nas abordagens existen- ciais em Psicopatologia, quer dizer que a sua existência é única e que também a ele, enquanto existente, aplicam-se-lhe os princípios acima mencionados, que caracterizam a psicologia existencial. O ser-no-mundo descobre-se nos mundos simultâneos que são o meio ambiente (« Umwelt »), o mundo das interrelações com os outros (« Mitwelt ») e o mundo interno, da relação consigo mesmo (« Eigenwelt »), o mundo próprio. É neste quadro que o paciente, o Homem pertur- bado, aparece como ser-no-mundo, visto tal co- mo ele é, a descobrir quer como ser humano quer como ser-no-mundo. Para o Homem perturbado, tal como para o Homem não-perturbado, as questões são exactamente as mesmas: quem sou eu como ser-no-mundo? qual é a minha identi-

Os trabalhos de Rollo May tiveram influência significativa em vários autores norte-americanos dos quais se destacam J. Scher, A. Van Kaam, A. Maslow e J. Bugental, entre outros

3.2. I. Yalom e a angústia gerada pelos con- flitos existenciais

No seu livro Existential Psychotherapy (1980), I. Yalom desenvolveu uma concepção própria na qual a psicopatologia emerge da falência das estratégias utilizadas pelo sujeito no confronto com a angústia que deriva do que chamou os conflitos existenciais. Um conflito existencial é, para este autor, um conflito que emana do confronto do indivíduo com as preocupações essenciais da existência, preocupações que fazem parte da existência do ser-no-mundo: a morte (existência/finitude), a li- berdade (autonomia/dependência), a solidão (isolamento/sociabilidade) e a falta de sentido para a vida (projecto/sem sentido para a vida). A psicodinâmica existencial refere-se aos medos e motivações geradas por qualquer uma delas, que pode surgir em relação com a situação existen- cial do Homem. Yalom identifica as diferentes estratégias uti- lizadas no confronto com a angústia emergente dos conflitos existenciais e, na sua falência, refere-se aos quadros psicopatológicos daí resul- tantes.

3.3. A. Maslow e a autorrealização

Em Toward A Psychology of Being (1962), A. Maslow discutiu o conceito de autorrealização, considerando que o indivíduo tem no seu interior uma propensão natural para o desenvolvimento e para a unidade da sua personalidade, um conjun- to único de características e um impulso auto- mático para exprimi-las. Do seu ponto de vista, uma vez satisfeitas as motivações básicas (fisio- lógicas), o indivíduo trata de tentar satisfazer as suas necessidades superiores: segurança, amor, pertença, identidade e auto-estima. Uma vez sa- tisfeitas estas, tenderá a consagrar-se à tarefa da sua autorrealização, integrada numa série de necessidades de conhecimento (sabedoria, conhecimento interno ou insight ) e estéticas (coerência, integração, beleza, meditação, criati- vidade e harmonia).

Para Maslow a autorrealização aparece como um processo natural do ser humano e a psicopa- tologia surge associada ao seu défice. Este, re- sultaria de obstáculos à autorrealização prove- nientes do contexto social que pode forçar o indivíduo a abandonar o desenvolvimento da sua personalidade única, para aceitar papéis sociais inadequados e convencionalismos paralisantes.

3.4. V. Frankl, o vazio existencial e a neurose existencial

Foi essencialmente V. Frankl o introdutor da logoterapia, quem caracterizou as duas etapas da falta de sentido para a vida (Frankl, 1969, 1963): o vazio existencial e a neurose existencial. O vazio existencial , que também chamou de frustração existencial, caracteriza-se por um estado de aborrecimento, apatia e inutilidade no qual o indivíduo carece de direcção e questiona a finalidade de todas as actividades da sua vida. Por vezes, queixa-se de vazio, uma forma de descontentamento vago quando termina as actividades da semana, dando-se conta que não há nada que deseje fazer. A neurose existencial corresponderia a uma fase mais avançada, na qual para além dos sentimentos explícitos de falta de sentido para a vida, o indivíduo desenvolve outros sintomas neuróticos. Esta neurose existencial (ou noogé- nica ), essencialmente formada por sintomas que preenchem o vazio existencial, poderia assumir qualquer modalidade da psicopatologia neuró- tica.

3.5. S. Maddi, o aventureirismo, o niilismo e a vegetabilidade

S. Maddi considerou que uma proporção importante da psicopatologia actual resultaria da carência da sentido para a vida e descreveu três modalidades de «doença existencial» (Maddi, 1979, 1967), designação que, em si mesma, não parece muito adequada: aventureirismo, niilismo e vegetabilidade. O aventureirismo caracteriza-se por uma atracção poderosa para procurar e entregar-se a causas dramáticas e importantes, num activismo compulsivo e indiscriminado que se destinaria a lutar contra o sentimento de falta de significado, aborrecimento e vazio existencial, em que qual-

quer tipo de causa ou actividade serve. Aparece associado a uma oscilação entre aborrecimento/ /exaltação e indolência/decisão – desafio. Pode ligar-se a psicopatologia afectiva, borderline e de abuso de substâncias. O niilismo caracteriza-se por uma tendência activa e profunda a desacreditar as actividades que os outros levam a cabo por acreditarem que são significativas, já que o indivíduo considera que nada é significativo, uma espécie de anti- significado, no qual transmite desgosto, raiva e desespero. Nada é o que parece ser: o amor não é altruísta mas sim egoísta; a filantropia é uma forma de expiar culpas; as crianças não são ino- centes; os dirigentes estão enlouquecidos pelo poder, etc. O indivíduo aparece empenhado em demonstrar a futilidade em acreditar que alguma coisa tenha sentido. Pode ligar-se a psicopa- tologia obsessiva e paranóide. A vegetabilidade é o grau mais avançado da falta de finalidades em que o indivíduo mostra- se sem objectivos e apático, com incapacidade persistente para acreditar na utilidade e no valor das tarefas e actividades. Não consegue imaginar nada que valha a pena e o estado emocional é aborrecimento intenso, com inércia e indife- rença. Pode ligar-se a psicopatologia depressiva e esquizofrénica.

3.6. R. Laing, e a insegurança ontológica

Ronald Laing tem sido também um dos principais divulgadores do pensamento existen- cialista no campo da psicopatologia e da psiquia- tria, acentuando a importância da análise feno- menológica do mundo do paciente, inicialmente influenciado por Kierkegaard, Jaspers, Heideg- ger, Sartre, Binswanger e Tillich (Spiegelberg, 1972), mas decididamente interessado, junta- mente com D. Cooper, na filosofia existencialista de Sartre que, inclusivamente, num prefácio, manifestou o seu apoio às concepções eviden- ciadas na abordagem das perturbações mentais. A partir da compreensão de indivíduos com psicopatologia esquizofrénica, R. Laing intro- duziu o conceito de insegurança ontológica como uma ansiedade relacionada a aconteci- mentos que se associam ao que chamou afoga- mento ( engulfment ) da sua própria identidade, de implosão provocada por um mundo invasivo ou de petrificação (Laing, 1965).

Considerou que um indivíduo basicamente seguro do ponto de vista ontológico enfrentará todos os riscos da vida, de natureza social, ética, espiritual e biológica, com um sentimento firme da sua própria realidade e identidade, assim como a dos outros. Apresenta o que chama de segurança ontológica primária, enquanto posição básica existencial que é construída no decurso do desenvolvimento e que permite ao indivíduo sentir o seu próprio ser como real, vivo e com- pleto, diferenciado do resto do mundo, possuidor de consistência interna, substancialidade, autenticidade e valor, espacialmente co-exten- sivo com o corpo, de tal maneira que a sua iden- tidade e autonomia não são questionadas. Neste caso, as circunstâncias mais comuns da vida não se constituem como ameaçadoras e as rela- ções interpessoais são potencialmente gratifi- cantes. Pelo contrário, se existe insegurança on- tológica o indivíduo terá que se absorver na pro- cura de meios para tentar ser real, preservar a sua identidade e impedor a perda do seu próprio self. Laing diferenciou três modalidades de ansie- dade relacionadas com a insegurança ontológica:

  • Absorção , na medida em que a sua incer- teza prévia relativiza a estabilidade da sua autonomia e identidade o faz temer perder a sua identidade na relação com o outro. O medo da perda do seu ser pela absorção na outra pessoa ( engulfment ) leva ao isola- mento
  • Implosão , enquanto medo da invasão da realidade. Apesar de se sentir vazio e an- seie para que o vazio venha a ser preenchi- do, o indivíduo teme que isso venha a acontecer, pelo que qualquer contacto com a realidade é experimentada como uma ameaça, porque é sentida como uma reali- dade implosiva e persecutória
  • Petrificação , entendida como medo de de transformar ou ser transformado de pessoa viva em algo morto, num robot, num autó- mato, sem autonomia pessoal, um objecto sem subjectividade, afogado, invadido ou congelado pelo outro.

3.7. D. Cooper e a situação esquizofrénica

Para D. Cooper, como de resto para R. Laing, a génese, as manifestações e a solução terapêu-

tual , centrada na redundância (conteúdos) e na coerência (relações estruturais) e que permite aceder às relações de conteúdo e à extracção de significados. Especificamente enquanto abordagem existen- cial em Psicopatologia pode ter interesse signi- ficativo para investigar se existem características comuns na estruturação do discurso de sujeitos que apresentam o mesmo tipo de perturbação (psicopatologia), nomeadamente para identificar a existência duma modalidade específica de fracasso do projecto existencial. Ao mesmo tem- po, pode permitir também aceder às caracterís- ticas que permitam diferenciar modalidades diferentes de estruturação do discurso relacio- nadas com diferentes estados psicopatológicos.

  1. ABORDAGENS TERAPÊUTICAS

Apesar deste artigo, tal como o anterior (Carvalho Teixeira, 1993), ter como finalidade essencial fazer uma introdução às abordagens fenomenológicas e existenciais em Psicopatolo- gia , faz sentido também referir, ainda que de forma muito sucinta, as abordagens que apare- cem em Psicoterapia que, só por si, justificariam outros trabalhos de revisão. Tal como Martín-Santos (1964) e Villegas (1994), consideramos uma diferenciação muito clara entre :

  • Terapias humanístico / experienciais Tomam por objecto as vivências , focalizam na dimensão actual (aqui-e-agora), têm por fina- lidade o crescimento pessoal , usam metodologia heurística e envolvem essencialmente a dimen- são emocional/afectiva do funcionamento men- tal. Tendo como influências essenciais o existen- cialismo fenoménico (centrado em torno da vi- vência ou da experiência do fenómeno) de S. Kierkegaard e M. Buber, estes métodos tera- pêuticos incluem a Terapia Centrada na Pessoa de Carl Rogers, a Gestalterapia de Fritz Perls, o Focusing de Gendlin e a Análise Bioenergética
  • Terapias Transpessoais Com inspiração na tradição mais espiritualista de William James, e tomando como objecto as experiências cumbres , as terapias transpessoais

têm dimensão transcendental e finalidade de autorrealização (tal como foi formulada por A. Maslow), focalizando essencialmente na dimen- são das crenças. Podem aqui incluir-se a Logote- rapia de V. Frankl, bem como várias técnicas orientais (meditação Zen/Yoga, por exemplo) tão em voga nos Estados Unidos

  • Terapias Existenciais Com as influências do existencialismo feno- menológico europeu de Heidegger e de Sartre, tomam por objecto a existência , têm dimensão histórica e a sua finalidade é a mudança e a autonomia pessoal. Utilizando uma metodologia hermenêutica , focalizam nos constructos pes- soais. Incluem essencialmente a Daseinanalyse de Binswanger e a Análise Existencial de Sartre.

BIBLIOGRAFIA

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RESUMO

A finalidade principal deste artigo é a de fazer uma revisão das abordagens existenciais em psicopatologia. Depois de uma introdução sobre os grandes temas existenciais, que foca os elementos que são comuns a todos ou à maior parte dos autores da filosofia existen- cialista, são referidos alguns aspectos gerais das abor- dagens existenciais em psicopatologia: o que são os fe- nómenos psicopatológicos e o paciente como ser-no- mundo. Concluindo, o autor particulariza alguns as- pectos das abordagens de Rollo May, I. Yalom, S. Maddi, V. Frankl, R. Laing, M. Villegas e outros. Palavras-Chave : Psicopatologia, Abordagens exis- tenciais.

ABSTRACT

The main goal of this paper is to review the groud- work of the existential approaches to psychopathology. After an introduction about the major existentialist themes, focusing upon elements common to all or most of the members within existentialist philosophy, the author refers some general aspects of the existen- tial approaches to psychopathology: what are the psy- chopathological phenomena and the patient as a being- in-the-world. Concluding, the author particularize aspects of the approaches of Rollo May, I. Yalom, S. Maddi, V. Frankl, R. Laing, M. Villegas and others. Key words : Psychopathology, Existential approaches.