












Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Este texto discute a evolução da interpretação jurídica, desde o dogma da completude até o sistema aberto. A autoria cita teorias de filósofos da lei como vigo, ihering, recaséns siches e kelsen, e examina as diferentes abordagens metodológicas, como teleológica, axiológica e sociológica. O texto também discute a importância da argumentação na construção do pensamento jurídico.
O que você vai aprender
Tipologia: Provas
1 / 20
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Interpretação jurídica: do dogma da completude ao sistema abertoInterpretação jurídica: Do dogma da completude ao sistema aberto^4747
Luis Manuel Fonseca Pires^1 Juiz de Direito no Estado de São Paulo
Sumário: Introdução. 1. As teorias declarativas e o dogma da com- pletude. 1.1. Da escola da exegese ao positivismo de Hans Kelsen. 1.2. As lacunas e as antinomias. 2. Sistema aberto: a tópica, a lógica do ra- zoável e a nova retórica. Conclusões. Referências bibliográficas.
Introdução
O propósito deste artigo é apresentar as referências que formaram as diretrizes das teorias da interpretação jurídica junto ao Estado de Di- reito – ainda fortemente presentes em nossas práticas contemporâneas
Mas em meados do século XX, com a proliferação de normas jurí- dicas com expressões vagas, e o reconhecimento da normatividade dos princípios, outros modelos surgiram, e sobre eles é preciso pensar. Fa- zem parte de novos paradigmas que se impõem à compreensão do fenô- meno jurídico. (^1) Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor de Direito Administrativo na gra- duação e na pós-graduação lato sensu da PUC-SP. Autor, dentre outras, das obras Controle judicial da discricionariedade administrativa – dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas,
Sumário: Introdução. 1. As teorias declarativas e o dogma da completude. 1.1. Da escola da exegese ao positivismo de Hans Kelsen. 1.2. As lacunas e as antinomias. 2. Sistema aberto: a tópica, a lógica do razoável e a nova retórica. Conclusões. Referências bibliográficas.
4848 Luis Manuel Fonseca PiresLuis Manuel Fonseca Pires
1. As teorias declarativas e o dogma da completude
Compreender o direito, extrair o significado das disposições nor- mativas, aplicar a lei aos conflitos concretos, são objetivos que sempre incomodaram e inspiraram os estudiosos do direito em todos os tempos.
Conforme sublinha o jurista português José de Oliveira Ascensão,^2 desde a época do Imperador Justiniano há a preocupação de controlar a interpretação da lei, e mesmo após a Revolução Francesa pretendeu-se excluir qualquer componente subjetivo na interpretação com o receio de que a atuação dos juízes pudesse comprometer as conquistas do mo- vimento revolucionário.
Sob este prisma, encampamos a terminologia de Rodolfo Luis Vigo,^3 professor catedrático de filosofia do direito na Argentina, que denomina modelo dogmático às teorias jurídicas das escolas exegéticas, históricas, o primeiro período de Ihering, a jurisprudência dos conceitos, e o pensa- mento de Kelsen, enfim, doutrinas que propugnavam a interpretação do direito como uma atividade meramente descritiva , orientada por um silo- gismo dedutivo rigoroso que pretendia equiparar a metodologia de conhe- cimento do direito à utilizada pelas ciências exatas, a uma lógica formal.
A solução de um caso concreto obtém-se, por essa orientação, por uma pretensa subsunção formalística, como se ao se expor um fato sob um ordenamento jurídico fosse mesmo possível inequívoca e ime- diatamente encontrar, por uma operação mecanicista, desprovida de qualquer envolvimento volitivo do intérprete, uma norma jurídica que versasse hipoteticamente sobre o assunto com a exata correspondên- cia de todos os seus elementos, de modo que por consequência, com este alinhamento entre a norma e o fato, fosse simples chegar à con- clusão. O próprio conceito de direito, por esta perspectiva, erigiu-se gradualmente sob uma estrutura estritamente positivista, isto é, o di- reito era a lei (o texto da lei) – a vontade e o relativismo axiológico eram absolutamente vedados à ciência jurídica.
Ainda conforme Rodolfo Luis Vigo,^4 é com a adoção deste modelo dogmático que Savigny define a interpretação jurídica como a recons- trução do pensamento que se encontra ínsito na lei, no que coincide, neste aspecto, com Ihering ao conceber a interpretação como a “ju- risprudência inferior” porque, segundo ele, nada se cria de novo, mas
(^2) O direito – introdução e teoria geral – uma perspectiva luso-brasileira, p. 378. (^3) Interpretação jurídica, p. 36 e ss. (^4) Interpretação jurídica , p. 37-38.
5050 Luis Manuel Fonseca PiresLuis Manuel Fonseca Pires
textos normativos, era o que expressava o pensamento do legislador (correntes subjetivas) ou o “espírito do povo” (correntes objetivas). Em busca da vontade do legislador é que, ainda segundo o jurista, orienta- va-se a “jurisprudência dos conceitos”, na Alemanha, e a já mencionada “escola da exegese”, em França. Pretendia-se, segundo Rodolfo Luis Vigo, que as razões do legisla- dor (exegese) e as do cientista (“jurisprudência dos conceitos”) apre- sentassem níveis de “[...] perfeição, previsão e clarividência que as tornavam insuspeitas de silêncios ou incoerências”. 8 Vislumbrava-se o direito, como adverte o autor,^9 com todos os aspectos próprios de um sistema fechado: unidade, completude e coerência.
Mas a insuficiência do rigor formalista, as ensanchas de soluções injustas que o método mecanicista proporcionava, inspirou, do final do século XIX ao início do XX, outras teorias que, em busca do sentido obje- tivo da norma, agregaram outros informes ao método de interpretação. É o caso da “jurisprudência dos interesses”, desenvolvida na Alemanha, que se orientava por estabelecer que o intérprete deveria alcançar, em sua leitura da lei, os interesses da sociedade, do mesmo modo como as doutrinas da “livre pesquisa científica” e “movimento do direito livre” pautavam-se pelo “[...] sentido da lei na vida, nas necessidades e nos interesses práticos”.^10 Desenvolvem-se, nesses idos, as primeiras noções do método tele- ológico como a busca do fim do direito, do método axiológico como a ênfase aos valores que se encontram no direito ou gravitam em torno dele, do método sociológico que defende a consideração de aspectos sociais junto à ciência jurídica.
Enquanto a “jurisprudência dos conceitos” limita o juiz à subsun- ção lógica dos fatos aos conceitos jurídicos, e concebe o ordenamento como um sistema fechado e enfatiza a lógica, a “jurisprudência dos interesses” prima pela indagação da vida e de sua valoração. O direito é visto como uma “tutela de interesses”. Como lembra Maria Helena Diniz,^11 Ihering era severo crítico do “pandectismo” e da “jurisprudência conceitual”, pois ele recusava o puro emprego do método dedutivo-silogístico para a interpretação do direito e propunha, em destaque, o aspecto finalístico das normas jurí- dicas, isto é, a ciência jurídica deve proceder à interpretação de acordo com os fins desejados pelas normas. (^8) Interpretação jurídica , p. 39. (^9) Interpretação jurídica , p. 39. (^10) Tércio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao estudo do direito , p. 266. (^11) Compêndio de introdução à ciência do direito , p. 61.
Interpretação jurídica: Do dogma da completude ao sistema abertoInterpretação jurídica: do dogma da completude ao sistema aberto 5151
Luis Recaséns Siches^12 reprova veementemente as teorias que sus- tentam a interpretação jurídica sob o modelo da lógica formal – a qual denomina lógica racional – nos moldes empregados junto às ciências naturais. Com uma doutrina visionária e decerto ainda atual, recusa o que denomina “concepção mecânica”: a sentença judicial ou uma reso- lução administrativa como fruto de um silogismo no qual há uma premis- sa maior representada por uma norma geral (a lei), uma premissa menor que são os fatos relevantes e qualificados juridicamente, e a conclusão como a consequente decisão. Ao inverso, afirma que a constatação dos fatos e a apreciação da norma são “momentos inseparáveis e essencial- mente ligados de modo recíproco”, o que leva a concluir que estes mo- mentos estão reciprocamente relacionados com a “antecipação mental da decisão”, pois esta representação prévia serve tanto para a constata- ção e qualificação dos fatos como para a definição da norma aplicável.^13 Há uma “função mental complexa” que entretece a dimensão fática com a dimensão normativa que se apresenta sob uma “[...] espécie de textu- ra orgânica incindível”.^14 Mas retornaremos a Luis Recaséns Siches, para acolhermos a sua proposta inquestionavelmente hodierna, mais adiante.
No eixo deste conflito, percebemos que a polarização destas cor- rentes impulsiona-se, do lado das doutrinas que sublinham a necessi- dade de alijar qualquer componente psíquico do intérprete (“escola da exegese”, “pandectismo”, “jurisprudência dos conceitos” etc.), pela preocupação de o direito ser modificado ao sabor das convicções pessoais dos juízes e juristas, tornando a lei em verdadeira letra morta, e do lado das demais escolas (“jurisprudência dos interesses”, “dou- trina utilitarista do direito”, “jurisprudência sociológica norte-ameri- cana” etc.), em razão da constatação das injustiças perpetradas sob a pretensão de despir-se o intérprete de qualquer valoração axiológica do caso em conflito.
É nesse contexto que Hans Kelsen formula, com fundamento no positivismo, a teoria pura do direito. O mestre de Viena susten- tou que o cientista do direito deve ocupar-se da norma jurídica com exclusividade, o que implica rechaçar outros saberes que não se filiam à produção da norma jurídica, como a filosofia, a sociologia etc. Para a teoria pura do direito a norma jurídica é editada por uma autoridade e tem caráter prescritivo , o que difere, portanto, da proposição jurídica que é emitida pela doutrina e apresenta uma natureza descritiva.
(^12) Introducción al estudio del derecho , p. 195. (^13) Introducción al estudio del derecho , p. 198. (^14) Introducción al estudio del derecho, p. 200.
Interpretação jurídica: do dogma da completude ao sistema abertoInterpretação jurídica: Do dogma da completude ao sistema aberto 5353
A teoria pura do direito, ao aderir obsessivamente ao método silo- gístico formal, atinge o extremo de admitir até mesmo a possibilidade de o intérprete autêntico atribuir um significado sequer encontrado na moldura desenvolvida pela ciência do direito. As razões que levam a autoridade competente a decidir por tal ou qual sentido são estranhas à ciência do direito. Porquanto, embora cause estranheza essa situação, sua ocorrência torna-se possível uma vez que, em última análise, para Kelsen o direito é o que o intérprete autêntico diz que deve ser. Relem- bramos que a relação entre as normas jurídicas não é de veracidade, mas de validade, e por um prisma formal de atribuição de competências, isto é, sem qualquer importância sobre qual é o seu conteúdo. O que im- porta é se quem edita determinada norma possui, com fundamento em norma jurídica superior, competência para tanto – é a relação dinâmica do sistema – ; o que se decide (ato de vontade), isto é, se a autoridade competente observa as decisões possíveis dentro da moldura, de acordo com as formulações meramente descritivas do cientista do direito, ou se extrapola este quadro e opta por uma solução não acolhida como possível, é irrelevante. No fim, o direito é o que a autoridade afirma ser.
A esse entendimento, no entanto, valem as objeções de Luis Reca- séns Siches^15 de que o direito não contém proposições lógicas sujeitas a um juízo de verdade ou falsidade, pois não se transita no âmbito das ciências naturais, logo, a lógica empregada não pode ser a que é aplicada à observação da natureza. Como bem afirma, “[...] a interpre- tação de um texto e a interpretação dos fatos não são nem devem ser independentes: o texto é interpretado em vista da projeção dos fatos; as- sim como os fatos são analisados em vista de sua relação com as normas”.^16
1.2. As lacunas e as antinomias
Se o direito deve ser interpretado e aplicado com absoluta abs- tração da expressão psicológica do intérprete, se o direito deve ser operado com frialdade, como se as convicções, os ânimos do seu opera- dor fossem mesmo completamente apartados deste procedimento, se deve ser a lógica formal a metodologia bastante à subsunção dos fatos litigiosos à ordem jurídica, então o sistema normativo deve consequen- temente se erigir de modo hermético.
Esta é realmente a decorrência do modelo dogmático, referido anteriormente, isto é, a preocupação pertinaz de superar qualquer possível contradição, qualquer claro junto ao ordenamento jurídico. (^15) Introducción al estudio del derecho, p. 211 e ss. (^16) Introducción al estudio del derecho , p. 214.
5454 Luis Manuel Fonseca PiresLuis Manuel Fonseca Pires
Pois o processo dedutivo-formal de interpretação jurídica compro- mete-se – em realidade, derrui-se – , se o cientista do direito se depa- ra com uma antinomia ou com uma lacuna. Os adeptos da “escola da exegese” e de outras correntes similares, como também do positivismo da teoria pura do direito, sustentam então, com afinco, o dogma da completude; empenham-se a sustentar, e dedicam-se sobremaneira às técnicas que amparam esta posição, que o direito é completo , que não há conflito entre as regras que não possa ser resolvido, que não há situ- ação fática sem a correspondente hipótese normativa.
Essa preocupação é mesmo compreensível enquanto se concebe a interpretação jurídica sob a operação formalista segundo a qual a pre- missa maior é a norma, a premissa menor são os fatos, e como se tudo se emparelhasse e conduzisse-se hermética e conclusivamente à deci- são que é apenas descoberta como o resultado desta equação. Decerto, para as doutrinas que assim admitem a interpretação jurídica, qualquer conflito de dispositivos, qualquer ausência de regra, rompe com todo o sistema. O ordenamento jurídico é então idealizado como um siste- ma necessariamente fechado. Portanto, é preciso combater as anti- nomias e as lacunas do direito. Considere-se, em exemplo, a doutrina propugnada pela teoria pura do direito: se as normas cadenciam-se de modo escalonado, se partem de uma norma hipotética fundamental e descendem, em sequência, uma da outra, com a escora de fundamen- tação na competência atribuída pela norma precedente, se é assim que se identifica a validade da norma jurídica, isto é, por uma lógica dedutiva comum às ciências exatas, então não é possível, sob pena de derribar todo o sistema, admitir alguma lacuna ou contradição em sua formulação.
Norberto Bobbio, ao declaradamente acolher a teoria de Kelsen da construção escalonada do ordenamento jurídico, empenha-se no estudo sobre as normas incompatíveis e as antinomias.
Após discorrer sobre os critérios de solução das antinomias (crono- lógico, hierárquico e o da especialidade), e ainda sobre a possibilidade de um conflito entre os critérios (antinomia de segundo grau), Bobbio enfrenta a circunstância de constatar-se a insuficiência dos critérios, isto é, defrontar-se o intérprete com normas contemporâneas, do mes- mo nível e ambas gerais – insuficientes, portanto, os critérios cronoló- gico, hierárquico e da especialidade.
Neste conflito, diz Norberto Bobbio que a solução “[...] é confiada à liberdade do intérprete [...]”, o que é possível
5656 Luis Manuel Fonseca PiresLuis Manuel Fonseca Pires
ordenamento jurídico” sob o princípio de que “tudo que não está proibi- do, está permitido”, logo, não haveria lacuna. Diz ela que tal enunciado não é uma norma jurídico-positiva, mas um enunciado lógico; mas como o sistema jurídico, para a autora, é aberto, então, o direito deve ser considerado sob uma ótica dinâmica. O sistema, para a autora, é, sim, lacunoso, e são três as espécies de lacunas: normativa, ontológica (há norma, mas não corresponde aos fatos sociais) e axiológica (ausência de norma justa que conduz a uma solução satisfatória). A jurisdição integra as normas, mas permanecem as lacunas, pois o juiz cria a norma jurídi- ca individual que vale para o caso concreto, o que não dissolve a lacuna
Luis Recaséns Siches^21 formula uma proposta que nos auxilia a rom- per o mito da completude. É a percepção do autor de que as normas que denomina “individualizadas” – porque aplicadas ao caso concreto, seja pelas partes, seja pelo juiz – são tão normas quantos as normas “gerais” – previstas abstratamente no ordenamento jurídico. Ou até mais, como afirma o autor, pois as normas “individualizadas” são normas “perfeitas” ou “completas” na medida em que são a atuação concreta das normas gerais, atuam sobre relações concretas da vida.
Se assim o é, a preocupação com a completude do direito deixa de conter o valor tão encarecido pelas ciências apegadas ao positivismo clássico, pois a relevância do tema reside na solução do caso concreto. As lacunas e antinomias realmente existem – na estática do direito. Mas se dispensarmos a compreensão do direito como uma simples atividade descritiva, se aceitarmos que a hermenêutica sob a estrutura de modelos lógicos formais, de dedução ou de indução, é insuficiente, se acolhermos as doutrinas que admitem o que não é mesmo possível aceitar de outra forma, isto é, que a vontade , que a escolha do intérprete são naturais e integrantes da aplicação do direito, e, portanto, a ordem jurídica é um sistema aberto e axiológico, então as lacunas e as antinomias, apesar de subsistirem, não comportam mais a mesma dimensão de importância.
2. Sistema aberto: a tópica, a lógica do razoável e a nova retórica
A partir da segunda metade do século XX, a teoria geral do direi- to, no que se refere à hermenêutica jurídica, passa a convergir para a percepção do equívoco da concepção da interpretação jurídica como um procedimento lógico-formal desprovido de qualquer expressão
(^21) Introducción al estudio del derecho , p. 213.
Interpretação jurídica: Do dogma da completude ao sistema abertoInterpretação jurídica: do dogma da completude ao sistema aberto 5757
volitiva do intérprete, como se não fosse devida a ponderação dos valo- res em conflito, como se o sopesar e a integração dos fatos e dos valores acolhidos como conteúdo das normas jurídicas não fossem relevantes, e como se não houvesse, nesta outra forma de interpretação jurídica que abandona o silogismo formal, a presença do gênio do intérprete a influenciar e a compor a interpretação jurídica.
A relação entre as normas jurídicas, em uma estrutura lógico-for- mal, não ocorre por um discurso apofântico , remetido à veracidade ou falsidade de sua formulação, mas, sim, por um conectivo deôntico , o “deve ser”. De tal sorte, o raciocínio empreendido relaciona-se com a validade; a concatenação das prescrições normativas não ocorre pelo fenômeno da causalidade, mas por imputação. A concepção raciovitalista do direito , referida por Maria Helena Diniz, 22 representada inicialmente por Ortega y Gasset, e depois por Luis Recaséns Siches, segundo os quais a racionalidade é a própria vida humana, é a razão vital, e a ciência do direito deve compreender a norma jurídica ponderando sua historicidade, relacionando-a com as circunstâncias e ainda de acordo com as perspectivas formuladas. Por isso, a lógica a ser empregada para a solução dos problemas não é rigo- rosamente racional, mas razoável. Neste sentido, Eros Roberto Grau sustenta a interpretação como uma “prudência”, como um “saber prático”, uma “[...] razão intuitiva, que não discerne o exato, porém o correto”, pois, para o autor citado, a lógica jurídica é a escolha de uma entre várias possibilidades igual- mente corretas; portanto, “a norma não é objeto de demonstração, mas de justificação”.^23 Para Eros Roberto Grau, o que em realidade se interpreta são os textos normativos, e é da interpretação destes textos que resultam as normas. De tal forma, texto e norma não se coinci- dem. A norma é o resultado da interpretação do texto normativo. Ou, de outro modo, “A interpretação é, portanto, atividade que se presta a transformar textos – disposições, preceitos, enunciados – em nor- mas”. 24 Por conseguinte, também para ele a interpretação apresenta um “caráter constitutivo”, e não apenas declaratório. 25
Ainda semelhante é a doutrina de Humberto Ávila para quem a interpretação não é um ato de pura descrição de um significado previa- mente apresentado, mas é um ato de decisão que constrói a significação e os sentidos do texto. (^22) Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 92 e ss. (^23) O direito posto e o direito pressuposto , p. 40. (^24) Interpretação/Aplicação do direito, primeira parte, III. (^25) Interpretação/Aplicação do direito, primeira parte, XIII.
Interpretação jurídica: Do dogma da completude ao sistema abertoInterpretação jurídica: do dogma da completude ao sistema aberto 5959
A tópica, explica o próprio Viehweg,^32 é orientada aos problemas. Oferecem-se, para solucionar os problemas, uma “combinação de pon- tos de vista ( topoi )” que são discutidos, e o agrupamento dos topoi em relação aos problemas torna-se o sistema básico do direito. Mas o sistema tópico está em permanente movimento, por isso, trata-se de um sistema aberto porque as discussões estão permanentemente sujei- tas aos novos pontos de vista, e não a um argumento final ou definiti- vo. É por isso que não se usa, na tópica, um método de argumentação que procede dedutivamente, mas, sim, dialogicamente , pois sua ultima ratio é o discurso razoável.
Tércio Sampaio Ferraz Jr.^33 esclarece que os pontos de vista, os chamados loci, topoi, lugares-comuns, constituem pontos de partida de diversas séries argumentativas em que a razoabilidade das opiniões fortalece-se. É por se compor destas séries argumentativas que o pen- samento tópico não pressupõe nem almeja ser uma totalidade fechada. O problema apresentado é considerado como um “dado” que orienta a argumentação e resultará em uma entre tantas soluções possíveis. Pela tópica buscam-se, para resolver um problema, as premissas ade- quadas, e para esta busca vale-se o intérprete dos lugares-comuns – é a tópica de primeiro grau. Em razão da insegurança deste procedimen- to, elaboram-se inventários mais ou menos organizados de lugares-co- muns segundo certos critérios que delimitam a área argumentativa (por exemplo, topoi gramaticais, ou lógicos, ou históricos etc.) – é a tópica de segundo grau. Mas uma dedução sistemática dos topoi é impossível, pois mais importante do que concluir é formular as premissas.
De inestimável contribuição à ciência do direito é ainda a proposta da interpretação jurídica orientada pela lógica do razoável, de Luis Re- caséns Siches. Diz ele que só a norma jurídica “individualizada” – que para o jurista representa a aplicação ao caso concreto da norma geral
E o intérprete deve, ao converter a norma “geral” em “individual”, atuar de modo a promover a “mais justa” individualização da prescri- ção^35. É, então, a interpretação por equidade que norteia o intérprete, uma interpretação lógica , mas que não se apoia no modelo silogístico-
(^32) Tópica y filosofía del derecho, p. 127. (^33) Introdução ao estudo do direito , p. 329. (^34) Introducción al estudio del derecho , p. 208. (^35) Introducción al estudio del derecho , p. 216.
6060 Luis Manuel Fonseca PiresLuis Manuel Fonseca Pires
-dedutivo, pois há uma valoração do conteúdo da norma, pois se deve aferir qual foi a razão que inspirou o legislador. É o que denomina – em substituição à palavra equidade – lógica do humano , ou – como veio a ser mais conhecida – lógica do razoável.
Exemplifica o autor^36 o célebre caso da proibição que constava, em uma estação de trem, de que os passageiros ingressassem com ca- chorros, e que certa feita um camponês insistia adentrar com um urso, pois a proibição não o mencionava. Se sob a perspectiva da lógica tra- dicional a conduta do empregado que vedasse a entrada do urso fosse reprovável, o mesmo não se poderia dizer se a análise fosse feita sobre as razões que inspiraram a vedação – sob a lógica do razoável.
A proposta do autor é sensivelmente relevante não apenas em casos nos quais a norma “geral” provoca, ao senso comum, algum sentimento de “injustiça”. Mas, como ele mesmo diz, quando a norma “geral” apre- senta-se “satisfatoriamente justa”, mas a aplicação do silogismo formal conduziria, no caso concreto, à realização de uma norma “individual” notoriamente “injusta”. Esta situação pode ocorrer, diz o jurista, quan- do aparece um caso inesperado, excepcional, o que acontece quando a realidade do caso não se amolda ao propósito que inspirou a norma apli- cável. Com isso, chama o autor atenção para a realidade das relações humanas, que é muito mais rica do que qualquer previsão legislativa.
Em tal situação, deve o juiz guiar-se por “critérios de validez ma- terial”, isto é, aferir o conteúdo da norma, o que exige que se ante- cipem mentalmente os efeitos que se produziriam com a aplicação da norma, e se tais efeitos não encontram concordância com o propósito da norma, então esta norma não é pertinente ao caso. Insiste o autor que o juiz não se põe acima da lei, mas simplesmente deve predominar o âmbito material de validade da norma de acordo com o sentido da lei. Como adverte, “[...] o sentido das palavras da lei atualiza-se não só no ‘contexto das frases’, mas também e sobretudo no ‘contexto da situação real a que a frase refere-se’ [...]”. 37 É o que denomina inter- pretação não por antecedentes, mas, sim, pela valoração dos efeitos , isto é, não de uma suposta valoração do juiz, mas de uma valoração dos efeitos conforme o fim da lei em pauta – o que representa, em última análise, um dos imperativos da prudência, o que inclusive inspirou os romanos a chamarem de jurisprudentes aos jurisconsultos.
(^36) Introducción al estudio del derecho , p. 217 e ss. (^37) Introducción al estudio del derecho , p. 238.
(^6262) Luis Manuel Fonseca PiresLuis Manuel Fonseca Pires
(^39) As razões do direito, p. 18-19. (^40) Lógica jurídica, p. 13. (^41) Lógica jurídica , p. 114-115. (^42) Lógica jurídica, p. 117.
prevalecer etc.).^39 Com muita propriedade, Atienza assevera que dizer que o juiz adotou tal decisão por sua crença religiosa é dar uma razão explicativa , mas dizer que adotou certa interpretação para tal artigo é uma razão justificadora, e o que os órgãos judiciais precisam não é dar explicações de suas decisões, mas justificá-las, e é a teoria do padrão da argumentação jurídica que cuida da justificação dos argumentos, tanto com pretensões descritivas quanto prescritivas. A lógica dedutiva, enca- rece Atienza, apenas oferece critérios formais de correção.
Finalmente, ainda em rebate às doutrinas da interpretação jurídi- ca como operações meramente descritivas, encontramos a nova retóri- ca de Chaïm Perelman para quem a busca da justiça, da aceitabilidade social da decisão, conduz a conciliar estas finalidades às técnicas do raciocínio jurídico, o que denota a “[...] insuficiência, no direito, de um raciocínio puramente formal que se contentaria em controlar a corre- ção das inferências, sem fazer um juízo sobre o valor da conclusão”^40
Toda a problemática do raciocínio jurídico, espe- cialmente judicial, esforçar-se-á, portanto, para elaborar uma dialética em que a busca de uma solução satisfatória enriqueça o arsenal metodo- lógico que permite manter a coerência do sistema e torná-lo mais flexível. É nesta perspectiva que cabe sublinhar o papel crescente atribuído pelos teóricos do raciocínio jurídico aos princípios gerais do direito e à tópica jurídica. 42
A evolução da retórica é explanada por Chaïm Perelman. Elabo- rada em épocas remotas, séculos antes de Cristo, dedicaram-se ao seu estudo, entre outros, Aristóteles, Cícero e Quintiliano. A retórica repre- sentou o coroamento da educação greco-romana, mas posteriormente
Interpretação jurídica: do dogma da completude ao sistema abertoInterpretação jurídica: Do dogma da completude ao sistema aberto 6363
(^43) Introdução à retórica , p. 2 e ss. (^44) Introdução à retórica , p. 13 da introdução. (^45) Lógica jurídica , p. 143. (^46) Lógica jurídica, p. 154. (^47) Lógica jurídica , p. 238.
se degenerou, ao longo do século XVI, quando então foi diminuída como o estudo das figuras de estilo, chegando mesmo a desaparecer, pouco depois, dos programas de ensino. Segundo Olivier Reboul,^43 acredita- -se que a retórica surgiu na Sicília grega nos idos de 465 a.C., e sua origem foi “judiciária”, pois numa época em que não havia advogados os cidadãos que reclamavam seus direitos recorriam a uma coletânea de “preceitos práticos”, que apresentavam exemplos de discursos para recorrer-se à Justiça. Daí que o sentido corrente que passou a ter a palavra retórica foi mesmo em tom pejorativo, como observa Reboul.^44
A retórica era concebida por Aristóteles como a arte de procurar, em qualquer situação, os meios disponíveis de persuasão – mas, para Perelman, o objeto da retórica é o estudo das técnicas discursivas que visam provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses apresenta- das a seu assentimento; a retórica objetiva persuadir por meio do dis- curso, o que pode ter intensidades variáveis uma vez que não se versa sobre verdades, mas valores, isto é, o que distingue a retórica da lógica formal e demais ciências positivas é que a retórica “[...] diz respeito mais à adesão do que à verdade”. 45
Por este prisma, há mesmo, como anota o autor, marcante dis- tinção entre o discurso sobre o real e o discurso sobre os valores, pois o que se opõe ao verdadeiro é o falso, e assim o é para todo mundo, sem qualquer possibilidade de “escolha”, mas o que se opõe a um valor é outro valor, e os valores sujeitam-se a hierarquias diferentes, por pessoas diversas ou até mesmo por uma mesma pessoa a depender do momento no curso de sua vida.
Chaïm Perelman^46 propõe a nova retórica como “[...] o estudo das técnicas discursivas que visam a provocar ou a intensificar a adesão de certo auditório às teses apresentadas”. Pois o direito deve atender a uma dupla exigência: “[...] uma de ordem sistemática, a elaboração de uma ordem jurídica coerente, a outra, de ordem pragmática, a busca de soluções aceitáveis pelo meio, porque conformes ao que lhe parece justo e razoável”^47 – destarte, a lógica judiciária centra-se não na ideia de verdade, mas na de adesão do auditório.
Entende-se que Perelman não refuta a possibilidade de que o ra- ciocínio judiciário seja apresentado sob a forma de um silogismo, mas o que ele quer esclarecer é que tal forma não garante, em absoluto, o
Interpretação jurídica: Do dogma da completude ao sistema abertoInterpretação jurídica: do dogma da completude ao sistema aberto 6565
Referências bibliográficas
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito – introdução e teoria geral – uma perspectiva luso-brasileira. 11. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito – teorias da argumentação jurídi- ca. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1999.
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Foren- se, 2006.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4. ed. São Pau- lo: Malheiros, 2004.
GRAU, Eros Roberto. Interpretação/aplicação do direito. 2. ed. São Pau- lo: Malheiros, 2003.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Macha- do. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação – a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
RECASÉNS SICHES, Luis. Introducción al estudio del derecho. México: Porrúa, 1970.
SAINZ MORENO, Fernando. Conceptos jurídicos, interpretación y discre- cionalidad administrativa. Madrid: Civitas, 1976.
VIEHWEG, Theodor. Tópica y filosofía del derecho. Barcelona: Gedisa,
VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica. Do modelo juspositivista-le- galista do século XIX às novas perspectivas. Tradução de Susana Elena Dalle Mura. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
6666 Luis Manuel Fonseca PiresLuis Manuel Fonseca Pires