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interpretação das normas e responsabilidade do juiz, Notas de estudo de Direito

da communis opinio doctorum vinculante para o juiz, pode constituir um momento de reflexão sobre aspectos atuais da jurisdição nos ordenamentos de direito.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Doutrina Estrangeira
INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS E RESPONSABILIDADE
DO JUIZENTRE REMINISCÊNCIAS HISTÓRICAS E
PERSPECTIVAS FUTURAS1-2
INTERPRETATION OF LEGAL RULES AND RESPONSIBILITIES OF THE
JUDGE – HISTORICAL REMINISCENCES AND FUTURE PERSPECTIVES
Andrea Landi3
Doutor em Direito
1 Título original: “Interpretazione delle norme e responsabilità del giudice fra reminiscenze storiche e
prospettive future”. Publicado: Revista “Justice – Justiz – Giustizia”, 2014/4, ISSN 1661-2981, http://
www.weblaw.ch, Weblaw AG (2014).
2 Tradução e notas de Eugênio Facchini Neto, Doutor em Direito Comparado pela Universidade de
Florença, Itália, Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Professor Titular dos Cursos
de Doutorado, Mestrado e Graduação da Faculdade de Direito da PUC/RS, Desembargador no
Tribunal de Justiça do RS. Com as iniciais N.T. (Nota do Tradutor) foram introduzidas, em notas de
rodapé, algumas observações para facilitar a compreensão do texto pelo público brasileiro. Currículo:
http://lattes.cnpq.br/6714748405905770.
3 Professor associado de História do Direito junto ao Departamento de Direito da Universidade de
Pisa, Itália.
ÁREA(S) DO DIREITO: história do
direito; hermenêutica jurídica.
RESUMO: A responsabilidade do juiz
por errônea interpretação das normas
foi um tema de particular importância
no Direito Comum e permanecesse
sendo naqueles ordenamentos que
ainda o seguem, onde o direito vigente
deve levar em consideração o relevante
aporte nomopoiético da doutrina. A
simbiose dialética entre juristas e juízes,
que ali se realiza através do mecanismo
da communis opinio doctorum vinculante
para o juiz, pode constituir um momento
de reflexão sobre aspectos atuais da
jurisdição nos ordenamentos de direito
codificado, sobretudo para desvelar
a inconsistência de alguns mitos da
modernidade, como a estatalidade do
direito, o formalismo e o silogismo
judicial.
PALAVRAS-CHAVE: interpretação
judicial; direito comum medieval;
communis opinio doctorum.
ABSTRACT: The judge’s responsibility
for erroneous interpretation of the legal
rules was a subject of particular importance
in the ius commune and remain being
in those jurisdictions which still follow
this approach to law, where the applicable
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Doutrina Estrangeira

INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS E RESPONSABILIDADE

DO JUIZ – ENTRE REMINISCÊNCIAS HISTÓRICAS E

PERSPECTIVAS FUTURAS^1 -^2

INTERPRETATION OF LEGAL RULES AND RESPONSIBILITIES OF THE JUDGE – HISTORICAL REMINISCENCES AND FUTURE PERSPECTIVES

Andrea Landi^3

Doutor em Direito

(^1) Título original: “Interpretazione delle norme e responsabilità del giudice fra reminiscenze storiche e prospettive future”. Publicado: Revista “Justice – Justiz – Giustizia”, 2014/4, ISSN 1661-2981, http:// www.weblaw.ch, Weblaw AG (2014). (^2) Tradução e notas de Eugênio Facchini Neto, Doutor em Direito Comparado pela Universidade de Florença, Itália, Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Professor Titular dos Cursos de Doutorado, Mestrado e Graduação da Faculdade de Direito da PUC/RS, Desembargador no Tribunal de Justiça do RS. Com as iniciais N.T. (Nota do Tradutor) foram introduzidas, em notas de rodapé, algumas observações para facilitar a compreensão do texto pelo público brasileiro. Currículo: http://lattes.cnpq.br/6714748405905770. (^3) Professor associado de História do Direito junto ao Departamento de Direito da Universidade de Pisa, Itália.

ÁREA(S) DO DIREITO : história do direito; hermenêutica jurídica. RESUMO : A responsabilidade do juiz por errônea interpretação das normas foi um tema de particular importância no Direito Comum e permanecesse sendo naqueles ordenamentos que ainda o seguem, onde o direito vigente deve levar em consideração o relevante aporte nomopoiético da doutrina. A simbiose dialética entre juristas e juízes, que ali se realiza através do mecanismo da communis opinio doctorum vinculante para o juiz, pode constituir um momento de reflexão sobre aspectos atuais da

jurisdição nos ordenamentos de direito codificado, sobretudo para desvelar a inconsistência de alguns mitos da modernidade, como a estatalidade do direito, o formalismo e o silogismo judicial. PALAVRAS-CHAVE : interpretação judicial; direito comum medieval; communis opinio doctorum. ABSTRACT : The judge’s responsibility for erroneous interpretation of the legal rules was a subject of particular importance in the ius commune and remain being in those jurisdictions which still follow this approach to law, where the applicable

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law should take into consideration the relevant contribution of the doctrine. The dialectic symbiosis between jurists and judges, which takes place through the mechanism of the opinio communis doctorum, binding to the judge, may be a moment of reflection on current aspects of jurisdiction in codified law systems, especially for unveiling the inconsistency of some myths of modernity, such as the statality of the law, the formalism and the legal syllogism.

KEYWORDS: judicial interpretation; medieval ius commune; opinio communis doctorum.

SUMÁRIO : 1 A interpretação das normas; 2 A solução do Direito Comum; 3 Algumas perspectivas atuais.

SUMMARY: 1 Legal interpretation; 2 The ius commune solution; 3 Some current perspectives.

1 A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS

Se é verdade que a jurisdição constitui uma função essencial em todas as experiências históricas, também é verdadeiro que ela pode assumir conteúdos diversos, segundo o papel que o juiz é chamado a desempenhar em determinadas épocas: de fato, ao lado de um conteúdo mínimo, encontrável em todas as experiências e representado pela conversão de um preceito abstrato em um preceito concreto, pode ser atribuída a ele uma ulterior atividade que vai além da mera cognição das normas, objetivando uma correta aplicação delas ao caso concreto levado ao seu conhecimento.

  1. Bastaria pensar na experiência romana, em que o pretor, com seu edito, era chamado a individualizar uma tutela jurisdicional para aquelas fattispecie que estavam se consolidando na prática mas que, enquanto ignoradas pelo ius civile , eram desprovidas de uma tutela.
  2. Ou então se pense na Alta Idade Média, onde o juiz era chamado a individualizar a existência das normas em um patrimônio consuetudinário de difícil conhecimento, mediante um accertamento do fato ( inquisitio per testes ), envolvendo os depositários da sabedoria popular (os antiquiores loci ); tudo isso em um contexto no qual moral e direito se confundiam^4.
  3. Frise-se, porém, que, desprezando-se algumas variações identificáveis em épocas diversas, o juiz sempre deve se envolver com a interpretação das normas; daí que, se esta não é feita de modo correto, sua decisão provavelmente

(^4) Para uma primeira aproximação a estes temas, confira-se SANTARELLI, U. Auctor iuris homo. Introduzione allo studio dell’esperienza giuridica basso-medioevale. Torino: Giappichelli, 1997. p. 67-75.

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começou-se, inicialmente em Bolonha e depois nas Escolas de Direito que pouco depois foram criadas em toda a Europa, decalcadas sobre o modelo bolonhês, a fazer uma releitura de tais textos: de um lado, para reconduzir à unidade uma pluralidade de normas derivadas das autoridades universais (Império e Papado) e das instituições particulares (cidades, corporações, autoridades régias, Universitates etc.); e, de outro, para dar veste jurídica aos novos negócios que a praxe mercantil e urbana continuamente inventava.

  1. Nas instituições particulares, a jurisdição era exercitada por juízes que eram políticos (cônsules de iustitia , podestà , capitano del popolo^7 ) e por isso, na grande maioria dos casos, não tinham conhecimento jurídico: para possibilitar uma solução sobre questões jurídicas surgidas nas controvérsias que eram trazidas à sua apreciação, as normas previam então o recurso ao chamado consilium sapientis iudiciale , isto é, a um parecer que o julgador pedia a um expert em direito (frequentemente um famoso jurista acadêmico), com base no qual ele posteriormente resolvia a controvérsia.
  2. Em tais ordenamentos, colocava-se, de modo claro, a necessidade de se sujeitar a atividade jurisdicional a um controle, identificando pontualmente os aspectos da responsabilidade do juiz, seja sob a base das disposições contidas na redescoberta compilação justinianeia, seja, sobretudo, mediante a criação de um procedimento estatutário específico – o chamado giudizio di sindacato – destinado a exercitar tal controle.
  3. Em tal procedimento, alguns syndici , nomeados pelas instituições municipais, tinham a tarefa de avaliar a atividade do juiz, ao término do seu mandato, para verificar se teria havido um indevido exercício de suas

homogênea, chamada, por isso mesmo, de direito comum, baseada substancialmente no antigo direito romano, mas posteriormente acrescida de algumas “constituições” imperiais e principalmente dos chamados libri feudorum , ou seja, compêndios que disciplinavam as relações feudais ainda imperantes especialmente no meio rural, principalmente com base nos costumes. Outro fator de unidade para esse direito “comum” foi o próprio direito canônico, que se estendia por muitas áreas (direito de família, sucessões, muitos crimes etc.), e era idêntico em todos os lugares. (^7) N.T.: “ Podestà ” era o nome que se dava, nas cidades autônomas italianas durante os séculos XIII-XIV, ao Magistrado que exercia o poder mais elevado naquelas comunidades, absorvendo os poderes administrativos, jurisdicionais e militares; normalmente era um estrangeiro (alguém de fora da cidade) e permanecia no cargo durante um breve período – de seis meses a um ano. Era escolhido pelo Consiglio Generale , a mais importante assembleia municipal. Ao fim do mandato, devia prestar contas de sua gestão. Ele não tinha, porém, poderes legislativos nem exercia o comando da guarda municipal, que estava sob o comando do Capitano del Popolo. Também os consoli de iustitia eram Magistrados eletivos que igualmente cumulavam funções administrativas, judiciais e militares, por um breve período de tempo em algumas regiões da Europa medieval.

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funções; em caso de ter sido identificado um exercício contra legem , eles deviam proceder contra o Magistrado, impondo-lhe a justa sanção e condenando-o ao ressarcimento dos danos causados à instituição municipal e aos cidadãos envolvidos nas atividades processuais e que tivessem sido, de alguma forma, prejudicados.

  1. Das fontes romanas, a ciência jurídica baixo-medieval havia retomado a figura do Iudex qui litem suam facit , que, como se recorda, estava compreendida na categoria dos “quase-delitos”, chegando, grosso modo – ainda que com diferenciações que se podia encontrar em alguns intérpretes – a identificar três fattispecie de responsabilidade que davam margem a um igual número de formas de ressarcimento 8 : em primeiro lugar, a responsabilidade do juiz que tinha julgado mal per imperitiam , pelo que ele era punido com uma pena deixada ao arbítrio do juiz encarregado de avaliar seu comportamento ( religioni iudicantis , segundo o que dispunha as Institutiones justinianeias 9 ); depois era previsto o caso do juiz que dolosamente tivesse emitido uma sentença contrária à justiça, para o que era prevista a pena da vera litis aestimatio na esfera civil e da retorquutio na esfera penal (isto é, vinha imposta ao juiz a mesma pena que ele havia cominado ao inocente), e ainda, segundo Accursio, isso era acompanhado da infâmia^10 ; e, por fim, a do juiz que tivesse emitido uma sentença injusta por corrupção, o que era punido com a perda do cargo e o pagamento do quadruplum. Nesses últimos dois casos, a doutrina era propensa a falar de uma responsabilidade ex maleficio do julgador 11 , evoluindo na Idade Moderna para a unificação das duas fattispecie , com a previsão da pena consistente na condenação do juiz ao pagamento da aestimatio litis e das despesas.

(^8) Conforme NICOLINI, U. Il principio di legalità nelle democrazie italiane. Legislazione e dottrina politico- -giuridica nell’età comunale. Milano: Marzorati, 1947. p. 456-458. (^9) Na l. Si iudex Inst. De Obligationibus, quae ex quasi delicto nascuntur (Inst. 4.5 pr.): “ Si iudex litem suam fecerit non proprie ex maleficio obligatus videtur; sed quia neque ex maleficio, neque ex contractu obligatus est, et utique peccasse aliquid intelligitur, licet per imprudentiam: ideo videtur quasi ex maleficio teneri, et inquantum de ea re aequum religioni iudicantis videbitur poenam sustinebit ”. (^10) Sobre esta qualificação, confira-se MIGLIORINO, F. Fama e infamia. Problemi della società medievale nel pensiero giuridico nei secoli XII e XIII. Catania: Editrice Giannotta, 1985. (^11) Lapidária a gl. Litem suam in l. Si iudex , cit.: “ Idest controversiam vel litigium, ut in id teneatur ipse in quo laesit aliquem: et hoc quando per ignorantiam, vel imperitiam [...]. Nam si dolo, tunc non habet locum hic titulus: sed ex maleficio tenetur, et sit infamis ”.

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ele distingue dois casos de imperitia iudicis que acarretam a responsabilidade do juiz, que sofrerá uma pena cuja fixação é remetida, para usar as palavras da Inst. 4.5 pr., religioni iudicantis (isto é, a outro juiz chamado a avaliar o seu comportamento)^16.

  1. O primeiro caso ocorre quando ele tenha julgado contra casum legis : e aqui Bártolo distingue entre a hipótese em que o juiz tenha errado ao interpretar uma lei obscura e difícil, na qual mitius punietur [pune-se de forma branda], e aquela em que ele se encontrava frente a uma lei fácil e de claro significado, situação na qual deveria ele ser punido mais severamente.
  2. O segundo caso se configura quando o juiz tenha errado em uma matéria na qual coexistiam opiniões doutrinárias divergentes, escolhendo uma opinião “mala” e não seguindo aquela que ab omnibus communiter approbatur et communiter observatur.
  3. Conclui, enfim, o mestre marchigiano^17 que se deveria excluir qualquer responsabilização para o juiz quando sobre a matéria objeto da demanda subsistissem opiniones ita fortes, quod quandoque observatur una et quandoque servatur altera : em tal hipótese, de fato, a lei se afigura incerta, e o juiz, que erra na individualização do princípio a aplicar, deve ser, portanto, escusado.
  4. Trata-se, portanto, segundo Bártolo, de verificar a subsistência da communis opinio , a qual, sendo um remédio endojurisprudencial para garantir um mínimo de certeza do direito no mare magnum das opiniões doutrinárias, deve ser vista, definitivamente, como “instrumento de certificação e racionalização do direito vigente [...] destinada a predeterminar as possíveis interpretações de um instituto ou de normas singulares concretamente invocáveis no âmbito de um processo”^18 ; um instrumento, em suma, que representa um vínculo objetivo para o julgador no exercício da jurisdição.

“ius commune” com dret vigent. L’experiència judicial d’Andorra i San Marino. Actes del I simposi jurídic Principat d’Andorra/República de San Marino, II, Andorra, Istitut d’Estudis Andorrans, 1994. p. 694/698, e mais amplamente, Id., La communis opinio doctorum e l’ auctoritas rerum similiter iudicatarum nell’esperienza di diritto comune vigente nella Repubblica di San Marino. In: Initium , revista catalana d’història del dret, 3, p. 599/602, 1998. Também aborda o tema GRANDÓN, J. Barrientos. El mos italicus en un jurista indiano: Francisco Carrasco del Saz (15?-1625). Ius fugit , revista interdisciplinar de estudios histórico jurídicos, 2, p. 50-51, 1993. (^16) Bartolo da Sassoferrato, In l. De eo C. De poena iudicis qui male iudicavit (C. 7.49.2). In: Id., Commentaria in secundam Codicis partem , Lugduni, Excudebat Dionysius Harsaeus, 1550, fo. 86 ra-vb, n. 3-6. (^17) N.T.: nascido na região italiana denominada Marche , localizada na costa centro-oriental da península. (^18) ROSSI, G. La forza del diritto: la communis opinio doctorum come argine all’ arbitrium iudicis nel processo della prima età moderna. In: Il diritto come forza. La forza del diritto. Le fonti in azione nel diritto

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  1. De outra parte, à medida em que se aproxima da Idade Moderna e o juiz assume cada vez mais uma qualificação profissional, o maior tecnicismo das questões jurídicas passa a impor-lhe, de maneira mais rigorosa, a necessidade de conhecer as opiniões doutrinárias e suas aplicações.
  2. Como emblematicamente foi escrito, exigia-se ao juiz que possuísse dois tipos de sal: o “sal da sabedoria”, para não ser insípido, e o “sal da reta consciência”, para não se tornar diabólico^19 ; faltando o primeiro – que se obtinha especialmente com o conhecimento e a precisa aplicação da communis opinio^20 – ele teria julgado per imperitiam e deveria ser submetido à punição determinada pelo seu superior, enquanto, faltando o segundo, ele teria dolosamente julgado mal e, portanto, deveria ser condenado ao integral ressarcimento dos danos.

3 ALGUMAS PERSPECTIVAS ATUAIS

  1. Como acabamos de ver, na experiência de direito comum a errônea interpretação das normas expunha o juiz à responsabilização: uma característica, esta, que parece ter sido mantida, inclusive, em alguns ordenamentos em que ainda vigora aquele sistema, embora atualmente se deva levar em conta o princípio da independência da magistratura e da sua sujeição somente à lei, como afirmado nos modernos ordenamentos constitucionais.
  2. Todavia, a assim chamada “cláusula de salvaguarda”^21 – que daria substância ao princípio acima citado e dá tanta margem a discussões também na Itália, a ponto de atrair as críticas da Corte de Justiça da União Europeia

europeo tra medioevo ed età contemporanea. Organizado por A. Sciumè. Torino: Giappichelli, 2012. p. 43. (^19) Imagem que se encontra em vários autores – dos autores do quattocento , Barbazza e Giason del Maino, aos autores do cinquecento , Cravetta, Menochio, Tepato –, cuja primeira formulação é provavelmente originária de Baldo; conforme Nicolini, Il principio di legalità , cit., p. 463, e M. Meccarelli, Arbitrium. Un aspetto sistematico degli ordinamenti giuridici in età di diritto comune , Milano: Giuffrè, 1998, p. 345, nt. 110. (^20) Significativo a este propósito o que se lê em um célebre tratado relativo ao juiz que queria ser perfeito: entre as tantas características, que vão da castidade a ser inexorável (inflexível, que não cede a pressões), aparece aquela de ser librorum cumulo circumdatus, et studens ; conforme G. Alvarez de Velasco (séc. XVII), Judex perfectus seu de judice perfecto Christo Jesu , Lausonii et Coloniae Allobrogum, Sumptibus Marci-Michaelis Bousquet et Sociorum, 1740, rubr. 15, ann. 1, p. 280-297, um compêndio do qual se encontra em M. A. Savelli (1624?-1695), Summa diversorum tractatuum , I, Venetiis, Apud Paulum Balleonium, 1707, p. 16-30, de cujo epílogo (p. 30) é extraída a citação entre vírgulas. (^21) Na legislação italiana, confira-se o art. 2º da Lei nº 117, de 13 de abril de 1988, bem como o art. 2º, segunda parte, do Decreto Legislativo nº 109, de 23 de fevereiro de 2006.

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iluminístico do “juiz boca da lei”. Se, de fato, esse é considerado ultrapassado há muito tempo também nos ordenamentos codificados ou de base legal^26 , com maior razão deve ser negado naqueles ordenamentos que, ainda que tenham recepcionado os princípios do moderno constitucionalismo, ainda permanecem ancorados na tradição do direito comum, onde ab immemorabili ao juiz é reconhecido um amplíssimo poder discricionário para converter – como se disse inicialmente – o preceito abstrato (a ser identificado no interior de um sistema normativo muito complexo) em um preceito concreto.

  1. Mas isto tem como imprescindível consequência que de tal tradição se extraiam os contrapesos ao exercício da jurisdição, que na sua falta se configuraria como exercício arbitrário : entre todos, a possível sujeição do juiz a um procedimento disciplinar ( sindacato ) – com a cautela inegociável de que seja presidido por órgão totalmente independentes do poder político – e, ainda antes disso, levar na devida conta a polissemia do termo “lei”, à qual o juiz está sujeito; com esse termo, no que diz respeito ao direito privado, não se deve entender apenas o direito de origem política, mas também o direito comum e, sobretudo, a lex contractus.
  2. Como tive ocasião de afirmar em outro local^27 , é exatamente este limite à atividade judicial que constitui uma característica peculiar da jurisdição civil do direito comum, em que as partes são livres na autodeterminação das suas relações jurídicas, seja sob o perfil da regulamentação, seja na individuação do nomen iuris atribuído à convenção^28. Disto deriva que ao juiz – e, de forma mais genérica, ao intérprete – não resta alternativa que não tomar conhecimento da escolha das partes, limitando-se a avaliar se o conjunto de interesses disciplinados não contrarie os ditames da aequitas , elemento central de todo o sistema jurídico; e, somente no caso em que tenha havido uma violação desta, ele poderá colocar

(^26) Neste sentido: ROMBOLI. La responsabilità del giudice , cit., p. 211. (^27) Cf. LANDI, A. Inderogabilità dell’autonomia privata e rilevanza delle sopravvenienze. Un’indagine sulla cosiddetta clausula rebus sic stantibus nel maturo diritto comune. In: CIENFUEGOS, C. Soriano (Coord.). Pacta sunt servanda y rebus sic stantibus. Desarrollos actuales y perspectivas históricas. Memorias del Coloquio Internacional de Derecho Privado – Ciudad de México, 29 y 30 de enero de

  1. México D.F.: Universidad Panamericana-Editorial Novum, 2015. p. 57-70. (^28) Nestes termos, cf. SANTARELLI, U. La categoria dei contratti irregolari. Lezioni di storia del diritto. Torino: Giappichelli, 1990. p. 145-155.

INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS E... 253

em discussão a lex contractus , e, portanto, intervir a fim de que seja restabelecido o equilíbrio substancial que fora violado com a pactuação iníqua^29.

  1. Na “aldeia global” da sociedade do século 21, quando cada vez mais o tráfego comercial se expande para além das fronteiras nacionais e se abre a uma dimensão supraestatal e até mesmo mundial, ao juiz de cada ordenamento é exigido, então, que exerça responsavelmente aquela ars boni et aequi que constitui a essência da jurisdição, deixando de lado as reconfortantes mitologias do passado
  • sobretudo a estatalidade do direito (e a consequente pretensão de identificar o direito com a lei), o formalismo e o silogismo judicial – e passe olhar mais para a concretude da experiência jurídica e ser, assim, um verdadeiro dispensador de justiça 30.
  1. Nessa perspectiva – se nos é consentido dizer à guisa de conclusão –, também uma robusta ciência jurídica é chamada a recriar aquela simbiose dialética entre doutrina e juízes que, se foi o cimento para a construção do edifício jurídico do utrumque ius^31 medieval, poderá sê-lo igualmente – muito além de

(^29) Sobre o tema, permanece fundamental o texto de GROSSI, P. Ricerche sulle obbligazioni pecuniarie nel diritto comune. Milano: Giuffrè, 1960. p. 91-192. Para um exemplo deste modo de raciocinar, veja-se Rota florentina, Florentina rescissionis donationis, die 10 Maii 1669, coram F. Burghesio. In: Selectarum Rotae florentinae decisionum thesaurus ex bibliotheca Iohannis Pauli Ombrosi, XII, Florentiae, Ex typographia Bonducciana, 1785, dec. 19. p. 130-145, onde as partes haviam definido donatio , um contrato no qual o presumido doador transferia certos bens aos próprios irmãos “desejando acertar-se” com esses, em razão de desavenças patrimoniais anteriores; a Rota, não podendo desconhecer a qualificação jurídica dada à convenção entre as partes, a definiu não como donatio simplex – isto é, proveniente ex mera liberalitate –, mas donatio correspectiva , em relação à qual se podia inclusive admitir a rescisão por lesão, evidentemente não proponível contra uma doação verdadeira e própria. (N.T. “Rota” era a denominação dada a grandes tribunais existentes na Itália, a partir do início da Idade Moderna. Ainda hoje é o nome que se dá ao tribunal eclesiástico da Santa Sé – Tribunal da Rota Romana ( Tribunal Rotae Romanae ), que funciona como instância recursal junto ao Vaticano) (^30) Como escreveu um juiz atento à dimensão histórica do direito: “A justiça jamais poderá dispensar a apreciação judicial e, portanto, de seres humanos, em carne e osso, que avaliam o comportamento de outros seres humanos, sempre em carne e osso; embasados na lei, é claro, mas também avaliando as singulares circunstâncias do caso e encarando as pessoas no rosto” (GARRÉ, R. Un apprezzamento poco apprezzato? In: Justice-Justiz-Giustizia , 2014/2, p. 3). (^31) N.T.: A expressão latina utrumque ius (um e outro direito) designava o direito civil e o direito canônico, ambos universais, e de cujo íntimo relacionamento derivou o direito comum. Era comum, no período medieval, os estudiosos frequentarem tanto os cursos jurídicos quanto os cursos de direito canônico, ministrado nas faculdades de teologia. Quem assim procedia, recebia o título de doctor utriusque juris. Hoje, tal título ainda é obtido junto à Pontifícia Universidade de Latrão, no Vaticano, após um período de seis anos de estudo, bem como pelas Universidades de Wuerzburg (Alemanha) e de Fribourg (Suíça).