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Entre a grande variedade de mitos que representam as cosmogonias, destacamos o livro Igbádú: a Cabaça da Existência, de autoria de Ogebebara Awofa. Neste livro, ...
Tipologia: Notas de aula
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Igbádú: mito enquanto existência no Candomblé
Luciene de Oliveira Dias FIC/FCS/Universidade Federal de Goiás Suzete Aparecida Gomes Silva FCS/Universidade Federal de Goiás
Resumo
Neste artigo discutimos a mitologia no Candomblé, religião de matriz africana ancorada no Brasil e cuja força está na íntima relação com a natureza e a ancestralidade, compreendendo mito enquanto forte fator de normatização social e guia para uma existência afirmada. Elemento primordial do sistema religioso e significando etimologicamente comunicação, pensamento e verdade, o mito é atemporal. Nossa hipótese é a de que, localizado no tempo originário, o mito assume um lugar central de transmissão do conhecimento. Com a sustentação de levantamento bibliográfico, já que este texto é parte inicial de pesquisa em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais, alcançamos a compreensão apresentada por Campbell (1997), para quem absolutamente tudo o que advém do corpo e da mente tem inspiração nos mitos. Toda a mitologia iorubana é transmitida pela oralidade e, da mesma forma, esta é acionada pedagogicamente no Candomblé. Guiados pelos mais velhos, quem se inicia na religião aprende pelos mitos tudo sobre o Candomblé. Os Orixás, cores, comportamentos, respeito, elementos naturais, hierarquia, vida enfim, são reaprendidos e ressignificados sob a base sólida dos Orixás. Chamados itans, os mitos na cultura iorubana representam toda a história de cada Orixá, a exemplo de suas lutas, guerras, conquistas, perdas, vidas. Histórias de reis e rainhas, nascimento e morte, progresso e atraso, conquistas e fracassos. Toda essa complexidade e dualidade são apreendidas pelos mitos e pela oralidade. No Candomblé, o babalorixá ou a yalorixá responsabiliza-se pela transmissão das regras, hierarquias, vestimentas, comidas, indumentárias e rituais. Pensando nas novas relações de parentesco estabelecidas no Candomblé, que aciona categorias como mãe, pai, irmãos e irmãs, os rituais vão demandar sempre seus interditos, seus preceitos, e é exatamente nos momentos rituais que opera toda a força dos mitos. No campo das performances negras, lançamos aqui mão dos mitos relatados por Adilson de Oxalá (2005) que narra como foi criada a terra (ayê) e tudo o que nela existe, como os Orixás viveram na terra e depois como morreram, como viviam com os humanos, como é o céu (orum), onde vivem os Orixás. Cada um destes mitos fala da cosmologia humana e nos possibilita
visualizar toda uma performatividade que nos reconecta com o sagrado pela mitologia. Dessa forma, conhecer e conseguir pensar os mitos nos Candomblés é acessar este espaço/tempo originários na contemporaneidade e afirmar pertencimentos e identidades. Palavras-Chave: Mitologias; Performances Negras; Candomblés.
1. Introdução
Entre a grande variedade de mitos que representam as cosmogonias, destacamos o livro Igbádú: a Cabaça da Existência, de autoria de Ogebebara Awofa. Neste livro, o que se apresenta é toda a história de como viviam os Orixás, como vieram criar a terra, como tudo foi feito, como viveram aqui, como morreram e como começou o seu culto. E os Orixás, a uma ordem de Olorun^1 , abandonando definitivamente suas formas carnais, retornaram ao Orun e, hoje, sempre que lhes é permitido, descem ao Aiê, onde manifestados nos corpos de seus filhos, matam a saudade do mundo que criaram e onde aprenderam a amar e a odiar os homens. (OGBEBARA, 2006, p.
O curioso nesse mito é que o Orixá escolhido para realizar a missão de criar a Terra e tudo que faria parte dela, Obatalá^2 , não obedece aos sacrifícios ditos no jogo, e por obra de Exu Elegbará^3 , não consegue cumprir sua missão. Quem passou a liderar a missão foi Odudua^4 , que com a ajuda dos Eboras criou o planeta e as formas inferiores de vida que nele iriam habitar, os seres humanos. Caberá a Obatalá criar os seres humanos e, sobre estes, Olorun diz: Cada ser criado de um tipo diferente de matéria deverá, no decorrer de sua vida, prestar culto ao Orixá que tenha recebido a sua matéria e, desta forma, ficará estabelecido o Culto aos Orixás; e os homens deverão render homenagem como forma de pagamento pelo uso de seus próprios corpos, que, na verdade, não lhes pertencem, mas sim aos Orixás, que poderão, por curtos períodos, deles se apossar para receber as homenagens que lhes forem destinadas. (OGBEBARA, 2006, p. 55-
Tudo o que é aprendido e vivenciado no Candomblé é transmitido via oral, essa guia pedagógica, passada pelos Babalorixás e/ou Yalorixás, ou ainda pelos mais velhos, vai acontecer em momentos rituais específicos; como um ebó^5 ou bori^6. Tudo o que se precisa saber sobre a religião é repassado ao abian^7 , quando da sua iniciação.
(^1) Deus supremo, criador de todas as coisas. (^2) O mais velho e mais respeitado de todos os Orixás, da mais alta hierarquia espiritual, senhor do branco. (^3) Um dos nomes/títulos de Exu, referente ao poder ilimitado que esta entidade possui. (^4) Filha mais velha de Olorun. Princípio feminino-passivo, a contraparte de Obatalá. (^5) Ritual de limpeza, feito pelo Babalorixá ou Yalorixá, quando são utilizadas comidas secas (bola de farinha, de arroz, grãos cozidos ou torrados, cereais em geral, pipoca, vela e ovos, às vezes também são usadas frutas. 6 7 Ritual mais elaborado, com mais elementos e no qual diz-se que a cabeça irá comer. Quem está conhecendo a religião, independente de se tornar um fiel ou não, faz parte de todo o aprendizado ser um abian.
mitos também influenciaram muitos pensadores desde a teologia à psicanálise, na teologia os teólogos tentam explicar a criação do mundo e dos homens. Um exemplo bom para pensar é o mito bíblico do Gênesis. Na antropologia o mito está ligado ao símbolo que está ligado ao rito. Na filosofia, a preocupação principal é em responder racionalmente as interrogações da existência humana, por exemplo, o mito da caverna, de Platão. Na psicanálise, o mito se converte em complexo, mitos clássicos foram explorados por estudiosos da alma humana, por exemplo o complexo de Édipo, base dos trabalhos de Freud. Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos. Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. (CAMPBELL, 1997, p. 6) O grande salto de Arnould Van Gennep (2011) foi trazer o mito como categoria de análise para o estudo dos rituais. Segundo este pesquisador, o mesmo rito pode assumir diferentes interpretações, dependendo da compreensão do fenômeno, e diversos tipos de rito podem se combinar. Os ritos de passagem podem ser decompostos em ritos de separação do mundo anterior, ritos de margem e ritos de agregação ao novo mundo, que permitem entender o funcionamento dessas passagens. Cada rito tem finalidade e significado específicos. Nesses ritos geralmente é delimitado por algo concreto ou espaços físicos de interdições, o lugar do sagrado e do profano. A pessoa pode sair através dos ritos de iniciação do mundo anterior para entrar num novo mundo. São os ritos de entrada e de saída. Na iniciação, ainda segundo Van Gennep (2011), se perdem algumas qualidades e adquirem outras. A pessoa iniciada passa pelos ritos de separação, de margem e de agregação. Há sempre novos limiares a atravessar. A vida é um contínuo desagregar e reconstruir. Para ele, a sociedade em geral é composta por sociedades especiais, em que o indivíduo transita durante a vida. Van Gennep cunhou a expressão ‘rito de passagem’ e deu ênfase que coloca na razão de ser do rito e do mecanismo ritual. Confere autonomia ao rito como objeto de estudo considerando-o no interior de sequências e não isolado. As compreensões de Van Gennep (2011) e de Campbell (1997) sobre rituais de iniciação coincidem com os rituais de iniciação do Candomblé. Uma vez que a pessoa iniciada no Candomblé se reclusa do mundo, durante vários dias, passa por vários ciclos rituais, aprende nessa passagem, todos os símbolos, regras, tabus, conhecimento, para dele sair renovada; agora como uma pessoa religiosa, uma Yaô, que cultua seus ancestrais e seu Orixá de cabeça^8. Como dito anteriormente por Ogbebara (2006), o corpo que a pessoa
(^8) No Brasil, o culto é destinado a dezesseis Orixás. Toda pessoa tem um Orixá de cabeça entre esses dezesseis. São eles: Exu, Ogun, Oxossi, Omolu, Ossain, Oxumare, Nanã, Oxum, Obá, Ewá, Oyá, Logun Éde, Yemanjá, Ayrá, Xango e Oxalá.
possui foi um empréstimo de seu Orixá. O sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psique. Mas, nos sonhos, as formas são distorcidas pelos problemas particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os problemas e soluções apresentados são válidos diretamente para toda a humanidade. (CAMPBELL, 1997, p. 13) N a obra Mitologia dos Orixás, Reginaldo Prandi (2001) retoma os mitos de Exu a Oxalá, nos apresentando um conjunto de fotos que mostram a beleza estética do terreiro. Os Orixás, artisticamente vestidos, compõem a ópera dos deuses. As religiões estão na ordem da cultura, que foi aprendida, transmitida, sendo condicionada pelas relações existentes entre os homens em seus grupos sociais, de acordo com interesses dominantes, políticos, econômicos e biológicos. Estes fatores podem excluir certas posições possíveis da lógica espiritual, favorecê-las ou selecioná-las. Desta forma, a etnia ou a especificidade da matriz cultural podem favorecer crenças, valores, ritos como formas comunitárias ou familiares de manifestação. A mitologia é uma coleção de contos e lendas com uma concepção mística em comum, sendo parte integrante da maioria das religiões, mas suas formas variam muito dependendo da estrutura fundamental da crença religiosa. Não há religião sem mitos, mas podem existir mitos que não participem de uma religião. “A literatura yorubá enraíza-se na encruzilhada do imaginário e faz desse lugar, o ‘entre lugar’ do pensamento. É na encruzilhada que o pensamento se potencializa e se fortalece” (CORREIA, 2013, p. 13). Esta encruzilhada, sintetizada em Exu, é lida nesta escrita como a própria liminaridade, o entrecampo, a esquina, o não-lugar porque sintetiza todos os lugares.
Neste sentido, o mito é o primeiro e principal elemento do sistema religioso. O mito é de um tempo que está fora do tempo, ele é atemporal, tendo em vista que ele se expande e atinge todas as épocas, tempos e lugares, mesmo sendo localizado no tempo das origens, ele chega ao ser humano no local e na ocasião em que se encontra. No Candomblé, os mitos são chamados Itans e representam toda a história de um Orixá: as lutas, guerras, vitórias, vida enfim. Histórias de reis e rainhas, nascimento e morte, progresso e atraso. Tudo é apreendido através dos mitos no Candomblé, uma religião que não possui um código linguístico escrito, como acontece, via de regra, com as religiões cristãs, que contam com uma Bíblia para seguir, ou ainda como os muçulmanos, que têm o Alcorão. O Candomblé segue, na maioria das vezes, a tradição de cada casa, juntamente com a formação de cada Babalorixá ou Yalorixá. No Candomblé, toda a tradição, regras, hierarquia, vestimentas e cores específicas, conhecimento sobre as ervas, os elementos
as performances revelam o que não é evidenciado. Elas estão inseridas em uma proposta metodológica interdisciplinar, colocam em foco a produção cultural humana, e em contraste tentam entender outras culturas com as quais dialoga. No caso do candomblé, na ausência de uma tradição escrita, seu conteúdo é comunicado através da dança, da música, do canto, da possessão, dos gestos, das posturas, das cores e dos sons. O maior arquivo das tradições performáticas afro- brasileiras é o próprio corpo, o qual ocupa um lugar central em todas as performances verificadas por ocasião das festas públicas. (SANTOS, 2007, p. 26) Segundo Zeca Ligiéro (2011), nas performances de origem africana, tudo é centralizado no corpo. O contexto dessas performances é de celebração e ritualístico, com grande interação e participação pública. A dança é somente um dos elementos da performance africana e para entendê-la, é necessário analisar todos os seus elementos: a música, os atabaques, o ritmo, o mito e o transe. A dança que subjuga o corpo nasce de dentro para fora e se espalha pelo espaço em sincronia com a música sincopada típica do continente africano. De tão insistente e envolvente, ela faz parte tanto do festivo, do religioso, como do cotidiano do povo brasileiro; das celebrações católicas aos folguedos e ritos afro, como o candomblé e a umbanda. A conexão dessas danças com a cultura africana, de tão óbvia, tem sido menosprezada e pouco estudada pelo mundo acadêmico, que prefere ver nela um reflexo das misturas condicionadas pela cultura pop internacional ou uma consequência da miscigenação ou ainda do sincretismo. (LIGIÉRO, 2011, p. 133) Ieda Tucherman (1999) parte do pressuposto que o corpo não pode ser acionado como um dado natural. Ele se constrói no limite entre o biológico, o individual e o coletivo, sendo ele a imagem que produz de si.
E a nossa cultura tem sido (...) uma poderosa construtora de espelhos e imagens legisladoras de princípios de inclusão e exclusão, natureza e cultura, mesmo e outro. Entre estas, talvez a mais radicalmente privilegiada tenho sido a imagem do corpo (TUCHERMAN, 1999, p. 21). Assim, o corpo é aquilo que é construído dentro de seu contexto específico, podendo ele incorporar o ‘espírito santo’ e falar em línguas. No caso específico do Candomblé, o corpo pode receber os Orixás e dançar divinamente nas festas.
4. O Candomblé
O Candomblé possui uma hierarquia extremamente rígida; a primeira delas é entre os que recebem o Orixá, ou incorporam como dito mais correntemente, e os que não recebem. Os que recebem são os yaôs, pessoas iniciadas no Candomblé; os Babalorixás e as Yalorixás. Os
que não recebem os Orixás são os Ogãs^10 e as Ekejis^11 , que têm responsabilidades maiores com os que estão “virados no santo” ou incorporados. Como eles não recebem o Orixá, são automaticamente responsáveis pelas pessoas que entram em transe.
O Candomblé independente de denominação ou variante (macumba, tambor de mina, batuque), é provavelmente o mais notável patrimônio sociocultural edificado pelo negro na América Latina. A terminologia ‘Candomblé’ provêm da fusão de duas palavras de origens distintas: Candombe (de origem bantu) e Ilé (de origem yoruba). (OLIVEIRA, 2008, p. 82) O Candomblé é formado num complexo de imagens onde a cultura e os símbolos se fundem e formam o espaço ‘sagrado’ do Terreiro, onde acontece a dramaturgia religiosa entre o chamado povo de santo e os simpatizantes deste. “O imaginário no Candomblé se configura a partir de toda uma construção mitológica que é interpretada pelo imaginário das danças e pela riqueza dos movimentos que contornam ética e esteticamente a vida do Povo do Santo” (CORREIA, 2013, p. 17). Um dos principais elementos no Candomblé é a fase de iniciação. Neste período, o Yaô deve ficar recluso por alguns dias, dependendo de cada Terreiro e de sua tradição. Nesta ocasião é repassado quase tudo para a pessoa que está iniciando-se, sendo tudo transmitido pela oralidade. A observação dos ritos que são elaborados durante o período de reclusão deve ser rigorosa para a consolidação do Yaô. A pessoa submetida ao ritual de passagem fica, no decorrer do período liminar, estruturalmente, ou mesmo fisicamente, "invisível" (Turner, 2005, p. 139) para as demais. Quando o Yaô deixa a reclusão, acontece uma grande festa. Esses períodos são bem marcados e nos remetem ao que Turner nos fala sobre a iniciação: “Durante o período liminar, os neófitos são alternadamente forçados e encorajados a refletir sobre sua sociedade, seu cosmo e os poderes que os geram e sustentam. A liminaridade pode ser em parte descrita como um estágio de reflexão” (2005, p. 151). No limiar não se está nem lá, nem cá, é um processo ou um estado ligado ao transe. Ainda sobre o aprendizado, Turner diz que “eles aprendem também as grandes linhas da teogonia, da cosmogonia e da história mítica de suas sociedades ou cultos, usualmente com referência aos sacra exibidos” (2005, p. 148). A simplicidade estrutural em muitas situações liminares é compensada pela complexidade cultural. Na iniciação, ainda segundo Van Gennep (2011), sempre se perdem algumas qualidades e adquirem-se outras. A pessoa iniciada passa pelos ritos de separação,
(^10) Nome genérico para diversas funções masculinas dentro de uma casa de Candomblé. Trata-se do sacerdote escolhido pelo Orixá para estar lúcido durante todos os trabalhos. 11 Equivalente feminino dos Ogãs, sendo escolhida e confirmada pelo Orixá do terreiro de Candomblé. Não entram em transe.
Candomblé, um ritmo é quebrado, para que se forme outro, o da energia que flui novamente entre os vivos e os mortos, suas ancestralidades. “Portanto, a reconstrução da identidade africana em solo americano se dá através da reconstrução de rituais específicos” (LIGIÉRO, 2011, p. 141). Desse “encontro” surgiu o Candomblé, esta religião de matriz africana, mas genuinamente brasileiro, mediado por relações simbólicas e sagradas que se apresentam reveladoras para a compreensão da geograficidade das ações humanas vinculadas às manifestações religiosas. Para a manifestação de um Orixá, são realizados rituais que permitem uma construção imbricada entre o princípio régio do sagrado e um local que posteriormente se torna seu território.
5. Considerações
Para Ligiéro (2011), o direito de cultuar suas divindades e seus ancestrais africanos, parcialmente tolerado pelas autoridades, permitiu que cada grupo étnico, valendo-se da tradição oral, recorresse à memória dos mais antigos para restabelecer, em solo brasileiro, as bases de sua religião. Devido ao fato de aqui ter desembarcado muitos e diversos grupos humanos escravizados originários do continente africano, surgiram diferentes nações também dentro do Candomblé. Dessa forma, são encontrados no Brasil o Candomblé Angola, Candomblé Congo, Candomblé Jeje-Nagô e outras denominações. Em diferentes regiões do Brasil, outros tipos são identificados, como o Tambor de Mina, no Maranhão e o Batuque, no Rio Grande do Sul. Suas celebrações, com suas linguagens, divindades próprias e seus ancestrais, possibilitaram a perpetuação de várias tradições. Na medida em que o Candomblé ganha as cidades, eles criam novos estilos de tocar, dançar e cantar. Mesmo assim, mantêm suas tradições, incorporando novas práticas, tons e melodias, que resultaram em novas performances culturais. A festa de Candomblé é fundamentalmente uma festa ritual. Suas ações são passadas pela dramática dos mitos, das músicas, dos cantos, dos gestos. As performances ritualísticas fazem com que o Terreiro seja visto como o espaço de representação do sagrado. O terreiro de candomblé, tal como o conhecemos, é a criação, nas condições adversas da escravidão, de uma nova instituição e de um novo modelo de culto, adaptado às circunstâncias encontradas no Brasil. (SANT’ANNA, 2003, p. 3) A dança cria uma forte conexão com as memórias que se têm da África. Laços emocionais e espirituais entre os grupos de diferentes etnias foram recriados e fortalecidos ao longo dos anos. E atualmente, o culto aos Orixás não nega sua diversidade que aglutina e resgata uma ancestralidade roubada pelo projeto de dominação colonial.
A festa de Iemanjá é, segundo Ligiéro (2011), a mais importante celebração e confraternização das religiões afro-brasileiras, uma vez que nesta festa-ritual é possível observar vários recursos corporais que são típicos da tradição afro-brasileira. Nela são combinadas formas circulares de dança de terreiro de Candomblé e Umbanda, como as formas procissionais africanas. Nesse ritual, quem fala é a África através da linguagem dos corpos de pessoas que deixaram seus afazeres e as diferenças étnicas e sociais. Da mesma maneira, percebe-se este movimento durante o Carnaval, quando se permite articular a linguagem primordial dos deuses africanos, que, absorvida pelo corpo articula-se em todo o mesmo em um ritmo de celebração e harmonia cósmica. A existência de um ethos e de uma visão de mundo que povoa os Terreiros dazem do Candomblé uma religião brasileira calcada em uma ancestralidade africana. Desenhada e contornada pela mitologia dos Orixás, a religião carrega um imaginário do Brasil que vai testemunhar os vários brasis existentes. As comidas, os bordados, o sincretismo religioso, o hibridismo cultural, tudo isso vai intensificando uma ética e uma estética partilhada no imaginário do povo brasileiro. “As danças, a riqueza ‘odara’ da mitologia reflete o Brasil complexo e multifacetado. Podemos ir da literatura à cultura e, dessa, ao imaginário”. (CORREIA, 2013, p. 12) Compartilhamos com a pesquisadora Patrícia Souza (2007) a compreensão de que o estudo sobre o mito mostra o quanto ele é importante para o Candomblé, estando em toda parte. Inscrito nas roupas, nos adereços, nos arranjos estéticos e na maneira de conceber, construir e expressar o belo à moda africana em qualquer momento do ritual ou de sua preparação. Sendo assim, o rito, o mito e a estética do candomblé não se separam. Eles formam juntos o candomblé, uma religião negra hoje enraizada numa sociedade de gosto predominantemente branco, mas que bebe nessas fontes para construir, a partir de sua diversidade cultural, sua própria identidade. (SOUZA, 2007, p. 150) A mitologia africana perpassa assim todas as esferas do Candomblé, seja na hierarquia, nas cores das contas ou nas cores que os Orixás usam. Também passa pelos elementos da natureza e comidas. Nas festas públicas, os Orixás ritualizam e performatizam através das danças os mitos que outrora esses deuses fizeram e viveram. A forma da performance se estabelece como ação no tempo e impregna a vida das pessoas. A crença em determinada religião determina o comportamento e uma visão de mundo, e um comportamento implica em determinada religião, seja como mito e adoração do mito, como linguagem poética, como atitude, com suas loucuras e seus métodos; como imagem, forma que se estabelece como coisa e representação, formas objetivas e subjetivas. Formas mito e formas de análise em performance. (CAMARGO, 2015, p. 20) Se performances, segundo Esther Jean Langdon (2006, p. 167), são “um evento situado num contexto particular, construído pelos participantes, há papéis e maneiras de falar e agir”. Pode-se inferir que as performances no Candomblé podem ser analisadas nesse
Cultura : ensaios e diálogos. Goiânia: Kelps, 2015. CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997. CORREIA, Paulo P. A Performance do Candomblé : uma encruzilhada no exterior. Minas Gerais. Vozes dos Vales – UFVJM, nº 04. Ano II, 2013. LANGDON, Esther J. Performance e sua diversidade como paradigma analítico : a contribuição da abordagem de Bauman e Briggs. ILHA, 8(1,2):162-183, 2006. LIGIÉRO, Zeca. Batucar-cantar-dançar : Desenhos das performances africanas no Brasil. Aletria Revista de Estudos da Literatura. V. 21, n. 1, 2011. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/1573 Acesso em: 09 jun. 2019. OLIVEIRA, Arilson S. Roger Bastide e a Identidade Nagocêntrica. In: Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, nº 02, dez, 2008.
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