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Este documento explora as possíveis influências punk na banda brasileira camisa de vênus, analisando suas músicas e suas raízes musicais. O autor busca entender como a banda adotou elementos punk, mesmo sem se identificar explicitamente com o movimento. O texto aborda a história do punk, as primeiras bandas punks e como elas influenciaram a camisa de vênus.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
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Não perca as partes importantes!
Wellington Camargo dos Santos^1
Resumo: Neste trabalho pretendo sondar possíveis apropriações que a banda Camisa de Vênus teria feito de elementos musicais atribuídos a bandas consideradas punks, sejam elas contemporâneas ou não à época da produção do álbum intitulado “Correndo o risco”, produzido em 1986. Essa proposta insere-se no projeto História e Música: identidades, memórias, histórias e se propõe a buscar nas músicas de bandas punks estrangeiras – como Sex Pistols – e nacionais – como Cólera – ecos das críticas e da sonoridade que compõem o referido álbum da Camisa de Vênus. A apropriação que a banda faz desses elementos parece não combater a alcunha que a mídia associava à banda, de “punk baiano”, como intencionava o vocalista ao compor uma de suas músicas. Palavras-chave: história, música punk, identidade, apropriação, crítica social.
1. Punk: uma questão de identidade Levante, vá tomar café É hora de trabalhar E se quiser ligar o rádio Tem música feita pra lhe sedar ÔÔÔ aqui em Salvador ÔÔÔ a cidade do axé, a cidade do horror. (“Controle total”, Camisa de Vênus ) Uma das intenções do Marcelo Nova quando o Camisa de Vênus foi formado era criticar a sociedade baiana, ou melhor, a uma cultura que se atribuia ao baiano. Eles utilizaram vários elementos da música “Complete control”, da banda inglesa The Clash, para compor essa música intitulada “Controle total”, na qual fica clara a intenção de crítica a uma certa identidade baiana. Por essa e por outras razões a banda Camisa de Vênus teria sido tomada pela mídia como uma banda punk. Nesse trabalho procurarei sondar elementos musicais que poderiam ter contribuído para que a sonoridade da banda Camisa de Vênus fosse identificada com o universo do punk. Esses elementos poderão indicar uma apropriação da sonoridade característica de bandas consideradas punks na década de oitenta. Dessa forma, o Camisa estaria contribuindo para uma representação desse movimento e tomando uma identidade para si ligada a essas bandas. Quando a mídia, na década de 80, aponta o Camisa de Vênus como uma banda de “punk baiano”, isso indica que havia representações sobre os punks, na qual bandas da época se encaixavam. Segundo Pesavento, “Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade”^2. A autora também chama a atenção para o
(^1) Graduando em História pela Universidade de Brasília (UnB); e-mail do autor: ernestotrongt@gmail.com. A pesquisa foi patrocinada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CnPq). 2 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 39
fato de que os indivíduos passam a viver a partir dessas representações, construções linguísticas que atribuem sentidos à realidade sensível. O que essa alcunha queria dizer, afinal?! Segundo Corrêa, “ Punk [grifo do autor], em inglês, significa lixo, ou coisa podre , mas também pode significar estopim .”^3 Já Bivar, vai encontrar no dicionário outros significados que segundo ele vão “Desde “madeira podre usada para ascender facilmente um fogo” até “vagabundo de pouca idade”^4. Ambos significados estão longe de definir substancialmente o que é o movimento cultural – o movimento punk – cujas primeiras aparições, se discute, datam da virada da década de 60 para 70, nos Estados Unidos, ou na Inglaterra de Margareth Tatcher, em 1975-76^5. Tomar-se-á nesse trabalho o punk enquanto uma palavra que passa a designar e a ser assumida por bandas de rock, servindo para a construção de uma identidade que vai ser retomada por músicas, fanzines^6 , e pela mídia. Ou seja, o punk é aqui tomado enquanto uma identidade construída a partir das representações, que por sua vez são construídas através dos discursos e das apropriações que os grupos fazem da realidade. Na década de 70, mesclando características de bandas da década de 60 – como o MC5 , The Stooges e Velvet Underground , consideradas por alguns como pré-punk 7 – teriam surgido as primeiras bandas punks: Ramones – banda americana – , The Clash e Sex Pistols – bandas inglesas. Já na década de 80, surgem muitas bandas punks como Ratos de Porão , Inocentes , Cólera e Garotos Podres. Vai ser a partir de elementos musicais de bandas punks que o Camisa de Vênus vai compor suas músicas, articulando-se com representações ligadas a elas, o que nos faz lembrar a reflexão de Chartier sobre as formas de apropriação:
A problemática do <<mundo como representação>>, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada [grifo meu] pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real.^8 Portanto, a representação é geralmente construída a partir de apropriações de elementos discursivos que circulam na cultura a partir dos enunciados e das práticas culturais. Essas (^3) CORRÊA, Tupã Gomes. Rock, nos passos da moda: mídia, consumo X mercado. Campinas: Papirus, 1989, p.
Dessa forma poder-se-á utilizar a música como fonte histórica à medida que ela está em constante diálogo e articulação com o momento histórico e cultural em que se insere. Já a análise do discurso será usada para compreender de que forma alguns sentidos são construídos pela música como discurso ou, nas palavras de Orlandi, “Paramos em sua materialidade discursiva para compreender como os sentidos – e os sujeitos – nele se constituem e a seus interlocutores, como efeitos de sentidos filiados a redes de significação” (^17). Ou seja, poder-se-á perceber a filiação de dizeres relativa ao discurso e colocá-lo em sua
historicidade. Esses autores possibilitarão uma análise crítica das fontes de forma que se possa perceber como os elementos musicais presentes na música do grupo em tela se relacionam com outros de seu tempo histórico, criando uma rede de identidade. Ao mesmo tempo, será possível perceber como os músicos se posicionam em sua obra, enquanto discurso, constituindo uma identidade punk inserida no quadro cultural em que é produzida.
2. A Camisa de Vênus e o punk Foi na década de 1980 que a banda Camisa de Vênus despontou no cenário musical brasileiro. Formada por Marcelo Nova, vocalista do grupo, por Robério Santana (guitarra), Karl Franz Hummel (baixo), Gustavo Adolpho Souza Mullen (segundo guitarrista) e Aldo Pereira Machado (bateria), foi em algum momento de suas primeiras apresentações que teria surgido o grito de guerra da banda: “Bota pra fudê!”. Estávamos sendo apresentados a um grupo cuja inserção possível era o universo do punk rock, e por isso mesmo, fazemos uma breve incursão pelas experiências musicais que delinearam esse estilo de rock.
2.1. Inícios do punk As primeiras bandas de punk formaram-se numa época em que as temáticas no rock estavam mudando. Se, na década de 50, faziam-se críticas sociais de forma sutil, sem atacar diretamente os valores dominantes da sociedade, na década de 60 as temáticas passaram a ser mais engajadas ao criticar a guerra do Vietnã, a moral burguesa, e ao dar espaço às lutas pelos direitos das minorias^18. É nesse cenário ideológico que surgem as bandas que contribuíram com importantes vocábulos sonoros e políticos para a escrita das músicas que caracterizariam o punk rock. Essas bandas são chamadas por alguns de pré-punk.
(^17) Idem, ibidem, p. 91. (^18) SCHEINER, Vivianne Teles. O rock and roll no plural história e identidade: os mútiplos sentidos do rock (anos 50, 60 e 70 do século XX). Monografia de graduação. Brasília, UnB, 2000, p. 3.
De acordo com Tinti, as primeiras manifestações musicais que se pode caracterizar como precursoras do punk rock remontam à década de 60. O modo punk de se fazer música parece trazer um pouco do espírito de bandas como Stooges , Velvet Underground e MC5^19. Todas traziam uma inovação para aquela década do psicodelismo hippie e sua mensagem de “paz e amor”. A Velvet tinha letras obscenas e devastadoras como é comum ocorrer no universo punk. O experimentalismo sonoro dos Stooges – com sons de aspirador de pó, por exemplo – teria inaugurado a idéia de “Do it yourself” (“faça você mesmo”), assim como a simplicidade musical punk. Tal simplicidade musical parece ter surgido em reação à complexidade do rock que se fazia até então, o rock progressivo (com músicas de dez minutos e “intermináveis solos de guitarra”).^20 Já o MC5 lança o radicalismo político punk – de oposição ao governo – quando toca na convenção do Partido Democrata em Chicago, em 1968 e tem de fugir da repressão policial.^21 A manifestação dessas bandas parece anunciar a chegada de um novo modo de se tocar rock. A virada dos anos 60 para os 70 parece ser marcada por um rock cujas temáticas se diferenciam do rock feito até então por ser impregnada de um clima decadente e de críticas radicais. São temas como: vida urbana, a saúde mental, o suicídio, o sexo extraconjugal, a masturbação, o poder econômico, os interesses governamentais, as novas formas de seguir o caminho da vida e o feminismo. A partir daí o rock seria considerado o gênero musical da contracultura, a melodia que embalaria a expressão dos interesses das minorias, face à cultura dominante.^22 É nesse quadro que se inserem os embriões do movimento que emerge posteriormente com estilo próprio dentro do rock: o movimento punk. É na década de 70 que o movimento punk passa a ser tomado como subgênero do rock, agora representado por inúmeras bandas influenciadas pelas três a pouco citadas, pela poesia de Patti Smith^23 – cujo primeiro álbum “Horse” foi produzido por Jonh Cale (ex-guitarrista do Velvet Underground ), obra que Marcus Marçal cita como “um marco filosófico na história do punk rock”^24 – e pelo minimalismo musical da New York Dolls^25 – para os quais Malcolm McLarem teria trabalhado como produtor, antes de sair para formar o Sex Pistols.^26 O
(^19) TINTI, Simone Paula Marques. História do Rock_._ 2003. Disponível em: http://www.clubrock.com.br/news/historiadorock.htmacessado em 7 de Janeiro de 2010. 20 VINIL, Kid. Almanaque do rock – histórias e curiosidades do ritmo que revolucionou a música. São Paulo: Ediouro, 2008, p.131. 21 22 TINTI, Simone Paula Marques. Op. cit. 23 SCHEINER, Vivianne Teles. Op. cit., p. 4. 24 Idem, ibidem. MARÇAL, Marcus. Patti Smith - Elegia ao Punk como Modo de Vida. Disponível emhttp://www.screamyell.com.br/musica/pattismith.htmacessado em 8 de janeiro de 2010. 25 26 Idem, ibidem. Sitehttp://whiplash.net/materias/biografias/038435-newyorkdolls.htmlacessado em 8 de janeiro de 2010.
apontar que, nesse mesmo período, operários na periferia de São Paulo já se identificavam com as bandas Sex Pistols e The Clash , e começavam a formar bandas^34. Isso nos diz que foi nesse ano que os brasileiros começaram a se identificar com o movimento punk. 2.2. A disseminação do punk: os anos 80 A década de oitenta é marcada pelo ressurgimento do punk em vários países e por uma forte disseminação dele no Brasil. Nessa década surgia uma nova forma de se tocar punk, o hardcore^35 , principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Já no Brasil, influenciadas por esse estilo (entre outros), surgiam inúmeras bandas de punk rock como Ratos de Porão, Garotos Podres , entre outras. Após a morte de Sid Vicious^36 em 1979, o punk foi considerado pela mídia como morto, já que parecia ter havido um arrefecimento do movimento nesse período. Mas ele “renasce” em 1981 – permanecendo, porém, no underground – num movimento que trazia como lema o “ Punk’s not dead” 37 com bandas como Exploited , Discharge , Conflicts , Vice Squad , entre outras. A partir daí, o punk vai ter preocupações sociais e políticas, voltando-se a problematizações de temas como as guerras e as injustiças sociais.^38 Ao mesmo tempo, no Brasil, os punks também alcançavam seu auge com características bem similares aos punks de língua inglesa. Sua capacidade de opinar sobre a realidade brasileira e internacional mostra que o movimento punk brasileiro partilhava de um cuidado, próprio daqueles, em perceber e criticar a realidade com que tinham contato.^39 O cenário do punk paulista teria revelado duas grandes bandas: a Ratos de Porão e a Garotos Podres. Ratos de Porão teria lançado seu primeiro álbum, “Crucificados pelo sistema”, em 1983, e teria sofrido influências do hardcore^40 de bandas como Discharge e do trash metal^41 das bandas Metallica e Slayers. Já Garotos Podres começara em 1982 e quebrara recorde de cópias vendidas por um disco independente com seu primeiro LP “Mais podres do que nunca”, de
(^34) DAPIEVE, Arthur. BRock: o rock brasileiro nos anos 80. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 27. (^35) É um punk mais acelerado, com vocais roucos e grunhidos com uma sonoridade largada, pobre em edições de estúdio, o que aparentava que a gravação teria ocorrido em lugares inadequados como porões. (VINIL, Kid. Op. cit., p. 152). 36 37 Baixista da banda^ Sex Pistols. 38 Tradução livre: “O punk não está morto”. 39 BIVAR, Antonio.^ Op. cit. , p.109. 40 Idem, ibidem, p. 101. 41 VINIL, Kid.^ Op. cit. , p.188. Idem, ibidem , p.188. O thrash metal é mistura de heavy metal e hardcore. Ele costuma ter rápidos solos de guitarra, como no heavy metal, letras de protestos com forte conteúdo político, e vocais rasgados, como no hardcore.
1985, vendendo cerca de 50 mil cópias.^42 É nesse cenário que é formada a banda baiana Camisa de Vênus , cujo percurso nos interessa destacar. 2.3. A trajetória da Camisa de Vênus Em 1982, o grupo Camisa de Vênus dá início a sua carreira com o lançamento de um compacto, que trazia apenas duas músicas “Controle total” e “Meu primo zé”. A este primeiro trabalho seguiu-se o álbum “Camisa de Vênus”, lançado em 83, foco de muita polêmica provavelmente devido aos palavrões registrados em suas letras, assim como ao tom sarcástico nelas inscritas; as rádios não queriam, diante de tanta “grosseria”, tocar as músicas do grupo.^43 Segundo o próprio Marcelo Nova, teriam sido eles que introduziram o palavrão na música popular brasileira. Antes desse compacto a banda se apresentou muito tempo em shows de público fiel e que levavam nomes como “Ejaculação precoce” 44 , títulos os quais exemplificam bem essa atitude. Dessa forma, sua sonoridade já definia seu público e sua oposição. O público que marcava presença nos shows eram os punks. Já a sua oposição se encontrava na MPB e nos considerados pela banda como conservadores, os quais eram críticos ferrenhos que bradavam por censura a sua manifestação musical^45. Os punks criticavam a MPB e algumas de suas práticas tidas por eles como conservadoras – como, por exemplo, uma “romantização” da pobreza.^46 Havia certa censura até mesmo acerca do nome da banda pelas gravadoras mais conservadoras. Em 1984, a Som Livre sugere ao grupo uma mudança no nome. Marcelo Nova responde ao pedido afirmando que o grupo então passaria a se chamar Capa de Pica.^47 Este evento resultou, segundo registrado no site oficial de Marcelo Nova,^48 na expulsão da Camisa de Vênus da gravadora Som Livre. No ano seguinte o grupo lançou, pela RGE, o álbum “Batalhões de Estranhos”, que emplacou os dois maiores sucessos da carreira da banda: Beth morreu e Eu não matei Joana D'arc. A passagem de um álbum a outro mostra a ausência de preocupação em fazer um som mais elaborado, atitude típica do punk.^49 Em 1986, o grupo lança o primeiro disco ao vivo de uma banda de rock no Brasil: “Viva”.
(^42) Idem, ibidem , p.188. (^43) ALZER, Luiz André. Op. cit., p. 186. (^44) Idem, ibidem, p. 162. (^45) DAPIEVE, Arthur. Op. cit., p.162. (^46) BIVAR, Antonio. Op. cit., p. 102. (^47) Site oficial de Marcelo Nova. Endereçohttp://www2.uol.com.br/marcelonova/frame.htmacessado em 7 de Janeiro de 2010. 48 49 Idem, ibidem. DAPIEVE, Arthur. Op.cit., p. 162.
Ao formar a banda, Marcelo Nova o fizera para criticar a sociedade baiana. Em seu relato, Marcelo denota prazer em criticar o imaginário construído acerca da Bahia:
Eu me insurgi contra o poder da música baiana de uma forma totalmente radical! Aberta, franca! E eu tinha uns asseclas que compraram a história, que eram caras que não tinham uma... uma direção na vida. Estavam perdidos em Salvador. Perdidos, completamente. Nos insurgimos contra o mito da Bahia, 'a Terra de Io-iô e Ia-iá'. 52
A música punk teve, desde a formação das primeiras bandas, o objetivo de crítica à sociedade em que se inseria, intento este reconhecido no relato de Marcelo Nova. A banda Sex Pistols sempre fez críticas à sociedade inglesa, como na música “God save the Queen”: God save the queen She ain't no human being There is no future In England's dreaming^53 As críticas punks de Marcelo Nova ficam claras quando analisamos o trecho indicado na epígrafe desse artigo. Essa música, “Controle Total”, foi escrita para uma versão de uma música do The Clash, o que demonstra que uma das principais influências da banda era o punk. A atitude de Marcelo Nova frente às gravadoras encontra similitude às atitudes de integrantes de outras bandas punks. Sua atitude ao resistir ao pedido da gravadora Som Livre a mudar o nome da banda é uma atitude própria de bandas punks. Depois que a EMI rescindiu o contrato com o Sex Pistols, por causa da má fama que o punk ia adquirindo, a A&M, nova gravadora da banda, se recusou a lançar sua música “God save the Queen”, motivo pelo qual a banda resolve sair dessa gravadora.^54 Cabe considerar ainda que, com o surgimento do hardcore, reforçou-se a idéia de uma total independência dos punks em relação a grandes gravadoras, ou seja, prevaleceu a decisão de se partir para a produção autônoma de discos, o que levou a acusações de que aquelas bandas punks que tocavam junto a gravadoras eram traidores.^55 Do que vimos da trajetória da Camisa de Vênus , percebe-se uma banda punk em potencial. Ao analisarmos as letras das músicas de seu álbum “Correndo o risco” (1986), percebemos que suas letras fazem críticas similares às de outras bandas punks, trazem
(^52) Idem, ibibem. (^53) Tradução: “Deus salve a rainha/Ela não é um ser humano/Não há futuro/Nos sonhos da Inglaterra” – retirada do site << http://letras.terra.com.br/sex-pistols/35850/traducao.html >> acessado em 23/02/11. “God save the queen”. Sex Pistols. Álbum: 54 Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols. Warner Brothers. 1977. 55 BIVAR, Antonio. Op. cit., p.61. Idem, ibidem, p. 75.
temáticas e características também encontradas nessas bandas, sobretudo nessa década, mas também antes dela. Em suas letras encontram-se com freqüência críticas à alienação e denúncias de realidades sociais. Podemos encontrar nesse álbum uma música que sintetiza as dimensões críticas que a banda vai assumir aqui. Ela se chama “Deus me dê grana”. Nela, percebemos o ar irônico e debochado com que a Camisa de Vênus trata a religião. Ao mesmo tempo em que a divindade é invocada pelo personagem da música, o poder divino é colocado como aquele que vai retirá- lo de sua difícil situação financeira e vai lhe permitir inclusive uma vida sexualmente ativa. Nessa música a denúncia social está presente ao se apontar as necessidades precárias em que se encontra o personagem. Ele não tem comida ou moradia própria por falta de dinheiro:
De manhã bem cedo alguém bate em minha porta É a proprietária que eu sonhei estava morta Pulo pela janela na maior correria Mas é muito difícil, Deus, com a barriga vazia^56
A situação financeiramente precária de brasileiros foi uma denúncia freqüente no movimento punk. Músicas como “Volume pra caixão” da banda Cólera traz uma realidade similar àquela denunciada na música da Camisa :
Domingo cão sem refeição pedaço de pão com gosto de sabão todo dia ele dormia na infantaria de barriga vazia um dia jantou achou que mudou e quando deitou o coraçao parou!^57
Nela a situação descrita desemboca na morte do indivíduo, destino ao qual a maioria dessas pessoas está exposta. Em outra música punk, a banda Olho Seco questiona se teria alguma perspectiva de melhora para a vida dos pedintes desabrigados, denotando da mesma forma uma denúncia social:
Mãos estendidas Mãos trêmulas De um corpo fraco Mostrando sempre a palma da mão Haverá Futuro?^58
(^56) Karl Hummel, Gustavo Mullem, Marcelo Nova. “Deus me dê grana”. Camisa de Vênus. Álbum: Correndo o risco. 57 WEA. 1986. 58 “Volume pra caixão”.^ Cólera.^ Álbum:^ Tente mudar o amanhã.^ Ataque Frontal. 1985 Olho seco. “Haverá futuro”. In: Cólera / Ratos de Porão / Inocentes. O Começo do fim do mundo. New Face Recordes. 1982.
redor. No início da música percebe-se logo que, ora ou outra, “a realidade” surge perturbando a visão ilusória de mundo que o impregna:
Velhas sensações nos perseguem todo dia Nesta terra de sonhos, esperanças sem juízo Mas os sonhos sempre viram pesadelo Afinal o mal também mora neste paraíso^62
Já em “Ouro de tolo”, a Camisa de Vênus mantém o tom irônico de Raul Seixas para falar de uma felicidade imaginária, a qual deveria ser trazida por conquistas como o emprego, a compra de um carro e o lazer: “Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego/Sou um homem respeitado e ganho centos mil cruzados por mês”.^63 Mas o que se percebe é que ele não está contente, apesar de pessoas como ele se deixarem contaminar com essa felicidade que é esperada, mas sempre adiada. Essas críticas parecem ecoar nas músicas de bandas punks como o Cólera. Ela vai apontar – em sua música “Condenados” – como que, com o estratagema de tentar sobreviver, os indivíduos se deixam alienar e assistem à destruição do próprio mundo:
Condenados por seus próprios Meios de sobrevivência Enganados por este mundo Que se destrói pouco a pouco^64
A passividade dos indivíduos frente à opressão que sofrem é tema e crítica também apontada pelos Inocentes em sua música intitulada “Calado”, composta posteriormente à música do Camisa de Vênus. Nela narra-se que essas pessoas alienadas sofrem e morrem calados, ou seja, sem reivindicar melhoras pra suas vidas: “Morrer só, sofrer só, morrer só/ Calado.”^65 Todas essas críticas e denúncias sociais estão também muito claras na letra da música “A ferro e fogo”. O personagem da música viaja em um navio cheio de idealismos, inclusive religiosos, e acaba naufragando. Ou seja, a alienação desemboca na morte do indivíduo como ocorre nas músicas “Calado”, da Inocentes , e “Volume pra caixão”, da Cólera.
(^62) Karl Hummel, Gustavo Mullem, Marcelo Nova. “Tudo ou nada”. Camisa de Vênus_._ Álbum: Correndo o risco. WEA. 1986. 63 Karl Hummel, Gustavo Mullem, Marcelo Nova. “Simca Chambord”. Camisa de Vênus_._ Álbum: Correndo o risco. 64 WEA. 1986. 65 Cólera.“Condenados”. Cólera. Álbum:^ Tente mudar o amanhã.^ Ataque Frontal. 1985 “Calado”. Inocentes. Álbum: Miséria e fome. Devil Discos. 1988.
Esses posicionamentos podem ser verificados, então, tanto nas músicas punks, quanto naquelas encontradas nesse álbum da Camisa de Vênus. Isso demonstra um compartilhamento de valores em seus discursos. Ambos vão demonstrar insatisfação com a sociedade brasileira, com a pobreza e a religião. Mas a banda vai compartilhar com os punks algo mais do que seus valores e suas críticas. A sonoridade impregnada nas músicas da Camisa de Vênus vai alinhá-la ao som produzido por bandas punks como The Clash e Sex Pistols. A formação original da Camisa – com dois guitarristas, um baixista e um bateirista – demonstra uma forte influência da banda The Clash no arranjo de algumas músicas desse álbum. Ao compararmos as músicas “Ouro de tolo” e “I‟m so bored with USA”, verificaremos um ritmo parecido e uma melodia elaborada de forma similar: a bateria, sempre cadenciada, com as guitarras fazendo intervenções da mesma forma. Em “Sinca Chambor”, da Camisa, e “Protex blue”, da Clash, há uma melodia contínua orientada pela guitarra, e uma cadência, também bem próximas musicalmente. Pode-se perceber o uso de sons raros em músicas punks – mais raros ainda no hardcore
Na scer com o mal na al ma [grifo meu] Pro batismo liber tar [grifo meu] Carregar a cruz de toda essa cul pa [grifo meu]
(^66) The Clash. Álbum: London calling. CBS. 1979. (^67) Sex Pistols. Álbum: The great rock’n roll swindle. Virgin. 1979.
e a própria Camisa de Vênus. Suas denúncias acerca dos problemas sociais parecem reforçar essa divisão, pois aspira a demonstrar uma consciência acerca dos problemas, e a ausência da alienação citada por eles. Tanto a Camisa de Vênus quanto os punks responsabilizavam a religião por essa alienação – apontando também para a idéia de que eles não são religiosos. A banda ter-se-ia apropriado, então, de aspectos que impregnavam os punks de sua época, o que teria contribuído para que a mídia a tomasse como uma banda punk. Mas Marcelo Nova recusa que sua banda fosse chamada de punk, o que inclusive desemboca na composição da música “A ferro e fogo”, que possui uma sonoridade diferente do punk a priori , mas que acaba por reforçar sua identidade punk, tendo em vista a presença da música orquestrada na obra do Sex Pistols.
4. Camisa de Vênus: uma banda punk? Na década de 80, recompunha-se no Brasil, na Inglaterra e nos Estados Unidos, o movimento punk que teria se retraído após a morte de Sid Vicious, baixista do Sex Pistols. A banda The Clash continuara sua carreira misturando o punk rock a inúmeros estilos, como o reggae. E Ramones também continuara fazendo punk rock_._ Esses últimos se distanciavam bastante do hardcore, estilo de punk mais disseminado na década. Talvez para a facção hardcore da década de 80, punks que marcaram a história desse movimento – como Sex Pistols, The Clash e Ramones – não poderiam ser chamados de punks por sua sonoridade menos agressiva ou por sua associação a grandes gravadoras. Mas qualquer um que na época considerasse a história do punk, com certeza, reconheceria em Camisa de Vênus uma banda muito próxima do punk feito anteriormente, tanto por sua atitude e sua sonoridade quanto por sua linguagem, muito similar ao próprio hardcore brasileiro que estava no auge naquele momento. A Camisa de Vênus foi fundada por Marcelo Nova com o objetivo de fazer uma sonoridade punk. Suas composições em Correndo o risco vão beber das águas principalmente do hardcore brasileiro, para fazer críticas em suas letras; assim como algumas delas aparecem anos depois em outras bandas desse estilo de punk. Já em seu instrumental e vocalização, a banda demonstra forte influência do punk da década anterior. As letras das músicas da Camisa , assim como aquelas do hardcore brasileiro, vão construir uma identidade punk como porta-voz da crítica, auto identificando-os como livre de alienação e da religião. Os grupos dos quais eles procuram se diferenciar são aqueles identificados como pobres e alienados, seja pela religião ou não; mas também aqueles que possuem valores mais conservadores e que seriam alienados pela religião. Alguns
representantes associados a esses grupos seriam as gravadoras, vistas como barreiras para a livre composição e que procuravam impor às bandas, a elas ligadas, seu conservadorismo (tais bandas acabavam por ser incluídas nesse grupo, sendo chamadas de traidores); e os defensores da MPB, que romantizariam a pobreza – em oposição ao discurso punk, impregnado de tons de denúncia – e teriam um discurso de censura também marcante em relação aos punks. Marcelo Nova, o vocalista da banda, recusava que sua banda fosse chamada de punk e compôs junto a uma orquestra uma música para contestar de alguma forma essa idéia.^71 Mas isso não impediu que sua atitude fosse lida ainda como uma atitude punk. Contudo, essa análise mostra que a alcunha de banda punk era um rótulo possível ou, no mínimo, justificável em sua enunciação referente à banda Camisa de Vênus nesse momento – já que houve inúmeras apropriações da linguagem dos punks e compartilhamento do modo de se diferenciar de outros setores da sociedade. Ela mostra ainda que, apesar de Marcelo Nova recusar durante a composição do álbum a alcunha de punk para a banda, esse trabalho retoma características das músicas desse movimento cultural, o que faz do punk uma identidade perceptível na banda nesse momento.
Bibliografia
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(^71) Num trabalho anterior, mostrei como essa música ainda traz características da música punk, apesar da poesia que carrega consigo. Ver: SANTOS, Wellington Camargo dos. “Entre a poesia e o rock: representações do navegar em Skank e Camisa de Vênus”. In: Revista Noctua. 1/2011 ed. Disponível em http://seer.bce.unb.br/index.php/noctua/article/view/4034acessado em 18 de agosto de 2011.
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