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Identidade Feminina Negra: Estudo sobre Infibulação em Objetiva, Notas de aula de Construção

Este documento aborda a representação da identidade feminina negra na literatura e no filme 'objetiva', focando na personagem waris dirie e sua experiência com a prática da infibulação na somália. A pesquisa utiliza teorias de autores como bauman, bhabha, hall, laraia, lísias e munanga, entre outros, para analisar a relação entre identidade, cultura e a representação da mulher negra na sociedade africana. O documento confirma que a ideologia ritualística interfere na construção da identidade negra feminina e negação de seus direitos humanos.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Osvaldo_86
Osvaldo_86 🇧🇷

4.5

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CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM LETRAS
DANIELLE ALEXA BARBOSA MEIRA
IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DA MULHER
NEGRA EM “FLOR DO DESERTO”
GUARABIRA – PB
2014
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CENTRO DE HUMANIDADES

CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM LETRAS

DANIELLE ALEXA BARBOSA MEIRA

IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DA MULHER

NEGRA EM “FLOR DO DESERTO”

GUARABIRA – PB

DANIELLE ALEXA BARBOSA MEIRA

IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DA MULHER

NEGRA EM “FLOR DO DESERTO”

Monografia apresentada ao Departamento de Licenciatura Plena em Letras, da Universidade Estadual da Paraíba, em cumprimento às exigências para obtenção do grau de Licenciada em Letras. Orientadora: Profª Drª Rosangela Neres Araújo da Silva. GUARABIRA – PB 2014

DANIELLE ALEXA BARBOSA MEIRA

IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DA MULHER

NEGRA EM “FLOR DO DESERTO”

Aprovada em 07 de março 2014. BANCA EXAMINADORA

Sou construção. O que sou carrega, sobretudo, um pedaço de cada um dos que acreditaram em mim. O sorriso natural, a pergunta boba, o estímulo, até o sacrifício mais desmedido. A eles dedico este pequeno fruto de meu início pela vida das Letras. Em especial, à minha mãe, Miscélia Barbosa, maior responsável, metade de mim.

“Vamos tentar mudar o que significa ser uma mulher.” Waris Dirie

RESUMO

Esta pesquisa aborda a representação da identidade da mulher negra africana, no romance e na adaptação fílmica homônima “Flor do Deserto”, de Waris Dirie e Cathleen Miller (2001) e Sherry Hormann (2009), respectivamente. Objetiva a análise da construção identitária da personagem Waris Dirie, enquanto protagonista de sua própria história de vivências na Somália, onde fora submetida, ainda na infância, à prática de infibulação, mutilação dos órgãos genitais femininos. Endossada pelos estudos literários e culturais, a pesquisa aponta como a prática da infibulação interferiu na construção da identidade de Waris, por dificultar a relação de seu próprio "eu" com o outro, dentro e fora de sua sociedade. A negação da condição de mulher e da atuação como sujeito feminino marcam as contradições de uma prática violenta e injusta, justificada por questões culturais e religiosas questionáveis, cujas explicações são ainda hoje incoerentes. Baseada no aporte teórico de autores como Bauman (2005), Bhabha (2003), Hall (2006), Laraia (1997), Lísias (2001), Munanga (1986), dentre outros, que discute a relação entre identidade, cultura, sobretudo a cultura negra, e a representação da mulher na sociedade africana, a pesquisa confirma a questão da ideologia ritualística como um precedente para a negação da identidade negra feminina e como tal negação tem reverberado na discussão e na luta pelos direitos humanos. Palavras-chave: Representação. Identidade. Negritude. Flor do Deserto.

SUMÁRIO

  • 1 INTRODUÇÃO
  • MUNDO 2 WARIS DIRIE: A FLOR COLHIDA DO DESERTO PARA O
  • 3 MULHERES, NEGRITUDE E REPRESENTAÇÃO
    • 3.1 A VOZ DA MULHER NEGRA EM FLOR DO DESERTO
    • 3.2 A REPRESENTAÇÃO NA LITERATURA
    • 3.3 A REPRESENTAÇÃO NO CINEMA
      • MODOS DE REPRESENTAÇÃO 3.4 INTERSECÇÕES ENTRE ROMANCE E ADAPTAÇÃO:
  • 4 MEMÓRIA E IDENTIDADE
  • 5 A ARTE COMO REFLEXÃO SOCIAL
  • 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
  • REFERÊNCIAS

1 INTRODUÇÃO

As relações entre a literatura e o cinema, artes que se interligam e dialogam sob vários aspectos, apresentam novas perspectivas diante do estudo das obras literárias e suas adaptações. É nesse sentido que nos debruçamos na investigação do romance autobiográfico Flor do Deserto (2001), de Waris Dirie e Cathleen Miller e a adaptação homônima, de Sherry Hormann (2009). A partir das narrativas, analisamos a construção e a representação da identidade feminina negra, refletindo acerca do que é “ser mulher” dentro de contextos culturais específicos, bem como do próprio contexto social humano. Inicialmente, buscamos analisar os aspectos referentes à narrativa, observando como se dá o processo de construção da identidade de Waris Dirie, tanto em uma perspectiva ideológica quanto formal. Vimos como estes traços femininos são expostos no romance biográfico e também na adaptação, bem como os elementos utilizados para traduzir a obra para o cinema e quais relações podem ser traçadas entre estas manifestações artísticas. As imagens e os símbolos metafóricos utilizados na construção narrativa de Flor do Deserto, bem como os aspectos metaficcionais que se integram dentro da história de Waris, são elementos importantes na compreensão desse universo de representação, enquanto objeto essencial de elucidação de nossa própria realidade. Sendo assim, objetivamos também mostrar as artes, Literatura e Cinema, enquanto instrumentos importantes de reflexão acerca do mundo em que vivemos de nosso próprio mundo, proporcionando, a partir dessa reflexão, a transformação de nosso pensamento e do próprio meio social no qual estamos inseridos. Almejamos, portanto, traçar as relações existentes entre a protagonista e a representação da identidade feminina negra nas narrativas, bem como destacar a importância dessa construção na identificação do grupo ao qual Waris pertence e assim trazer a problemática da mutilação genital feminina à tona, expondo e discutindo tal prática como a negação da condição da mulher e sua atuação no meio social, analisando o modo como a infibulação interfere

2 WARIS DIRIE: A FLOR COLHIDA DO DESERTO PARA O MUNDO

Abordar a identidade pressupõe uma discussão também cultural, social e ideológica. Dessa forma, entender a construção da identidade feminina negra a partir da protagonista Waris significa, antes de tudo, observar as questões culturais e sociais de determinado povo. A variedade cultural em que estamos imersos nos permite adentrar em um universo plural, conhecer como pensam e como agem diferentes povos, diferentes comunidades, e, portanto, nos permite refletir, a partir do outro, acerca do modo como vivemos e como nossa identidade é construída, em grande parte, culturalmente. No entanto, o conceito de identidade parece-nos, atualmente, bastante flexível, amplo, líquido. Podemos analisá-lo sob diversos níveis, diferentes perspectivas. Em nossa sociedade pós-moderna, podemos conceber a identidade como algo que se constrói durante toda uma vida. É o que nos aponta Bauman (2005, p. 17), ao dizer que a construção da identidade vai depender de “decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age”. E complementa: Num dos polos da hierarquia global emergente, estão aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade (...). No outro polo, se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final se veem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros (...). Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam. (BAUMAN, 2005, p. 44). Percebemos que a construção identitária de Waris perpassa tais questões. Nascida na Somália, africana, negra, mulher, pobre, sua identidade é marcada pela imposição de modelos pré-estabelecidos. Enquanto negra e pobre, Waris possui uma identidade circundada pelo preconceito social e racial. Porém, ser mulher em sua cultura também lhe impõe uma condição de submissão, inferioridade, obrigações de matrimônio, privação de sua liberdade e, o que se torna mais incisivo dentro dessa construção, é o fato de ser submetida à infibulação, para não ser considerada “impura”, dentro de seu grupo social. Este fato, em especial, acarreta não só a violação de uma

identidade biológica, mas interfere na construção de sua identidade individual e social após sua saída da Somália e a tentativa de uma nova realidade na Inglaterra. A nômade que aos treze anos atravessou o deserto da Somália até chegar em Londres para fugir de um casamento arranjado por seu pai, choca- se com a cultura oposta que encontra naquela cidade. Passando por inúmeras dificuldades, consegue uma oportunidade que a faz mudar de vida e tornar-se uma modelo de sucesso. Porém, longe de ser a simples história de uma pobre menina que superou as adversidades e conseguiu ascender na vida, a obra nos faz voltar os olhos para uma questão bastante séria: a mutilação genital feminina. Praticada em inúmeros países africanos, a mutilação, além de ser um ato de violência física contra a mulher, também representa uma quebra ou fragmentação de sua identidade. Justificada por questões religiosas e culturais, esse “ritual”, realizado com meninas entre quatro e dez anos, constitui uma violação aos direitos humanos e um problema de ordem mundial. O processo pelo qual Waris Dirie é submetida é o mais cruel e desumano dentro todos os tipos de circuncisão: Consiste em clitoridectomia^1 seguida pelo fechamento vaginal mediante sutura. Deixa-se somente uma pequena abertura para a emissão da urina e descarga do sangue menstrual. Depois do matrimônio, a vulva é aberta por laceração, o que amiúde volta a ocorrer na ocasião de um parto. O fechamento vaginal volta a repetir- se cada vez que o esposo sair em viagem. (TRACTENBERG, 2007, p. 72) Assim, entendemos que a identidade da mulher negra africana é ainda mais ferida quando submetida ao ritual, pois ele representa a submissão de suas vontades, de seu corpo e de sua liberdade de pensamento e de escolha. (^1) A clitoridectomia é a extirpação/retirada do clitóris do órgão genital da mulher.

Essa visão inferior do conceito de mulher e do universo feminino é algo que pode ser constatado para além da questão cultural, ou ainda algo inerente às diferentes culturas, embora presente em diferentes escalas. O próprio corpo feminino sempre foi tido como objeto estranho, misterioso e impuro, de modo que a mulher sempre foi associada ao diabólico e perigoso. Mary Del Priore (2008) complementa: Juíza da sexualidade masculina, a mulher era ainda estigmatizada com a pecha da insaciabilidade. Seu sexo assemelhava-se a uma voragem, um rodamoinho a sugar desejos e fraquezas masculinas. Unindo, portanto, o horrendo e o fascinante, a atitude ameaçadora da mulher obrigava o homem a adestrá-la. Seria impossível conviver impunemente com tanto perigo, com tal demônio em forma de gente. (DEL PRIORE, 2008, p. 33). No período colonial brasileiro, por exemplo, a vida das mulheres girava em torno da maternidade. Medicina, Igreja e Estado se voltavam unicamente para este fato, buscando justificativas para o adestramento das mulheres conforme a imagem da “santa-mãezinha”, onde todas as mulheres deveriam desempenhar seu papel de “donas do lar”, mães exemplares, boas e obedientes esposas, responsáveis pelo sucesso da paz doméstica e matrimonial. Desse modo, o papel de “mãe” e “santa”, transforma-se mais no de uma escrava, sujeita às vontades do marido e da sociedade. “Devota, obediente, dessexualizada e destituída de paixões, faz-nos pensar em quantas mulheres teriam de fato se sentido mulher, sob essa norma.” (DEL PRIORE, 2008, p. 108). Sendo assim, percebemos que os traços identitários femininos são norteados através de sua relação perante o homem. Os elementos que constituem sua identidade, sejam físicos, comportamentais e até de pensamento, são em geral marcados por repressão. Longe de querer construir um discurso vitimizador da mulher, buscamos apenas constatar os aspectos culturais inerentes à própria história da humanidade, em que a mulher é diretamente atingida. Essa construção identitária feminina se deu, em boa parte, através das principais instituições sociais, como a Igreja, a Família e o próprio Estado, que enraigaram o patriarcalismo em suas estruturas.

Dentro dessa esfera de estigmatização histórica, temos ainda o agravante da negritude. Como as mulheres negras estão inseridas dentro desse contexto? A mulher branca, que passa por todo esse processo, começa, sobretudo a partir do século XIX, a se portar de uma forma diferente diante da sociedade. Daí surge o movimento feminista, que vai lutar pelo espaço das mulheres que sempre lhes foi negado. Porém, a mulher negra aparece novamente excluída de mais esse processo, seja pelo fator da escravidão, que retira o direito e a oportunidade da mulher negra de inserir-se em determinados contextos sociais ou até mesmo pelo “isolamento” de algumas comunidades negras com relação a esse mundo pós-moderno, como é o caso do grupo de Waris. Os aspectos culturais são bastante específicos, e o grupo social do qual Waris fez parte é um grupo fechado, portanto, fenômenos como a globalização, que permite a troca de informações, atualizações, mudanças de pensamento e de comportamento e reorganização dos grupos sociais, mantêm-se ainda um pouco distante de sua realidade. Vivendo uma cultura totalmente diferente da nossa, e cercado por suas tradições, o grupo perpetua a prática da mutilação genital. Porém, a prática é totalmente incoerente, não deixa vestígios de sua origem, tampouco se pode inferir que tenha fundamento religioso, já que a prática da circuncisão aparece em mais de um tipo de religião. Tractenberg (2007) afirma que, de acordo com relatório da Organização Mundial de Saúde, datado de 1985, Alguns observadores acreditam que a circuncisão feminina se destinava a suprimir a sexualidade da mulher e assegurar a sua castidade e conduta monógama, enquanto outros consideram que se iniciou em tempos remotos, entre povos dedicados ao pastoreio, para proteger as jovens que levavam ao pasto os animais. Em realidade não há forma de determinar a origem deste costume. (...) alguns povos mulçumanos acreditam ser uma imposição da religião. Mas no Corão nada está escrito em apoio à circuncisão feminina, nem tampouco é praticada na Arábia Saudita, o berço do Islam. Outros defensores consideram que os genitais femininos intactos são “sujos”; que uma mulher não circundada tem todas as probabilidades de ser promíscua, e inclusive que a operação aumenta as probabilidades de sobrevivência dos filhos. Há quem afirme que a circuncisão é um rito de iniciação à idade adulta. (TRACTENBERG, 2007, p. 160). Ou seja, a própria explicação perde-se no tempo, no fundamento e no sentido. Consideramos todo o tipo de repressão equivalente, porém, o que

Desse modo, nossa pesquisa compõe um material de análise e reflexão da representação identitária da mulher negra que é submetida à prática da circuncisão, nas aldeias africanas, buscando evidenciar os métodos pelos quais esse assunto é abordado na literatura e no cinema, e quais são os elementos especificadores da condição da mulher, em cada um desses meios. Na tentativa de debruçar um olhar crítico sobre tal representação, partimos do questionamento de que se a conscientização sobre uma prática que interfere na construção da identidade feminina, por ser severa e traumática, bem como por negar os direitos humanitários do individuo e a sua condição de ser mulher, de que modo as manifestações artísticas podem contribuir positivamente na compreensão dessa consciência? Entendemos que assim as expectativas em torno dos resultados do nosso trabalho compartilham uma parcela da busca dessa compreensão. 3 .2 A REPRESENTAÇÃO NA LITERATURA O romance expõe uma narrativa predominantemente cronológica e bastante direta, com foco narrativo em primeira pessoa, em que a protagonista Waris Dirie explicita o passo a passo de sua trajetória. A partir dos acontecimentos factuais de sua história, Waris dá vida à personagem de si mesma, e a forma particular com que conta a história, utilizando-se de elementos ficcionais, a transforma em um romance distinto e emocional. Realidade e ficção se entrecruzam e fundem-se em uma só, onde uma contém a outra, não é apenas a história inventada ou o relato de uma história verídica, são as duas em uma só, “...pois a ficção, trabalho imaginativo que é, não cai como um seixo no chão, como talvez ocorra com a ciência; a ficção é como uma teia de aranha, presa apenas levemente, talvez, mas ainda assim presa à vida pelos quatro cantos.” (WOOLF, 1991 , p. 53). Embora autobiográfico, o processo de ficcionalização da narrativa ocorre através do investimento nas categorias formais e nos elementos estilísticos. Gaudreaut e Jost (2009), ao discorrer sobre a questão da narrativa, afirmam que:

Se o “real” não é proferido por ninguém, a fortioti ele “jamais conta histórias”. Isto é, a partir do momento em que lidamos com uma narrativa, sabemos que ela não é realidade. Certamente existem romances ou filmes extraídos de histórias verdadeiras. Porém, para Metz, não os confunde nunca com a realidade porque eles não estão como ela, aqui e agora. Relatar o assassinato de Kennedy é, ao mesmo tempo, colocá-lo no passado, fora de seu presente. Comentar uma etapa de uma prova ciclística como o Tour de France na televisão é situá-la longe de si, num outro universo, num outro lugar. É também gerar uma topografia imaginária, ligando simultaneamente locais heterogêneos. (GAUDREAUT; JOST, 2009, p. 34). Dessa forma, a realidade que se ficcionaliza ao ser transposta para a narrativa, leva-nos à compreensão da questão ideológica de uma forma bem mais universal. A partir da representação identitária, a problemática da circuncisão deixa de ser particular a Waris e torna-se um problema universal. A veiculação da problemática identitária a partir de uma ficção que, por sua vez, foi construída de uma realidade particular, torna-se um objeto de reflexão social que contribui na compreensão dessa problemática, e por que não dizer na mudança dessa e de outras condições culturais a que as mulheres estão sujeitas. Ainda sobre a narrativa, percebemos que o seu modo de construção, as imagens que suscita e o próprio teor dos acontecimentos tornam a obra peculiar. Podemos observar o modo como Waris narra seu encontro com um leão no meio do deserto, no início do romance. É forte, belo e ao mesmo tempo triste: Um leve ruído me despertou e, quando abri os olhos, eu estava diante de um leão. Minhas pálpebras saltaram e se abriram quase o suficiente para cobrir o animal. Tentei me erguer, mas, como não havia comido por vários dias, minhas pernas fracas vacilaram e eu tropecei. (...) O leão se aproximou de mim e lentamente piscou seus olhos cor-de-mel. Encarei-o. Ele olhou para o infinito. “Venha, devore- me agora.” Ele olhou para mim novamente e, então, procurou o horizonte. Passou a língua nos lábios e sentou-se sobre as coxas. Depois, levantou-se e desfilou ao meu redor, sensual e elegante. Finalmente, virou-se e foi embora; sem dúvida concluiu que, como meus ossos tinham pouca carne, eu não daria uma boa refeição. Ele correu em direção ao deserto, até que o castanho de sua pele misturou-se ao da areia. (DIRIE & MILLER, 2001, p. 13-14). Assim como outras imagens e pensamentos que sucedem na sua caminhada pelo deserto, Waris narra como conseguiu, depois de ser atacada