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Análise de Abre los Ojos e Yella: Personagens Desviantes e Elementos Sobrenaturais, Notas de aula de Desvio

Neste trabalho, analisamos as narrativas de abre los ojos e yella, que apresentam personagens desviantes e elementos sobrenaturais. Exploramos a presença desses elementos na parte fantástica dos filmes, sua relação com a não-linearidade e a representação de distúrbios de personagens. Além disso, discutimos a distribuição tardia do saber dentro dos filmes e as implicações dessa característica para a compreensão da narrativa.

O que você vai aprender

  • Como a intersecção de semântica e sintaxe contribui para a compreensão do gênero fantástico em Abre los Ojos e Yella?
  • Quais filmes antigos apresentam características comuns à estética puzzle e ao gênero fantástico?
  • Como os elementos sobrenaturais afetam a narrativa de Abre los Ojos e Yella?
  • Quais são as características desviantes dos personagens de Abre los Ojos e Yella?
  • Como a distribuição tardia do saber influencia a compreensão da narrativa em Abre los Ojos e Yella?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Carnaval2000
Carnaval2000 🇧🇷

4.7

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Universidade Federal de Juiz de Fora
Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens IAD
Pedro Felipe Leite Carcereri
Puzzle-films e narrativas não-lineares no cinema fantástico: um estudo de caso de
Abre los Ojos e Yella
Juiz de Fora
2015
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Universidade Federal de Juiz de Fora Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens – IAD Pedro Felipe Leite Carcereri Puzzle-films e narrativas não-lineares no cinema fantástico: um estudo de caso de Abre los Ojos e Yella Juiz de Fora

Pedro Felipe Leite Carcereri Puzzle-films e narrativas não-lineares no cinema fantástico: um estudo de caso de Abre los Ojos e Yella Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Linha de pesquisa: Cinema e Audiovisual. Orientador: Profº Drº Luís Alberto Rocha Melo Co-orientador: Profº Drº Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia Juiz de Fora 2015

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe Pedrina e à minha tia, madrinha e segunda mãe Nilza, pelo apoio durante toda a minha jornada de vida, estudantil e, principalmente, universitária. Não só pelo apoio financeiro e de recursos, mas pelo amor, carinho, atenção, dedicação e curiosidade em um ramo tão pouco badalado. E por me apoiarem incondicionalmente, em discrepância à maioria dos pais, quando eu decidi cursar Artes e ingressar na carreira cinematográfica. Agradeço à minha esposa Isabela por estar ao meu lado me dando amor, atenção e aguentando todo o estresse que a jornada em um mestrado pode causar a uma pessoa. Por manter-se calma e atenciosa e por dizer que tudo daria certo, quando tudo parecia dar errado. Agradeço ao meu tio e padrinho Paulo por ajudar na minha criação e por despertar em mim, ainda jovem, o gosto pelo cinema, assistindo a qualquer filme durante muitas horas. Acredito que esses momentos incutiram em mim a vocação que tenho hoje de assistir, apreciar, estudar e fazer cinema. Agradeço ao meu orientador durante toda minha graduação e meu co-orientador no mestrado Alfredo Suppia, por me ensinar diversas questões relevantes e refinar meu olhar para dentro dos estudos cinematográficos, além de ter bastante influência na pesquisa que realizo e no tipo de cinema que tento fazer. Agradeço ao meu orientador de mestrado Luís Rocha Melo por debater comigo durante esses dois anos e transformar um esboço de pensamento em uma dissertação de mestrado. Agradeço ao Profº Drº Sérgio José Soares Puccini e o Profº Drº Rafael de Luna Freire, por aceitarem fazer parte da minha banca de qualificação e de defesa, realizarem críticas construtivas ao meu trabalho e me orientarem para um caminho mais claro na construção da minha pesquisa.

RESUMO

Puzzle-films são filmes que apresentam narrativas com estruturas não-lineares. Seu contexto envolve a apresentação de pistas que são usadas para chegar a uma conclusão. A presença dessas estruturas no gênero fantástico dá origem a uma estrutura narrativa interessante, com semelhanças e diferenças peculiares. O fantástico pode subverter a estrutura conclusiva do puzzle , como um quebra-cabeças montado, através do aspecto da hesitação que é inerente ao gênero fantástico, originando dessa maneira representações de um “desvio autorizado”. Para um estudo de caso foram escolhidos dois filmes: Abre los Ojos ( Abre los Ojos , Espanha, Alejandro Amenábar, 1997 , 117 min.) e Yella ( Yella , Alemanha, Christian Petzold, 2007, 89 min.). É possível, a partir do estudo dos referidos filmes, encadear uma análise de como o puzzle e o fantástico se relacionam dentro de narrativas fílmicas e se as dicotomias estudadas ocorrem nas duas ocasiões. Pode-se traçar desta forma, alguns objetivos relevantes para o estudo. Os puzzle-films se relacionam com o gênero fantástico de maneira exclusiva ou relacional? O gênero fantástico serve como efeito subversivo da ordem final do puzzle resolvido, através de características de hesitação, transgressão, desvio e estranheza? Esse desvio pode ser motor de análise de possíveis reflexos de questões da sociedade contemporânea? Esses dois filmes, através de suas narrativas puzzle , são capazes de ser usados como exemplo para responder a essas questões? Feitas essas perguntas, partiremos então para a tentativa de respondê-las com uma metodologia e uma fundamentação teórica já bem consolidada. Aproximaremos-nos da questão de gênero através de uma perspectiva semântico/sintática pragmática. Quanto às questões do fantástico e dos puzzle , nos utilizaremos de pesquisas feitas no âmbito literário e cinematográfico. E, ao analisar a questão da transgressão, olharemos para teorias da sociologia do desvio para entender onde se localizam as representações dos outsiders. Palavras-chave: gênero cinematográfico; cinema fantástico; puzzle-films ; outsiders.

ABSTRACT

Puzzle-films are films that present narratives with non-linear structures. Their context involves the presentation of cues that are used to arrive at a final conclusion. The presence of these structures in the fantastic genre results in an interesting narrative structure, with similarities and differences. Fantastic can subvert the puzzle conclusive structure, like a puzzle assembled, by the hesitation aspect that is inherent in the fantastic genre, giving this way representation of an "authorized deviation". For a case study we chose two films: Abre los Ojos ( Abre los Ojos , Spain, Alejandro Amenábar, 1997, 117 min.) and Yella ( Yella , Germany, Christian Petzold, 2007, 89 min.). It is possible so chain together from an analysis of how the puzzle and the fantastic relate in film narratives and studied dichotomies occur on both occasions. Then we can draw some important goals for the study. The puzzle-films relate to the fantastic genre exclusively or relational way? The fantastic genre serves as subversive effect of the final order of the puzzle solved through hesitation features, transgression, deviation and strangeness? This deviation can be an analysis engine of possible reflections of the contemporary societal issues? These two films through their narratives puzzle, are able to be used as an example to answer these questions? With these questions then we depart to the attempt to answer them with a methodology and theoretical foundation already well established. We will approach to the question of gender through a semantic perspective / pragmatic syntax. The questions of the fantastic and the puzzle we will use the research done in the literary and cinematic scope. And in discussing the question of transgression, we will look at the sociology of deviance theories to understand where are located the representations of outsiders. Keywords: film genre; fantastic cinema; puzzle-films; outsiders.

INTRODUÇÃO

Para iniciar nosso trabalho, faremos uma explanação do que vamos discutir e das motivações que nos levaram a isso. Como indica o título desta dissertação exploraremos os pormenores dos puzzle-films e do gênero fantástico ao traçar uma análise de dois filmes: Abre los Ojos de Alejandro Amenábar e Yella de Christian Petzold. Essas duas narrativas nos trazem dois protagonistas que guiarão todas as nossas discussões neste trabalho: César de Abre los Ojos e Yella, a personagem-título de seu filme. Os dois protagonistas têm uma história semelhante, são atormentados por alucinações em um ambiente supostamente fantástico. Os problemas dos dois são iniciados por um acidente automobilístico causado por ex-companheiros amorosos. Esses mesmos companheiros são causadores das alucinações e evidenciam de certa forma o espectro fantástico em que somos inseridos. Ao longo do primeiro capítulo deste trabalho iremos explorar a narrativa dos dois filmes, um a um, apontando todos os detalhes que reconhecemos neles como claros manifestos das relações que estamos buscando. É importante destacar, a partir de agora, que este trabalho se vincula a uma experiência analítica. Estamos buscando, desde a introdução reforçar o trabalho de análise das narrativas fílmicas que nos interessam. Muito por conta disso, não vamos nos ater em questões de ordem historiográfica, autoral ou mesmo levando em conta perspectivas de cinema nacional. O que estamos interessados aqui é entender a narrativa dos dois filmes, e como elas podem se relacionar com nossos objetos de estudo: os puzzle-films e o cinema de gênero fantástico. Para esclarecer a ordem dos acontecimentos, apesar de se fazer notar o contrário, foram os filmes que nos levaram a escolher esses dois métodos de estudo. A narrativa fragmentada, que apresenta uma série de pistas e de personagens não confiáveis, nos fez enxergar uma possível relação com os puzzle-films. A atmosfera onírica e a presença de situações e personagens possivelmente sobrenaturais nos fez dialogar com a perspectiva do gênero fantástico.

Assim, ao nos debruçarmos sobre todas essas metodologias de análise de Abre los Ojos e Yella nos deparamos com a questão que queremos refletir e respondê-la ao final deste trabalho: esses dois filmes apresentam personagens desviantes que podem vir a refletir alguns aspectos sociais que vivenciamos? A presença do desvio, da transgressão e da estranheza é notória nas duas obras e o que queremos entender é se essa representação pode refletir algumas necessidades do cinema fantástico e como isso pode ser uma resposta a alguns pontos da sociedade contemporânea. Teremos cuidado nesse momento porque não podemos e nem queremos generalizar e tentar entender o que seria essa possível sociedade contemporânea e como ela se comporta. Estamos analisando algumas potenciais representações do desvio como a droga, a loucura e a transgressão jurídica e moral dentro das narrativas. Em inúmeros momentos de nossa análise estamos comparando o que chamaremos de realidade e sonho. Queremos deixar claro que ao usarmos esses termos não estamos sendo nem generalistas nem radicalmente precisos em suas definições. Ao citarmos realidade e sonho, estamos nos referindo a efeitos do real e efeitos do sonho dentro da narrativa. Levando em conta a perspectiva de efeito apontada por Aumont e Marie: O efeito do real designa o fato de que, na base de um efeito de realidade suposta suficientemente forte, o espectador induz um “juízo de existência” sobre as figuras da representação e lhes confere um referente no real; dito de outro modo, ele não acredita que o que ele vê seja o próprio real (não é uma teoria da ilusão), mas sim que o que ele vê existiu no real.^1 Ancoramos, dessa maneira, esses termos de realidade quando visualizamos dentro das narrativas acontecimentos que possam ser plausíveis dentro do real, como as reuniões de Yella ou as festas em que César comparece. E quando nos referimos ao sonho estamos diante de eventos que fogem da realidade empírica, como as alucinações auditivas e visuais dos dois personagens. Temos também alguns excertos de mescla entre a realidade e o sonho, como quando são repetidos dentro do sonho atos que já (^1) AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003, p. 92.

Tendo em mente o quão complexos são os puzzle-films , não temos a intenção de destrinchar todo o trabalho de narrativas complexas, no entanto, iremos nos ater nesse capítulo, a alguns pontos que nos serão úteis para análise. Usaremos dois conceitos que servem para nossa análise de forma primordial: o “jogo”, destacado por Thomas Elsaesser e o “efeito cego”, ressaltado por Daniel Barratt. Veremos que esses dois pontos estarão presentes em grande parte do nosso trabalho, pois são amplamente utilizados dentro dos puzzle-films e das nossas narrativas, além de serem artífices de sistematização do que chamamos de olhar desviante dentro dos filmes. Outro ponto que será explorado e que pode ser alvo de controvérsia é o destaque dado às patologias apresentadas nas narrativas puzzle. Existe realmente uma presença muito forte de personagens que apresentam sintomas de psicopatologias, que são causadoras das diversas alucinações que os perturbam e separam a narrativa em diversas partes de um quebra-cabeça. No entanto, a perspectiva que queremos alcançar não é tão simplista como essa. Pretendemos associar todo o desvio que ocorre por conta dessas patologias a questões sociológicas, tirando o foco da psiquiatria e levando para a sociologia. Para isso, exploraremos a teoria de Howard Becker sobre os outsiders e como o desvio, que antes era associado em todos os momentos a perturbações mentais, na verdade, pode ser entendido como propriedades sociológicas inerentes a certas comunidades. O desviante, antes entendido como doente, agora pode ser observado como o representante de alguma inquietação social. Essa base de análise é a que usaremos em na caracterização dos protagonistas e como que isso é refletido dentro do gênero fantástico. No Capítulo 3 , analisaremos o porquê da escolha de nossa análise ser embasada em questões de gêneros cinematográficos. Podemos entender que como os filmes necessitavam de uma análise fluida e multifacetada, decidimos nos basear nas teorias de Rick Altman quanto à semântica e sintaxe dos gêneros cinematográficos. A opção por esse tipo de metodologia foi oportuna para clarear nossos horizontes na escolha por uma análise mais flexível e não rígida. Ao observarmos as características do gênero fantástico e de seus gêneros adjacentes, como o terror, a ficção científica e a fantasia, entenderemos que os filmes não se comportam de uma única maneira e resguardam particularidades de um ou mais gêneros. Ao final do capítulo, entraremos na discussão

sobre a questão do desvio e do outsider para podermos finalizar nosso entendimento de como essas representações funcionam dentro dos gêneros. Algumas questões surgirão no meio dos capítulos e tentaremos solucioná-las com a mesma metodologia que estamos empregando em nossa análise. Uma indagação que lançaremos a partir de agora, e que pretendemos solucionar durante nossa explanação teórica deriva da segunda pergunta: seria o desvio apresentado pelos protagonistas durante a parte fantástica um “desvio autorizado” ou uma “loucura consentida”? O motivo dessa indagação se dá por conta da maioria dos desvios ocorrerem durante a parte fantástica do filme, parte da narrativa em que os personagens estariam teoricamente sonhando. Essa liberdade da ação desviante enquanto se vive na não- realidade se dá por conta de um excesso de vigilância social da contemporaneidade? Permite-se, dentro desse escopo, a quebra de certas regras jurídicas e morais, para um possível esvaziamento do desejo de quebrar essas mesmas regras durante a vigília, momento em que estaríamos incluídos na realidade? Outro questionamento pertinente aparece quando começamos a entender a relação entre os puzzle-films e o fantástico. A temática do fantástico é transgressora e apresenta a todo momento situações que quebram uma série de regras de verossimilhança nos padrões realistas de representação. Os puzzle-films , apesar de apresentarem uma estrutura recortada, necessitam de uma “montagem” realizada pelo espectador, e como um quebra-cabeça que é, chega-se a um final montado e estável. A instabilidade entre o fantástico desviante e a estrutura delimitadora do puzzle cria um ambiente fértil para o desenvolvimento narrativo? Ao final desse trabalho resta-nos responder essa série de perguntas que destacamos e entender a complicada relação entre esses dois conceitos: os puzzle-films e o fantástico. Ao fazermos uso de um estudo de caso como os dois filmes selecionados, queremos também entender se o que constatamos pode ser aplicado a uma dinâmica do fantástico como um todo. Finalizando, para passarmos ao trabalho em si, pretendemos com essa dissertação, estender o conhecimento teórico sobre as filmografias analisadas e destrinchar alguns pormenores que a análise fílmica pode trazer para o estudo do cinema.

É importante salientar que César, em diversos momentos, questiona e duvida de que os fatos que estão acontecendo com ele possam ser reais. Nós também acompanhamos sua jornada sem saber o que possivelmente está acontecendo. Podemos considerar que as informações fornecidas ao espectador nos dirigem a uma “distribuição tardia do saber – que obriga à revisão de uma hipótese de leitura, às vezes no nível do filme inteiro quando ele chega ao fim – a fórmula é muito usada no cinema norte- americano contemporâneo.”^5 Trabalharemos com essa noção de distribuição tardia do saber dentro dos filmes para nos referirmos tanto à Abre Los Ojos quanto a Yella , sobretudo no segundo capítulo deste trabalho. Na primeira cena em que vemos César na penitenciária ele conversa com Antonio dentro de sua cela, sentado no chão, por achar que a única coisa real ali seria o piso onde ele está. Ele ainda menciona que o psiquiatra também não parece real, um dos motivos seria ele não estar usando jaleco. Antonio de pronto responde a ele que está com roupas normais para que César esqueça que ele é médico e se sinta mais à vontade para conversar. Esse é o primeiro momento em que notamos que César sente que a situação em que vive pode não ser tão real quanto ele pensa, no entanto, os espectadores não percebem imediatamente. Isso se dá, segundo Daniel Barratt, por conta de uma espécie de “efeito cego”, recorrente em puzzle-films. Esse efeito está intimamente ligado a dois critérios: atenção e memória. De acordo com a lógica dos puzzle-films , a memória de acontecimentos dentro do filme não está ligada diretamente à uma memória fotográfica da cena em que algo ocorre, mas sim à recorrência de informações e pistas que são apresentadas aos espectadores durante a narrativa. Barratt traça um estudo sobre O Sexto Sentido ( The Sixth Sense , Estados Unidos, M. Night Shyamalam, 1999, 107 min.): O escopo e as limitações de atenção e memória são frequentemente exploradas pelos diretores: O Sexto Sentido de M. Night Shyamalam é um grande exemplo disso. Como Shyamalam garante que um espectador que assiste pela primeira vez a obra permanece ‘cego’ perante a narrativa intricada do filme? Uma reposta possível é que o (^5) JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as Imagens do Cinema. São Paulo: Editora Senac, 2009, p.

diretor recorre, ao menos implicitamente, a um número de efeitos e procedimentos poderosos que brincam com nossa cognição cotidiana.^6 Ao dar mais importância a fatores formais, como ângulos de câmera e enquadramentos que deem mais visibilidade a certos elementos que outros, o diretor desvia a atenção do espectador para outras informações, fazendo, desse modo, passar algumas pistas de que algo sobrenatural possa estar acontecendo despercebido. Amenábar recorre diversas vezes a esse desvio de atenção para continuar “cegando” quem está assistindo ao filme. A fala de Antonio, de que está vestido daquela maneira, desvia nossa atenção das possíveis constatações de César. A posição do protagonista como um preso psiquiátrico também contribui para que duvidemos de seu pensamento no início do filme. Figura 1 - César sentado no chão de sua cela, conversando com Antonio. (^6) BARRATT, Daniel. “Twist Blindness”. In: BUCKLAND, Warren (org.). Puzzle films: complex storytelling in contemporary cinema. Chichester: Blackwell Publising, 2009, p. 64. Tradução nossa. Trecho original: “The scope and limitations of attention and memory are frequently exploited by filmmakers: M. Night Shyamalam’s The Sixth Sense is a prime example of this. How, though, does Shyamalam specifically ensure that a first-time viewer will remain “blind” to the film’s narrative twist? A possible answer to this question is that he relies, at least implicitly, on a number of extremely powerful effects and procedures which are at play in everyday cognition.”

Sofia. Em uma cena muito representativa, ele a encontra durante seu trabalho de estátua humana em uma praça. César a encara por algum tempo e em seguida começa a chover, a chuva então vai retirando a maquiagem do rosto dela. Podemos encontrar neste trecho uma metáfora de como as máscaras sociais podem cair facilmente. Sofia trabalha vestindo uma máscara e César sentirá necessidade de usar uma máscara por conta de seu rosto deformado. A reflexão contida aqui pode nos levar a questionar a quantidade de máscaras que são necessárias durante a vida. César se utiliza de todo seu dinheiro e contrata os médicos mais experientes, no entanto, eles nada podem fazer. Eles criam uma máscara, tal como era o rosto de César, na tentativa de ajudá-lo. Ele rejeita de todas as maneiras esse paliativo, mas decide usá- la quando vai se encontrar com Sofia e Pelayo em uma boate. Na cena em que César coloca sua máscara pela primeira vez em sua casa, a televisão está ligada, e vemos George Duvernois (Gérard Barray), o francês dono da Life Extension , concedendo uma entrevista. É a segunda vez que a referência à empresa se dá de forma despretensiosa. Figura 2 - César coloca sua máscara em sua nuca e se transforma em uma figura com dois rostos. Na boate, César se embebeda e causa constrangimento. Uma sequencia é digna de nota, na qual ele tira a máscara e a coloca em sua nuca, dessa maneira, sendo

portador de dois rostos. Pode-se enxergar uma referência à dupla vida que César tem, e que posteriormente se concretiza em sonho, uma com seu rosto deformado e outra com seu rosto perfeito. Fica evidente uma relação feita com o deus romano Jano, portador de dois rostos, um velho e outro novo. Jano é considerado o deus das mudanças e tradições e a analogia que podemos fazer aqui se ancora justamente na tensão entre o passado e o presente. Como já dissemos antes, Abre los Ojos apresenta uma narrativa em que o presente e o passado se misturam a todo o momento. Essa tênue separação nos interessa e o embaralhamento que isso causa traz questionamentos relevantes tanto para os filmes analisados quanto para a discussão geral que estamos traçando neste trabalho. Ao sair da boate, Sofia se afasta de César e Pelayo, dizendo que vai andando sozinha até em casa. Vê-se que ela agora está muito mais próxima do amigo. Antes de disfarçar e correr atrás de Sofia, Pelayo tem uma conversa com César em que ele diz querer estar morto no dia seguinte. Novamente, somos apresentados a um fato importante para a narrativa que não percebemos: que o protagonista anseia a morte e que irá morrer dentro em breve. César sente que foi enganado por Pelayo e corre atrás dele, no intuito de encontrar Sofia também. Sem perspectivas de sucesso, ele para de correr e acaba dormindo na calçada. Temos, a partir desse momento, o início do que iremos chamar de parte fantástica do filme.^8 César acorda na calçada, vê Nuria, se assusta, mas logo percebe que quem está ali é Sofia. Ela o acorda com as mesmas palavras que o seu despertador usa. No final do filme essas palavras são utilizadas novamente para lhe acordar do sonho em que vive: “ abra los ojos ”. Ele, mais uma vez, através de sua narração, diz que duvidou que Sofia pudesse estar lhe acordando ali na rua e que depois eles se reconciliariam. Amenábar, mais uma vez, joga com nossa atenção, nos distraindo com a situação e com os gestos de Sofia, amorosos e delicados, como ela esteve em grande parte do filme até esse momento. Ao andarem pela cidade e chegarem a um parque, César tem a sensação de um déjà-vu^9 e Sofia o tranquiliza dizendo-o que isso pode ser um lapso no cérebro e que isso acontece com frequência. No entanto, ele já tinha (^8) Iremos nos aprofundar nas relações fantásticas intra e extra-filmicas mais a frente em nosso trabalho. (^9) Termo derivado da língua francesa que significa, literalmente, “já visto”. É uma reação psicológica que nos faz ter a impressão de já ter visto certa pessoa ou visitado certo lugar.