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Hobbes, Locke e Hume: do empirismo ao ceticismo, Notas de aula de Cálculo

Nosso texto trata de três pensadores britânicos, Thomas Hobbes e John Locke, que viveram no século XVII, e David Hume, que viveu no século XVIII.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO-UFMT
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS-ICHS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
Hobbes, Locke e Hume: do empirismo ao ceticismo
Sávio Laet de Barros Campos
Cuiabá, 2011.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO-UFMT

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS-ICHS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Hobbes, Locke e Hume: do empirismo ao ceticismo

Sávio Laet de Barros Campos

Cuiabá, 2011.

Sávio Laet de Barros Campos

Hobbes, Locke e Hume: do empirismo ao ceticismo

Trabalho da disciplina Questões Filosóficas VII, do Prof. Dr. Gabriel Mograbi do Curso de Especialização em Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso

Cuiabá, 2011

Em Hume, também frisaremos que a fonte de todos os nossos conhecimentos é a experiência. Iremos acentuar também o seu conceito de percepção e como ele divide as nossas percepções, que constituem todo o conteúdo da nossa mente, em impressões e ideias. Em seguida, ressaltaremos a diferença que estabelece entre impressão e ideia e como distingue as ideias simples das ideias complexas. Acerca disto, salientaremos ainda as fontes das ideias complexas: a semelhança , a contiguidade de espaço e tempo e causa e efeito. Dentre outras coisas, tentaremos compendiar o seu pensamento no que concerne ao papel do hábito ou costume e da crença para as conexões entre as nossas ideias. Neste sentido, distinguiremos com ele crença de ficção. Por fim, tentaremos tornar patente a sua crítica ao conceito de substância e de sujeito. Feitas estas abordagens, passaremos às considerações finais do trabalho, onde procuraremos tornar manifesta a contribuição destes pensadores para a história do empirismo moderno e como Hume inaugura o ceticismo a partir do empirismo. No que concerne à bibliografia, seguiremos de perto três obras. De Hobbes, lançaremos mão da primeira parte – máxime dos seus cinco primeiros capítulos – do Leviatã , na sua edição brasileira pela Nova Cultural , que conta com tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Em Locke, adotaremos o Ensaio Acerca do Entendimento Humano , na sua edição brasileira também pela Nova Cultural , que remonta ao ano 2000, com tradução de Anoar Aiex. Para abordarmos o pensamento de Hume, frequentaremos a Investigação Acerca do Entendimento Humano , pela edição brasileira da Nova Cultural , do mesmo ano que a supracitada e trazida ao vernáculo pelo mesmo tradutor. Passemos a abordar os conceitos elencados acima em Hobbes.

2. Hobbes, Locke e Hume: Do empirismo ao ceticismo

2.1. Hobbes e as “razões seminais” do empirismo e ceticismo

modernos

Tal como virá a afirmar Locke e Hume, Hobbes também atesta que todos os nossos conhecimentos têm origem nos sentidos ou deriva deles:

[...] não há nenhuma concepção no espírito do homem, que primeiro não tenha sido originada, total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos. O resto deriva daquela origem.^1

Para ele, a sensação é causada pela pressão dos corpos exteriores sobres os nossos sentidos: a cor, na visão; o cheiro, no olfato; o gosto, no paladar, etc:

[...] a sensação nada mais é do que a ilusão originária, causada (como disse) pela pressão, isto é, pelo movimento das coisas exteriores nos nossos olhos, ouvidos e outros órgãos a isso determinados.^2

Porém, para Hobbes, diferentemente de para Aristóteles, as qualidades sensíveis são produzidas pela sensação e não, propriamente, pelos objetos. Em outras palavras, estas qualidades, a cor e o som, não estão nos objetos, mas somente na sensação que eles causam em nós. Hobbes chega a dizer que a pressão que os objetos exercem sobre nós pode ser comparada àquela que exercemos quando esfregamos os nossos olhos para ver uma suposta luz ou quando pressionamos os nossos ouvidos para ouvir melhor um som. Em suma: “O objeto é uma coisa, e a imagem ou ilusão [que eles produzem em nós] é outra”^3. A faculdade da imaginação é onde são conservadas estas imagens causadas pela pressão dos corpos exteriores sobre nós. Hobbes a define como uma sensação diminuída : “A imaginação nada mais é portanto que uma sensação diminuída [....]”^4. Ademais, admite haver entre estas sensações uma certa sucessão, posto que, os objetos que nos pressionam, originando tais sensações, também se encontram em contínuo movimento. Destarte, ele diz que estas sucessões perduram na imaginação , que é não senão, precisamente, a sensação diminuída. Ora, quando começamos a pensar acerca desta cadeia de sucessões , origina-se o discurso mental : “Por conseqüência, ou cadeia de pensamentos, entendo aquela sucessão de um pensamento a outro, que se denomina (para se distinguir do discurso em palavras) discurso mental ”^5. Agora bem, sendo o pensamento ou a cadeia deles, que acabamos de denominar como discurso mental , nada mais que um fluxo de imagens que se sucedem , é claro que, deixado a esmo, iriam perder-se nos labirintos da nossa mente, uma vez que, com o decorrer do tempo,

(^1) HOBBES. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 31. 2 3 Idem.^ Op. Cit. p. 32. 4 Idem.^ Op. Cit. [Os colchetes são nossos]. 5 Idem.^ Op. Cit. pp. 33 e 34. Idem. Op. Cit. p. 39.

singulares”^9. Desta sorte, como só existem sensações dos corpos que nos pressionam, e como estes só podem ser individuais, então, a rigor, só podem existir nomes de coisas individuais, pois o nome é dado a partir da imagem originada da sensação. Entretanto, percebendo, entre sensações diversas, certas semelhanças de qualidades ou acidentes, os homens começaram a cunhar um único nome que correspondesse a todas estas qualidades ou acidentes similares. Isto facilitaria, inclusive, a sua recordação:

Um nome universal é atribuído a muitas coisas, devido a sua semelhança em alguma qualidade, ou outro acidente, e, enquanto o nome próprio traz ao espírito uma coisa apenas, os universais recordam qualquer dessas muitas coisas.^10

Por fim, Hobbes fala das definições , que ele estabelece como sendo a tentativa dos homens de darem significações aos nomes ou palavras: “[...] os homens começaram por estabelecer as significações de suas palavras, e a esse estabelecimento de significações chama definições [...]”^11. Ora, aqui começa a atividade da razão, que o nosso filósofo define como cálculo de somar e subtrair: “Pois razão , neste sentido, nada mais é do que cálculo (isto é, adição e subtração ) [...]”^12. De fato, a finalidade da razão é seguir de uma definição à outra, mostrando que elas estão interligadas de uma forma consequencial, de tal modo que uma se soma à outra até chegar-se à certeza da conclusão, que procede de uma inferência, que tem a sua origem na primeira definição da cadeia deste cálculo:

O uso e finalidade da razão não é descobrir a soma, e a verdade de uma, ou várias conseqüências, afastadas das primeiras definições, e das estabelecidas significações de nomes, mas começar por estas e seguir de uma conseqüência para outra. Pois não pode haver certeza da última conclusão sem a certeza de todas aquelas afirmações e negações nas quais se baseou e das quais foi inferida.^13

Mas talvez a maior contribuição de Hobbes seja a sua concepção acerca da arkh ḗ da razão. Diferentemente do que dirá Locke, que admite que já nascemos racionais, embora a nossa razão, ao nascermos, não passe de uma tábula rasa , para Hobbes, a razão não nos é dada, por assim dizer, de forma inata , como a sensação e a memória, nem é adquirível apenas

(^9) Idem. Op. Cit. p. 45. (^10) Idem. Op. Cit. (^11) Idem. Op. Cit. p. 46. (^12) Idem. Op. Cit. p. 51. (^13) Idem. Op. Cit. p. 52.

pela experiência, mas sim por um longo esforço. Este esforço consiste, em primeiro lugar, em livrar-se das autoridades e passar a impor adequadamente nome às coisas. Consiste também, em buscar definições para estes nomes, somando ou subtraindo um conceito com o outro. Por último, tal esforço se manifesta pela capacidade de articular estas definições umas com as outras, formando, assim, cadeias de silogismos. Quando exaurimos tudo o que concerne aos nomes sobre um assunto ou questão, nasce a ciência, que é o objeto precípuo da razão. Vale a pena citar a passagem, pois ela nos dá inúmeras pistas para a compreensão de como ocorreu, na concepção de Hobbes, o processo natural que deu origem à razão e à ciência:

Por aí se voe que a razão não nasce conosco como a sensação e a memória nem é adquirida apenas pela experiência, como a prudência, mas obtida com esforço, primeiro através de uma adequada imposição de nomes, e em segundo lugar através de um método bom e ordenado de passar dos elementos, que são os nomes, a asserções feitas por conexões de um deles com o outro, e daí para os silogismos, que são as conexões de uma asserção com a outra, até chegarmos a um conhecimento de todas as conseqüências de nomes referentes ao assunto em questão, e é a isto que os homens chamam ciência.^14

Passemos a abordar Locke e assim perceberemos o quanto ele herda de Hobbes e o que ele tem de seu.

2.2. Locke: a fundação do empirismo moderno

Para Locke a origem de todos os nossos conhecimentos está na experiência e é condicionada por ela. Não há nada na nossa mente que não tenha passado antes pelos sentidos. Sendo assim, antes da experiência, a nossa mente é como uma tábula rasa. Ele deixa isso claro, numa passagem particularmente elucidativa:

Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma idéia; como ela será suprida? [...] A isso eu respondo, numa palavra: da

(^14) Idem. Op. Cit. p. 54.

formamos a ideia complexa de uma coisa particular. Quando, ao contrário, o nosso intelecto opera a separação entre ideias simples, desassociando-as umas das outras, surgem as ideias gerais.^19 Na análise começamos a perceber certas semelhanças existentes entre as próprias ideias complexas. O nosso intelecto, atendo-se às semelhanças e prescindindo das diferenças entre elas, produz as ideias abstratas , que são aplicáveis a várias ideias complexas. Esclarece Locke:

Denomina-se a isso abstração , e é através dela que as idéias extraídas dos seres particulares tornam-se representações gerais de uma mesma espécie e seus vários nomes aplicam-se a qualquer coisa que exista em conformidade com essas idéias abstratas. São estas, precisamente, aparências vazias da mente, sem se averiguar como, de onde e se são apreendidas com outras, que o entendimento armazena (com denominações gerais que lhes são anexadas), e servem de padrão para organizar as existências reais em classes, desde que se conforme a esses padrões e possam receber uma denominação adequada.^20

Ora, qual a relação de todo este processo intelectivo com a realidade extramental? Até que ponto elas expressam a realidade da coisa, o que ela é, a sua essência ou substância? Sem entrar em pormenores, Locke distingue a essência nominal da essência real. A essência nominal são as qualidades que estabelecemos como necessárias a uma coisa para que ela possa receber um determinado nome. Por exemplo, o fato de uma coisa possuir certa cor e certo peso, dentre outras qualidades primárias e secundárias, autoriza-nos a chamá-la de ouro. Quanto à essência real, não temos como conhecê-la. Não que ela não exista, apenas que o nosso intelecto, dada a sua finitude, não se encontra apto para conhecê-la. Portanto, em Locke, a essência que conhecemos designa sempre uma construção do intelecto. Explica o nosso filósofo:

Desde que, como tem sido observado, temos necessidade de palavras gerais, embora não conhecemos as essências reais das coisas, tudo o que podemos fazer consiste em coletar um tal número de idéias simples que, através do exame, descubramos estarem unidas nas coisas existentes, e portanto, formando uma ideia complexa. A qual, embora não seja a essência real de qualquer substância existente, é, não obstante, a essência específica a que nosso nome pertence, e é

(^19) Idem. Op. Cit. (^20) Idem. Op. Cit. II, XI, 9. p. 87. Exemplo de ideias abstratas. Notando as semelhanças que há entre as ideias complexas de Pedro, Paulo e João, e, abstraindo das diferenças existentes entre eles (um é gordo, outro é loiro; um é alto, outro é velho, etc), o nosso intelecto forma a ideia abstrata de homem, aplicável aos três.

convertível com isso, por meio da qual podemos tentar a verdade dessas essências nominais.^21

Ainda segundo Locke, temos duas classes de substâncias: as particulares e a geral. Das particulares podemos ter algum conhecimento, pois elas coincidem com as ideias complexas que fazemos. Da geral, que é uma ideia abstrata, não podemos ter nenhum conhecimento claro e distinto e isto pela mesma razão apontada no caso da essência: o nosso intelecto encontra-se inapto para a aquisição de tal conhecimento. Locke não nega, ao menos com clareza, a existência de tal substância, apenas a da sua cognoscibilidade para nós:

Por conseguinte, quando mencionamos ou pensamos em qualquer espécie particular de substâncias corporais, como cavalo, pedra, etc., embora nossa idéia de qualquer uma delas seja apenas a complicação ou coleção de várias idéias simples de qualidades sensíveis que costumamos encontrar unidas na coisa denominada cavalo ou pedra, e, ainda, porque não podemos imaginar como podem subsistir sozinhas, nem uma na outra, supomos que existem e são sustentadas por algum substrato geral, cujo suporte denominamos substância, mesmo sendo evidente que não possuímos nenhuma idéia clara e distinta disto que conjecturamos como suporte.^22

A quarta fase do nosso processo cognoscitivo é denominado por Locke de comparação. Nela colocamos uma ideia ao lado da outra, sem associá-las ou desassociá-las, mas apenas para compará-las. Nisto, percebemos que algumas delas mantêm uma estreita relação entre si; tratam-se, pois, de ideias que exprimem relação.^23 Assim, a ideia de causa está relacionada com a de efeito, como a que produz está relacionada com a que é produzida. Desta forma, a ideia de causalidade exprime justamente esta conexão entre ambas. Eis como Locke explica a relação de causa e efeito:

Pela observação que nossos sentidos tiram da constante vicissitude das coisas, não podemos deixar de observar que vários particulares, não só qualidades como substâncias, começam a existir, e recebem sua existência, da devida aplicação e operação de algum outro ser. Desta observação aprendemos nossas idéias de causa e efeito. A que produz qualquer idéia simples ou complexa designamos pelo nome geral de causa , e que é produzida, efeito.^24

(^21) Idem. Op. Cit. III, VI, 21. p. 178. (^22) Idem. Op. Cit. II, XXIII, 4. pp. 124 e 125. (^23) Idem. Op. Cit. II, XXV, 1. p. 127. (^24) Idem. Op. Cit. II, XXVI, 1. p. 131.

somente que enfraquecidas. Há apenas uma diferença de intensidade entre impressão e ideia. Eis uma passagem eloquente:

Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepções do espírito em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente denominadas pensamentos ou idéias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosóficos era necessário compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos, portanto, usar um pouco de liberdade e denominá-las impressões , empregando esta palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelo termo impressão , entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos.^29

Ora, as impressões como as ideias, a princípio, podem se nos apresentar como simples ou complexas. As impressões complexas nos são dadas de forma imediata. Hume atém-se, mormente, ao como ocorrem as associações ou conexões entre as ideias. Questiona-se, inclusive, acerca de como nascem as ideias complexas. Além das associações ocasionadas pela própria fantasia, Hume descobre três princípios de conexão entre as ideias: a semelhança , a contiguidade no espaço e no tempo e causa e efeito. É o que ele próprio diz:

Para mim, apenas há três princípios de conexão entre as idéias, a saber, de semelhança , de contigüidade – no espaço e no tempo – e de causa ou efeito.^30

Quando vejo, por exemplo, um quadro, logo me vem à mente a pessoa ou a paisagem à qual aquele quadro se assemelha. É um caso de conexão por semelhança. A conexão por contiguidade ocorre, por exemplo, quando estou ante um apartamento de um edifício. Ao vê- lo, vem-me naturalmente a ideia que tenho dos outros apartamentos que conheço. Por fim, a associação por causa e efeito manifesta-se, por exemplo, diante da ideia que tenho de um ferimento. À ideia de ferimento logo associo a de dor, que se me apresenta como sua consequência natural, no sentido de que o ferimento produz a dor.^31

(^29) HUME. Investigação acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. sc. II. pp. 35 e 36. 30 31 Idem.^ Op. Cit. p. 40. Idem. Op. Cit. p. 41.

A partir do que foi dado, surge-nos outra indagação: se, por um lado, sabemos que a cada ideia simples corresponde uma impressão simples, pois a ideia não é senão uma impressão enfraquecida, por outro, não está ainda suficientemente claro a procedência das ideias complexas. De fato, já descobrimos os princípios de semelhança, de contiguidade e de causa e efeito; contudo, podemos ainda arguir: estes princípios têm realmente fundamento? Donde eles provêm? Tomemos as associações que são ocasionadas por causa e efeito. Atinjo uma bola de bilhar com uma outra. Ora, atingida pela outra que lhe arremesso, a que foi atingida entra em movimento. Concluo, então, que a bola arremessada foi a causa que produziu o efeito do movimento da outra. No entanto, acentua Hume, trata-se de dois fatos distintos. Suponhamos um homem que não pertença a este mundo e que, sobrevindo a ele, se depare com o mesmo fato. É claro que não poderia concluir que o influxo de uma bola sobre a outra iria provocar o movimento da atingida. Com outras palavras, não há como atestar a necessidade de uma bola ser compelida pela outra a priori , ou seja, independentemente da experiência. Nem Adão podia inferir, ressalta Hume, ao ver a água pela primeira vez, que ela podia matá-lo por afogamento. Portanto, todas as conclusões inferidas a partir da relação causa e efeito são dadas a posteriori , isto é, em estrita dependência com a experiência:

Suponde que um homem, dotado das mais poderosas faculdades racionais, seja repentinamente transportado para este mundo; certamente, notaria de imediato a existência de um contínua sucessão de objetos e um evento acompanhado por outro, mas seria incapaz de descobrir algo a mais. De início, não seria capaz, mediante nenhum raciocínio, de chegar à idéia de causa e efeito, visto que os poderes particulares que realizam todas as operações naturais jamais se revelam aos sentidos; nem é razoável concluir, apenas porque um evento em determinado caso precede outro, que um é a causa e o outro, efeito. Esta conjunção poder arbitrária e acidental. Não há base racional para inferir a existência de um pelo aparecimento do outro. E, numa palavra, aquele homem, desprovido de experiência, jamais poderia conjecturar ou raciocinar sobre qualquer questão de fato, nem teria segurança de algo que não estivesse imediatamente presente à sua memória ou aos seus sentidos.^32

Outro exemplo. Experimento que o pão que manduco sacia-me. Porém, de onde retiro a certeza de que todas as vezes que manducar um pão ou qualquer outro alimento do mesmo gênero encontrar-me-ei novamente saciado? Qual o fundamento desta inferência, qual a base

(^32) Idem. Op. Cit. sc. V. pp. 60 e 61.

resultado necessário de colocar o espírito em determinadas circunstâncias.^35

Desta maneira, o fundamento das certezas científicas defendidas até o tempo de Hume, para ele, era baseado num sentimento de caráter subjetivo: a crença. Ora bem, a crença não pode ser definida com rigor. Acerca dela, diz nosso filósofo: “Confesso que é impossível explicar com perfeição este sentimento ou esta maneira de conceber”^36. Porém, ela pode ser distinguida, por sua força persuasiva^37 e por proceder dos hábitos que a própria natureza nos impõe, da simples ficção , que são os vagos devaneios da imaginação ou fantasia:

[...] o sentimento da crença nada mais é do que uma concepção mais intensa e mais firme do que aquele que acompanha as ficções da imaginação, e que esta maneira de conceber nasce de uma conjunção costumeira do objeto com alguma coisa presente à memória e aos sentidos.^38

Assim sendo, podemos tirar alguns corolários do que havemos dito até aqui. Na verdade, a rigor, não há impressões ou ideias complexas, pois, como vimos, os princípios que fundamentam a conexão ou associação entre elas, máxime o de causa e efeito, são frutos da nossa crença. O que temos, na verdade, são feixes de impressões e de ideias que, em razão de obedecerem a uma certa constância, geram em nós o hábito e, em consequência, a crença de que, após a experiência, permanecerão compactos e unidos, formando uma coesão sustentada por algum princípio unificador. Deste modo, as noções de objeto e substância , como sendo estes seres sustentados por um princípio de coesão são produtos do nosso hábito, são crenças. O mesmo se pode dizer do sujeito. A ideia de um “eu” autoconsciente, dotado de um princípio unificador que o faz permanecer sempre o mesmo a despeito das mudanças acidentais que sofre, procede destas

(^35) Idem. Op. Cit. p. 64. (^36) Idem. Op. Cit. p. 66. (^37) Acerca da vivacidade do sentimento de crença, enquanto distinto da simples ficção, Hume é claro: Idem. Op. Cit. “Digo, pois, que a crença não é nada senão uma concepção de um objeto mais vivo, mas vivido, mais forte, mais firme e mais estável que aquela que a imaginação, por si só, seria capaz de obter.” 38 Idem. Op. Cit. p. 67. O clássico exemplo do centauro, citado pelo próprio Hume, pode ajudar-nos a compreender a distinção entre o sentimento de crença e a simples ficção: Idem. Op. Cit. p. 65: “Podemos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo, mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez existido.” Hume chega a dizer que o sentimento de crença tem um tal poder de provocar a nossa aquiescência que, por este poder, ele se distingue dos demais. A falar com máxima exação, o sentimento que a crença provoca é tão forte, que ela praticamente repele toda a possibilidade de não anuirmos ao seu objeto: Idem. Op. Cit. p. 67: “[...] crença é qualquer coisa sentida pelo espírito, que distingue as idéias dos juízos das ficções da imaginação. Ela lhes dá maior peso e influência: as faz parecer de maior importância; as reforça no espírito e as estabelece como princípios diretivos de nossas ações.”

associações de ideias que, como temos visto, são provenientes de hábitos e crenças. O ceticismo de Hume, ei-lo: não há como conhecermos, cientificamente, nada acerca da existência ou não de um mundo extramental, nem acerca do nosso próprio “eu”. Tudo que podemos saber sobre o nosso “eu” é que ele é uma espécie de fita que registra estímulos. Todo o resto é fruto de “crenças”. Deveras é um conhecimento que tem a sua utilidade, como observa o próprio Hume na passagem que citaremos a seguir, mas não produz ciência:

Eis, pois, uma espécie de harmonia preestabelecida entre o curso da natureza e a sucessão de nossas idéias; e embora os poderes e as forças que governam a primeira nos sejam totalmente desconhecidos, achamos que nossos pensamentos e nossas concepções se têm sempre desenrolado na mesma seqüência que as outras obras da natureza. O costume é o princípio que tem realizado esta correspondência. [...] Se a presença de um objeto não despertasse instantaneamente a idéia dos objetos que comumente estão unidos a ele, todo nosso conhecimento deveria limitar-se à estreita esfera de nossa memória e de nossos sentidos, e jamais seríamos capazes de adaptar os meios em vista dos fins ou de empregar nossos poderes naturais para produzir o bem ou evitar o mal. Aqueles que se deliciam na descoberta e na contemplação das causas finais , têm aqui amplo objeto para empregar a sua curiosidade e espanto.^39

Passemos às considerações finais deste trabalho.

3. Conclusão

Temos em Hobbes uma acentuada valorização da empiria, pois ele não admite outro conhecimento senão aquele que sucede à sensação, a qual tem por objeto apenas os corpos em movimento, o que denota, de resto, uma abertura para o materialismo, ao menos no âmbito gnosiológico. Nele também encontramos janelas para um futuro ceticismo, uma vez que afirma que uma coisa é o objeto e outra é a sensação, fonte de todos os nossos conhecimentos. Com efeito, para Hobbes, a sensação é o resultado da pressão que o objeto causa em nós e não das suas supostas qualidades sensíveis impressas em nós. As chamadas “qualidades sensíveis” ou “espécies” resumem-se, doravante, apenas na pressão que o objeto causa em nós. Os

(^39) Idem. Op. Cit. pp. 70 e 71.

acaba tirando as conclusões que talvez algum resquício de pudor metafísico não deixara Locke fazer. É de se notar que, com Hume, torna-se explícito o que em Locke se encontrava apenas implícito: não conhecemos as coisas tal como são em si mesmas, mas apenas as suas qualidades sensíveis, as suas impressões. Só conhecemos os fenômenos , ou seja, aquilo que aparece e é acessível aos nossos sentidos. Locke dizia que o substrato destes fenômenos, isto é, destas qualidades sensíveis, não nos era acessível; Hume, mais radical, afirmava que ele simplesmente não existia. Há, em ambos, notadamente, um materialismo subjacente. Embora Locke esmere em demonstrar a existência de Deus e articule uma prova intuitiva da existência do “eu”, se permanecêssemos fiéis aos seus princípios, verificaríamos que não há cognoscibilidade de Deus ou de qualquer substância suprassensível possível em seu sistema. Como pode haver cognoscibilidade de um ente metafísico, num sistema que se fecha no nível da experiência, que é incapaz de distinguir com nitidez o sentido interno da imaginação do intelecto? Que é incapaz, ademais, de distinguir as ideias, que são as formas substanciais das coisas enquanto subsistem fora delas, isto é, no intelecto, das qualidades sensíveis do objeto, que não são senão as formas acidentais das coisas? Como provar que há uma substância imaterial e espiritual como Deus, onde nem sequer no nível da materialidade podemos acessar a quididade das coisas sensíveis? Como provar a existência da res cogitans ou do ipsum esse subsistens , quando se nega, senão a existência, decerto a cognoscibilidade da substância e da essência em geral? Neste sentido, Hume parece-nos mais razoável e coerente com os seus próprios princípios. Não tenta demonstrar a existência do “eu”, muito menos de Deus, e para não dizer que negue completamente a existência de ambos, restringe-os ao nível da crença.

BIBLIOGRAFIA

HOBBES. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000.

HUME. Investigação acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000.

LOCKE. Ensaio acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000.