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Guias e Dicas
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histórias de vigaristas e canalhas, Resumos de Música

Joe Abercrombie é, hoje em dia, uma das estrelas da fantasia em mais rápida ascensão, aclamado tanto por leitores como por críticos pela sua.

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Kaka88
Kaka88 🇧🇷

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histórias de vigaristas
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george r. r. martin e gardner dozois
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histórias de vigaristas

e canalhas

george r. r. martin e gardner dozois

índice

Está Difícil Para Todos • 9 Joe Abercrombie

Heavy Metal • 51 Cherie Priest

Loucos Anos Vinte • 81 Carrie Vaughn

Cara de Metal • 115 Bradley Denton

Diamantes de Tequila • 181 Walter Jon Williams

Um Carregamento de Marfins • 239 Garth Nix

A Estalagem das Sete Dádivas • 269 Matthew Hughes

Invisíveis em Tiro • 307 Steven Saylor

Tawny Petticoats • 341 Michael Swanwick

O Curioso Caso das Esposas Mortas • 377 Lisa Tuttle

O Significado do Amor • 427 Daniel Abraham

está difícil para todos

j o e a b e r c r o m b i e

Tradução de Alexandre Mandarino

Joe Abercrombie é, hoje em dia, uma das estrelas da fantasia em mais rápida ascensão, aclamado tanto por leitores como por críticos pela sua abordagem dura, livre e absurda ao género. Será provavelmente mais co- nhecido pela sua trilogia First Law, cujo primeiro romance, A Lâmina, foi publicado em 2006; seguiu-se A Forca e A Coroa. Também escreveu os romances de fantasia independentes Best Served Cold e The Heroes. O seu mais recente trabalho é Red Country. Além da escrita, Abercrombie é também editor de filmes freelance. Vive e trabalha em Londres. No thriller intenso que se segue, leva-nos às profundezas, sujas, féti- das, melodiosas e labirínticas de Sipani, uma das cidades mais perigosas do mundo, para um mortífero jogo do botão.

Na solidão da entrada, fez uma careta. Que diabos, estava a precisar de umas férias. Estava a tornar-se uma rezingona amarga, ou melhor, já se tornara uma e estava cada vez pior: uma dessas pessoas que despre- zam o mundo inteiro. Estaria a ficar igual ao seu maldito pai? — Tudo menos isso — sussurrou. Quando os foliões cambalearam noite adentro, saiu sorrateiramente da entrada e seguiu o seu caminho, nem muito rápido nem muito deva- gar, as botas a passar em silêncio sobre os paralelepípedos orvalhados, o capuz, absolutamente comum, puxado até a um ângulo discreto: a ima- gem de alguém que não esconde mais segredos do que o normal — o que, em Sipani, já é muito. Algures a oeste, a sua carruagem blindada percorria estradas lar- gas, com as rodas a soltar faíscas enquanto cantavam sobre as pontes, peões estarrecidos a saltar para fora do caminho, o cocheiro a chicotear os lombos de cavalos que espumavam pela boca, acompanhado por uma dúzia de mercenários cujas armaduras orvalhadas reluziam sob a luz dos postes. Isso, é claro, se os capangas do Mineiro não tivessem já atacado: o esvoaçar das flechas, os gritos de homens e animais, o baque da carrua- gem ao sair da estrada, as pancadas no metal e, finalmente, a explosão de dinamite para remover o grande cadeado do cofre; mãos ansiosas a dissipar o fumo, e a tampa a ser aberta para revelar… nada. Carcolf permitiu-se um pequeno sorriso, apalpando o volume con- tra as costelas: o item, costurado com segurança no forro do seu casaco. Preparou-se, deu um par de passos e saltou da margem do canal, vencendo a distância de três passos até ao convés de uma barca deca- dente, fazendo as tábuas rangerem sob si ao aterrar com uma cambalho- ta, e então pondo-se hábil e rapidamente de pé. O caminho até à ponte Fintine era uma bela volta, além de ser muito usado e vigiado; mas esse barco estava sempre ali amarrado, nas sombras, oferecendo-lhe um ata- lho. Informara-se de antemão. Carcolf procurava não deixar nada nas mãos da sorte; sabia, por experiência própria, que a sorte podia ser uma vadia desgraçada. Um rosto enrugado espiou de dentro da penumbra da cabina en- quanto escapava vapor de uma velha chaleira. — Quem raio és tu? — Ninguém — saudou-o Carcolf, alegremente. — Estou só de passagem!

Pulou da madeira balouçante para as pedras do outro lado do canal e prosseguiu por entre a névoa a cheirar a mofo. Só de passagem. Iria diretamente até às docas para apanhar o barco e seguir o seu caminho, feliz. Ou, pelo menos, algo irritante. Onde quer que fosse, Carcolf não era ninguém. Em toda a parte, estava apenas de passagem. No leste, aquele idiota do Pombrine e quatro empregados deviam estar a cavalgar a todo o gás. Ele não se parecia nem um pouco com ela, com aquele bigode e tudo mais, mas envolto no casaco bordado e extra- vagante que lhe emprestara, funcionava bem como duplo. Era um chulo sem um tostão furado no bolso que acreditava, orgulhoso, que estava a personificá-la para que pudesse visitar a amante, uma dama rica que não queria que os seus encontros viessem a público. Carcolf suspirou. Quem dera que fosse verdade. Consolava-se imaginando o choque de Pombrine quando aqueles filhos da mãe, Fundo e Raso, o alvejassem e derrubassem da sela, ficassem pasmos ao verem o bigode e então vascu- lhassem as suas roupas com frustração crescente até finalmente e, sem pestanejar, estriparem o seu cadáver, tudo isso apenas para encontrar… nada. Carcolf apalpou o volume outra vez e seguiu em frente, saltitando. Lá ia ela, a pé e sozinha, pelo caminho mais seguro possível, uma rota cuidadosamente preparada de ruelas, caminhos estreitos, atalhos não vigiados e escadarias esquecidas, através de palácios a cair aos pedaços e prédios apodrecidos, portões deixados furtivamente abertos e, mais tarde, um curto trajeto pelos esgotos que a levaria diretamente às docas com uma ou duas horas de folga. Depois deste trabalho, precisava mesmo de tirar umas férias. Passou a língua pela parte interna dos lábios, onde uma úlcera pequena, mas muito dolorida havia aparecido há poucos dias. Ela passava a vida a tra- balhar. Talvez uma viagem até Adua, para visitar o seu irmão e ver as so- brinhas? Com quantos anos estariam? Ugh. Não. Lembrou-se de como a cunhada era uma cabra intolerante, daquelas que encaram tudo com um olhar de desprezo. Fazia Carcolf lembrar-se do pai, o que provavelmente explicava por que razão o irmão se casara com aquela maldita… Havia música vinda de algum lugar, quando mergulhou sob um arco que flanqueava o caminho. Era um violinista que, ou estava a aquecer, ou tocava de maneira execrável. Nenhuma das possibilidades a surpreen- deria. Papéis ondulavam e farfalhavam numa parede cheia de musgo,

— Porquê? — perguntou Carcolf. A ponta da espada do bandido vagueava sem rumo. — Porque eu tenho uma dívida considerável com… Não te interessa! — Não, o que quero dizer é, por que não matares-me e tirares-me os objetos de valor do meu cadáver, em vez de me avisares? Outra pausa. — Acho que… quero evitar a violência? Mas fica a saber que estou totalmente preparado para ela! O tipo era um maldito cidadão comum. Um ladrão de meia-tigela que a escolheu como alvo por engano. Um confronto aleatório. Isso é que é a sorte a agir como uma vadia desgraçada! Para ele, pelo menos. — O senhor — declarou — é um bandido de merda. — Eu, minha senhora, sou um cavalheiro. — O senhor é um cavalheiro morto. Carcolf deu um passo em frente, empunhando a espada, o equiva- lente a uma passada de aço afiado que fora buscar o brilho cruel de uma lâmpada a uma das janelas acima. Nunca tinha tempo para praticar, mas mesmo assim as suas habilidades com a lâmina não eram nada más. Seria preciso bem mais do que aquele traste para batê-la. — Vou entalhar-te como… O homem avançou com uma rapidez surpreendente, os metais co- lidiram e, antes que Carcolf conseguisse sequer pensar em mexer-se, a espada já lhe havia escapado dos dedos e deslizado pelos paralelepípedos sebosos até cair no canal. — Ah — disse ela. Aquilo mudava tudo. Tornara-se evidente que o assaltante não era tão fraco como parecia, pelo menos como espadachim. Devia ter des- confiado; em Sipani, nada é o que parece. — Passa para cá o dinheiro — ordenou ele. — Com todo o gosto. Carcolf sacou da bolsa e atirou-a contra a parede, na esperança de se escapulir enquanto ele não estivesse a olhar. No entanto, o homem agar- rou a bolsa no ar com uma impressionante destreza, movendo a ponta da espada rapidamente para lhe evitar a fuga, e então tocou ao de leve no volume no casaco dela. — O que temos… aqui? De mal a muito, muito pior.

— Nada, nada de mais. Carcolf tentou fingir uma risadinha, mas a oportunidade já se fora — e a de embarcar no maldito barco para Thond, ainda atracado nas docas, não demoraria também a ir-se. Desviou a ponta cintilante com um dedo. — Eu tenho um compromisso urgente, percebes, por isso… A espada abriu-lhe o casaco com um leve sibilar. Carcolf pestanejou. — Ai. Sentiu uma dor lancinante nas costelas. A lâmina também a tinha cortado. — Ai! Caiu de joelhos, muito aflita, com o sangue a escapar-lhe por entre os dedos enquanto os pressionava contra o corpo. — Ah... essa agora. Desculpa. Eu não queria… não queria mesmo cortar-te. Só queria, sabes… — Ai. O artigo, agora levemente embebido com o sangue de Carcolf, caiu do bolso rasgado e deslizou pelo pavimento. Um pacote fino com cerca de trinta centímetros de comprimento, embalado em couro manchado. — Preciso de um médico — arfou ela, no seu melhor tom de sou-uma-pobre-mulher-indefesa. A grã-duquesa sempre a acusara de ser excessivamente dramática, mas se não pudesse fazer drama numa situação daquelas, quando poderia? Era provável que realmente estivesse a precisar de um médico e havia a possibilidade de o assaltante se baixar para ajudá-la, dando-lhe uma oportunidade de enfiar a faca no rosto do desgraçado. — Por favor, eu imploro! Ele hesitou, com os olhos arregalados; a artimanha tinha ido muito além do que planeara. Mas aproximou-se apenas o suficiente para alcan- çar o embrulho, a ponta da espada ainda apontada a Carcolf. Assim sendo, era melhor seguir um rumo diferente e ainda mais arriscado. Ela empenhou-se para não deixar o pânico transparecer na sua voz. — Olha, podes levar o dinheiro, não tenho nada contra ti. — Carcolf tinha, de facto, tudo contra ele, e desejava que apodrecesse no cemitério. — Mas as coisas vão correr melhor a ambos se deixares esse pacote onde está!

seja só um arranhão! Esfregou o rosto, como se assim pudesse afastar a recordação, mas ela já se havia fixado. Uma a uma, coisas que nunca imaginara, que havia dito a si mesmo que nunca faria, e depois que nun- ca mais as faria de novo, tornaram-se parte da rotina. Verificou outra vez se não estava a ser seguido. Deslizou para fora da rua e atravessou o quintal putrefato, sendo observado pelos rostos apagados dos heróis de ontem impressos nos jornais. Subiu os degraus, que fediam a urina, desviou-se da planta morta, pegou na chave e lutou contra a fechadura emperrada. — Maldição, vai-te foder, que merda… Gah! A porta abriu-se de repente e ele tropeçou para dentro, quase caindo outra vez, virou-se e fechou-a, parando por um momento na malcheiro- sa escuridão, respirando com dificuldade. Quem acreditaria que já esgrimira com o rei? Perdera. É claro que perdera. Perdera tudo, não é? Fora derrotado por dois toques a zero e coberto de insultos pessoais, estatelado no chão, mas, ainda assim, havia medido a sua habilidade com a espada contra Sua Augusta Majestade. Aquela mesma espada, deu-se conta ao encostá-la atrás da porta. Talhada, embaciada e até um pouco torta perto da ponta. Os últimos vinte anos haviam sido cruéis, tanto para a lâmina quanto para ele. Mas talvez hoje fosse o dia em que tudo iria mudar. Despiu o manto e atirou-o para um canto, e pegou no embrulho para abri-lo e descobrir o recheio. Tateou com a lâmpada na escuridão até conseguir produzir um pouco de luz, quase recuando quando a casa miserável lhe surgiu diante dos olhos. Os vidros estalados, a argamassa cheia de bolhas e pontos de bolor, o colchão desgastado onde dormia, vomitando palha estragada, as poucas e deformadas peças da mobília… Estava um homem sentado na única cadeira, em frente à única mesa. Um homem grande com um casaco grande, o cabelo grisalho ra- pado junto ao crânio. Inspirou devagar pelo nariz grosseiro e deixou um par de dados saltar da palma da mão para a mesa manchada. — Seis e dois — disse. — Oito. — Quem raio és tu? — A voz de Kurtis ficara fina por causa do choque. — O Mineiro enviou-me. — Fez os dados rolarem outra vez. — Seis e cinco. — Quer dizer que vou perder? — Kurtis olhou de relance para a

espada, tentando em vão parecer casual, pensando quanto tempo levaria para lhe pegar, sacá-la e atacar… — Já perdeste — declarou o homenzarrão, recolhendo os dados de- licadamente com a lateral da mão. Finalmente olhou para cima. Os seus olhos eram mortos como os de um peixe, como os que eram vendidos nas barracas da feira. Mortos, sombrios e cheios de um cintilar triste. — Queres que te diga o que vai acontecer se tentares pegar naquela espada? Kurtis não era corajoso. Nunca havia sido. Precisara reunir a toda sua coragem para se forçar a surpreender alguém; ser, ele mesmo, sur- preendido havia enxotado o resto da sua coragem. — Não — murmurou com os ombros caídos. — Dá-me o embrulho — ordenou o gigante, e Kurtis obedeceu. — E a bolsa. Era como se toda a sua resistência tivesse sido drenada. Não era for- te o suficiente para arriscar uma armadilha; quase não tinha forças para se manter de pé. Atirou a bolsa para cima da mesa e o homem abriu-a com a ponta dos dedos, espiando o conteúdo. Kurtis moveu as mãos de maneira frouxa e impotente. — Não tenho mais nada de valor. — Eu sei — disse o homem ao levantar-se. — Já verifiquei. Contornou a mesa e Kurtis encolheu-se de medo, apoiando-se no armário da cozinha. Um armário que, de momento, não continha nada além de teias de aranha. — A dívida foi paga? — perguntou baixinho. — Achas que foi? Encararam-se em silêncio. Kurtis engoliu em seco. — Quando é que fica paga? O gigante encolheu os ombros, que pareciam diretamente colados à cabeça. — Quando é que achas que estará? Kurtis engoliu outra vez em seco, e percebeu que os seus lábios tremiam. — Quando o Mineiro disser que está? O grandalhão ergueu um pouco uma das grossas sobrancelhas, fen- dida pela marca sem pelos de uma cicatriz. — Tens alguma pergunta… para a qual não saibas já a resposta? Kurtis caiu de joelhos, contraindo as mãos, o rosto do homem

interior de uma viela estreita e virou-se, bloqueando o caminho, abrindo o casaco a fim de revelar o punho de quatro das suas seis armas. A som- bra dela dobrou a esquina e então ele encarou-a. Limitou-se a encará-la. A rapariga ficou imóvel, engoliu em seco, virou-se para um lado, depois para o outro, e finalmente recuou e perdeu-se na multidão. E assim se encerrou o caso. … trinta e um, trinta, vinte e nove… Sipani, especialmente a sua húmida e aromática parte velha, encontrava-se repleta de ladrões. Um incómodo constante, como moscas no verão. Havia também assaltan- tes, salteadores, arrombadores, carteiristas, assassinos cruéis, gangsters, matadores, valentões, parasitas, vigaristas, apostadores, agenciadores de apostas, agiotas, libertinos, mendigos, charlatões, chulos, donos de casas de penhores e comerciantes desonestos, isto sem contar os contabilistas e advogados — os piores do grupo, na sua opinião. Às vezes, parecia que ninguém em Sipani produzia nada, por assim dizer; todos aparentavam estar a trabalhar no duro para arrancar tudo aos outros. Não que ele fosse muito melhor, refletiu. … quatro, três, dois, um e doze degraus para baixo, para lá dos três guardas e através das portas duplas da base de operações do Mineiro. A parte de dentro estava enevoada com fumo, numa confusão de luzes coloridas, quente com a respiração e o atrito das peles, repleta com os murmúrios de conversas apressadas, de segredos negociados, reputa- ções destruídas e confianças traídas. Assim como costumam ser todos os lugares deste tipo. Dois nórdicos estavam encaixados atrás de uma mesa no canto. Um deles, com dentes afiados e cabelos longos e escorridos, tinha empurrado a sua cadeira até à parede, onde se sentava preguiçosamente e fumava. O outro segurava uma garrafa numa mão e um livrinho na outra, exami- nando-o com a testa muito franzida. Amistoso conhecia de vista vários dos fregueses. Clientes habituais. Alguns vinham para beber, outros para comer. A maioria era viciada em jogos de azar. O retinir dos dados, o agitar das cartas de baralho, os olhos dos desesperados a brilhar ao verem a roleta girar. Os jogos não eram o verdadeiro negócio do Mineiro, mas jogos cria- vam dívidas, e era com elas que ele se ocupava. Vinte e três degraus es- cada acima até à parte alta, o guarda com a tatuagem no rosto a sinalizar que Amistoso podia passar.

Outros três cobradores estavam ali sentados, a beber juntos. O mais pequeno sorriu-lhe e fez um aceno de cabeça, tentando, talvez, plantar as sementes de uma aliança. O maior do grupo encheu o peito e eriçou-se, pressentindo rivalidade. Amistoso ignorou os dois, sem distinção. Havia desistido há muito tempo de tentar compreender a matemática sem so- luções dos relacionamentos humanos, quanto mais participar nela. Se aquele homem fizesse algo além de se eriçar, o cutelo responderia em seu nome; aquela era uma voz capaz de acabar até com as mais tediosas discussões. A senhora Borfero era uma mulher corpulenta com cachos negros que desciam espiralados sob um chapéu roxo, óculos pequenos que au- mentavam consideravelmente o tamanho dos seus olhos, e um cheiro a óleo de lamparina que parecia envolvê-la. Assombrava a antessala em frente ao escritório do Mineiro, numa escrivaninha baixa abarrotada com livros de contabilidade. No primeiro dia de trabalho de Amistoso, gesticulou em direção à porta ornamentada atrás de si e declarou: «Eu sou o braço direito do Mineiro. Ele não deve ser incomodado. Nunca. É comigo que deves falar». Assim que viu a maneira como a mulher dominava com mestria os números naqueles livros, percebera, sem quaisquer dúvidas, que não havia ninguém no escritório e que Borfero era o Mineiro, mas, ao ver como ela parecia tão contente com a fraude, Amistoso decidiu, satisfeito, continuar a fingir que não sabia. Nunca gostara de agitar barcos sem ser necessário. Era assim que as pessoas se afogavam. Além do mais, preferia imaginar que as ordens vinham de outro lugar, desconhecido e irresis- tível. Era bom ter alguém sobre quem pudesse lançar as culpas. Olhou para a porta do escritório do Mineiro, questionando-se se do outro lado haveria mesmo um escritório ou apenas uma parede de tijolos. — O que é que conseguiste recolher hoje? — perguntou ela, abrindo um livro de contabilidade e molhando a ponta da caneta na tinta. Direta ao assunto, sem uma saudação sequer. Amistoso admirava e apreciava imenso tal comportamento, ape- sar de nunca declarar nada a esse respeito. Os seus elogios, por norma, ofendiam. Pegou nas moedas em montinhos, deixando-as cair a seguir, uma a uma, retinindo, em filas ordenadas por devedor e valor. A maioria era em metal barato, folheado com uma pitada de prata.

apenas com os negócios, e ela apreciava isso num homem, mesmo sem nunca declarar nada a esse respeito. Um administrador deve manter um certo ar de indiferença. Às vezes, as coisas eram o que pareciam ser. Borfero já testemunhara uma quantidade considerável de acasos estranhos ao longo da vida. — Talvez seja o que procuro — meditou, apesar de, na verdade, ter tido a certeza no momento em que viu o embrulho. Não era o tipo de mulher que perdia tempo com possibilidades. Amistoso concordou com um gesto de cabeça. — Saíste-te bem — declarou ela. Ele acenou novamente com a cabeça. — O Mineiro vai querer premiar-te. «Seja generosa com os seus, ou os outros o serão», costumava dizer. Mas a generosidade não era capaz de provocar qualquer tipo de reação em Amistoso. — Uma mulher, talvez? Ele pareceu ficar um pouco aflito com a sugestão. — Não. — Um homem? Essa agora. — Não. — Bebida? Uma garrafa de… — Não. — Deve haver alguma coisa. Ele encolheu os ombros. A senhora Borfero soprou, esvaziando as bochechas. Havia conquis- tado todo o seu património estimulando os desejos dos outros. Não sa- bia bem o que fazer com alguém que não tinha nenhum. — Bom, nesse caso, porque é que não pensas no assunto? Amistoso concordou com a cabeça, devagar. — Assim farei. — Quando entraste, viste dois nórdicos a beber? — Vi dois nórdicos. Um deles estava a ler um livro. — A sério? Um livro? Amistoso encolheu os ombros. — Há leitores por toda a parte. …

Ela percorreu rapidamente o estabelecimento com o olhar, reparando na dececionante falta de clientes ricos e calculando quão deploráveis seriam os lucros daquela noite. Se um dos nórdicos estava a ler, tinha desistido. Fundo estava a beber diretamente da garrafa um dos seus me- lhores vinhos. Havia três garrafas caídas debaixo da mesa. Raso fumava um cachimbo de chaga, empestando o ambiente em redor. Borfero não costumava permitir esse tipo de coisas, mas era obrigada a abrir uma exceção com aqueles dois. Não conseguia perceber porque é que o ban- co escolhera empregar duas criaturas tão repugnantes. Pessoas ricas não precisam de se explicar, constatou. — Cavalheiros — disse, ao sentar-se numa cadeira. — Onde? — coaxou Raso, com uma risada. Fundo colocou lentamente a sua garrafa na vertical, encarando o irmão sobre o ombro, com um olhar amargo de desprezo. Borfero prosseguiu no seu tom profissional, suave e lógico. — Vocês disseram que os vossos… empregadores ficariam muito gratos se eu por acaso encontrasse… um certo artigo que mencionaram. Os dois nórdicos mostraram-se imediatamente interessados, incli- nando-se ambos para frente como se fossem atraídos por um mesmo isco, com a bota de Raso a esbarrar numa garrafa vazia, fazendo-a rolar em arco pelo chão. — Profundamente gratos — disse Fundo. — E a gratidão deles subtrairia quanto da minha dívida? — Tudo. Borfero sentiu a pele arrepiar-se. Liberdade. Seria possível? No seu bolso, naquele instante? Mas, devido à dimensão da aposta, não podia baixar a guarda. Quanto maior a recompensa, maior a cautela. — A minha dívida seria extinta? Raso aproximou-se, sugando o tubo do cachimbo por entre a barba rala. — Morta — disse. — Assassinada — rugiu o irmão, que se aproximara de repente pelo outro lado da mesa. Ela não gostava minimamente de ter perto de si aquelas fisionomias de assassinos rudes e cheias de cicatrizes. Mais alguns instantes daquele bafo poderiam derrubá-la.