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Uma discussão histórica sobre a concepção e significado da 'música popular brasileira' entre 1850 e 1950, realizada por intelectuais ligados à música. O texto explora as definições e idealizações da música popular, suas utilizações político-ideológicas, e a importância de estudar essa história para identificar os juízos de valor e homogeneizações associados a esses conceitos.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
Compartilhado em 07/11/2022
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"O mistério de nossa música é o mistério do Brasil mesmo, diz-me o que cantas e eu te direi quem és. Mas nós cantamos tanta coisa e tão diferentes...Que seremos nós?" Renato Almeida Revista Movimento Brasileiro, 1928
Martha Abreu Universidade Federal Fluminense
I - Introdução
Realizando atualmente uma pesquisa, que procura inventariar e avaliar a produção de folcloristas e memorialistas sobre "festas, danças e músicas populares”, entre 1850-1950, localizamos uma importante discussão, comandada por intelectuais ligados à música, envolvendo as definições e os significados do que entendiam como a “música popular brasileira”^1. Consagrada a partir das décadas de 30 e 40 por Mário de Andrade e Gilberto Freyre como “a mais forte criação de nossa raça” e “arte mais totalmente nacional” 2 , foi possível perceber que, desde o final do século XIX, já existiam importantes esforços de valorização e resgate da "música popular", acompanhando de perto as polêmicas criações sobre o caráter nacional brasileiro. Se é válida a utilização dos termos “música popular” - e também "cultura popular"
(^1) Este artigo só foi possível graças à contribuição dos bolsistas de iniciação científica (CNPq), Nívea Maria da Silva Andrade, Simone Pereira Carneiro, Lenardo da Costa Ferreira, e da bolsista de aperfeiçoamento (CNPq), Rita de Cassia Paula Pereira, no levantamento bibliográfico e nas periódicas discussões sobre as várias histórias da música popular no Brasil. 2 Viana, Hermano, O Mistério do Samba , Rio de Janeiro, Zahar Ed., Ed. UFRJ, 1995, p.33.
conservadorismo, da resistência e, no caso em questão, da alma nacional. Ao aprofundar mais especificamente a história do conceito de “música popular”, pretendo realizar uma operação que subverte os seus sentidos universais, ahistóricos, ideológicos e políticos que costumeiramente lhe são atribuídos. Como afirma Nestor Canclini, deve-se desconstruir as operações científicas e políticas que colocaram em cena o popular^3. O maior objetivo deste artigo é, então, propiciar uma reflexão sobre a existência de um tipo de produção intelectual, entre o final do século XIX e os anos 20, que investiu na complicada construção (ou invenção) da versão musical (talvez uma das mais fortes visões) da suposta identidade nacional brasileira. Esses trabalhos tiveram a singular e semelhante pretensão de produzir uma síntese histórica da “música popular brasileira”, definindo-a positivamente e orgulhosamente como um produto da mestiçagem racial de índios, portugueses e negros. Apesar da pretensão, deixaram evidentes os limites e as impossibilidades de sistematização e homogeneização das características gerais desta “música popular”. O resultado do esforço tendeu a ser a reprodução geral da teoria da mestiçagem sobre uma realidade musical múltipla e multifacetada, demonstrando como o recurso da "fábula das três raças"^4 foi (e é) recorrente também nas construções sobre a brasilidade musical, o que torna difícil, sem uma boa dose de crítica e atenção, o aproveitamento destes trabalhos pelo historiador. Os trabalhos selecionados para análise são: "A Música no Brasil" (1908), de Guilherme T. P. de Mello, "A História da Música Brasileira", de Renato Almeida (1926), e "Estudos de Folclore" (publicado em 1933, mas com textos datados de 1928) de Luciano Gallet. A grande parte do estudos acadêmicos sobre a História do pensamento social brasileiro não privilegiou a análise de autores que investigaram a “música nacional”. Deu preferência aos trabalhos de intelectuais que, preocupados com as questões da mestiçagem, da herança ibérica, da qualidade da natureza (flora, fauna, terra, clima) ou do homem em ambiente tropical, sempre em busca das raízes do sentimento nacional, se dedicaram ao discurso científico (médicos e juristas), à literatura (tais como Sílvio
(^3) Canclini, Nestor, Culturas Híbridas , Edusp., São Paulo, 1997, 205-254. (^4) Ver Schwarcz, Lilia, Complexo de Zé Carioca, notas sobre uma identidade mestiça e malandra. In: Novos Estudos Cebrap , São Paulo, Ed. Brasileira de Ciências.
recorrente, como se pode verificar pela afirmação de Waldenyr Caldas no pequeno mas divulgado livro da Série Princípios sobre "Iniciação à Música Popular Brasileira":
"A nossa música, de acordo com seus estudiosos, aparece, juntamente com os primeiros centros urbanos, no Brasil colonial do século XVIII... Mas é só a partir do final do século XIX que se configura a síntese da nossa expressão musical urbana através do hibridismo de sons indígenas, negros e portugueses".^7
II - Definindo a música popular brasileira
Bibliotecário do Instituto Nacional de Música, e auto denominando-se professor de música, Guilherme de Mello escreveu "A Música no Brasil", em 1908. Logo de início, avisa ao leitor que não produziu uma História completa da música no Brasil, posto que seriam necessários muitos recursos e a visita a diversos estados. A maior parte de seus exemplos refere-se à Bahia, nordeste e Rio de Janeiro, e a pesquisa, declara o autor, concentrou-se no Instituto Geográfico da Bahia e no Real Gabinete Português de Leitura. Apesar destes limites, afirma, em termos bem entusiasmados e pretensiosos, que realizou o livro... "com o desejo ardente de mostrar-vos com provas exuberantes, de que não somos um povo sem arte e sem literatura, como geralmente dizem , e que pelo menos a música no Brasil tem feição característica e inteiramente nacional "^8 (grifos meus)
Dando algumas pistas para se compreender as razões que o levaram a considerar a "música popular" um fator de identidade nacional, Guilherme de Mello parte de uma constatação de que a música é a "arte mais sociológica", a "mais leal do sentimento humano". Sendo assim, o autor defende que o "sentimento música" é muito diferente entre diferentes partes do mundo. Depende do indivíduo e da raça a que pertence.
(^7) Caldas, Waldenyr, Iniciação à Música Popular Brasileira , Rio de Janeiro, Atica, 1989, P.5. (^8) Mello, Guilherme, A Música no Brasil , Bahia, Tipografia S. Joaquim, 1908, nota ao leitor, 1a. pag. Para se ter uma idéia geral do livro, está organizado em 5 capítulos. O primeiro capítulo apresenta a influência indígena e jesuítica ("o período da formação"), o segundo, a influência portuguesa, africana e espanhola ("período da caracterização da música nacional brasileira"). O terceiro capítulo é sobre a "Influência bragantina" (influência artística dos reis de Bragança, do século XVIII ao final do período monárquico, com um inventário sobre a música mais erudita). O quarto refere-se ao "período da degradação" (após a Guerra do Paraguai, com a importação e valorização excessiva da música francesa e européia), e quinto dedica-se à "Influência republicana" (período que teria resgatado os temas nacionais).
Reconhecer-se-ia a arte musical de uma país consultando-se a "influência dos povos que contribuíram para a constituição de sua nacionalidade". Aplicando suas premissas com muito otimismo, declara que no Brasil não haveria dúvidas da grande vitalidade da "música popular brasileira" (ou da "música nacional brasileira"). O "nosso estilo característico" (independente se na cidade ou na zona rural) - a modinha, o lundu e a tirana - ter-se-ia constituído da "fusão do elemento indígena com o português, o africano e o espanhol"^9. Para o autor, o Brasil era a terra por excelência da música, onde não se sabia dizer qual a qualidade mais exuberante se a flora, se a fauna, se a música. Mesmo as formas mais pobres de harmonia ou menos ricas de melodia, menos ritmadas ou com menos temas não deveriam ser desprezadas ou abandonadas. Todas teriam seu valor relativo conforme o lugar que são executadas e a sua aplicação histórica 10. Dialogando com o Mello Moraes Filho, que defendia a existência de "música popular" mesmo nas coletividades "mais bárbaras", Guilherme de Mello reafirma a existência de uma música (popular) brasileira, da mesma forma que existiria uma espanhola ou russa. Assim, aproximando a “música nacional” de outras marcas da nacionalidade, pergunta-se...
"como pois não termos uma música essencialmente nacional desde quando temos uma tradição, um clima e uns tantos costumes precisamente brasileiros" 11.
O livro de Renato Almeida, História da Música Brasileira, já incorporando uma perspectiva modernista, que levará muito longe a idéia de a "música popular" ser a base para a formação da "moderna música brasileira", aproxima-se de muitas colocações de Guilherme de Mello. Considera a "música popular" um fruto da mestiçagem e a marca positiva da identidade nacional (e vice-versa). Para o autor, que se tornará nas décadas seguintes um dos maiores articulares do Movimento Nacional do Folclore, o "canto popular", no Brasil, como nenhuma outra
(^9) Idem, ibidem, P.5- (^10) Idem, ibidem, p.60. (^11) Idem, ibidem, p.238.
contribuição portuguesa) 3) uma espécie de anexo, onde se encontram letras e partituras de cantigas e danças antigas do Estado do Rio, como cateretês e sambas, e "temas brasileiros" diversos (letras e partituras de côcos, modinhas, cantigas de roda e de macumba) A principal tese do autor, na primeira parte, é demonstrar que o índio não contribuiu para a "formação de nossa música atual", em função da destruição de sua "música primitiva" pelos jesuítas e da igualdade de "feitio e sentimento" dos índios de hoje com os do passado, comprovando que se mantiveram separados da sociedade brasileira 15. O folclore brasileiro, no que se referia à música, era de origem luso-africana. Em suas palavras:
"da fusão do elemento melódico expressivo português, latino, com o elemento ritmico africano, nasceu a música brasileira"^16.
O autor ainda valoriza a grande quantidade de material brasileiro-musical em termos de formas, qualidades melódicas e características rítmicas. Além das influências externas assinaladas, "aqui" teriam nascido - e se transformado - novas modalidades. A música brasileira, na dependência de sua própria raça, é vista como "rica de seiva, exuberante de sentimento, cheia de vida interior". Pela sua observação, "vai atraindo a atenção de notabilidades musicais estrangeiras, que vem aqui buscar a música nossa, para aproveitar o seu feitio novo". Dentro em breve, arriscava o autor em tom muito otimista,
"consciente de sua força, e de seus meios próprios, ela (a música brasileira) contribuirá pujante, para a afirmativa da vitalidade brasileira" 17.
Já deve ter ficado evidente que, em meio a grandes elogios e entusiasmos em relação ao resultado musical da mestiçagem - a “música popular brasileira” - os autores em questão (uns mais outros menos) não conseguiram escapar de certos determinismos
(^15) Gallet, Luciano, Estudos de Folclore , Rio de Janeiro, Carlos Wehers, 1934, p.37-44. Segundo Mário de Andrade, Gallet era o maior harmonizador de "músicas populares". Entre as músicas de sua autoria, encontram-se "caxinguelê", "batuque" e "cadernos de canções brasileiras". 16 Idem, ibidem, p.
preconceituosos, que definiam a própria mistura racial, especialmente no que dizia respeito à influência negra e africana. Isto fica mais nítido quando procuraram demarcar - bem verdade que sem muito êxito - as características gerais da “música popular”, ou melhor, das marcas musicais da mestiçagem racial. Ao não irem além de referências pouco específicas sobre o ritmo, a melodia, a síncopa, os acentos e as cadências desta "musica popular brasileira"^18 , criaram versões sobre a melancolia, a lascívia e a languidez da música mestiça. Sem jamais terem chegado a um acordo, o melhor recurso que os autores encontraram para definir as características gerais da “musica popular” nas sínteses históricas que procuraram construir, foi mesmo a eleição de alguns gêneros musicais^19. Nesta operação, contraditoriamente, ao mesmo tempo que buscavam valorizar a mestiçagem musical dos estilos, muitas vezes de uma forma muito próxima a uma depuração dos traços africanos, não conseguiram deixar de transparecer a impossibilidade da síntese e da identidade nacional, em função da variedade dos estilos e da significativa influência negra e africana apresentadas^20. Estas dificuldades encontradas revelam os limites das intenções de homogeneização do que procuravam definir como “música popular brasileira”. A proposta de Guilherme de Mello sobre o "nosso estilo característico" baseava-se em três variantes: a modinha, o lundu e a tirana. O lundu, por exemplo, teria sido a reunião dos cantos e sambas das toadas e dos batuques africanos. Da mistura com o indígena, o lundu teria propiciado o surgimento de um novo sentimento musical e, ao propagar-se entre os mestiços, "identificou-se com o sentimento pátrio", produzindo a
(^17) Idem, ibidem, p. (^18) Oneyda Alvarenga, na década 50, seguindo Mário de Andrade, continua anotando que "as cantigas populares nunca se fixam numa forma só, desdobram-se em infinidades de variantes e no geral acabam desaparecendo muito rapidamente". Mas, se não temos cantos tradicionais, temos, "processos já fixados de criação musical e por eles, uma música que, se não é folclórica, é perfeitamente popular. Provenha ela do norte ou do sul do país, todos nós a reconhecemos como intimamente nossa". Alvarenga, Oneyda, Música Popular Brasileira 19 , Porto Alegre, São Paulo, 1950, p. Além do ritmo, Guilherme de Mello ainda destaca "a forma, os traços, os desenhos, as incisas, os acentos, as cadências, as ornamentações melódicas e harmônicas, as síncopas, a marcação dos baixos, o acompanhamento, as modulações, o emprego mais ou menos constante das falsas harmônicas". 20 A variedade dos estilos apresentada permite que o pesquisador atual tenha acesso a importantes registros sobre a música de segmentos populares do passado. Sobre a produção de uma "música brasileira mestiça", ver o relatório e o trabalho final de Iniciação Científica de Nívea Andrade: "Música Nacional e Música Popular Brasileira nas três primeiras décadas do século XX", UFF, Dep. de História, 1998.
a influência africana que predomina"^26. O samba nunca teria perdido o “contato com o povo" e, "na adpatação, os mestiços souberam quebrar um pouco a violência, tornando mais lânguida a melodia, mas acessível ao nosso temperamento"^27. Apesar desses estigmas, Renato sempre reconhece a matéria musical prodigiosa, pela riqueza rítmica e pela variedade de timbres. Em sua concepção, apesar da modinha, o choro e fundamentalmente o samba exprimem a alma popular mestiça, cheia de emoção e encanto. Luciano Gallet foi também outro autor que, apesar de atribuir igual importância à música portuguesa, especialmente à modinha, valorizou mais a "influência da música negra". Dos autores trabalhados, talvez seja o que mais destacou a contribuição negra. Segundo Gallet, desprovidos de tudo durante o período escravista, os "negros" mantiveram o que era intimamente deles: usos, cantares e danças. Mas se o negro conservou muitas das coisa próprias, também "mestiçou-se e adapatou-se" 28. Sobre as características musicais do negro no Brasil, destaca a sua especificidade melódica e rítmica. Como os outros autores, lista a contribuição musical folclórica em variadas manifestações musicais: nas cerimônias (festas em geral, Reis, mortos, carnaval etc), nas manifestações religiosas, nos cantos (chula, lundu, acalantos, invocações de santos, cantos de feitiçaria, de trabalho de cucumbis, de congadas, de carnaval, de rua.), nas danças (cateretê, caxambu, batuque, samba, jongo, lundu, chiba, cana verde, côco, maracatu), nos choros (com aproximações do jazz norte-americano) e serestas.
Sobre Guilherme de Mello, Renato Almeida e Luciano Gallet vale ainda indagar os motivos que, em meio a tantas dificuldades de definição, em função da variedade das manifestações musicais dos setores populares e dos evidentes preconceitos raciais, os levaram a ter tanto empenho em eleger a “música popular” como um dos maiores traços
(^26) Almeida, R., op.cit., p. (^27) Idem, ibidem, p. (^28) Gallet, op.cit., p.
de definição da nacionalidade, chegando mesmo a inverter o sentido depreciativo freqüentemente atribuído na época aos resultados culturais da mestiçagem. Se ainda é cedo para conclusões definitivas, valem alguns comentários. Hermano Viana e Santuza Cambraia Neves procuram demonstrar, baseados em José Ramos Tinhorão, que uma onda de exotismo e regionalismo invadiu a cidade do Rio de Janeiro a partir do início do século XX, justificando o interesse pela "música popular" e pelo folclore, apesar de toda a europeização atribuída à Belle Époque carioca. Hermano ainda acrescenta que, ao menos desde o romantismo, já havia laços de aproximação entre intelectuais e músicos populares, que impediam a simples oposição entre cultura das elites e cultura popular^29. Esta foi a forma encontrada por Viana para explicar a “fácil” aceitação do samba (assim como da mestiçagem positiva e podemos inferir também da música popular) como "música nacional". Proponho que pensemos também no fato de que Guilherme de Mello, Renato Almeida e Luciano Gallet foram músicos engajados em projetos de construção da “música brasileira” (isto talvez explique o caráter pretensioso de seus objetivos)^30. Diferentemente de Sílvio Romero, que nos estudos de literatura popular reconhecia as dificuldades para se encontrar a singularidade nacional, em função do peso da herança portuguesa, esses intelectuais ligados à música percebiam a existência, tanto nas ruas das cidades, como no meio rural, de múltiplos estilos musicais, variadas influências e singulares misturas musicais presentes entre os mais diferentes segmentos da população^31. A música, mais que a literatura, oferecia promissoras possibilidades para esses intelectuais identificarem a criação de estilos novos e originais - apesar da indisfarçável e problemática influência negra - com as marcas de uma pretensa identidade nacional. Procurando harmonizar musicalmente as melodias sem registros eruditos, os intelectuais da música analisados pareciam mesmo querer harmonizar - agora no sentido
(^29) Ver Viana, Hermano, op.cit. e Naves, Santuza Cambraia, O Violão Azul, Modernismo e Música Popular 30 , Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998. 31 Estamos acompanhando, a partir do final do século XIX, a fundação de associações de músicos. Sobre este aspecto nas músicas e danças de setores populares urbanos, ver Abreu, Martha, O Império do Divino, Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1830-1900 , Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
dose de monotonia, desfilam nos textos as seguintes temáticas: influência indígena, influência jesuítica, influência portuguesa e africana (às vezes espanhola). Guilherme de Mello explicitamente estabeleceu os atributos relativos aos tempos coloniais: período de formação e caracterização. Tudo o que viria depois seria apenas "desenvolvimento". Os traços básicos estariam definidos muito antes de se iniciarem as preocupações com o que seria a música popular (e antes mesmo de existir o próprio Brasil). Renato Almeida não ficou muito longe desta perspectiva, ao estabelecer o título "a música popular" para o primeiro capítulo de seu livro, já que o segundo tinha como marco cronológico inicial "o começo do século XIX"^33. A impressão que ficamos, após a leitura dos textos, é a de que a "música popular" (brasileira) de alguma forma já existia desde o estabelecimento da colonização. Guilherme de Mello argumenta que, no século XVII, já se observava "a fusão dos costumes e do sentimento musical"^34 entre indígenas, portugueses, espanhóis e africanos, começando, então, a caracterização do que o autor considera como os "três tipos populares da arte musical brasileira: o lundu, a tirana e a modinha". Cada estilo teria sido importado de uma região diferente, África, Espanha e Portugal, respectivamente, mas aqui
"se propagaram entre os mestiços, se identificaram com o sentimento pátrio, com o nosso meio, nosso clima e o nosso gênio, produzindo, no caso do lundu, a nossa chula, o nosso tango ou o nosso lundu propriamente dito". Todas elas, "receberam as tintas e os traços do sentimento nacional", se "caraterizaram", "mais tarde", "brasileiras"^35
Para Renato Almeida, a origem de uma outra característica de "nosso canto", a melancolia, também podia ser atribuída aos tempos coloniais, em função das condições de vida enfrentadas por índios, portugueses e negros. Na perspectiva do autor, a alma do brasileiro guardaria esse "fundo trágico em que o homem teme a natureza e procura
(^33) Ver na nota 12 a temática dos outros capítulos (^34) Mello, G., op.cit., p. (^35) Idem, ibidem, p.31-
vencê-la pela imaginação exaltada, caindo depois em abatimento e langor"^36. Em suas palavras:
"Melancólico era o índio fugidio e indolente, que vivia a vida cheio de nostalgia, num perpétuo espanto pelas coisas que o cercavam; melancólico era o lusitano, ousado mas triste, vivendo no mar e com a saudade da pátria sempre no coração; melancólico era o negro, caçado, roubado e escravizado que sofreu no cativeiro uma dor irremediável e aniquilante.^37 "
A música dos portugueses, por sua vez, de fidalgos ou imigrantes plebeus, é vista como marcada por "árias sentimentais e comovedoras, que depois haveríamos de transformar, fazendo-as brasileiras"^38. Sobre a "raça preta", como já mencionei, Renato considera que "deu as notas mais vibrantes dos nossos cantos populares". "O batuque dos negros, os recursos dos seus timbres, os elementos fortes e diferentes de sonoridade, foram de uma riqueza admirável"^39. No mestiço essas qualidades teriam aprimorado a "alma nacional", perdendo o batuque a sua violência e ganhando lugar uma "melodia langorosa e sensual"^40. A melancolia e a lascívia seriam as maiores marcas da "nossa" "música popular". O mestiço ter-lhe-ia dado ainda mais volúpia^41. Luciano Gallet, apesar de não precisar especificamente um tempo colonial, estabelece que a influência mútua entre negros e brancos - e a própria mistura racial e musical - possuía séculos. Alguns exemplos poderiam ser as festas das Pastorinhas, no início portuguesa, e o carnaval, antes europeu e mais tarde com grande presença negra. Entre o "povo" assistia-se o bater das mãos com o ritmo sincopado; o mulato tinha trazido, "pela fusão de raça, o início da modificação do feitio"^42. Na avaliação do autor, no início do século XX, já não era mais possível distinguir especialmente as raízes de certos fatos e manifestações" 43 : "todos esses elementos misturaram-se em nós de hoje em dia, e formaram material puramente brasileiro".
(^36) Almeida, op.cit., p. (^37) Idem, ibidem, p. (^38) Idem, ibidem, p. (^39) Idem, ibidem, p. (^40) Idem, ibidem, p. (^41) Idem, ibidem,p. (^42) Gallet, op.cit.,p. (^43) Idem, ibdidem, p.
Pelas informações sobre lundus e modinhas divulgadas por Gilherme de Mello, Renato Almeida e Luciano Gallet, é possível concluir que toda a mistura racial e musical atribuída a esses gêneros é avaliada como se o processo fosse naturalmente determinado e construído: o inexorável caminho (e história) da "música popular brasileira". As formas e os estilos de música e dança, em detrimento das ações e criações musicais dos agentes sociais, é que ganhavam vida própria: misturavam-se e diversificavam-se, num sentido claramente pré-determinado. Nas análises dos autores em destaque, não havia espaço para as questões conjunturais ou considerações sobre os conflitos e subversões que envolviam essas transposições, usurpações e apropriações de estilos realizadas por diferentes sujeitos sociais. Lundus executados nas ruas e nos salões, e modinhas cantaroladas por escravos certamente possuíam significados muito diferentes dos previstos e não foram vistos por contemporâneos de uma forma tão unívoca. Muito menos como indícios da salutar mistura produzida pela "música popular brasileira". Os resultados alcançados pelos estudiosos da história da "música popular" estão, na verdade, muito próximos de uma projeção ao passado das angústias do presente, onde se buscava construir uma identidade mestiça e musical. Nas histórias da música criadas, o século XIX chegou a merecer destaque, em função das transformações operadas na música erudita, a partir do estabelecimento da Corte portuguesa no Rio de Janeiro e da posterior organização do país independente. Os tempos coloniais, com maior destaque para o século XVIII, certamente pelo peso que é dado ao aprofundamento da mestiçagem, pelo maior dinamismo da vida urbana e pela maior disponibilidade de fontes, são tratados como um único grande tempo, onde conviveram e se misturaram, gradativamente e harmonicamente, índios, portugueses e negros, suas músicas e ritmos para a formação da "música popular brasileira"^47.
Todas estas visões e versões sobre a música popular no período colonial, por incrível que possam parecer, permaneceram de alguma forma presentes em vários estudos que seguiram aos dos pioneiros, como os de Oneyda Alvarenga, Mariza Lira, Ary Vasconcelos e Waldenyr Caldas. É razoavelmente unânime entre os autores a idéia de que os tempos coloniais aparecem como o período de formação - de amálgama e fusão - de "nossos cantos populares" mestiços. Oneyda Alvarenga, por exemplo, discípula predileta de Mário de Andrade, afirmava, na década de 50, que o documento mais antigo comprovando a existência de um lundu de "brancos e pardos" é de 1780: uma carta escrita pelo Governador de Pernambuco ao governo português sobre as danças de negros brasileiros denunciadas ao Tribunal da Inquisição. Considerado muito indecente, teria chegado aos salões ainda no século XVIII, mas principalmente no Primeiro Reinado. Segundo Oneyda,
"O lundu foi a primeira forma de música negra que a sociedade brasileira aceitou e por ela o negro deu à nossa música algumas características importantes dela, com a sistematização da síncopa e o emprego da sétima abaixada" 48 (grifos meus)
Estas duas "constâncias da música brasileira", Mário de Andrade teria encontrado, segundo Oneyda Alvarenga, em um lundu canção escrito por Cândio Ignacio da Silva, em 1834, fornecendo elementos para ambos concluírem que, por esta época, "tais elementos já estavam perfeitamente fixados como caracterizadores da música afro-brasileira"^49 Apesar de marcar a transformação do lundu dança em canção como condição para a aceitação da "sociedade colonial", a autora não levou em conta a possibilidade de completa mudança semântica a partir desta sutil variação. Parecidos lundus deveriam ter significados completamente diferentes. Oneyda apenas destaca que, neste outro ambiente, foram introduzidos a comicidade e o sorriso como disfarces psico-sociais. A louvação da negra e da mulata, marca registrada dos lundus mais "brancos", é vista pela autora, sem nenhuma dose de problematização, como uma "condescendência com os amores da terra".
(^47) Evidentemente, os pesquisadores analisados reconhecem a existência de estilos musicais que permanecem ligados a grupos étnicos específicos, com pastoris, cucumbis, ranchos, cheganças, congos, reisados etc. 48 Alvarenga, op.cit., p.
Esta foi a mesma forma que Mariza Lira tratou o lundu. De início, afirma que a música era simples e tinha mais marcação que harmonia. Entretanto, como os "tempos foram mudando", passou-se das agruras da escravidão e dos negros para um lundu que "cantava a mestiça", com entusiasmo. "O lundu não se deixou ficar nas senzalas, os moços brancos seduzidos pela letra desabusada e pela música desenvolta...trouxeram-no para a alegria das serenatas" 53. Para a autora, "a música brasileira" também é o resultado da "amálgama" da "cadência do negro" e da "harmonia do europeu". A modinha, em sua opinião, ocupa um papel de destaque, pois foi a "mais expressiva forma de música popular: "cantava lindamente a índole e os costumes do povo, dominando na casa do pobre e imperando no solar dos morgados". Assim, definiu o estilo:
"A modinha é o Brasil de ontem, Brasil-colônia, quando o povo começava a ser caracterizar"^54.
Por fim, para completar o quadro das visões sobre a gênese e origens (título do primeiro capítulo) da "música popular brasileira", o livro de Waldenyr Caldas é especial pela sua atualidade e circulação. Para o autor, produtor de uma espécie de síntese sobre toda essa historiografia clássica que valoriza o mestiçamento racial (e também social), a "nossa música" surge com "os primeiros centros urbanos, no Brasil colonial do século XVIII, por volta de 1730. Acrescenta, contudo, que a "síntese" mesmo "da nossa expressão musical urbana, através do hibridismo de sons indígenas, negros e portugueses", só se configuraria a partir do final do século XIX"^55 Em sua perspectiva, dentre os ritmos de maior significação "na formação da cultura musical brasileira", continua valorizando o lundu, ao lado do cateretê e da habanera. A modinha, apesar de não constar neste primeiro patamar, logo aparece como originada daquelas, assim como o maxixe e, posteriormente, o samba. Ou seja, desde o
(^53) Lira, Mariza, Brasil Sonoro , Rio de Janeiro, A Noite, P.75 e 76 (^54) Idem, ibidem, P.12 e 13 (^55) Esta posição sobre o final do século XIX aparece também em Mário de Andrade e em Oneyda Alvarenga, mas não é dominante, nem apaga o papel atribuído ao período colonial, como o próprio texto do autor mostra (Caldas, op.cit., p.5). É curioso que Caldas chega a admitir que o estudo da música exige a discussão sobre as mudanças no tempo e nos permite conhecer melhor a sociedade da época. Entretanto, mantém todos os paradigmas dos primeiros historiadores da música.
período colonial, haveria linhas de filiação, dando sentido a todas as "nossas" variações musicais. O lundu, registrado desde o século XVII, com Gregório de Matos, teria tido para Waldenyr Caldas o seu "esplendor" no final do século XVIII e início do XIX. Paulatinamente, registra o autor, foi penetrando nos salões, mas como canção. O lundu teria sido a primeira manifestação musical negra aceita pela sociedade brasileira, "apesar dos limites". W. Caldas admite que, no momento de "ascensão", o lundu perderia suas características próprias, tornando-se completamente diferente, sem os movimentos coreográficos típicos. Entretanto, não consegue escapar de um comentário preconceituoso sobre o lundu negro ou popular, ao declarar que, chegando aos salões, "despareceriam do lundu a bolinagem, a sensualidade, a malícia, enfim, toda a sutileza erótica e estética inerente ao lundu-dança"^56. A atribuição destas características e adjetivos, envolvendo a pretensa sensualidade dos lundus negros, é fruto de julgamentos externos (geralmente censuráveis e condenáveis) aos próprios dançarinos e inventores de lundus. Ao dedicar-se a explicar a modinha, o autor passa definitivamente a reproduzir, certamente de uma forma mais sofisticada, as tradicionais visões sobre a história da "música popular brasileira". Procurando datá-la no final do século XVII, a "música popular" teria realmente se popularizado no século XVIII, com o famoso Caldas Barbosa, que havia escandalizado, em 1775, a rainha de Portugal pela forma "direta e maliciosa de seus versos". Segundo Waldenyr Caldas, muito próximo ao lundu, apesar de ter passado por um processo inverso a este estilo, a modinha conseguiu unir a "aristocracia com o homem do povo". Em suas próprias palavras:
"A aristocracia passava, então, a dividir com o homem do povo o prazer de dançar e de cantar os versos da modinha" 57.
Mais adiante, ao procurar convencer o leitor de que existiam duas modinhas, a vulgar e a aristocrática, não consegue escapar da tentação de afirmar que a segunda manteria a "erudição européia, embora já com a indisfarçável presença do 'sotaque'
(^56) Caldas, op.cit., P.8-