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história das mulheres na historiografia brasileira
Tipologia: Trabalhos
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O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional Manoel Luís Salgado Guimarães* ==============================================================
O pensar a história é uma das marcas características do século XIX, ao longo do qual são formulados os parâmetros para um moderno tratamento do tema. O discurso historiográfico ganha foros de cientificidade num processo em que a "disciplina" história conquista definitivamente os espaços da universidade. 1 Neste processo, o historiador perde o caráter de hommes de lettres e adquire o estatuto de pesquisador, de igual entre seus pares no mundo da produção científica. No palco europeu, onde desde o início do século este desenvolvimento é observável, percebe-se claramente que o pensar a história articula-se num quadro mais amplo, no qual a discussão da questão nacional ocupa uma posição de destaque. Assim, a tarefa de disciplinarização da história guarda íntimas relações com os temas que permeiam o debate em torno do nacional. Em termos exemplares, a historiografia romântica nos permitiria um campo fértil para detectar e analisar tais relações. O caso brasileiro não escapará, neste sentido, ao modelo europeu - e isto certamente trará conseqüências cruciais para o trabalho do historiador em nosso país -, ainda que deste lado do Atlântico outro será o espaço da produção historiográfica. Não o espaço sujeito à competição acadêmica própria das universidades européias, mas o espaço da academia de escolhidos e eleitos a partir de relações sociais, nos moldes das academias ilustradas que conheceram seu auge na Europa nos fins do século XVII e no século XVIII. 0 lugar privilegiado da produção historiográfica no Brasil permanecerá até um período bastante avançado do século XIX vincado por uma profunda marca elitista, herdeira muito próxima de unia tradição iluminista.^2 E este lugar, de onde o discurso historiográfico, é produzido, para seguirmos as colocações de Michel de Certeau^3 , desempenhará um papel decisivo na construção de uma certa historiografia e das visões e interpretações que ela proporá na discussão da questão nacional.
tese A escrita da história e a questão nacional no Brasil - 1838-1857 (mimeo). Atualmente é professor na Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ).
(^1) Sobre este processo no quadro europeu, ver artigo de: WEBER, Wolfgang. Wissenschaftssoziologische
Aspekte des Strukturwandels der Geschichtswissenschaft von der Aufklärung zum Historismus. In. BLANKE, Horst Walter & RÜSEN, Jörn. Org_. Von der Aufklärung zum Historismus_. Zum Strukturwandel des historischen Denkens. Padeborn, München, Wien, Zürich, Schöningh, 1984. p. 73-90. A obra fornece importantes subsídios para a discussão relativa à sistematização do pensamento historiográfico.
(^2) A respeito das academias ilustradas, ver o importante trabalho de: ROCHE, Daniel_. Le siècle des_
lumières en province. Académies et académiciens provinciaux, 1680-1789. 2 t. Paris. 1978. (Civilisations et Societés, 62).
(^3) CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. História : Novos
Problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976. P. 17-48.
Assim, é no bojo do processo de consolidação do Estado Nacional que se viabiliza um projeto de pensar a história brasileira de forma sistematizada. A criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) vem apontar em direção à materialização deste empreendimento, que mantém profundas, relações com a proposta ideológica em curso. Uma vez implantado o Estado Nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a "Nação brasileira", capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das "Nações", de acordo com os novos princípios organizadores da vida social do século XIX. Entretanto, a gestação de um projeto nacional para urna sociedade marcada pelo trabalho escravo e pela existência de populações indígenas envolvia dificuldades específicas, para as quais já alertava José Bonifácio em 1813: " ... amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo, como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios etc. etc. etc., em um corpo sólido e político".^4
É, portanto, à tarefa de pensar o Brasil segundo os postulados próprios de uma história comprometida com o desvendamento do processo de gênese da Nação que se entregam os letrados reunidos em torno do IHGB. A fisionomia esboçada para a Nação brasileira e que a historiografia do IHGB cuidará de reforçar visa a produzir uma homogeneização da visão de Brasil no interior dás elites brasileiras. É de novo uma certa postura iluminista - o esclarecimento, em primeiro lugar, daqueles que ocupam o topo da pirâmide social, que por sua vez encarregar-se-ão do esclarecimento do resto da sociedade - que preside o pensar a questão da Nação no espaço brasileiro. E aqui tocamos em um ponto que nos parece central para a discussão da questão nacional no Brasil e do papel que a escrita da história desempenha neste processo: trata-se de precisar com clareza como esta historiografia definirá a Nação brasileira, dando-lhe uma identidade própria capaz de atuar tanto externa quanto internamente. No movimento de definir-se o Brasil, define-se também o "outro" em relação a esse Brasil. Num processo muito próprio ao caso brasileiro, a construção da idéia de Nação não se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa; muito ao contrário, a nova Nação brasileira se reconhece enquanto continuadora de uma certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa. Nação, Estado e Coroa aparecem enquanto uma unidade no interior da discussão historiográfica relativa ao problema nacional. Quadro bastante diverso, portanto, do exemplo europeu, em que Nação e Estado são pensados em esferas distintas. É Francisco Adolfo Varnhagen que, em carta ao imperador dom Pedro II, explicitaria os fundamentos definidores da identidade nacional brasileira enquanto herança da colonização européia. Diz ele a propósito do posicionamento de sua obra História geral do Brasil frente à discussão do problema nacional: "Em geral busquei inspirações de patriotismo sem ser no ódio a portugueses, ou à estrangeira Europa, que nos beneficia com ilustração; tratei de pôr um dique à
(^4) Citado por DIAS, Maria Odila Silva. A interiorização da metrópole (1808-1853). In: MOTA, Carlos
Guilherme (org.) 1822 Dimensões. São Paulo, Perspectiva, 1972. p. 174.
de forma a que as rupturas sejam evitadas. Herdeiro de uma tradição marcadamente iluminista e vivenciado como tal por seus membros^8 , o instituto propõe-se a levar a cabo um projeto dos novos tempos, cuja marca é a soberania do princípio nacional enquanto critério fundamental definidor de uma identidade social. Mas como conciliar o ideal iluminista supranacional da república das letras com a necessidade de fundamentar historicamente um projeto nacional, construindo seus mitos e representações, porém dando-lhes um estatuto de objetividade e evidência fundados na própria história? A leitura da história empreendida pelo IHGB está, assim, marcada por um duplo projeto: dar conta de uma gênese da Nação brasileira, inserindo-a contudo numa tradição de civilização e progresso, idéias tão caras ao iluminismo. A Nação, cujo retrato o instituto se propõe traçar, deve, portanto, surgir como o desdobramento, nos trópicos, de uma civilização branca e européia. Tarefa sem dúvida a exigir esforços imensos, devido à realidade social brasileira, muito diversa daquela que se tem como modelo. A idéia de criação de um instituto histórico é veiculada no interior da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), criada em 1827 com a marca do espírito iluminista presente em instituições semelhantes que brotaram no continente europeu durante os séculos XVII e XVIII, e que se propunha a incentivar o progresso e desenvolvimento brasileiros.^9 Da mesma forma que aquelas sociedades européias que, segundo a análise de IM HOF^10 , devem ser vistas como parte do processo de centralização do Estado, e portanto com funções de poder muito específicas, também a SAIN e posteriormente o IHGB pensam em projetos de natureza global, de forma a integrar as diferentes regiões do Brasil, ou melhor, de forma a viabilizar efetivamente a existência de uma totalidade "Brasil". No interior da SAIN são o militar Raimundo José da Cunha Matos, na ocasião seu primeiro-secretário, e o cônego Januário da Cunha Barbosa que irão empreender os primeiros passos no sentido da viabilização de um instituto histórico, através de proposta que apresentam ao conselho da Sociedade Auxiliadora em 18 de agosto de 1838, e que vem a ser aprovada em assembléia geral a 19 de outubro do mesmo ano. A instalação definitiva do IHGB se dá a 21 de outubro de 1838, ocupando provisoriamente as instalações cedidas pela Sociedade Auxiliadora.
(^8) Ver PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é o
representante das idéias de ilustração, que em diferentes épocas se manifestaram em nosso continente. In: Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 1(2): 77-86. Abr./Jun. 1839. No artigo, José Feliciano Fernandes Pinheiro (1774-1847), primeiro presidente do IHGB, alinha o instituto a uma tradição iluminista que já no século XVIII teria dado vida a instituições culturais como as deferentes academias que existiram no Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais.
(^9) Sobre a SAIN ver SILVA, José Luiz Werneck da. Isto é o que me parece. A Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional (1827-1904) na formação social brasileira. A conjuntura de 1871 até 1877 Niterói,
(^10) Sobre as diferentes formas de sociabilidade próprias do iluminismo, ver trabalho de IM HOF, Ulrich.
Das gesellige Jahrliundert. Gesellschaft und Gcsellschaften im Zeitalter der Aufklärung. München C. H. Beck, 1982. 263 p.
Em 25 de novembro do mesmo ano, Januário da Cunha Barbosa, na qualidade de primeiro-secretário do IHGB, apresenta em discurso de caráter programático os estatutos da recém-criada instituição, então aprovados^11 , que definem as diretrizes centrais para o desenvolvimento dos trabalhos: a coleta e publicação de documentos relevantes para a história do Brasil e o incentivo, ao ensino público, de estudos de natureza histórica. Estes primeiros estatutos estabelecem também as pretensões do IHGB em manter relações com instituições congêneres, quer nacionais, quer internacionais, e em constituir-se numa central, na capital do Império, que, incentivando a criação de institutos históricos provinciais, canalizasse de volta para o Rio de Janeiro as informações sobre as diferentes regiões do Brasil. As semelhanças com o modelo francês parecem bastante evidentes: da mesma forma que as academias literárias e científicas provinciais francesas do século XVIII articulavam-se na teia mais ampla do processo de centralização levado a cabo pelo Estado, sediado em Paris, do Rio de janeiro as luzes deveriam expandir-se para as províncias, integrando-as ao projeto de centralização do Estado e criando os suportes necessários para a construção da Nação brasileira.^12 Embora criado por iniciativa da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, o Instituto Histórico organiza-se administrativamente independente daquela instituição. Os estatutos definem um número de cinqüenta membros ordinários (25 na Seção de História e 25 na Seção de Geografia), um número ilimitado de sócios correspondentes nacionais e estrangeiros, além de sócios de honra. lá por ocasião da sua reunião de constituição, a 1o^ de dezembro de 1938, o Instituto Histórico colocava-se sob a proteção do imperador, proteção esta que terá como expressão uma ajuda financeira, que a cada ano signif. icará uma parcela maior do orçamento da instituição. Cinco anos após a sua fundação, as verbas do Estado Imperial já representavam 75% do orçamento do IHGB, porcentagem que tendeu a se manter constante ao longo do século XIX. Tendo em vista que, para a realização de seus projetos especiais, tais como viagens exploratórias, pesquisas e coletas de material em arquivos estrangeiros, o IHGB se via obrigado a recorrer ao Estado com o pedido de verbas extras, pode-se avaliar como decisiva a ajuda do Estado para sua existência material. Tais injunções têm de ser necessariamente pesadas quando se pensa o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro enquanto produtor de uma certa historiografia, cujos limites são dados pelo lugar onde ela é produzida, lugar este que traz as marcas e as fronteiras do Estado Nacional. Numa perspectiva inaugurada pelos trabalhos de Foucault, pode-se pensar que este saber articulado pelo IHGB, ao produzir uma certa individualidade - Brasil, marca-a de sinais específicos e particulares, historicamente datáveis. É interessante observar a este respeito a preocupação de alguns de seus mais destacados membros em não definir a instituição como oficial, mas fundamentalmente
(^11) Ver o discurso de Januário da Cunha Barbosa publicado na Revista do IHGB , Rio de Janeiro, 1(1):
10-21. jan./Mar 1839.
(^12) Interessante observar-se o comentário que a este respeito tece o jornal Correio Oficial , de 26 de
outubro de 1838, expressando um voto de esperança de que o IHGB seja um primeiro passo para a constituição de uma academia brasileira, segundo o modelo francês. lá em edição do dia anterior, o mesmo jornal realçava a decisiva importância da história e de um instituto histórico para um país civilizado.
fenômeno semelhante ao já estudado por José Murilo de Carvalho^15 em seu trabalho acerca da elite política imperial. A diversidade de origem social - o que nos leva a questioná-la como critério único definidor de uma prática tanto política quanto intelectual - é, contudo, nivelada por um processo de educação segundo a tradição jurídica de Coimbra, seguida de treinamento e carreira no aparelho de Estado. É a partir desta perspectiva que a leitura da história brasileira será encaminhada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Se uma inter-relação entre Estado e produção do discurso historiográfico no Brasil no século XIX já se fazia sentir desde a fundação do IHGB, tal dinâmica tenderá a assumir formas mais claras e diretas a partir de 1849-50, coincidindo com a estabilização do poder central monárquico e de seu projeto político centralizador. Escrever a história brasileira enquanto palco de atuação de um Estado iluminado, esclarecido e civilizador, eis o empenho para o qual se concentram os esforços do Instituto Histórico. A inauguração, a 15 de dezembro de 1849, de suas novas instalações, no Paço da Cidade, simbolizam um novo começo para a vida da entidade e marcam nitidamente um aprofundamento de suas relações com o Estado Imperial. A partir daquela data, o imperador, cuja presença nos trabalhos do IHGB limitava-se até aquele momento às reuniões anuais comemorativas de sua fundação, passa a ter uma presença assídua e participante, contribuindo desta forma para a construção da imagem de um monarca esclarecido e amigo das letras. Sua intervenção se faz sentir na sugestão de temas para discussão e reflexão dos membros, no estabelecimento de prêmios para trabalhos de natureza científica e no apoio financeiro que assegura o processo de expansão da instituição. A data de 15 de dezembro passou a ser anualmente comemorada como aniversário do IHGB, ao invés da data inicial de fundação, marcando desta forma simbolicamente o sentido assumido por suas novas instalações materiais. Paralelamente, o instituto passa a dar prioridade à produção de trabalhos inéditos nos campos da história, da geografia e da etnologia, relegando a segundo plano a tarefa até então prioritária de coleta e armazenamento de documentos. Os critérios de admissão, ainda que não deixassem de considerar as relações sociais e pessoais, passaram a se pautar por parâmetros mais objetivos, ligados ao trabalho em uma das áreas de atuação do instituto. O discurso pronunciado pelo imperador quando da inauguração das novas instalações no Paço Imperial é carregado de sentido programático, marcando a maior aproximação entre os intelectuais - empenhados na tarefa de escrita da história nacional o Estado e a Monarquia. Tradição portuguesa, mantida deste lado do Atlântico, de intensas relações entre o Estado e o intelectual: são os cargos públicos e as bolsas concedidas pelo próprio imperador que freqüentemente viabilizam. materialmente o trabalho intelectual. Assim expressava-se o monarca em seu discurso de 15 de dezembro de 1849, ao inaugurar as novas instalações do IHGB: "Sem dúvida, Senhores, que a vossa publicação trimestral tem prestado valiosos serviços, mostrando ao velho mundo o apreço, que também no novo merecem as aplicações da inteligência; mas para que esse alvo se atinja perfeitamente, é de mister que não só reunais os trabalhos das gerações passadas, ao que vos tendes
(^15) CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. A elite política imperial. Rio de janeiro,
Campus, 1980. 202 p.
dedicado quase que unicamente, como também, pelos vossos próprios, torneis aquela a que pertenço digna realmente dos elogios da posteridade: não dividi pois as vossas forças, o amor da ciência é exclusivo, e concorrendo todos unidos para tão nobre, útil, e já difícil empresa, erijamos assim um padrão de glória à civilização da nossa pátria." (...)
"Congratulando-me desde já convosco pelas felizes conseqüências do empenho, que contraís, reunindo-vos em meu palácio, recomendo ao vosso presidente que me informe sempre da marcha das comissões, assim como me apresente, quando lhe ordenar, uma lista, que espero será a geral, dos sócios que bem cumprem com os seus deveres; comprazendo-me aliás em verificar por mim próprio os vossos esforços todas às vezes que tiver a satisfação de tomar parte em vossas lucubrações."^16
As mudanças em curso se materializaram nos novos estatutos promulgados em 185117 , espelhando o processo de alargamento, consolidação e profissionalização do IHGB. A perspectiva de englobar na instituição estudos de natureza etnográfica, arqueológica e relativos às línguas dos indígenas brasileiros pode ser explicada a partir da própria concepção de escrita da história partilhada pelos intelectuais que a integravam. Presos ainda à concepção herdada do iluminismo, de tratar a história enquanto um processo linear e marcado pela noção de progresso, nossos historiadores do IHGB empenhavam-se na tarefa de explicitar para o caso brasileiro essa linha evolutiva, pressupondo certamente o momento que definiam como o coroamento do processo. Neste sentido, lançar mão dos conhecimentos arqueológicos, lingüísticos e etnográficos seria a forma de se ter acesso a uma cultura estranha - a dos indígenas existentes no território -, cuja inferioridade em relação à "civilização branca" poderia ser, através de uma argumentação científica, como pretendiam, explicitada. Por outro lado, este mesmo instrumental capacitaria o investigador da história brasileira a recuperar a cadeia civilizadora, demonstrando a inevitabilidade da presença branca como forma de assegurar a plena civilização. Será, portanto, em torno da temática indígena que, no interior do IHGB, e também fora dele, travar-se-á um acirrado debate em que literatura, de um lado, e história, de outro, argumentarão sobre a viabilidade da nacionalidade brasileira estar representada pelo indígena. Enquanto Varnhagen, em carta dirigida ao imperador com data de 18 de julho de 1852^18 a propósito do indianismo, de Gonçalves Dias o adverte para "não deixar para mais tarde a solução de uma questão importante acerca da qual convém muito ao país e ao trono que a opinião se não extravie, com idéias que acabam por ser subversivas"^19 , a literatura veicula a imagem do indígena como portador da "brasilidade".
(^16) Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 12(16): 551 Out./Dez. 1849.
(^17) Ver Novos estatutos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de janeiro, Tipografia de. F. de
Paula Brito, 1851. 12 p.
(^18) Carta de Varnhagen ao imperador datada de 18 de julho de 1852. In: LESSA, Clado Ribeiro de (org.)
Francisco Adolfo Varnhagen. Correspondência ativa. Rio de Janeiro, INL, 1961. p. 187.
(^19) Op. cit. p. 18.
O caráter que a agremiação francesa deveria desempenhar enquanto instância legitimadora do trabalho daqueles comprometidos com o projeto do Instituto Histórico deve ser também apontado para um melhor entendimento da intensidade das relações estabelecidas entre as duas instituições no período inicial de vida do IHGB. Na verdade, relações que ganham sentido se remetidas ao quadro mais amplo em que a França e o seu papel "civilizador" fornecem os modelos da vida social e do trabalho intelectual. Construir a imagem de um Brasil como frente avançada da civilização francesa Dos trópicos é, sem dúvida, o projeto subjacente ao intenso contato que as duas instituições irão incentivar. Debret, ao falar aos membros do instituto francês sobre sua experiência brasileira, assim se expressava com relação ao império: " La mode, cette magicienne française, a de bonne heure fait irruption au Brésil. L'empire de D. Pedro est devenu un des ses plus brillans domaines: là elle régne en despote, ses caprices sont des lois: dans les villes, toilettes, répas, danse, musique, spetacles, tout est calqué sur l'exemple de Paris, et, sous ce rapport comme sous quelques autres, certains départements de Ia France sont encore bien en arrière des provinces du Brésil." ( ... ) "Tel est au resumé, le peuple qui a parcouru en trois siècles toutes les phases de la civilisation européenne et qui, instruit par nos leçons, nous offrira bientôt peut-être des rivaux dignes de nous, comme l'Américan du Nord lui en ofire dans ce moment à lui-même .” 24
Quando da fundação do IHGB, Januário da Cunha Barbosa explicitaria de forma clara ao Institut Historique de Paris a influência que a instituição parisiense poderia exercer sobre a brasileira. 25 Guardadas as especificidades históricas de cada uma, próprias da natureza da discussão da "questão nacional" em seus respectivos espaços de origem, podemos pensar o Institut Historique de Paris como fornecedor dos parâmetros de trabalho historiográfico ao IHGB, e instância legitimadora, cuja chancela poderia dar um peso relevante e destaque a uma história nacional em construção, como a brasileira. As implicações de natureza política imbricadas neste projeto parecem-nos também claras e não menos significativas; articulada ao projeto de construção da Nação, a escrita da história nacional tem assim os seus destinatários, não apenas no plano interno, como também no externo. E é nessas duas frentes que ela se constrói. Embora não claramente explicitado nos primeiros estatutos do IHGB, o objetivo de escrever uma história do Brasil esteve sempre presente. 0 instituto seria, nas palavras de Januário da Cunha Barbosa, a luz a retirar a história brasileira de seu escuro caos 26 , superando uma época percebida e vivida como necessitada de "Luz e Ordem". O uso desta curiosa metáfora nos discursos do IHGB indica tradições intelectuais muito precisas e aponta no sentido da definição de uma identidade, tarefa para a qual estava
(^24) Journal de L'Institut Historique. Paris 1(3): 171. Out. 1834.
(^25) Carta de Januário da Cunha Barbosa e Eugène de Monglave datada de 10 de janeiro de 1839. Journal
de L'Institut Hístorique. Paris, 10(57): Abr. 1839.
(^26) Ver a este respeito o relatório do primeiro secretário do IHGB, Januário da Cunha Barbosa, por ocasião
das comemorações do segundo aniversário do instituto. In: Revista do IHGB. Rio de janeiro, 2(8): 557-89. Out./Dez. 1840.
reservado um papel central e diretor a instituição. Tratava-se de desvendar o "nosso verdadeiro caráter nacional”^27 , e para este fim o IHGB deveria realizar a sua parte. É preciso lembrar que também os políticos comprometidos com o processo de consolidação da monarquia constitucional e do Estado centralizado partilhavam desta percepção da necessidade de uma "ordem" que se contrapusesse, no caso, ao "caos" das repúblicas vizinhas. Portanto, nada havia de estranho no fato de que aqueles diretamente comprometidos com o projeto do IHGB definissem para a instituição o papel de única e legítima instancia para escrever a história do Brasil e para trazer à luz o verdadeiro caráter da Nação brasileira. Pode-se mesmo pensar no Instituto Histórico como o locus privilegiado, naquele momento, a partir de onde se "fala" sobre o Brasil. Mais interessante é, contudo, a constatação de que esse papel é legitimado no interior da elite letrada imperial, o que contribuirá para uma progressiva difusão e homogeneização do "projeto nacional" no seio deste grupo social. Assim se expressava o jornal Minerva Brasiliense em sua edição de novembro de 1843: "Estranhas umas às outras, falta às nossas províncias a força do laço moral, o nexo da nacionalidade espontânea que poderia prender estreitamente os habitadores desta imensa peça, que a natureza abarcou com os dois maiores rios do universo. A história do país ou depositada em antigos e fastidiosos volumes e geralmente ignorada, ou escrita até certo ponto por mãos menos aptas, por estrangeiros que, como Beauchamp, trataram só de compor um romance, que excitasse a curiosidade de seus leitores na Europa, não pode despertar no espírito de nossa juventude o nobre sentimento de amor de pátria, que torna o cidadão capaz dos maiores sacrifícios, e o eleva acima dos cálculos mesquinhos do interesse individual." (...) "Uma história geral e completa do Brasil resta a compor, e se até aqui nem nos era permitido a esperança de que tão cedo fosse satisfeito este desideratum , hoje assim não acontece, depois da fundação do Instituto Histórico, cujas importantíssimas pesquisas no nosso passado deixam esperar, que esta ilustre corporação se dê à tarefa de escrever a história nacional, resultado final, para que devem convergir todos os seus trabalhos."^28
A história é, assim, o meio indispensável para forjar a nacionalidade Já pela adjetivação presente em seu nome Histórico e Geográfico, fica claro o projeto da instituição de trabalhar com o instrumentário da história e da geografia. Na verdade, cada uma dessas matérias forneceria os dados imprescindíveis para a definição do quadro nacional em vias de esboço; história e geografia enquanto dois momentos de um mesmo processo, ao final do qual o quadro da Nação, na sua integralidade, em seus aspectos físicos e sociais, estaria delineado.
(^27) Op. cit. p. 570.
(^28) Minerva Brasiliense. Rio de Janeiro, 1(2): 51-3. Nov. 1843.
Outra não era aliás a prática de muitos daqueles intelectuais que irão se ocupar do trabalho historiográfico no Brasil, como por exemplo Varnhagen, que não se furtava a prestar consultas e a elaborar pareceres para órgãos do Estado Imperial, na qualidade de historiador. O conhecimento da história adquiriu um sentido garantidor e legitimador para decisões de natureza política, mormente aquelas ligadas às questões de limites e fronteiras, vale dizer, aquelas ligadas à identidade e singularidade física da Nação em construção. O domínio de um saber específico parece neste caso estar intimamente ligado à viabilização de um certo poder em vias de definição. A Revista do IHGB, penetrada da concepção exemplar da história, abre uma rubrica em seu interior dedicada às biografias, capazes de fornecerem exemplos às gerações vindouras, contribuindo desta forma também para a construção da galeria dos heróis nacionais. Mas não é apenas uma visão pragmática e exemplar da história que se abriga no projeto historiográfico do IHGB. A concepção de história partilhada pela instituição guarda um nítido sentido teleológico, conferindo ao historiador, através de seu ofício, um papel central na condução dos rumos deste fim último da história. A este respeito exprimia-se a Revista em seu número de abril a junho de 1847: "Deve o historiador, se não quiser que sobre ele carregue grave e dolorosa responsabilidade, pôr a mira em satisfazer aos fins políticos e moral da história. Com os sucessos do passado ensinara à geração presente em que consiste a sua verdadeira felicidade, chamando-a a um nexo comum, inspirando-lhe o mais nobre patriotismo, o amor às instituições monárquico-constitucionais, o sentimento religioso, e a inclinação aos bons costumes”.^34
A leitura da história enquanto legitimação do presente, carregada, portanto, de sentido político, é sem dúvida um aspecto importante do projeto historiográfico do IHGB. O historiador, na qualidade de esclarecido, deveria indicar o caminho da felicidade e realização aos seus contemporâneos: fiéis súditos da monarquia constitucional e da religião católica. Como foi referido anteriormente este aspecto político do projeto historiográfico pode ser vislumbrado já quando do desenho de um instituto histórico com sede no Rio de janeiro, a partir do qual seriam criadas instituições semelhantes nas províncias, diretamente subordinadas aos princípios formulados na capital do Império, onde deve-ser-ia, em última instância, concentrar a soma de conhecimentos acumulados sobre o Brasil. Esta concepção articula-se na verdade ao projeto mais amplo de centralização política, vitorioso em meados do século XIX. À idéia de transformar o IHGB em centro autorizado para a produção de um discurso sobre o Brasil, articulam-se inúmeras medidas tomadas no interior da instituição, tais como a sugestão feita em reunião realizada em 1842 de transformar sua biblioteca em depósito central obrigatório das obras publicadas no Brasil; o pedido aos presidentes de província do envio de seus relatórios anuais, interferindo assim na esfera de competência do Arquivo Nacional, criado no mesmo ano de 1838; ou ainda o plano de Januário da Cunha Barbosa de transformar o IHGB numa central de dados de natureza estatística, levantados nas
(^34) Revista do IHGB. Rio de Janeiro. 9(6): 286. Abr./Jun. 1847.
diferentes províncias. Concebido de forma ampla, projeto de história nacional deveria dar conta da totalidade, construindo a Nação em sua diversidade e multiplicidade de aspectos. Os primeiros passos concretizados no sentido da elaboração de uma história do Brasil, que viria a ser publicada anos mais tarde por um homem ligado ao IHGB - Francisco Adolfo Varnhagen -, são dados por Januário da Cunha Barbosa em 1840, ao definir um prêmio para o trabalho que melhor elaborasse um plano para se escrever a história do Brasil. 0 texto, premiado em 1847, do alemão von Martius, cientista ocupado das coisas brasileiras, já fora publicado na Revista em 1844^35 e se revestia de um caráter pragmático, corno aliás o próprio título sugere. No artigo, von Martius define as linhas mestras de um projeto historiográfico capaz de garantir uma identidade especificidade à Nação em processo de construção. Esta identidade estaria assegurada, no seu entender, se o historiador fosse capaz de mostrar a missão específica reservada ao Brasil enquanto Nação: realizar a idéia da mescla das três raças, lançando os alicerces para a construção do nosso mito da democracia racial. "Portanto devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham, estabelecidas as condições para o aperfeiçoamento de três raças humanas, que nesse país são coloca das uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na história antiga... "^36
O texto de von Martius propõe uma forma de tratar cada um dos três grupos étnicos formadores, a seu ver, da nacionalidade brasileira, e inicia valorizando os estudos relativos aos indígenas, com a perspectiva de integrar à história nacional os conhecimentos por eles veiculados. Certamente a atuação do elemento branco, através de seu papel civilizador, será particularmente sublinhada, resgatando especialmente a importância dos bandeirantes e das ordens religiosas nesta tarefa desbravadora e civilizatória. Em seu projeto de leitura da história brasileira, von Martius curiosamente vai apontando caminhos e destacando aspectos que posteriormente encontrarão eco nas interpretações, por exemplo, de um Varnhagen. Do seu ponto de vista, o indígena merecia um estudo cuidadoso da história, até mesmo pela possibilidade de tais investigações contribuírem para a produção de mitos da nacionalidade - neste ponto o autor toma o exemplo dos mitos sobre os cavaleiros medievais no espaço europeu. O branco, a seu ver, deveria ser alvo de igual interesse por seu sentido claramente civilizador. o negro obtém pouca atenção de von Martius, reflexo de uma tendência que se solidificaria neste modelo de produção da história nacional: a visão do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civilização. É, contudo, ao final do artigo que a proposta de von Martius de leitura da história se explicita em seu caráter político. A premiação outorgada ao trabalho expressa a concordância do IHGB com este projeto, que estará também presente no sentido dado por Varnhagen à sua obra histórica. Ou seja: a idéia da história nacional como forma de unir, de transmitir um conjunto único e articulado de interpretações do
(^35) MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a História do Brasil. In: Revista do
IHGB. Rio de janeiro, 6(24): 381-403. Jan. 1845.
(^36) Op. cit. p. 384.
Respaldados nos princípios da moderna historiografia, segundo os quais as fontes primárias desempenhariam para o trabalho do historiador um papel central, os integrantes do IHGB discutem os meios de localização de fontes imprescindíveis à história do Brasil. Desde a sugestão inicial veiculada no interior da instituição, ainda em 1839, a respeito da importância da coleta de fontes em Portugal Espanha, tarefa para a qual, segundo Varnhagen, era necessária a intervenção do governo que, "devendo alimentar o espírito de nacionalidade, de ter presente que são a primeira base talvez desta, a história e o conhecimento do país natal"^39 , a preocupação com o trabalho de localização de fontes no Brasil e no exterior acompanhará o percurso do IHGB. Em 1841 é publicado na Revista o artigo de Rodrigo de Souza da Silva Pontes 40 contendo as linhas mestras que deveriam orientar o trabalho da instituição na localização de fontes. Interessante notar a representatividade da documentação passível de ser utilizada por uma história diplomática, assim como o engajamento desses especialistas na tarefa de escrita da história nacional, características compreensíveis tendo-se em vista o momento de tentativa de uma definição nacional específica para o Brasil, capaz de apresentá-lo enquanto Nação singular no conjunto de Nações em definição. Será fundamentalmente através de premiações e concursos que o IHGB e o próprio imperador, pela via do instituto, incentivarão uma produção de natureza historiográfica, entendida, bem verdade, num sentido ampliado do que seja o trabalho historiográfico. Domingos José Gonçalves de Magalhães, expoente do romantismo literário, futuro visconde de Araguaia, viria a ser premiado pelo trabalho sobre a Balaiada, resultado de observações por ele realizadas quando de sua viagem à província do Maranhão na qualidade de secretário de Governo do presidente nomeado para a província, Luiz Alves de Lima. A idéia de escrever um trabalho acerca do movimento contra o Estado Imperial justificava-se, segundo seu autor, pelo sentido de "ensinamento" de que pode se revestir uma dada experiência histórica, repetindo assim o princípio tão caro ao IHGB e à sua historiografia da "história como mestra da vida". 41 Trabalhos voltados para a problemática indígena - aliás um tema particularmente tratado nas páginas da revista do IHGB - obterão também premiação^42 , numa clara demonstração de que a reflexão sobre a "questão indígena" era parte substancial da discussão mais ampla relativa à questão nacional. Novamente uma perspectiva pragmática do trabalho intelectual expressa-se nas colaborações premiadas;
(^39) Carta de Francisco Adolfo Varnhagen a Januário da Cunha Barbosa datada de 5 de outubro de 1839.
In: Revista do IHGB. Rio de janeiro, 1(4): 376. Out./ Dez. 1839.
(^40) PONTES, Rodrigo de Souza da Silva. Quais os meios de que se deve lançar mão para obter o maior
número possível de documentos relativos à história e geografia do Brasil? In: Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 3(10): 149-57. Jul./Set. 1841.
(^41) Ver o artigo premiado de Domingos José Gonçalves de Magalhães. In: Revista do IHGB. Rio de
Janeiro, 10(11): 263-354. Jul./Set. 1848.
(^42) Ver particularmente os trabalhos de: OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. Notícia raciocinada sobre
as aldeias de índios da província de São Paulo, desde o seu começo até à atualidade. In: Revista do IHGB. Rio de janeiro, 8(2): 204-50. Abr./Jun. 1846; SILVA, Joaquim Norberto de Souza e. Memória histórica e documentada das aldeias de índios da província do Rio de janeiro. In: Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 17(14-5): 109-552. Abr./Set. 1854.
o prêmio geográfico é concedido pela primeira vez a Conrado Jacob Niemeyer por sua carta geográfica do Império, retrato físico a Nação em construção. Coerente com o objetivo a que se propôs, de esboçar o quadro na Nação, o IHGB incentivará ainda viagens e excursões pelo interior do Brasil, na expectativa de que venha a ser coletado material que subsidie a escrita da história nacional - particularmente material referente aos diversos grupos indígenas - e que possibilite o avanço no caminho da identificação do Brasil. Segundo justificava o próprio Januário da Cunha Barbosa, ainda que material relevante não fosse apurado, mesmo assim "a descoberta de terrenos, que podem ser vantajosos ao Estado, compensará de certo os esforços que se fizerem com este fito".^43 Quando não a ciência e o saber possam delas retirar proveito que pelo menos o Estado delas usufrua vantagens. Na verdade, uma argumentação recorrente para sublinhar a importância de tais empreendimentos e justificar os financiamentos a serem requeridos pelo IHGB ao Estado, como no caso da expedição organizada pelo cônego baiano Benigno José de Carvalho e Cunha. Em petição dirigida ao imperador e datada de 7 de novembro de 1841^44 , empenha-se o IHGB pelo projeto do religioso baiano, ressaltando os aspectos culturais do empreendimento, sem descuidar contudo daqueles de natureza prática: economicamente, a viabilidade de integração de novas terras para o cultivo agrícola e a descoberta de eventuais riquezas minerais; politicamente, um tal projeto poderia contribuir para que o documento caracterizava como "interiorização da civilização"^45 e reconhecimento das fronteiras ocidentais do Império como forma de melhor protegê-las. Sem esquecer, conforme argumentação da petição, o fato de que o apoio a uma tal empresa reforçaria para gerações futuras a imagem de um monarca amigo "das ciências e letras". Vários são os exemplos de empreendimentos de natureza semelhante, tanto nacionais quanto estrangeiros, que recebem o apoio do Instituto Histórico e seu empenho junto ao Estado. Na verdade, a diversidade de interesses possíveis de serem atendidos por expedições científicas desta natureza, poderiam explicar por que num momento específico de construção de um projeto nacional, tais viagens obtiveram apoio de uma instituição cultural como o IHGB e, em última análise, do próprio Estado, que termina por financiá-las 46.
(^43) Revista do IHGB. Rio de janeiro, 3(12): 528. Out./Dez. 1841.
(^44) Petição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro à sua majestade imperial de 7 de novembro de
(^45) Tomando-se o conceito de "processo de civilização" trabalhado por Norbert Elias, pode-se também
pensar essa interiorização proposta em seus aspectos políticos de extensão do poder público do Estado e de sua centralização. Ver o importante trabalho de ELIAS, Norbert. " Uber den Prozeb der zivilisation ." Sziogenetische und psychogenetische Untersuchungen. Frankfurt/M., Suhrkamp, 1976 (2. v.).
(^46) Ver Relatório anual do Instituto para o ano de 1843, no qual são assinalados vários viajantes
estrangeiros recebidos pelo IHGB. Revista do IHGB. Rio de janeiro, 5(Suplemento): 7-10. Dez. 1843. Pode-se citar também o exemplo de Gonçalves Dias, membro do IHGB, e que em 1851 viaja pelas províncias do Norte com a tarefa de coletar documentação histórica e elaborar relatório sobre a educação naquela região brasileira. O relato com os resultados da viagem são entregues ao IHGB. Ver também o empenho do instituto pela organização da Comissão Científica de 1856, que deveria produzir um retrato detalhado do Brasil.
as referências à escravidão negra, comparando-se os resultados advindos da utilização desses dois tipos de mão-de-obra. Podemos vislumbrar alguns caminhos para explicar como esta temática encontrou especial ressonância, não só no interior da Revista, como nos meios letrados brasileiros daquela quadra histórica, na teia de relações políticas, econômicas e sociais em que tais discussões sobre a questão indígena estavam sendo produzidas. Para os círculos intelectuais, ocupar-se deste tema ganhava sentido exatamente no momento em que a tarefa de construção da Nação colocava-se como prioritária, envolvendo o processo de integração física do território e a discussão relativa às origens da Nação. Significava pensar o lugar as populações indígenas no projeto em construção, definindo um saber sobre estes grupos, para ser tornado memória, a fixar e transmitir. Os estudos sobre as experiências jesuíticas no trabalho com os indígenas ganharão prioridade na Revista com o objetivo de valer-se dessa experiência histórica para a alimentação de um "processo de civilização" capaz de englobar também as referidas populações. As reflexões contidas no já citado trabalho de von Martius^49 relativo à forma de tratar a questão indígena, assim como em um artigo de Varnhagen^50 , que viria a se posicionar radicalmente contra o projeto do romantismo literário de transformar o indígena em representante da nacionalidade brasileira, lançam as bases metodológicas que encaminharam a discussão deste tópico. A perspectiva predominante, apontando na direção de um possível projeto de política indigenista para o Estado, aparece já no segundo número da Revista em um artigo de Januário da Cunha Barbosa discorrendo sobre o melhor sistema de “colonizar os índios". 51 Em sua opinião, a catequese seria a forma mais adequada de encaminhar este processo, apoiando-se em três pressupostos básicos: em primeiro lugar, na criação, entre as populações indígenas, de necessidades cuja satisfação exigiria um contato permanente com os brancos; em segundo lugar, na educação dos filhos dessas populações segundo os princípios da educação branca; e, finalmente, no incentivo à miscigenação como forma de branqueamento desses grupos indígenas. O que se pode perceber no tocante à formulação das bases de uma política indigenista é a recuperação, por parte dos intelectuais empenhados neste projeto de construção da Nação brasileira, de uma tradição ensaiada anteriormente pela Coroa portuguesa com relação a esta problemática. A publicação de um artigo de Domingos Alves Branco Moniz Barreto sobre o tema deixa entrever tal objetivo.^52 A questão fundamental colocada no texto dizia respeito à relação entre Estado e ordens religiosas na tarefa de “integração" das populações indígenas, lembrando-se os riscos da autonomia jesuítica - novamente a experiência histórica fornecendo exemplos e lições -
(^49) Op. cit. nota 35.
(^50) VARNHAGEN, Francisco Adolfo Memória acerca da importância do estudo e ensino das línguas
indígenas do Br In. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 3(9): 53-61. Jan./Mar. 1841.
(^51) BARBOSA, Januário da Cunha. Qual seria o melhor sistema de colonizar os índios entranhados em
nossos sertões conviria seguir o sistema dos jesuítas fundado principalmente na propagação cristianismo, ou se outro do qual se esperam melhores resultados do que os atuais? In: Revista do IHGB. Rio de Janeiro 2(1). 3-18. Mar. 1840.
(^52) BARRETO, Domingos Alves Branco Moniz. Plano sobre a civilização índios do Brasil. In: Revista do
IHGB. Rio de Janeiro, 19(21). 33-91. Jan./M 1856.
para justificar uma maior participação do Estado neste empreendimento. É de se compreender que, num momento de estruturação do Estado Nacional, formas de poder que pudessem se chocar com este projeto fossem analisadas criticamente, em particular por aqueles tão diretamente envolvidos em seu processo de legitimação. Aspectos de natureza político-estratégica devem ser também considerados para a melhor compreensão dos elementos que podem explicar o tratamento intensivo da questão indígena por parte da historiografia nacional em elaboração. Para a jovem monarquia, que constrói sua identidade a partir da oposição às formas republicanas de governo, assegurar o controle sobre as populações indígenas fronteiriças significava garantir o poder do Estado Nacional sobre este espaço. A produção de um discurso sobre a questão indígena articula-se também a um quadro de referência no qual a problemática econômica tem de ser levada em conta. Fundamentalmente a partir da década de 40 do século XIX, os aspectos de natureza econômica relativos ao problema da mão-de-obra dão um especial reforço ao debate da questão indígena, debate este articulado à discussão da escravidão negra nos seus variados aspectos: a força de trabalho escrava e a grande propriedade e a questão negra frente ao projeto de construção nacional. Num momento em que a abolição do tráfico escravo coloca-se como inadiável, a Revista do Instituto Histórico oferece um forum privilegiado para os debates e discussões, visando à busca de alternativas para a questão do trabalho no Brasil frente ao projeto de construção nacional então em curso. Neste sentido, é exemplar o artigo publicado por Januárío da Cunha Barbosa no primeiro número da Revista^53 enfocando a relação entre escravidão negra e civilização do país. Sua argumentação - aliás, uma posição cada vez mais presente no interior da instituição - aponta no sentido de imputar à escravidão negra a responsabilidade pelo atraso do país na corrida da civilização, procurando ao mesmo tempo resgatar a figura do indígena como possível solução para a questão da mão-de-obra no país - sensibilização lenta de uma certa opinião pública para a problemática da escravidão negra e dos seus "riscos" para o projeto nacional. Januário da Cunha Barbosa enfatiza a importância da temática indígena, desvendando suas relações com a questão da escravidão negra: "Lembramos este fato para provarmos que eles não são tão avessos ao trabalho, como os pretendem pintar os patronos da escravidão africana, e para que se veja que se forem removidas certas causas de seu horror e desconfiança, se forem bem-tratados cumprindo-se fielmente as convenções, que com eles fizerem, se forem docemente chamados a um comércio vantajoso e a uma comunicação civilizadora, teremos, senão nos que hoje existem habituados à sua vida nômade, ao menos em seus filhos e em seus netos, uma classe trabalhadora, que nos dispense a dos Africanos". 54
(^53) BARBOSA, Januário da Cunha. Se a introdução do trabalho africano em raça a civilização dos nossos
indígenas In: Revista do IHGB. Rio de Janeiro (3): 159-66. Jun./Set. 1939.
(^54) Op. cit. p. 165.