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Este texto é uma resenha do livro 'te interpretation of cultures' de clifford geertz, publicado em 2007 no cadernos de campo. O artigo homenageia geertz, que marcou a antropologia norte-americana e provavelmente a antropologia mundial na segunda metade do século xx. O autor discute a carreira acadêmica de geertz, sua falta de experiência didática, estilo literário e sua resistência às limitações disciplinares. Além disso, o texto aborda a influência de geertz na antropologia e suas obras clássicas, como 'local knowledge, works and lives'.
Tipologia: Notas de estudo
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Em 2008, por ocasião dos 35 anos do lan- çamento do livro The interpretation of cultures (apelidado de TIC em inglês) e trinta anos do lançamento no Brasil da versão em português (com nove dos quinze capítulos originais), fui convidada pelos editores da Cadernos de Cam- po a escrever uma resenha. Entretanto, a morte recente do autor havia fatalmente de mudar a postura da resenhista. Entendi então que a re- senha seria também um momento para home- nagear Clifford Geertz, aquele grande homem que tanto marcou a antropologia norte-ameri- cana (e, provavelmente, a antropologia mun- dial^1 ) da segunda metade do século XX. Ao rever algumas matérias entre o imenso vo- lume de textos escritos por e sobre esse pensador, duas coisas chamaram minha atenção. Em pri- meiro lugar, me dei conta de que Geertz – esse gigante intelectual que se tornaria o pai espiritual de uma geração de novos antropólogos – não era professor. Diferentemente dos autores clássicos que o precederam (Boas e Malinowski se desta- cam entre os grandes mestres que, pessoalmente, formaram dezenas de discípulos), Geertz passou pouco tempo de sua vida dando aulas ou orien- tando estudantes. Durante seus dez anos na Uni- versidade de Chicago, em cuja reformulação do currículo seu papel foi fundamental, Geertz foi
liberado da maior parte das obrigações de ensino e formou poucos doutores^2. Essa falta de experiência didática torna-se re- levante quando olhamos para o estilo dos textos de Geertz, um estilo cheio de insinuações e pis- cadelas, que, como lembra Peirano (1990), não é para neófitos. Nesse sentido, quem procura no famoso capítulo metodológico “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura” um substituto para a “Introdução” aos Argonautas do Pacífico Ocidental muito provavelmente terá suas expectativas frustradas. Elizabeth Colson ex- pressa essa idéia de outra forma em uma resenha de 1975 sobre A interpretação das culturas :
A antropologia [de Geertz] é uma arte, não uma ci- ência. Portanto, em geral, seu trabalho não fornece um modelo a ser seguido por outros antropólogos ou sociólogos de menor talento, já que ele trabalha a partir de uma apreensão intuitiva daquilo que é importante e chega à sua conclusão com tamanha fanfarra que esconde o tédio dos procedimentos. (Colson apud Swidler, 1996, p. 299)^3
Uma segunda impressão, reforçada por cada nova leitura, é que Geertz não tinha uma identi- dade disciplinar rotineira. É notável como ele in- sistiu na heterogeneidade de conhecimentos de sua formação. Queria, desde o início, ser escritor
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profissional. Depois de estudar letras e filosofia na graduação, ele foi para Harvard onde faz um doutorado em antropologia. Diz ter escolhido essa disciplina por causa da promessa de liber- dade “para fazer qualquer coisa e chamá-la an- tropologia” (Handler, 1991, p. 603). O que ele mais sublinhou dos seus dias em Cambridge é seu envolvimento no Departamento de Relações Sociais com o “Projeto” multidisciplinar (junto com Parsons, Allport, Bruner, Inkeles, Moore e outros) de construir uma língua comum para as ciências sociais. Saindo de Harvard, passou um ano no Center for Advanced Studies in the Behavior Sciences (Stanford University) e ou- tro dando aulas em Berkeley (sede de Kroeber), antes de se mudar para Chicago, onde seu foco principal, mais uma vez interdisciplinar, seria o Committee for the Comparative Studies of New Nations. É interessante que, em uma das únicas cita- ções em que reconhece sua filiação a um mentor antropólogo, Geertz o faz para sublinhar a resis- tência de seu professor às limitações disciplinares:
[...] Nunca estive plenamente feliz quando [me encontrava] totalmente circunscrito à “profis- são” de antropologia, que, tal como meu pro- fessor, Clyde Kluckhohn, eu considero, antes de tudo, como uma licença para invadir terrenos alheios. (1988, p. 14)
De fato, tem-se a impressão de que só nos primeiros anos depois de se doutorar Geertz se comportou de forma mais ou menos esperada, desenvolvendo monografias sobre os novos Es- tados nacionais, alvo das atenções acadêmicas de então. Depois de sua chegada ao Institute for Advanced Study em Princeton (onde, na época, não havia nenhum estudante, nem ou- tros antropólogos), ele se mostrou pronto para assumir seu “caso” com as demais humanida- des. Cansado de ser lido só pelos “especialistas” (lê-se antropólogos? cientistas sociais?), ele re-
solveu juntar determinados artigos para esclare- cer sua orientação intelectual e, com isso, atrair uma platéia acadêmica mais ampla (Geertz, 1988). Em 1973, é publicado The interpre- tation of cultures , que lhe permitiu consolidar suas conquistas justamente entre historiadores, filósofos e estudantes de crítica literária. Os próximos livros, especialmente Local knowledge, Works and lives , aproximariam Ge- ertz – e a antropologia que ele construía – cada vez mais dessa interlocução com as humanida- des. Sua popularidade entre antropólogos nor- te-americanos parece ter sido alimentada, entre outros fatores, pela enorme admiração de que gozava entre intelectuais de outras áreas. E, para estes, Geertz se tornou, apesar de seus constan- tes protestos quanto à falta de ortodoxia de sua formação, o antropólogo paradigmático. Geertz, é claro, era antropólogo, em primeiro lugar, por causa de sua preocupação, mais clara no início do que no fim da carreira, com o escla- recimento do conceito de cultura. Essa fatia das ciências sociais tinha sido conferida à antropolo- gia por Parsons, e durante décadas seria sinônimo do ramo predominante da antropologia norte- americana. Tendo trabalhado como assistente de pesquisa para a confecção do livro Culture (1952) por Kroeber e Kluckhohn, Geertz não poderia ter deixado de participar, nos seus pró- prios termos, desse debate. E, como sabemos, foi sua versão, essa “redução do conceito de cultura a uma dimensão justa” que acabou vingando. Evidentemente, a intenção de Geertz não era simplesmente introduzir uma maior precisão, mas sim modificar de cabo a rabo o empreen- dimento antropológico. Por um lado, criticava a amplidão dos tradicionais departamentos (“os quatro campos”) da antropologia norte-ameri- cana; por outro, lamentava a estreiteza de seus contemporâneos que só queriam ler antropo- logia (Handler, 1991). Para elaborar os por- menores da análise cultural, Geertz recorria e conclamava seus colegas de disciplina a se abrir
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explicitado no texto de Geertz qualquer tribu- to a um elo possível, por exemplo, por meio de Kroeber, muito citado por Evans-Pritchard nessa fase, ou Kluckhohn. Mas, ao construir uma leitura, preencher as lacunas desse texto “estranho, desbotado, cheio de elipses, incoe- rências, emendas suspeitas e comentários ten- denciosos” (Geertz, 1989, p. 20) que é a obra de Geertz, não é difícil discernir sua genealo- gia e herança intelectual antropológica. Geertz era antropólogo, antes de tudo, por- que fazia e, mesmo depois de largar “o campo”, continuava a enfatizar a etnografia. Tendo fica- do mais de dez anos em campo, ele passaria os trinta anos seguintes “tentando comunicar os encantos [do campo]” para a linguagem escrita (2001, p. 26). Anos de trabalho em Java, Bali e Marrocos – precedidos das devidas aulas em in- donésio e árabe – foram traduzidos para textos que convenceram jovens da antropologia que “estar lá” valia largamente a pena. De que outra forma teríamos acesso à “ação simbólica”, tão central à proposta de Geertz? Sua rejeição de perspectivas tanto cognitivistas ( privacy^7 theories of meaning ) quanto estruturalistas (que produ- ziam “representações impecáveis de ordem for- mal em cuja existência verdadeira praticamente ninguém pode acreditar” (Geertz, 1989, p. 28) colocava novamente em relevo o verdadeiro objeto da análise cultural: “a lógica informal da vida real” ( idem , p. 27), the ongoing pattern of life^8. O método etnográfico, com sua ênfase na observação do fluxo de comportamento – “ação social”, Geertz nos lembra – era o método por excelência para acessar essa lógica. Ao abraçar a causa da etnografia, Geertz for- necia uma defesa também do método qualitati- vo. A verdadeira contribuição do antropólogo à teoria social viria da especificidade complexa,
da circunstancialidade de seus dados – material produzido por
[...] um trabalho de campo quase obsessivo de peneiramento, a longo prazo, principalmente (embora não exclusivamente) qualitativo, al- tamente participante e realizado em contextos confinados. (Geertz, 1989, p. 33)
Por esse viés, o pesquisador traria uma reali- dade concreta aos mega-conceitos, permitindo seu uso em um sentido caro ao espírito de Ge- ertz: criativa e imaginativamente. Notamos que esse elogio ao particular seria agarrado, além de antropólogos, por estudantes de outras áreas, em particular, a história social, para defender um novo estilo que aflorava nos anos 1980. Aqui, as generalidades que interessam são as que surgem da delicadeza das distinções, não da amplidão das abstrações ( idem , p.35). A proposta para uma “nova” antropologia esboçada no TIC não era somente interessante, era, nos termos daquela época, relevante. Na década de 1960, os Estados Unidos estavam em plena guerra com o Vietnã. Nesse clima, estudar os nativos do outro lado do mundo para compilar a grande enciclopédia da ciên- cia positivista parecia altamente suspeito. Ao centrar-se na dimensão semiótica da cultura, Geertz trazia uma nova justificativa ao em- preendimento acadêmico: queremos entender o ponto de vista do nativo não simplesmente para falar “de”, nem sequer “pelo” nativo mas para falar “com” ele. O elemento auto-reflexivo que ocuparia tanto espaço nos escritos poste- riores de Geertz ainda não se destacava no TIC, mas sua maneira de descrever o conflito social em termos de uma “confusão de línguas” intro- duzia o observador ocidental como “um inter- locutor entre outros” no diálogo. E, em ensaios posteriores, como “Anti anti-relativismo” e “Os usos da diversidade”, o intuito político dessa postura tornou-se cada vez mais claro.
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Contudo, as críticas ao trabalho de Geertz, como dizem vários resenhistas, são muitas. O antropólogo britânico Adam Kuper (1999), mos- trando impaciência com os excessos do viés nor- te-americano, argúi de forma convincente que a análise cultural de Geertz não daria conta da com- plexidade de eventos políticos da época. A ênfase em saberes locais não abriria espaço para a relevân- cia de fatores nacionais (hiperinflação) e interna- cionais (tensões militares nas fronteiras, pressões da CIA contra movimentos “comunistas” etc.). As críticas tecidas por Ortner (1995, p. 377) à “escola de Chicago” de antropologia simbóli- ca, apesar de serem “fogo amigo”, não são menos provocadoras. Para Ortner, essa antropologia padeceria de uma falta de sociologia sistemática, de uma noção tênue das dimensões políticas da cultura, e de uma falta de curiosidade no que diz respeito à produção e manutenção de sistemas simbólicos. São falhas que, ironicamente, pare- cem se acentuar na obra de Geertz à medida que ele avançou no seu projeto particular. Se atentar- mos para os capítulos mais antigos do TIC – dos quais muitos ficaram fora da edição em portu- guês – encontraremos análises que insistem na importância de “tratar processos culturais e so- ciológicos em pé de igualdade” (Geertz,1973, p. 143), na relevância de elementos extra-locais na formação dos novos Estados nacionais, numa atenção maior a questões de “mudança social”, e na contextualização histórica mais sistemá- tica dos diversos estudos de caso apresentados em Java e Bali. Por que foram descartados jus- tamente esses capítulos? Por um lado, Geertz sem dúvida estava pronto para virar a página, deixando para trás a fase de sua carreira em que, como membro junior de uma equipe, reprodu- zia uma linha de análise formulada por outros, em particular, Parsons. Por outro, foi sua “virada interpretativa” (em “Uma descrição densa” e em “Um jogo absorvente: notas sobre a briga de ga- los balinesa”, este publicado e republicado em incontáveis coletâneas) que mais parecia excitar
seus contemporâneos. Era devido à sua proposta metodológica hermenêutica-interpretativa que Geertz era visto – e se via – como mais original. Chego agora, depois desse esforço de fazer uma resenha distanciada de uma obra monu- mental, à confissão: adoro Geertz. Numa rela- ção “Nunca te vi, sempre te amei”, ainda fico arrepiada quando leio alguns trechos de seus artigos. Quanto mais hermético, mais seu tex- to me atrai. A primeira leitura de “Anti anti- relativismo”, por exemplo, é semelhante ao ato de resolver um sudoku: muito trabalho, mas ao chegar ao fim, conseguindo dar algum sentido àquilo, sentimos uma satisfação que vicia. Com seu estilo sardônico, Geertz cria um persona- gem – ele mesmo – que se torna amigo pessoal do leitor (pelo menos, desta leitora). Por outro lado, esse tom de como estivesse fofocando co- nosco numa mesa de bar também ajuda na “re- dução” desse autor “a uma justa dimensão”. Ele exagera, joga verde para colher maduro e, antes de tudo, tem prazer em provocar. É uma atitude coerente com seu recado de que o material et- nográfico é “essencialmente contestável”:
A antropologia, ou pelo menos a antropologia interpretativa, é uma ciência cujo progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que por um refinamento de debate. O que [melhora] é a precisão com que nos irritamos uns aos outros. (Geertz, 1989, p. 39).
Tal como em Works and lives , onde apren- demos a ver nossos antepassados como pessoas de carne e osso, sujeitos simpáticos mas falhos, aprendemos com as descrições e auto-descrições de Geertz a reconhecer o gênio desse antropó- logo e de outros, não como última palavra, mas como uma voz importante num campo rico e heterogêneo de idéias. Dessa forma, avança- mos, tal como ele nos ensinou, menos nos om- bros dos grandes pensadores do que correndo lado a lado: desafiados e desafiando.