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Análise Crítica do Discurso: Gaslighting e Manipulação Social, Esquemas de Literatura

Este documento aborda o conceito de gaslighting, uma forma de manipulação psicológica onde a sanidade mental de uma pessoa é questionada. O texto utiliza a perspectiva de van dijk para analisar como discurso e conhecimento se relacionam e podem ser usados para manipular e marginalizar grupos sociais. O documento também discute os tipos de estratégias de manipulação e os papéis dos indivíduos que produzem esses discursos, além de sua relação com a hegemonia masculina. O texto é baseado em entrevistas e fragmentos de discursos.

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Osvaldo_86 🇧🇷

4.5

(163)

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Gaslighting: A Arte de Enlouquecer Grupos Minoritários no Ambiente de Trabalho
Resumo: Gaslighting tem sido objeto de estudo na Psicanálise, Antropologia e Sociologia; e
apenas recentemente este fenômeno tem ocupado espaço nos estudos organizacionais; todavia,
persevera a lacuna de como este comportamento se manifesta nas organizações, bem como sua
influência nos indivíduos envolvidos. Neste sentido, esta pesquisa tem como objetivo
compreender em que medida ocorrem ações de gaslighting, nas organizações, com grupos
socialmente marginalizados. Para isso, elaboramos uma pesquisa empírica, na qual visitamos
37 empresas de diferentes portes, no Rio de Janeiro e São Paulo e entrevistamos 82
trabalhadores de diferentes traços psicográficos. Estas entrevistas e nossas anotações de campo,
foram submetidas à análise crítica de discurso. Identificamos duas categorias a priori,
(“gaslighting racial” e gaslighting misógino”), duas emergentes (“gaslighting LGBTQIA+-
fóbico” e gaslighting instrumental”) e construímos a axial, denominada gaslighting
pecuniário”. O campo revelou que gaslighting ocorre em todos os tipos de empresas e é uma
estratégia de manipulação exercida por homens brancos heterossexuais não só sobre grupos
minoritários como mulheres, não-brancos e LGBTQIA+, mas contra seus pares. Este estudo
traz como implicações gerenciais e à teoria, a discussão e reflexão sobre como práticas
discriminatórias têm sido naturalizadas e marginalizadas, não só no campo de estudos, mas na
cultura organizacional.
Palavras-chave: Gaslighting; Misoginia; Racismo; LGBTQIA; Manipulação
Escrito com base na peça de Patrick Hamilton, Gaslight (À Meia Luz, em português)
é um filme de 1944, cuja protagonista é Paula (Ingrid Bergman), vítima de jogos psicológicos
e manipulação por parte de seu marido Gregory (Charles Boyer).
Paula é sobrinha e única herdeira de uma famosa cantora de ópera (Alice), que tem a
casa invadida, e é assassinada sem que suas valiosas joias sejam levadas. Depois do assassinato
da tia, Paula, que morava em Londres, se muda para Itália, onde conhece e se casa com Gregory
(Charles Boyer), que insiste que o casal retorne e volte a residir na casa de Alice. Paula hesita,
pois não tem mais amigos na cidade; todavia aquiesce.
Alegando a intenção de aplacar a ansiedade da esposa, Gregory sugere que guardem
todos os móveis de Alice no sótão. Neste processo, Paula encontra uma carta, escrita pelo
desconhecido Sergis Bauer, endereçada a sua tia.
Durante um evento social, Greg mostra a Paula a corrente do seu relógio, que
desaparecera misteriosamente e que ele, logo a seguir, encontra na bolsa da esposa. A reação
de Paula é uma crise histérica, na frente de todos os convidados. Gregory retira Paula do local
e, garante que vai protegê-la. Assim, gradualmente, Gregory isola sua esposa do mundo
exterior, asseverando que ela é paranoica e que tudo o que faz é para o bem dela, porque seus
nervos estão à flor da pele e está imaginando coisas. Paula começa a acreditar que está
imaginando coisas, que tem um comportamento disfuncional, que não deve sair em público e
nem confiar em ninguém e, paralelamente, o marido revela-se ciumento e acusador sempre que
alguém expressa interesse pela esposa.
Gregory, que na verdade é Sergis Bauer, o assassino da tia de Paula, determinado a
obter a posse das joias e confiante de que as mesmas estão escondidas no sótão da casa, inventa
viagens de negócios para, secretamente, usando as escadas dos fundos, ir lá procurá-las.
Como toda a casa é iluminada por lâmpadas a gás, cada vez que Greg ilumina o sótão,
a iluminação do resto da casa fica mais fraca, o que impressiona Paula, que também tem certeza
que ouve passos no cômodo superior.
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Gaslighting : A Arte de Enlouquecer Grupos Minoritários no Ambiente de Trabalho Resumo: Gaslighting tem sido objeto de estudo na Psicanálise, Antropologia e Sociologia; e apenas recentemente este fenômeno tem ocupado espaço nos estudos organizacionais; todavia, persevera a lacuna de como este comportamento se manifesta nas organizações, bem como sua influência nos indivíduos envolvidos. Neste sentido, esta pesquisa tem como objetivo compreender em que medida ocorrem ações de gaslighting , nas organizações, com grupos socialmente marginalizados. Para isso, elaboramos uma pesquisa empírica, na qual visitamos 37 empresas de diferentes portes, no Rio de Janeiro e São Paulo e entrevistamos 82 trabalhadores de diferentes traços psicográficos. Estas entrevistas e nossas anotações de campo, foram submetidas à análise crítica de discurso. Identificamos duas categorias a priori , (“ gaslighting racial” e “ gaslighting misógino”), duas emergentes (“ gaslighting LGBTQIA+- fóbico” e “ gaslighting instrumental”) e construímos a axial, denominada “ gaslighting pecuniário”. O campo revelou que gaslighting ocorre em todos os tipos de empresas e é uma estratégia de manipulação exercida por homens brancos heterossexuais não só sobre grupos minoritários como mulheres, não-brancos e LGBTQIA+, mas contra seus pares. Este estudo traz como implicações gerenciais e à teoria, a discussão e reflexão sobre como práticas discriminatórias têm sido naturalizadas e marginalizadas, não só no campo de estudos, mas na cultura organizacional. Palavras-chave: Gaslighting ; Misoginia; Racismo; LGBTQIA; Manipulação Escrito com base na peça de Patrick Hamilton , Gaslight (À Meia Luz, em português) é um filme de 1944, cuja protagonista é Paula (Ingrid Bergman), vítima de jogos psicológicos e manipulação por parte de seu marido Gregory (Charles Boyer). Paula é sobrinha e única herdeira de uma famosa cantora de ópera (Alice), que tem a casa invadida, e é assassinada sem que suas valiosas joias sejam levadas. Depois do assassinato da tia, Paula, que morava em Londres, se muda para Itália, onde conhece e se casa com Gregory (Charles Boyer), que insiste que o casal retorne e volte a residir na casa de Alice. Paula hesita, pois não tem mais amigos na cidade; todavia aquiesce. Alegando a intenção de aplacar a ansiedade da esposa, Gregory sugere que guardem todos os móveis de Alice no sótão. Neste processo, Paula encontra uma carta, escrita pelo desconhecido Sergis Bauer, endereçada a sua tia. Durante um evento social, Greg mostra a Paula a corrente do seu relógio, que desaparecera misteriosamente e que ele, logo a seguir, encontra na bolsa da esposa. A reação de Paula é uma crise histérica, na frente de todos os convidados. Gregory retira Paula do local e, garante que vai protegê-la. Assim, gradualmente, Gregory isola sua esposa do mundo exterior, asseverando que ela é paranoica e que tudo o que faz é para o bem dela, porque seus nervos estão à flor da pele e está imaginando coisas. Paula começa a acreditar que está imaginando coisas, que tem um comportamento disfuncional, que não deve sair em público e nem confiar em ninguém e, paralelamente, o marido revela-se ciumento e acusador sempre que alguém expressa interesse pela esposa. Gregory, que na verdade é Sergis Bauer, o assassino da tia de Paula, determinado a obter a posse das joias e confiante de que as mesmas estão escondidas no sótão da casa, inventa viagens de negócios para, secretamente, usando as escadas dos fundos, ir lá procurá-las. Como toda a casa é iluminada por lâmpadas a gás, cada vez que Greg ilumina o sótão, a iluminação do resto da casa fica mais fraca, o que impressiona Paula, que também tem certeza que ouve passos no cômodo superior.

Gregory não apenas assegura que ela está imaginando coisas, mas como, desde que retornaram a Londres, sugere que a esposa está muito cansada e que sua memória não está funcionando bem. Assim, sutilmente, ele arranja as coisas para que pareça para Paula e para todas as outras pessoas ao seu redor, que ela é cleptomaníaca, bem como tem escondido objetos e movido móveis e quadros pela casa. Obviamente, quando o marido confronta Paula sobre estes fatos e eventos, ela não tem nenhuma lembrança de tê-las feito, o que apenas confirma a "suspeita" de Gregory de que a esposa está delirando e com problemas mentais. Paulatinamente, a confiança de Paula em seu próprio juízo, capacidade de julgamento e faculdades mentais se deteriora dramaticamente. O objetivo de Gregory é convencer Paula que está enlouquecendo, para que saia do caminho e ele possa se apossar da casa a fim de localizar as joias. A "iluminação a gás" ( gaslighting ) a qual o título do filme se refere é a tentativa de Gregory de convencer Paula a não confiar em seu próprio julgamento e faculdades; isto é, no limite, não confiar em si mesma. Valendo-se deste filme como uma metáfora, em que medida a mesma estratégia de gaslighting não é utilizada nas organizações para se desqualificar as denúncias e pleitos de grupos minoritários, como indivíduos LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Transgêneros, Queers , Questionando, Intersex , Assexual, Pansexual) mulheres e negros? Esta é a nossa pergunta de pesquisa. Para respondê-la, conduzimos uma pesquisa empírica em organizações de diferentes setores e portes, no Rio de Janeiro e São Paulo. Além das múltiplas visitas, que resultaram em observações registradas no nosso diário de campo, também, entrevistamos indivíduos de diversos perfis identitários, que nelas trabalham. Para tratarmos os dados, valemo-nos da análise crítica do discurso, na perspectiva proposta por Van Dijk (2006; 2011; 2013 ), em que o discurso, ao constituir e ser constituído pelas práticas sociais (Fairclough, 2001; 2013 ) tem a cognição social como ponte entre estruturas discursivas e estruturas sociais. Dessa forma, ao analisarmos, a partir dos discursos, os conhecimentos que são compartilhados por determinado grupo de pessoas, desvelamos a forma com que estruturas ideológicas agem para legitimar e marginalizar grupos sociais. Mas, o que se entende por gaslighting? Gaslighting : revisitando a literatura Na década de 1980, gaslighting tornou-se objeto de estudo na Psicanálise (Calef & Weinshel, 1981) e, desde então, o termo foi recorrentemente adotado na literatura de autoajuda (Stern, 2007) e de análise política (Carpenter 2018). A rigor, gaslighting tem sido usado para categorizar a hospitalização involuntária como uma forma de abuso (Lear & Hale, 2020) e, no contexto de relações interpessoais, se refere à manipulação por meios psicológicos, quando a sanidade mental de um indivíduo é questionada (Fordon, 2019). Na sua essência, gaslighting é um comportamento desonesto de manipulação (Abramson 2014) e, teoricamente, não há razão para que este conceito não seja aplicado fora dos ambientes interpessoais familiares (Sinha, 2020); portanto, ele abarca as relações sociais nos ambientes de trabalho (Paige, 2019). Desta forma, gaslighters são os indivíduos que fazem declarações falsas, negam afirmações verdadeiras feitas por sua(s) vítima(s), com a intenção específica de desestabilizá-la, minando sua confiança nos seus sentidos e senso de realidade (Davis & Ernst, 2019). Mas, o que os motiva agir assim? A literatura sugere que os gaslighters compartilham as seguintes características: não toleram a possibilidade de que alguém discorde deles ou os critique, tampouco aceitam que os outros – até mesmo familiares, parceiros e amigos - vivam, ajam ou se comportem de forma diferente do que eles consideram correto (Abramson 2014). Assim, o gaslighting se revela um instrumento de manipulação que objetiva, neutralizar as críticas e até mesmo a possibilidade

fundamental que compreendamos quem produz os discursos analisados, visando evidenciar o impacto do contexto na relação de manipulação (considerada, aqui, de natureza discursiva). Invariavelmente, os gaslighters são indivíduos do sexo masculino que se valem desta estratégia para instaurar ou reproduzir relações sociais que geram e asseguram seu domínio (Carpenter, 2018), dentro da lógica da hegemonia masculina. Hegemonia consiste na institucionalização dos conceitos de “normal”, “natural” e “comum” (Carrigan; Cornell; & Lee, 2002); enquanto o conceito de masculinidade está associado a valores como “coragem”, “autonomia”, “habilidade”, “aventura” e “solidariedade grupal” (Connel & Messerschmidt, 2013 ). Assim, o conceito de hegemonia masculina jaz na questão de como um grupo particular de homens – brancos, heterossexuais, com acesso ao capital econômico - apodera-se das posições privilegiadas de riqueza e de poder no corpus social e é capaz de naturalizar e reproduzir, legitimamente, as relações sociais que geram e asseguram seu domínio (Bourdieu, 20 10 ). Ainda sob o olhar deste autor, a hegemonia masculina é imposta por meio de uma violência simbólica, suave, insensível e invisível a suas próprias vítimas, uma vez que, enquanto poder, ela também gera prazer e se perpetua por vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou, mais exatamente “do desconhecimento, do reconhecimento, em última instância, do sentimento” nas sociedades, cujo eixo central é o poder androcêntrico (Bourdieu, 20 10 , p. 8). A lógica da dominação masculina manifesta-se e perpassa todas as relações sociais, visto que é exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominador quanto pelo dominado (Pullen; Thanem; Tyler & Wallenberg, 2016). O exercício desse poder é dado por meio: a) da língua e da linguagem (a maneira de falar, expressões que podem ser utilizadas, uso de gênero); b) da cristalização da maneira de pensar (o homem deve ser mais objetivo que a mulher); c) do culto à forma de falar (o homem deve ser mais silencioso); d) da imposição de estilos de vida específicos (determinação do vestuário, de cores masculinas e femininas) e, principalmente, e) pelo controle do corpo (os machos devem ser mais contidos, gesticularem menos), conforme proposto por Bourdieu ( 2010 ). Complementar a essa perspectiva, para Van Dijk (2000) o controle ideológico opera discursivamente como forma de dominação operacionalizada a partir de termos que representam supostos poderes “superiores”, como os da Natureza, Deus, Ciência, Razão ou o povo, muito utilizados para legitimar a superioridade dos homens, brancos e héteros e naturalizar as suas estratégias de opressão, a partir do que é “natural”, uma suposta necessidade de controle exercido pelo homem sobre as outras pessoas, “criado por Deus”, do ponto de vista da definição entre os papéis de gênero, ou “cientificamente comprovado”, como pode ser exemplificado nos casos em que busca-se colocar o homem como mais forte, mais racional, mais firme, entre outras construções discursivas que constroem esse lugar de poder e opressão. A partir das lentes teórico metodológicas da Análise Crítica do Discurso, proposta por Van Dijk, e as relações sociais simbólicas e discursivas, apresentadas anteriormente, é possível explorar as práticas de gaslightining que ocorrem nas organizações. É importante considerar, também, como esses espaços de trabalho foram historicamente criados, e discursivamente reforçados, por e para homens brancos, heterossexuais e chefes de família. Este é o marco teórico que usaremos para discutir os resultados de nossa pesquisa de campo, cujo percurso metodológico é descrito a seguir. Percurso metodológico Esta pesquisa foi construída com base na abordagem filosófica fenomenológica, na qual busca-se entender e interpretar as experiências de cada indivíduo a partir de seu próprio olhar (Connely, 2010), dado que nosso objetivo era apreender e explicitar o sentido da atividade social, individual e coletiva durante a realização de uma intenção. Neste Weltanschauung , as múltiplas realidades dos indivíduos são construídas a partir da linguagem de suas experiências

pessoais; portanto, um indivíduo e seu mundo são elementos indissociáveis (Hafermalz & Riemer, 2020). Complementar a essa perspectiva, consideramos, também, que estruturas sociais e estruturas discursivas se relacionam a partir de um contexto composto por participantes, seus papeis, objetivos e como se configura a situação espaço-temporal (Van Dijk, 1997), dado que para compreender o discurso, é necessário que se apreenda o contexto, já que as estruturas discursivas variam em função das estruturas do contexto, assim como, os contextos são moldados e modificados em função das estruturas discursivas (Van Dijk, 1997 p.12). É importante ressaltar, também, que partimos de uma perspectiva em que essa relação entre discurso e estrutura social acontece a partir do contexto cognitivo dos indivíduos envolvidos na situação discursiva. Em outras palavras, a relação entre o discurso e o contexto social não acontece em um vácuo ou uma relação direta, mas de acordo com os conhecimentos, ideologias, crenças e papeeis sociais dos indivíduos envolvidos (Van Dijk, 2006). Nessa abordagem sociocognitiva do discurso, é fundamental compreender como as estruturas do discurso são controladas pelo conhecimento das pessoas sobre a linguagem e seus conhecimentos do mundo. Assim nossa escolha ontológica implica no fato de os pesquisadores não se posicionaram como meros observadores do fenômeno estudado, logo, nossas premissas e percepções permearam toda a pesquisa: seleção do tema, aporte teórico, metodologia, escolha dos fragmentos de discurso dos participantes, bem como sua interpretação. A pesquisa, qualitativa, baseou sua coleta de dados em observações e entrevistas. No total, foram observadas 37 grandes empresas ( 21 em São Paulo e 16 no Rio de Janeiro), de diversos segmentos, nas quais o acesso se deu via consultoria, treinamento ou convite. Cada empresa foi visitada, em média, três vezes num período de 30 meses; sendo que cada visita durou entre 2 e 6 horas, ao longo das quais foram feitas anotações de campo. Nestas visitas também coletamos as políticas de diversidade oficiais de cada empresa. Dado que não existe uma verdade única e sim múltiplas realidades (Benhabib, 1990; Calás & Smircich, 1999), foram realizadas 82 entrevistas presenciais, com profissionais dos mais diferentes perfis psicodemográficos. As mesmas foram pré-agendadas, realizadas fora do ambiente de trabalho e conduzidas com base num roteiro semiestruturado. Aos entrevistados era informado o objetivo da pesquisa, bem como garantidos o anonimato e a confidencialidade de seus relatos, bem como solicitada a autorização para que a conversa fosse gravada. O diálogo foi dividido em duas partes: na primeira, coletavam-se os dados demográficos (gênero, idade, ascendência, escolaridade, área de formação, cargo e empresa) e, posteriormente, conversou- se sobre as vivências e experiências pessoal e profissional destes indivíduos. As entrevistas foram transcritas e submetidas à análise crítica do discurso. Nesse sentido, assumimos, aqui, a natureza social do discurso, e sua capacidade de constituir a realidade, tendo a linguagem como parte irredutível da vida social, criando um vínculo entre a análise do discurso com a análise social (Fairclough, 2001; 2013 ). Assim, consideramos o discurso na ação historicamente situada em que os sujeitos constituem e são constituídos por essas ações (Austin, 1975; Searle & Searle, 1969). Nessa perspectiva, o discurso é uma prática social que constitui estruturas sociais ao mesmo tempo em que é moldado e restringido por essas estruturas (Fairclough, 2001; 2013 ). Para Van Dijk (2006), a forma como discurso e as estruturas sociais se constituem entre si, se dá com a sociocognição como ponte entre elas. É importante destacar, também, que na análise, esta abordagem contextual do discurso considera o conhecimento que os participantes compartilham. Desse modo, na análise é preciso examinar como o conhecimento é pressuposto, implícito, expresso ou sinalizado, porque assim, acessamos as estruturas ideológicas que discursivamente oprimem e marginalizam (Van Dijk, 2013). Conseguimos essa compreensão, entre outras estratégias, a partir de uma análise lexical, explorando a escolha das palavras e seus significados (Van Dijk, 2013).

do que uma ação de marketing “para inglês ver” (Irigaray; Celano; Fontoura; & Maher, 2021) Já “modismo” está associada a noção de temporaneidade; assim, o uso deste termo sugere que as políticas de diversidade não devam ser levadas a sério e, no limite, respeitadas. De fato, a desqualificação das mesmas fica mais patente pelo uso da seleção lexical “tititi”, que remete às noções de confusão, tumulto ou desordem, que são o antônimo de gerenciamento, planejamento e organização, elementos considerados essenciais – e muito valorizados - na vida organizacional. Nas entrevistas dos grupos minoritários, as seleções lexicais mais repetidas foram “batalhas cotidianas”, “preconceito”, “frescura” e “mimimi”, as quais denotam o desprezo e desqualificação à dor que estes indivíduos sentem. Em suas falas, as mulheres, os LGBTQIA+ e os “não-brancos” (já que nem todos se identificaram como negros) asseveraram, repetidas vezes, que quando reclamaram de discriminação ou perseguição, ouviram repetidas vezes, nomeadamente dos HBH, respostas como: “ é impressão sua ”, “ imagina ”, “ lógico que não, leia lá na política e código de ética da empresa ”. Estes fragmentos de discursos sugerem que estes os gaslighters se valem da tática de deslocamento; ou seja, criam projeções (“ política e código de ética da empresa ”) ou jogos de imagem (“ impressão sua ”) para desqualificar os argumentos dos grupos minoritários, bem como distrair a audiência que estiver à volta; desta forma, deslocando a atenção dos fatos, das alegações e evidências, questionando assim a capacidade de julgamento e, às vezes, até o caráter das vítimas de ações ou comentários machistas, racistas ou LGBTQIA+-fóbicos. A rigor, estes agressores aniquilam a possibilidade de existência de um locus autônomo de pensamento, julgamento e ação de suas vítimas, como já sinalizado por Spear (2019), num jogo de manipulação, principal elemento constitutivo do gaslighting (Fordon, 2019; Paige, 2019), que nesta pesquisa será discutido em duas categorias a priori (racial e misógino), duas emergentes (LGBTQIA+ fóbico e instrumental ) e por fim a axial (pecuniário), apresentadas a seguir. Categoria a prior i 1: gaslighting racial Nesta primeira categoria a priori, construída com base nas pesquisas de Davis e Ernst (2019), agrupamos as falas dos indivíduos que se auto identificaram como negros ou não- brancos. Essencialmente, elas sugeriram que gaslighting é um processo que depende de espetáculos raciais, como evidenciado no seguinte fragmento de discurso: “ É comum ouvirmos que, aqui no Brasil, não existe esta história de raças, que somos uma democracia racial e o passado [escravidão] ficou no passado; mas todo o alto escalão são brancos. Pretos só os seguranças e a tia do café ”. Nesta fala, nosso interlocutor identifica um paradoxo nos discursos reproduzidos no ambiente de trabalho, o qual se evidencia nas seleções lexicais conflituantes “ democracia racial ” e “ pretos só os seguranças e a tia do café”. Assim, por mais evidente que seja o abismo que exista entre os empregados brancos e negros, o mesmo é sempre negado pelo grupo dominante, que desqualifica toda e qualquer denúncia com o argumento que, no nosso país, “ não existe esta história de raças”. É interessante notar, também, a ausência de uma reflexão crítica a respeito do período de escravidão no Brasil e suas heranças históricas. No discurso do homem branco, a herança da escravidão é uma suposta democracia racial, desconsiderando as desigualdades que são resultado desse período e exemplificadas pelo entrevistado ao apresentar a posição profissional dos funcionários negros da empresa. Na mesma linha argumentativa, um empregado HBH desta mesma organização asseverou que “ aqui é um dos melhores lugares para se trabalhar. Saiu na Exame. Temos uma superpolitica de RH. Todo mundo aqui é igual ”.

Este indivíduo fundamenta seu argumento com base na referência de uma publicação da mídia de negócios desigualdade, que (re)produz o senso comum mainstream ; entretanto, o paradoxo desvelado pelo empregado negro confronta esta defesa do discurso organizacional. Ademais, a perversidade da naturalização e inquestionabilidade desta pretensa meritocracia defendida na seleção lexical “ todo mundo aqui é igual”, reside no fato de se eliminar qualquer espaço para críticas e denúncias, o que configura um gaslighting epistêmico, dado que sequestra a autoconfiança dos negros, evidenciado nos seguintes fragmentos de falas “ como confrontar a Exame?” , “ como questionar a política da empresa e não por o meu emprego em jogo?, “as politicas da empresa foram feitas de brancos para os brancos, assim como as leis”. Além disso, conforme apresentado por Van Dijk (2013), o uso da primeira pessoa do plural evoca a noção de grupo a partir da construção de uma diferenciação nós versus eles. Isso é visto no trecho “temos uma superpolítica”, complementado com “todo mundo aqui” e no trecho anterior “aqui no Brasil”. Essa meta-estratégia discursiva opera construindo discursivamente uma visão positiva do grupo e de diferenciação dos outros. Além disso, como forma de criar uma homogeneização ideológica, reforça um sentido de não pertencimento aos que não acreditam na ideia apresentada. Estes fragmentos de discurso denunciam como as políticas organizacionais são utilizadas como recurso retórico e argumentativo para afirmar a abertura à diversidade da organização, ainda que essa não seja vivida pelos grupos marginalizados. Essa estratégia discursiva se dá a partir do uso de um documento oficial, institucional, com o objetivo de construir um imaginário de neutralidade e justiça, a “superpolítica de RH ”. Ademais, outro recurso argumentativo é o de apresentar um documento institucional, legitimado por uma organização externa, de boa reputação social, e usada para endossar o argumento de igualdade. Desconsidera-se, com isso, as diferenças entre o que está registrado em papel e as práticas cotidianas, como também, os outros interesses que permeiam o processo editorial da mídia de negócios. O descolamento entre o que é argumentado a partir dessas políticas de RH e o depoimento do empregado, mostra como essas políticas na empresa analisada se reduzem, na prática, a meras narrativas, que ofuscam a existência de uma estrutura de poder central; são um instrumento de dominação, cujo objetivo é assegurar os privilégios dos brancos e subjugar qualquer voz dissonante. Este jogo de manipulacão e dominação é construído de forma que as vítimas percam a concepção de si mesmas como um locus independente de experiência, pensamento e julgamento (Sinha, 2020). Assim, gaslighting racial é uma estratégia que reifica a construção histórica do Brasil, os processos econômicos, políticos e sociais que perpetuam, normalizam e naturalizam a supremacia do colonizador europeu. Mais do que isso, os HBH se valem da estratégia de gaslighting para exercer seu controle sobre outros grupos minoritários, como as mulheres, como discutido na próxima categoria a priori. Categoria a priori 2 : gashlighting misógino Esta segunda categoria a priori foi construída com base nos estudos de Fordon ( 2019 ), os quais se debruçaram sobre o gaslighting manipulativo (Podosky, 2021) por parte dos HBH, cuja intenção primária é minar as mulheres, negando e desqualificando suas falas, testemunhos e eventuais denúncias. Sob este olhar, esta estratégia serve como instrumento de controle e exercício de poder, para que as normas e regras do patriarcado sejam cumpridas, desencorajando as mulheres a fazerem acusações contra os seus agressores. No limite, a repetição e o sucesso desta tática permitem que os HBH escapem impunes e, mais do que isso, incentiva seus pares a serem cúmplices e se comportarem da mesma forma, de tal forma a consolidar e perpetuar a hegemonia masculina no corpus social (Bourdieu, 2010).

frágeis ou dramáticas. Para o autor, o que é desenfatizado no discurso por essas pessoas que reproduzem discursos opressores, deve ser tratado como ideologicamente relevante na análise. De fato, uma entrevistada relatou que reclamou de ter sido interrompida numa reunião e, na mesma hora, o acusado negou o fato e recebeu a solidariedade de três outros homens, que negaram que tal fato houvesse ocorrido e acusaram-na de estar confusa. Todavia, o que mais chocou esta interlocutora foi o silêncio ensurdecedor das outras duas mulheres presentes na reunião, inclusive da diretora, que conduzia a discussão de planejamento estratégico. Este relato nos levou a duas constatações. A primeira que o gaslighting misógino é um fenômeno coletivo, pois conta com a cumplicidade de outros HBH neste jogo, com o objetivo de induzir as mulheres a suprimirem ou duvidarem de seus próprios sentidos e julgamentos, como ocorreu com Paula, a protagonista da peça de Hamilton. Desta forma, por ser uma ação coletiva, conjunta e coordenada, geralmente conduzida em público, pode ser considerado como uma forma de opressão psicológica (Suskind, 2020). A segunda constatação é que mulheres também podem se valer desta estratégia para manipular outras mulheres; o que sugere que gênero não é uma categoria hermética e que a hierarquia organizacional e diferenças sociais devem ser consideradas nesta discussão. Por fim, as mulheres denunciaram uma outra tática de gaslighting misógino, que denominamos de deslocamento. Esta ocorre quando é implausível para o acusado negar que ele de fato incorreu numa transgressão social. Isto ocorreu quando um colega de trabalho foi denunciado por assédio sexual durante uma festa de confraternização da empresa. Este incidente foi testemunhado por diversos funcionários, que depuseram a favor da vítima. Quando pressionado, o infrator admitiu que sua conduta não foi aprovável, mas buscou minimizar o dano, argumentando que só estava elogiando a colega (ao chamá-la de “ gostosa ”) e brincando (ao escorregar as mãos sobre suas costas). Nesta mesma ocasião, os colegas deste HBH, também em tom jocoso, responsabilizaram a vítima próprio assédio que sofreu, pois “ ela é bonita demais ” e “ se veste de forma provocante ”. Quando envolve questões de assédio sexual, o gaslighting misógino se vale dos valores machistas da sociedade, os quais preconizam ser desejada sexualmente é algo positivo, de tal forma que as mulheres devem acreditar que trata-se apenas de um flerte, e que não gostar de um galanteio é sinal de imaturidade. Consequentemente, elas toleram, superam um eventual desconforto e, não raramente, até criticam as mulheres que reclamam do assédio. Este comportamento machista por parte de algumas mulheres fragiliza todas mulheres. Ademais, o gaslighting misógino responsabiliza as mulheres por suas queixas, dado que estas não são confiáveis e são causadas pelos seus próprios defeitos. A repetição e naturalização desta estratégia faz com que as mulheres acreditem que são realmente defeituosas e seus sentimentos negativos são causados por uma falha pessoal e não pela conduta dos homens. No limite, o gaslighting misógino é uma estratégia de opressão psicológica, que engendra sentimentos de estereotipagem, dominação cultural ou objetificação sexual, usada para punir as mulheres que desafiam o poder androcêntrico e a sociedade machista e mascarar suas reais motivações. Por exemplo, por meio da objetificação sexual, as mulheres são instadas a se identificarem fortemente com seus corpos - a ver sua aparência e adornos como de grande importância. Ao mesmo tempo, estes são ridicularizados por terem tais preocupações inferiores, que são levados a acreditar que surgem de sua natureza como mulheres, ao invés de sua exposição à objetificação sexual. Se por um lado a literatura já sinalizava para a existência do gaslighting racial (Davis & Ernst, 2019) e do gaslighting misógino (Fordon, 2019; Clavero & Galligan, 2021 ), o campo revelou a existência de outras categorias, como o gaslighting LGBTQIA+ fóbico, que é discutido a seguir.

Categoria emergente 1 : gaslighting LGBTQIA+ fóbico Sob a ótica da psicanálise, gaslighting é uma técnica abusiva usada por abusadores narcisistas em que a realidade da vítima é reescrita, o julgamento é prejudicado e há uma mudança inegável em seu equilíbrio mental, quando o narcisista tenta quebrar o espírito da vítima no jogo mais cruel do controle da mente (Calef & Weinshel, 1981). A rigor, é a reificação da hegemonia masculina (Pullen et al., 2016) e da heteronormatividade (Connel & Messerschmidt, 2013), cujo objetivo sequestrar o capital social dos grupos minoritários (Bordieu, 2010). Da mesma forma que ocorre com os grupos minorizados discutidos anteriormente, os indivíduos LGBTQIA+ também sinalizaram ser vítimas de gaslighting , dado que suas orientações afetivo-sexuais são patologizadas. De fato, tanto as nossas observações de campo, quanto os discursos da maioria dos entrevistados de todos os grupos, revelaram o caráter heteronormativo que prevalece nos ambientes corporativos e que influenciam as relações sociais que ocorrem nestas arenas. Três entrevistados deste grupo denunciaram que o gaslighting LGBTQIA+ fóbico se disfarça por meio do que é chamado, no mundo digital, de trolagem , que, por definição, são comportamentos ou comentários pretensamente bem humorados, que visam ironizar ou debochar de alguém, sem que este sujeito perceba o que está ocorrendo. A trollagem nos remete a chamada “piada interna” ou dog whistle (apito de cachorro), numa referência ao instrumento que não é ouvido por humanos, mas pode ser captado por cães. Na prática, ela consiste no uso de símbolos e códigos (verbais e não verbais), que, aparentemente, parecem não ter nenhuma conotação negativa; contudo, na verdade, seu conteúdo reproduz e reforça ideias racistas, preconceituosas, homofóbicas e xenófobas. Nas interações sociais, apenas quem pertence ao mesmo grupo social entende estes códigos; entretanto, há o risco potencial de conflito quando alguém de fora decifra a mensagem e acusa o infrator (chamado de troll ). Este tende a negar a denúncia e alegar que é apenas um delírio do denunciante. Mais uma vez, observa-se o jogo de manipulação, característica primária do gaslighting. A trolagem de cunho LGBTQIA+ fóbicas e racista, no mundo corporativo, foi relatada por dois de nossos interlocutores ligados às organizações Todxs e Portal Geledés. Eles identificaram o uso de quatro símbolos, no cotidiano organizacional: o sinal de OK invertido, o copo de leite puro, o sapo Pepe e o símbolo de diferente (≠), que são usados em fóruns de discussão de elementos de direita e extrema direita (como 4chan e 8 chan ). O símbolo de O.K. americano invertido; isto é, um ato de pinça com o polegar e o indicador, deixando os demais voltados para baixo, significa White Power (Poder Branco), grito de guerra da Ku Klux Klan. Já o copo de leite é usado pelo movimento conhecido como " alt-right ", como forma de exaltar a percepção preconceituosa de uma pretensa supremacia branca; pois, além da cor do alimento, parte do pressuposto falacioso que pessoas brancas consigam digerir a lactose com mais facilidade do que pessoas negras. O anfíbio Pepe, por sua vez, é um meme usado na internet para disseminar discursos de ódio. Finalmente, o sinal matemático ≠ (diferente) também é forma de afirmar que diferentes raças e orientações afetivo- sexuais não são iguais, pois os brancos seriam superiores às demais raças e os heterossexuais aos percebidos como anormais (LGBTQIA+). Estes dois entrevistados específicos, que trabalham juntos no mesmo departamento de uma multinacional em São Paulo, asseguraram já terem visto um grupo de quatro colegas de trabalho HBH trocarem os sinais de OK invertido e tomarem copo de leite, em duas ocasiões: quando um deles fazia uma apresentação e, numa segunda, enquanto conversavam perto da máquina de café. Eles também testemunharam ter encontrado um adesivo do sapo Pepe numa porta do banheiro masculino e noutra, pichado símbolo ≠. Eles acreditam que estes símbolos

era muito prolixo, que eu falava de forma confusa. Até nas reuniões fazia isso e daí perguntava a quem estava em volta: “você também não acha?” Acho que até eu acreditei no que eu falava de mim. Acho que nunca mais fui o mesmo Não consigo confiar mais em ninguém, nem em mim mesmo (...) Ele ganhou a promoção”. A lógica da dominação masculina (Bourdieu, 2010) pressupõe que os homens sejam mais objetivos que as mulheres (Pullen et al., 2016), e esta foi a base da manipulação conduzida por Alberto, como ficou evidente na seleção lexical do nosso interlocutor “fazia questão de sempre insinuar que eu era muito prolixo”. De fato, esta estratégia se caracterizou como gaslighting epistêmico, dado que Alberto, o gaslighter reivindicou tacitamente um papel de superioridade (Stark, 2019). Já, sob a ótica do João, houve uma pressão moral e psicológica, que minou sua autoconfiança e, no limite, a concepção de si mesmo como um locus independente de experiência, pensamento e julgamento (Sinha, 2020) e, assim, por mais que confiasse em si mesmo, no seu juízo e memória, não foi capaz de enfrentar a discordância epistêmica dos outros, conforme explícito na seleção lexical “ perguntava a quem estava em volta: “você também não acha?” Acho que até eu acreditei no que eu falava de mim”. No Weltanschauung masculino heteronormativo, a pior humilhação que um homem pode sofrer é ser transformado em mulher, ser feminilizado, ter sua virilidade questionada ou ser obrigado a se comportar como se fossem mulheres (Connel & Messerschmidt, 2013) e foi assim que João se percebeu. Ao ser ter (pseudo) comportamentos retratados como feminino, ele se deparou com a pressão que as mulheres enfrentam cotidianamente: a de “ter a obrigação de estar incessantemente vigilante de seu corpo, exposto à humilhação e ser ignorado ou silenciado (Carrigan; Cornell; & Lee, 2002). Esta categoria foi denominada gaslighting instrumental, pois tal comportamento é motivado por razões instrumentais e, no caso em questão, revelou-se uma estratégia eficaz, dado que Alberto foi bem sucedido e João, um HBH, arcou com o sofrimento psicológico, assim como as mulheres, negros e LGBTQIA+. Categoria axial: gaslighting instrumental Ao relermos as transcrições e confrontá-las com nossas observações, constatamos que as quatro estratégias de gaslighting identificadas guardavam similaridades nas suas lógicas, e táticas. A lógica central jaz na hostilidade misógina, um fenômeno coletivo e impetrado por meio de ações comuns, as quais seguem roteiros, culturalmente aceitos e tolerados, que refletem ideologia androcêntrica reinante (Pullen et al., 2016), Já no que tange às táticas, os quatro gaslightings identificados foram categorizados como epistêmico ou manipulativo (Sinha, 2020; Stark, 2019). Entretanto quanto à motivação, as mulheres e os indivíduos LGBTQIA+ entendem que os gaslighters são motivados por projeção (Abramson 2014) ou por algum incômodo, causados por questões que os assediadores, talvez, não sejam capazes de identificar ou reconhecer, como sexualidade reprimida, por exemplo. Esta análise nos pareceu muito simplória e questionamo-nos o se haveria algum motivo em comum por trás do uso desta estratégia de manipulação. Assim, debruçamo-nos, mais uma vez, sobre todo o material coletado, e identificamos a categoria axial, a qual interconecta as priori e emergentes, e que denominamos gaslighting pecuniário. A rigor, sob o manto da misoginia, racismo, LGBTQIA+ fobia e o gaslighting de pares (HBH, no caso), jazia a disputa por capital social e, no limite, um retorno pecuniário. De fato, a sociedade androcêntrica institucionalizou o que é “normal”, “natural” e “comum” (Carrigan, Cornell & Lee, 2002), bem como supervaloriza valores associados à masculinidade, como “coragem”, “autonomia”, “habilidade”, “aventura” e “solidariedade grupal” (Connel &

Messerschmidt, 2013). Desta forma, os HBH valem-se de várias estratégias – inclusive o gaslighting - para apoderarem-se de posições privilegiadas de riqueza e de poder no corpus social, desqualificando grupos minoritários, ou qualquer outro que os ameacem, como foi o caso de Alberto, que atribuiu a João traços definidos como feminino (ser prolixo, falar de forma confusa). O gaslighting pecuniário ficou evidenciado no fragmento de discurso de uma mulher, que trabalha numa multinacional em São Paulo, quando questionada o porquê havia discriminação: “ você sacode bem a história, enquanto não cair a moedinha, você não achou o real motivo ”. Foi justamente a seleção lexical “moedinha”, que nos fez propor que o gaslighting , no ambiente e trabalho, assim como no filme, não se limita a atos perversidade, dignos de psicopatas (Calef & Weinshel, 1981); a rigor, há sempre um interesse ulterior; ou seja, um retorno pecuniário. Implicações deste estudo No discurso terapêutico da Psicologia, gaslighting é geralmente tratada como um fenômeno relacional (Lear & Hale, 2020), limitado a relações individuais, e o objetivo do terapeuta é ajudar aqueles que estão presos em relacionamentos abusivos a se libertarem e recuperarem-se de eventuais danos psicológicos, como a depressão, por exemplo (Fordon, 2019). Todavia, neste estudo, entendemos que gaslighting vai além: é um fenômeno político e discursivo, inserido num determinado sistema social. Defendemos que as implicações políticas deste fenômeno tendem a ser minimizadas propositalmente, no bojo dos processos de silenciamento e invisiblização que os grupos minoritários têm sido, historicamente, submetidos. O uso desta estratégia de violência emocional revela-se mais eficaz para mobilizar e controlar as vítimas, uma vez que as mesmas passam a se questionar se realmente estão sendo atacadas e, ao terem suas faculdades mentais e de discernimento questionadas, tornam-se inseguras (Podosky, 2021) e passam a demonstrar traços comportamentais não valorizados no mundo corporativo (Paige, 2019). A rigor, gaslighting é é uma manipulação que, ao neutralizar as críticas e até mesmo a possibilidade de que sejam feitas, sufoca as vítimas, desqualifica suas falas, mina a credibilidade, corroe a auto-imagem, bem como intimida as mesmas. O objetivo central em aniquilar a possibilidade de existência de um locus autônomo de pensamento, julgamento e ação vai além de questões psicológicas. Gaslighting tem por objetivo final preservar e acumular mais capital social (Bourdieu, 2010) e, no limite, obter vantagens econômico-financeiras. Do ponto de vista discursivo, o Gaslighting se apresenta como um ato de fala (Searle; Rogers, 1969), isto é, uma ação que se realiza exclusivamente de forma discursiva pela linguagem, como as ameaças, promessas e pedidos (Austin, 1975). Com o aumento do espaço que as discussões sobre diversidade ganharam no mercado, empresas de diferentes setores, como as que foram analisadas nessa pesquisa, criaram políticas e áreas institucionais voltadas à diversidade. Isso fez com que as práticas de opressão, marginalização e violência, acontecessem, cada vez mais, de forma velada, simbólica, e como apresentado em nossos resultados, discursiva. Nesse sentido, o Gaslighting pode ser analisado como uma categoria de atos de fala, que desvela uma estratégia silenciosa de deslegitimação de grupos marginalizados no contexto organizacional. Majoritariamente, esta estratégia usada pelo grupo dominante (HBH) para desqualificar e, literalmente, “jogar uma cortina de fumaça” nos movimentos de enfrentamento e resistência das mulheres, negros, LGBTQIA+ e todos os grupos minorizados e, ao fazê-lo, assegurar os privilégios e benefícios de serem a identidade dominante. Apesar de todos os grupos minoritários terem identificado os HBH como os principais agressores em potencial, não ficou evidente que haja solidariedade entre si, o que garante a eficácia das estratégias de manipulação adotada pelos gaslighters.

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