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Este documento explora as novas facetas que a frança contemporânea tem assumido devido às imigrações, analisando as cargas produzidas pelo partido de extrema-direita front national e contrastando-as com a música da banda zebda, composta por descendentes de imigrantes. O texto aborda a segregação de imigrantes na frança, a formação de guetos e a xenofobia expressa pelos integrantes do front national.
Tipologia: Notas de aula
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Céline Spinelli^1
Resumo A conjuntura globalizada, que nas últimas décadas reformulou as idéias de tempo e espaço, vem possibilitando grandes fluxos, seja de informações, de produções culturais e artísticas ou de pessoas. O objetivo deste trabalho é perceber as novas facetas que a França contemporânea tem assumido devido às imigrações. Elas serão abordadas através da análise de charges produzidas pelo partido de extrema direita Front National , em contraposição ao conteúdo das músicas da banda Zebda , composta por descendentes de imigrantes, que denunciam em suas letras brechas da estrutura social francesa. Dentre as reações da sociedade francesa diante da imigração, pode-se perceber certa segregação dos estrangeiros, numa tentativa de delimitação de espaço que garanta a mínima interferência do universo simbólico novo na identidade cultural da nação. Marginalizados, muitos imigrantes são impelidos a se agrupar em comunidades na periferia dos centros urbanos, constituindo guetos. É interessante, portanto, contrapor a visão de mundo veiculada por Zebda com a apregoada pelo Front National. O embate ideológico entre os que representam os “de dentro” e os “de fora” deixa claro não só as formas pelas quais vem se desmantelando a identidade nacional francesa, mas também paradoxos da própria globalização, uma vez que tanto o discurso fascista dos integrantes do Front National quanto o constante fluxo imigratório são frutos do sistema vigente. Palavras-chave : França, imigração, identidades.
Abstract The global conjuncture, which in the past few decades has redefined the ideas of time and space, has been responsible for a great flow of information, as well as of cultural productions and of people. The objective of this work is to notice the new facets that contemporary France has been assuming due to the immigrations. They will be approached through the strip analysis produced by the party of extreme right Front National , in opposition to the content of the musics of Zebda , which is composed by immigrant's descendants, that denounce in their lyrics breaches of the French social structure. Among the reactions of the French society due to the immigration, it can be noticed a foreigner's segregation, in an attempt of space delimitation that guarantees the low interference of the new symbolic universe in the cultural identity of the nation. Marginalized, many immigrants are pushed to grouping in communities in the periphery of the urban centers, constituting ghettos. It is interesting, therefore, to oppose the world vision transmitted by Zebda with the divulged by Front National. The ideological collision among the ones that represents the “insiders” and the “outsiders” leaves clear not only the forms that which the French national identity has been dismantling, but also paradoxes of the globalization itself, once as much the fascist speech of the Front National members as the constant immigration flow results of the present system. Keywords: France, immigration, identity.
Introdução
A imigração é um fenômeno complexo que tem gerado vigorosas discussões no mundo contemporâneo. Da forma como ela se apresenta hoje, enquanto movimento humano que vai de países considerados periféricos para outros, economicamente hegemônicos, a imigração caracteriza o processo de globalização, que nas últimas décadas reformulou as idéias de tempo e espaço, possibilitando grandes fluxos, seja de informações, de culturas ou de pessoas, pelas diversas partes do globo. O objetivo deste trabalho é perceber as novas facetas que a França tem assumido devido às imigrações. Elas serão abordadas através da
(^1) Aluna dos cursos de História e Ciências Sociais da UFSM. E-mail: celinespinelli@yahoo.com.br.
análise de charges produzidas por Konk, caricaturista ligado ao partido de extrema-direita Front National , em contraposição ao conteúdo das músicas da banda Zebda , composta por descendentes de imigrantes de origem árabe.
Aspectos da imigração na França contemporânea
O grupo de imigrados majoritário na França atual é composto por árabes, provenientes, sobretudo, da região do Maghreb. Eles são cerca de 2 milhões, diante de uma sociedade formada por aproximadamente 60 milhões de pessoas^2. O contingente de árabes, que sem dúvida é acrescido por um número também apreciável de clandestinos, é significativo. No entanto, não é somente pela questão quantitativa que acreditamos ser importante considerar os árabes na França contemporânea: o grupo merece destaque, pois, ao que nos parece, no senso comum o conceito “árabes” costuma ser atribuído não somente àqueles que efetivamente descendem dessa etnia, mas a imigrados de uma forma generalizada. A tendência de amalgamar os imigrantes numa única identidade, apesar de eles subjetivamente nem sempre se reconhecerem entre si, da qual nos fala Jean-Pierre Warnier^3 , não é uma atitude isolada, própria dos franceses. A grosso modo, a reação de sociedades que vêm sendo o destino de um contínuo processo imigratório, tem sido a de segregar os estrangeiros que conseguem ingressar legalmente no país, numa tentativa de delimitação de espaço que garanta a mínima interferência do universo simbólico novo na identidade cultural da nação. Esse procedimento, no entanto, não contém a gradativa desestruturação das identidades nacionais; ao contrário, à medida que ele incita o estabelecimento de laços de identificação entre os imigrados, os quais inevitavelmente se contrapõem à capenga identidade nacional, gerando o deslocamento de aspectos culturais tradicionalmente basilares para a sociedade receptora. A identidade estabelecida entre comunidades de imigrados não significa que haja uma unidade cultural, étnica, lingüística ou mesmo física entre elas, mas, sim, que “são vistas e tratadas como “a mesma coisa” (isto é, como não-brancas, como o “outro”) pela cultura dominante”^4. É essa exclusão da alteridade que gera uma das três conseqüências que Stuart Hall considera fruto da globalização: o estabelecimento de identidades híbridas que,
(^2) Estatísticas do INSEE (órgão governamental de controle quantitativo): http://www.recensement.insee.fr. (^3) WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Trad. de Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2000, p. 17. (^4) HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 86.
adequar ao sistema, até que, já adulto, se dá conta da dificuldade de sua inclusão^7 , bem como do trabalhador, que não consegue sequer ingressar em uma boate: as portas (e não somente essas) se mantêm fechadas para ele^8. Desse modo, os árabes dos quais nos fala Zebda são incitados a permanecer em suas vilas, onde a rua se confunde com o espaço particular, ao mesmo tempo em que conota a condição coletiva, já que é compartilhada por aqueles que se encontram na mesma realidade social, traduzida pelo "ser árabe". A consciência da diferença é constantemente posta em relevo por Zebda , que destaca peculiaridades étnicas, ascendências, origens geográficas e religiosidade (muçulmana)^9. A música Tombés des nues (literalmente: “Caído das nuvens”^10 ) talvez seja a que melhor sintetiza o posicionamento crítico e a denúncia que o grupo desenvolve frente à realidade social e econômica com a qual devem se confrontar os imigrados na França. Vejamos, através das seguintes estrofes, o que diz Zebda :
“Eu vim, mas não pense que eu vim Ouvir dizer “seja bem-vindo” Mas o estômago que precisa de gasosa Diz “o que há hoje no menu?” (...) Sem barulho, sanduíche sem riso e sem jantar Sem culpa, sem dúvida e mesmo sem a idéia Que nós nunca somos convidados quando nós estamos Sem grana, sem sandálias e até mesmo sem documentos Eu vim, mas não pense que eu vim Para o sol ou a beira mar Porque bronzeado eu era desde o nascimento E eu não conhecia o inverno Eu tinha os pés nus, a cabeça nas nuvens O coração quente, e eu fazia de conta Que era aquele que estava de passagem No país do Mont-Blanc
(^7) "Mais c'était avant qu'on me dise dégage/ Et qu'on ne me parle plus au présent/ Avant qu'on déchire mes pages/ Et qu'on me dise: place et au suivant" (Le Petit Robert, Essence Ordinaire, 1998). 8 "Les portes je connais, j'en ouvre tous les jours/ Mais j'en ai vu claquer plus souvent qu'à mon tour" (Je crois que ça va pas être possible, Essence Ordinaire, 1998). 9 "Je suis venu, mais je suis pas venu tu penses/ Pour le soleil ou le bord de la mer/ Parce que bronzé je l'était de naissance/ Et puis je ne connaissais pas l'hiver (Tombés des nues, Essence Ordinaire, 1998), "A-t-il senti que je ne lisais pas la bible" (Je crois que ça va pas être possible, Essence Ordinaire, 1998), "Je suis né dans la rue (...)/ Où les prénoms, tu pourras le vérifier/ Sont pas de ceux qu'on trove dans les calendriers" (Né dans la rue, Essence Ordinaire, 1998). 10 O próprio título da música é dúbio: a expressão tomber des nues pode significar “estar extremamente surpreso”.
Eu vim e eu ainda não sabia Que se tinha medo dos seus vizinhos E de todas as casas, eu só vi janelas fechadas Que nunca me disseram “vamos, vem” (...) Eu vim, mas eu digo como Eu fui recebido com um pé atrás Não dá para dizer, não dá para dizer meu caro Leon Que foi com um acompanhamento de acordeão Meu rosto é uma página que não se rasga Eu sei que eu não serei”^11 O barulho de ondas do mar, a ir e vir, musicado pelo som de um violão, introduz os ouvintes a “Caído das nuvens”, música que, apesar das diversas interpretações que a letra nos permite conceber, deixa clara a desilusão do imigrante ao ingressar na nova terra. A referência ao processo imigratório está no próprio som das ondas, que provavelmente tem a finalidade de remeter ao mar Mediterrâneo, travessia quase obrigatória para aqueles que provêm da África ou do Extremo Oriente. O mar, que também pode trazer à mente a nostalgia da terra natal deixada para trás, bem como as dificuldades da viagem não raro enfrentadas por muitos: mar de águas salgadas, que se confundem com as lágrimas, também salgadas, que rolam pelo rosto de alguns, em momentos de pesar. Como diz ainda Zebda , em Le Petit Robert , se referindo a uma mãe que vê seu filho ser ridicularizado pela professora: com “o coração em migalhas, ela fazia falar a água e o sal”. Apesar da consciência das dificuldades com as quais têm que se confrontar os imigrados, expressa na frase “eu vim, mas não pense que eu vim ouvir dizer ‘seja bem- vindo’”, Zebda deixa transparecer uma certa ingenuidade com a idéia de que “ainda não sabia que se tinha medo dos seus vizinhos”, ou então ao dizer que alguém pode ignorar que “nunca
(^11) “Je suis venu, mais je suis pas venu tu penses/ M’entendre dire “sois le bienvenu”/ Mais l’estomac qui a besoin d’essence/ Dit “qu’est-ce qu’il y a aujourd’hui au menu?”/ (...) Sans bruit, sandwichs sans rire et sans dîner/ Sans faute, sans doute et même sans l’idée/ Qu’on est jamais invité quand on est / Sans thune, sandales ou même sans papiers/ Je suis venu, mais je suis pas venu tu penses/ Pour le soleil ou le bord de la mer/ Parce que bronzé je l'était de naissance/ Et puis je ne connaissais pas l'hiver/ J’avais les pieds nus, la tête dans les nuages/ Le coeur au chaud, et je faisais semblant/ D’être celui qui était de passage au pays du Mont-Blanc/(...) Je suis venu et je ne savais pas encore/ Qu’on avait peur de ses voisins/ Et de toutes les maisons, je n’est vu que des stores/ Qui m’ont jamais dit « allez, viens »/ (...) Je suis venu mais je le dit avec quel air/ Qu’on me reçut à reculons/ On peut pas dire, on peut pas dire cher Léon/ Que ce soit sur un air d’accordéon/ Mon visage est une page qu’on n’arrache pas/ Je sais que je serai surtout pas (Tombés des nues, Essence Ordinaire, 1998).
“voltados sobre si mesmos e funcionando muito freqüentemente graças ao dinheiro da droga”^14. Na realidade, não somente contrários à imigração, os membros do FN se opõem à globalização em si, defendendo um discurso chauvinista e racista. Eles dizem: “A recusa da sociedade multicultural, em nome da identidade da França, é o combate fundamental do Front National. A identidade é, para a Nação, aquilo que a personalidade é para o indivíduo. (...) Também convém respeitar, na França como em outros lugares, o princípio segundo o qual cada povo deve dispor de um território que lhe seja próprio. (...) Para que a França permaneça a França, os franceses devem permanecer senhores no seu próprio território” 15. O discurso da extrema-direita francesa é explícito em charges^16 irônicas, que são veiculadas por jornais e revistas ligados a esse posicionamento político, como os jornais Minute (do qual o próprio Jean Marie Le Pen, líder do FN, é um dos redatores), Rivarol e National-Hebdo , todos particularmente próximos ao partido FN. A internet é outro veículo de difusão dessas charges, que precisam ser consideradas com atenção, uma vez que, tornando risíveis aspectos da realidade social, política e econômica do país, elas se transformam em um eficaz meio de popularizar o pensamento da extrema-direita. Visto que as charges que constam no sítio oficial do FN são da autoria de Konk (caricaturista que tem seus desenhos divulgados nos dois primeiros jornais mencionados acima, especialmente no Minute , e na internet pelo http://dessins.de.konk.free.fr, que pode ser acessado através do próprio sítio do FN), optamos por analisar o seu trabalho. Vejamos a visão (do FN) que Konk transmite sobre a imigração: na charge ao lado, em que consta “cada ano, 25.000 ricos abandonam a França” e, no balão, saindo da boca de um miserável, "felizmente, nós
(^14) “(...) les quartiers ethniques et les cités-ghettos, repliés sur eux-mêmes et fonctionnant trop souvent grâce à l’argent de la drogue” (idem). 15 “Le refus de la société multiculturelle, au nom de l’identité de la France, est le combat fondamental du Front National. L’identité est, à la Nation, ce que la personnalité est à l’individu.(...) Aussi convient-il de respecter, en France comme ailleurs, le principe selon lequel chaque peuple doit disposer d’un territoire qui lui soit propre. (...) Pour que la France reste la France, les Français doivent rester maîtres chez eux” (idem). 16 Todas as charges foram obtidas através do sítio: http://www.frontnational.com.
estamos aqui para substituí-los", fica bastante evidente a chacota feita a respeito da imigração, bem como dos efeitos da globalização no âmbito econômico, além de estar subentendida uma visão elitista por parte do FN, à medida que a charge possibilita a interpretação de que somente ricos devem ocupar a França. A questão da identidade, basilar no discurso do FN e fundamental para o que concerne a imigração, também é mote de charges, como a que retrata dois extraterrestres debatendo questões existenciais: "E nós também, nós somos franceses?", questiona o ET da esquerda, que recebe como resposta um exclamativo "claro, todo o mundo é francês!". Encerrando a conversa, uma frase não menos irônica para os membros do FN: “a França deve permanecer uma terra de acolhimento”. E uma terra de acolhimento para quem? Indivíduos provenientes de países árabes e africanos, evidentemente, responde o próprio Konk mediante suas charges, que costumam caricaturar esses grupos. De fato, identidade e nacionalidade são temáticas recorrentes no discurso do FN que estão diretamente associadas à problemática da imigração. Podemos inferir alguns aspectos do pensamento político do partido através da forma como foi posta, na charge ao lado, a questão: “imigração: o que pensam os franceses?” e, especialmente, a partir do modo como ela foi respondida, por uma mulher de origem africana, deveras francesa: “nós não podemos acolher toda a miséria do mundo!”. Bem, primeiro vale destacar que a frase “a França não pode acolher toda a miséria do mundo” 17 consta no programa do FN, que é assinado por Jean Marie Le Pen. É importante buscarmos compreender, portanto, quais mecanismos foram utilizados pelo cartunista para, de forma humorística (mesmo que se trate de um humor negro para muitos!), transmitir a ideologia do partido. A sátira é óbvia: ela consiste, por um lado, no fato de “os franceses” serem representados por duas mulheres, uma de origem árabe, outra africana; por outro lado, sendo as próprias personagens da charge fruto do processo imigratório, atribuir a elas o discurso de um francês conservador é contraditório, daí a ironia da qual se pode achar graça. A charge de Konk, no entanto, vai além da tentativa de fazer rir um francês conservador durante o seu café matinal. Ela nos diz bastante do pensamento do FN, à medida que, ao transformar a “miséria” em temática debatida por duas imigrantes que voltam de suas
(^17) “La France ne peut accueillir toute la misère du monde” (ver o programa do FN pelo sítio: http://www.frontnational.com).
Não há dúvidas que, filha de uma mãe árabe, a menina deve ter contato direto com essa cultura, o que não a impede de dominar o aparato cultural francês. De qualquer modo, na legislação, como informa o próprio FN, vigora que um estrangeiro tem o direito de adquirir a nacionalidade francesa se for: maior de idade residente há cinco anos no país; nascido na França, com uma filiação estrangeira, outra francesa; nascido na França de pais estrangeiros caso um deles tenha nascido na França ou em algum país de antiga dominação francesa; e, por fim, para aqueles que nascerem na França, aos dezoito anos ou aos treze se moram no país há cinco anos^19. A crítica do FN à possibilidade de se adquirir a nacionalidade francesa tão “facilmente” é ferrenha. Para os membros do partido, somente pode ser considerado francês aquele que é filho de um francês. Eles estipulam, portanto, como uma de suas propostas para reverter o fluxo da imigração, a retomada do direito de filiação. Nas palavras do FN: “o modo normal de aquisição da nacionalidade francesa, ou seja, a filiação, será reafirmado como base do Código da nacionalidade e da cidadania: ‘Nasce francês todo filho nascido de pai ou de mãe francês’”^20. A questão da nacionalidade é complexa. Além de tudo, ela remete à problemática da família, fato que talvez explique porque ela seja constante motivo de chacota nas charges de Konk, conservador como seus comparsas do FN. Mulheres que carregam características de origem africana ou árabe desfilam sob os traços do desenhista, sempre caricatos. Para tratar da natalidade elas aparecem novamente, com seus filhos a tiracolo, dizendo que “se deve pensar no futuro!”, enquanto que o texto da charge enuncia: “as francesas estão fazendo mais filhos”. Aqui, o feitiço trai o mago: aquilo que deveria dar o humor da charge, ou seja, a representação das “francesas” como sendo, uma, negra africana, outra, árabe “velada”, legitima ambas como “francesas” e, em conseqüência, os seus filhos enquanto cidadãos franceses. Afinal, como diz a cartilha do FN: “nasce francês todo filho nascido de pai ou de mãe francês”^21. Certa está a francesa que acredita ser necessário pensar no futuro: que os pequenos são franceses, não há dúvidas; inclusive os marcianos o sabem! “Todo o mundo é francês”, diziam eles algumas páginas
(^19) Ver no sítio do FN o sub-item “code de la nacionalité: des Français de papier”, em propositions- identité – immigration. 20 Le mode normal d’acquisition de la nationalité française, c’est-à-dire la filiation, sera réaffirmé comme base du Code de la nationalité et de la citoyenneté : “Naît français tout enfant né de père ou de mère français” (ver no sítio: programme- identité – immigration – propositions 21 ). Op., cit.
atrás. Entretanto, como esses franceses interagem socialmente não é algo tão simples de se constatar, tampouco como os pequenos representados na charge serão inseridos no sistema.
Considerações finais
Se através das músicas de Zebda podemos traçar um quadro do posicionamento de um grupo de imigrantes de origem árabe sobre o que representa o processo imigratório e a realidade francesa para eles, as charges de Konk, que expressam o discurso do FN, permitem igualmente a construção de um panorama dos aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais do país. As questões são as mesmas, porém, elas são tratadas sob ângulos opostos, que deixam clara uma estratificação aberrante entre os “de dentro” e os “de fora”. Paradoxalmente, tanto o discurso dos integrantes do FN quanto o fluxo migratório de árabes e outros grupos étnicos para a França são fruto do processo de globalização. O convívio entre ambos é marcado por preconceitos mútuos e pela conseqüente demarcação de elementos de identificação distintos. Os franceses conservadores não aceitam a presença da alteridade, que é vista como uma ameaça para o país; logo, repelem os imigrantes e seus descendentes, impulsionando-os para a construção de identidades étnicas autônomas, à medida que a extradição dos mesmos independe de vontades individuais. Os imigrantes, por sua vez, reagem à segregação afirmando seus traços peculiares, não raro construindo novas identidades, à medida que são coagidos a interagir com diversas comunidades étnicas, e acabam por expor, muitas vezes de forma violenta, a sua diferença. Não podemos deixar de admitir que na França vigoram políticas integracionistas, e apesar de uma parcela da população sustentar uma ideologia excludente e preconceituosa, devemos salientar que há uma certa aceitação (mesmo que muitas vezes forçada) de etnias diversas por parte da sociedade como um todo. O simples fato de uma banda de descendentes de árabes ter suas músicas transmitidas nas rádios demonstra que na França se está repensando a relação imigrante-sociedade receptora e, igualmente, se está admitindo que o árabe, por mais que ainda seja sujeito a várias formas de discriminação, já compõe a cambaleante “identidade francesa” (se é que ainda podemos falar dela), pois Zebda não é considerado uma banda árabe. De qualquer modo, embora exista um projeto governamental de integração, não podemos nos iludir encobrindo a violência das relações entre os “franceses” e os imigrantes. O respeito pela alteridade, tão almejado pelos defensores do multiculturalismo, está muito longe de ser alcançado, especialmente porque, na mentalidade que ainda vigora no mundo
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Trad. de Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2000.
WIEVIORKA, Michel. Une société fragmentée? Le multiculturalisme en débat. Paris: La Decouverte, 1997.