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A Acumulação Primitiva: Análise Crítica do Processo de Expropriação e Formação do Capital, Resumos de Economia Política

O texto analisa criticamente o processo de acumulação primitiva, explorando as origens do capitalismo e a expropriação das massas populares. Aborda a transformação da propriedade privada e a formação da classe trabalhadora, destacando a exploração do trabalho e a centralização do capital. O texto é um estudo aprofundado sobre a formação do sistema capitalista e suas implicações sociais.

Tipologia: Resumos

2025

Compartilhado em 18/03/2025

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MARX, Karl. A assim chamada acumulação primitiva. IN: MARX, Karl. O capital: crítica da
economia política : Livro I : o processo de produção do capital. [tradução de Rubens
Enderle]. - São Paulo : Boitempo, 2013.
Vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é produzido
mais-valor e do mais-valor se obtém mais capital. Porém, a acumulação do capital
pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, e esta, por sua vez, a
existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de
produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo
vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva”
(“previous accumulation”, em Adam Smith), prévia à acumulação capitalista, uma
acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de
partida. (p.959)
[...] Sua origem nos é explicada com uma anedota do passado. Numa época muito remota,
havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro,
uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do
pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão
com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos
revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como
for. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter
nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza
da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não
possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce
continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. (p.959-60)
[...] Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista,
a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência. Já na economia política,
tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os
únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, “este ano”. Na realidade,
os métodos da acumulação primitiva podem ser qualquer coisa, menos idílicos. (p.960)
Num primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os meios
de produção e de subsistência. Eles precisam ser transformados em capital. Mas essa
transformação só pode operar-se em determinadas circunstâncias, que contribuem para a
mesma finalidade: é preciso que duas espécies bem diferentes de possuidores de
mercadorias se defrontem e estabeleçam contato; de um lado, possuidores de dinheiro,
meios de produção e meios de subsistência, que buscam valorizar a quantia de valor de
que dispõem por meio da compra de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores
livres, vendedores da própria força de trabalho e, por conseguinte, vendedores de
trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido de que nem integram diretamente os meios
de produção, como os escravos, servos etc., nem lhes pertencem os meios de produção,
como no caso, por exemplo, do camponês que trabalha por sua própria conta etc., mas
estão, antes, livres e desvinculados desses meios de produção. Com essa polarização do
mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação
capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das
condições da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela
não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O
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MARX, Karl. A assim chamada acumulação primitiva. IN: MARX, Karl. O capital : crítica da economia política : Livro I : o processo de produção do capital. [tradução de Rubens Enderle]. - São Paulo : Boitempo, 2013. Vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é produzido mais-valor e do mais-valor se obtém mais capital. Porém, a acumulação do capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva” (“previous accumulation”, em Adam Smith), prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida. (p.959) [...] Sua origem nos é explicada com uma anedota do passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como for. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. (p.959-60) [...] Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência. Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, “este ano”. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva podem ser qualquer coisa, menos idílicos. (p.960) Num primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles precisam ser transformados em capital. Mas essa transformação só pode operar-se em determinadas circunstâncias, que contribuem para a mesma finalidade: é preciso que duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias se defrontem e estabeleçam contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência , que buscam valorizar a quantia de valor de que dispõem por meio da compra de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, por conseguinte, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido de que nem integram diretamente os meios de produção, como os escravos, servos etc., nem lhes pertencem os meios de produção, como no caso, por exemplo, do camponês que trabalha por sua própria conta etc., mas estão, antes, livres e desvinculados desses meios de produção. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O

processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde. (p.961) O produtor direto, o trabalhador, só pôde dispor de sua pessoa depois que deixou de estar acorrentado à gleba e de ser servo ou vassalo de outra pessoa. Para converter-se em livre vendedor de força de trabalho, que leva sua mercadoria a qualquer lugar onde haja mercado para ela, ele tinha, além disso, de emancipar-se do jugo das corporações, de seus regulamentos relativos a aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas do trabalho. Com isso, o movimento histórico que transforma os produtores em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a libertação desses trabalhadores da servidão e da coação corporativa, e esse é único aspecto que existe para nossos historiadores burgueses. Por outro lado, no entanto, esses recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam. E a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo. (p.961-2) Os capitalistas industriais, esses novos potentados, tiveram, por sua vez, de deslocar não apenas os mestresartesãos corporativos, mas também os senhores feudais, que detinham as fontes de riquezas. Sob esse aspecto, sua ascensão se apresenta como o fruto de uma luta vitoriosa contra o poder feudal e seus privilégios revoltantes, assim como contra as corporações e os entraves que estas colocavam ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Mas se os cavaleiros da indústria desalojaram os cavaleiros da espada, isso só foi possível porque os primeiros exploraram acontecimentos nos quais eles não tinham a menor culpa. Sua ascensão se deu por meios tão vis quanto os que outrora permitiram ao liberto romano converter-se em senhor de seu patronus [patrono]. (p.962) O estágio seguinte consistiu numa mudança de forma dessa subjugação, na transformação da exploração feudal em exploração capitalista. Para compreendermos sua marcha, não precisamos remontar a um passado tão remoto. Embora os primórdios da produção capitalista já se nos apresentem esporadicamente, nos séculos XIV e XV, em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista só tem início no século XVI. Nos lugares onde ela surge, a supressão da servidão já está há muito consumada, e o aspecto mais brilhante da Idade Média, a existência de cidades soberanas, há muito já empalideceu. (p.962-3) Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação, mas, acima de tudo, os momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários absolutamente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo. Sua história assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na

acres de terra como anexo permanente; ainda em 1638, sob Carlos I, nomeou-se uma comissão real para a implementação das velhas leis, especialmente a que estabelece os 4 acres de terra; também Cromwell proibiu a construção de qualquer casa, num raio de 4 milhas ao redor de Londres, que não estivesse dotada de 4 acres de terra. Ainda na primeira metade do século XVIII havia queixas quando o cottage do trabalhador agrícola não dispunha, como complemento, de 1 ou 2 acres de terra. Hoje, tal trabalhador está feliz quando sua casa é dotada de uma pequena horta ou quando pode arrendar, longe dela, umas poucas varas de terra. (p.968) Um novo e terrível impulso ao processo de expropriação violenta das massas populares foi dado, no século XVI, pela Reforma e, em consequência dela, pelo roubo colossal dos bens da Igreja. Na época da Reforma, a Igreja católica era a proprietária feudal de grande parte do solo inglês. A supressão dos monastérios etc. lançou seus moradores no proletariado. Os próprios bens eclesiásticos foram, em grande parte, presenteados aos rapaces favoritos do rei ou vendidos por um preço irrisório a especuladores, sejam arrendatários ou habitantes urbanos, que expulsaram em massa os antigos vassalos hereditários e açambarcaram suas propriedades. A propriedade, garantida por lei aos camponeses empobrecidos, de uma parte dos dízimos da Igreja foi tacitamente confiscada. (p.969) Ainda nas últimas décadas do século XVII, a yeomanry, uma classe de camponeses independentes, era mais numerosa que a classe dos arrendatários. Ela constituíra a força principal de Cromwell e, como reconhece o próprio Macaulay, era superior aos sórdidos fidalgos bêbados e seus lacaios, os curas rurais, obrigados a desposar a “criada favorita” do senhor. Os assalariados rurais ainda eram coproprietários da propriedade comunal. Em torno de 1750, a yeomanry havia desaparecido199 e, nas últimas décadas do século XVIII, o último resquício de propriedade comunal dos lavradores. Abstraímos aqui as forças motrizes puramente econômicas da revolução agrícola. O que procuramos são os meios violentos por ela empregados. (p.970) Sob a restauração dos Stuarts, os proprietários fundiários instituíram legalmente uma usurpação, que em todo o continente também foi realizada sem formalidades legais. Eles aboliram o regime feudal da propriedade da terra, isto é, liberaram esta última de seus encargos estatais, “indenizaram” o Estado por meio de impostos sobre os camponeses e o restante da massa do povo, reivindicaram a moderna propriedade privada de bens, sobre os quais só possuíam títulos feudais, e, por fim, outorgaram essas leis de assentamento (laws of settlement), que , mutatis mutandis, tiveram sobre os lavradores ingleses os mesmos efeitos que o édito do tártaro Boris Godunov sobre os camponeses russos. (p.970) A “Glorious Revolution” (Revolução Gloriosa)j conduziu ao poder, com Guilherme III de Orange200, os extratores de mais-valor, tanto proprietários fundiários como capitalistas. Estes inauguraram a nova era praticando em escala colossal o roubo de domínios estatais que, até então, era realizado apenas em proporções modestas. Tais terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, por meio de usurpação direta, anexadas a domínios privados201. Tudo isso ocorreu sem a mínima observância da etiqueta legal. O patrimônio do Estado, apropriado desse modo fraudulento, somado ao roubo das terras da Igreja – quando estas já não haviam sido tomadas durante a revolução

republicana –, constituem a base dos atuais domínios principescos da oligarquia inglesa. Os capitalistas burgueses favoreceram a operação, entre outros motivos, para transformar o solo em artigo puramente comercial, ampliar a superfície da grande exploração agrícola, aumentar a oferta de proletários absolutamente livres, provenientes do campo etc. Além disso, a nova aristocracia fundiária era aliada natural da nova bancocracia, das altas finanças recém-saídas do ovo e dos grandes manufatureiros, que então se apoiavam sobre tarifas protecionistas. A burguesia inglesa atuava em defesa de seus interesses tão acertadamente quanto os burgueses suecos, que, ao contrário, em aliança com seu baluarte econômico, o campesinato, apoiaram os reis na retomada violenta das terras da Coroa em mãos da oligarquia (desde 1604, mais tarde nos reinados de Carlos X e Carlos XI). (p.971) A propriedade comunal – absolutamente distinta da propriedade estatal anteriormente considerada – era uma antiga instituição germânica, que subsistiu sob o manto do feudalismo. Vimos como a violenta usurpação dessa propriedade comunal, em geral acompanhada da transformação das terras de lavoura em pastagens, tem início no final do século XV e prossegue durante o século XVI. Nessa época, porém, o processo se efetua por meio de atos individuais de violência, contra os quais a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O progresso alcançado no século XVIII está em que a própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários também empreguem paralelamente seus pequenos e independentes métodos privados. A forma parlamentar do roubo é a das “Bills for Inclosures of Commons” (leis para o cercamento da terra comunal), decretos de expropriação do povo, isto é, decretos mediante os quais os proprietários fundiários presenteiam a si mesmos, como propriedade privada, com as terras do povo. Sir Francis Morton Eden refuta sua própria argumentação espirituosa de advogado, na qual procura apresentar a propriedade comunal como propriedade privada dos latifundiários que assumiram o lugar dos senhores feudais, quando exige “uma lei parlamentar geral para o cercamento das terras comunais”, admitindo, com isso, ser necessário um golpe de Estado parlamentar para transformar essas terras em propriedade privada, e, por outro lado, quando reivindica ao poder legislativo uma “indenização” para os pobres expropriados. (p.971-2) Enquanto o lugar dos yeomen independentes foi ocupado por tenants-at-will, arrendatários menores sujeitos a ser desalojados com um aviso prévio de um ano, isto é, um bando servil e dependente do arbítrio do landlord, o roubo sistemático da propriedade comunal, ao lado do roubo dos domínios estatais, ajudou especialmente a inchar aqueles grandes arrendamentos, que, no século XVIII, eram chamados de fazendas de capital205 ou arrendamentos de mercador206, e a “liberar” a população rural para a indústria, como proletariado. (p.972) O que o landlord vizinho anexava, sob o pretexto do cercamento, não era apenas terra alqueivada, mas eram frequentemente terras cultivadas comunalmente ou mediante um determinado pagamento à comunidade. (p.973) Assim ele resume o efeito global dos inclosures: “Em termos gerais, a situação das classes inferiores do povo tem piorado em quase todos os sentidos; os pequenos proprietários fundiários e arrendatários foram rebaixados à condição de jornaleiros e trabalhadores

exterminados. Todos os seus vilarejos foram destruídos e incendiados; todos os seus campos transformados em pastagens. Soldados britânicos foram incumbidos da execução dessa tarefa e entraram em choque com os nativos. Uma anciã morreu queimada na cabana que ela se recusara a abandonar. Desse modo, a duquesa se apropriou de 794 mil acres de terras que desde tempos imemoriais pertenciam ao clã. Aos nativos expulsos ela designou cerca de 6 mil acres de terras, 2 acres por família, na orla marítima. Até então, esses 6 mil acres haviam permanecido ermos, e seus proprietários não haviam obtido renda nenhuma com eles. Movida por seu nobre sentimento, a duquesa chegou ao ponto de arrendar o acre de terra por 2 xelins e 6 pence às pessoas do clã que por séculos haviam vertido seu sangue pela família Sutherland. Toda a terra roubada ao clã foi dividida em 29 grandes arrendamentos, destinados à criação de ovelhas ; cada arrendamento era habitado por uma só família, em sua maioria servos ingleses de arrendatários. [...] A parte dos aborígines jogada na orla marítima procurou viver da pesca. Tornaram-se anfíbios, vivendo, como diz um escritor inglêsl , metade sobre a terra, metade na água e, no fim das contas, apenas metade em ambas. (p.978) Mas os bravos gaélicos deviam pagar ainda mais caro por sua idolatria romântica de montanheses pelos “grandes homens” do clã. O cheiro de peixe subiu ao nariz dos grandes homens. Estes farejaram algo lucrativo nesse assunto e arrendaram a orla marítima aos grandes comerciantes de peixes de Londres. Os gaélicos foram expulsos pela segunda vez. (p.978) Por último, no entanto, uma parte das pastagens para ovelhas foi reconvertida em reserva de caça. Na Inglaterra, como é sabido, não há florestas propriamente ditas. Os animais que vagam pelos parques dos grandes são inquestionavelmente gado doméstico, gordo como os aldermen [conselheiros municipais] londrinos. A Escócia é, assim, o último asilo da “nobre paixão”. (p.978) O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre. (p.979) Expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e intermitente de suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que fora trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente arrancados de seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da nova situação. Converteram-se massivamente em mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento, em toda a Europa ocidental, no final do século XV e ao longo do século XVI, de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual classe trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose, que lhes fora imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como delinquentes “voluntários” e supunha depender de sua boa vontade que eles continuassem a trabalhar sob as velhas condições, já inexistentes. (p.980)

Henrique VIII, 1530: mendigos velhos e incapacitados para o trabalho recebem uma licença para mendigar. Em contrapartida, açoitamento e encarceramento para os vagabundos mais vigorosos. Estes devem ser amarrados a um carro e açoitados até sangrarem; em seguida, devem prestar juramento de retornarem à sua terra natal ou ao lugar onde tenham residido durante os últimos três anos e de “se porem a trabalhar” (to put himself to labour). (p.980) Eduardo VI: um estatuto do primeiro ano de seu reinado, 1547, estabelece que quem se recusar a trabalhar deverá ser condenado a se tornar escravo daquele que o denunciou como vadio. O amo deve alimentar seu escravo com pão e água, caldos fracos e os restos de carne que lhe pareçam convenientes. Ele tem o direito de forçá-lo a qualquer trabalho, mesmo o mais repugnante, por meio de açoites e agrilhoamento. O escravo que fugir e permanecer ausente por 14 dias será condenado à escravidão perpétua e deverá ser marcado a ferro na testa ou na face com a letra S; se fugir pela terceira vez, será executado por alta traição. Seu dono pode vendê-lo, legá-lo a herdeiros ou alugá-lo como escravo, tal como qualquer outro bem móvel ou gado doméstico. Os escravos que tentarem qualquer ação contra os senhores também deverão ser executados. Os juízes de paz, assim que informados, deverão perseguir os velhacos. Quando se descobrir que um vagabundo esteve vadiando por 3 dias, ele deverá ser conduzido à sua terra natal, marcado com um ferro em brasa no peito com a letra V e acorrentado para trabalhar nas estradas ou ser utilizado em outras tarefas. Se o vagabundo informar um lugar de nascimento falso, seu castigo será o de se tornar escravo vitalício dessa localidade, de seus habitantes ou da corporação, além de ser marcado a ferro com um S. Todas as pessoas têm o direito de tomar os filhos dos vagabundos e mantê-los como aprendizes: os rapazes até os 24 anos, as moças até os 20. [...] Todo amo tem permissão para pôr um anel de ferro no pescoço, nos braços ou nas pernas de seu escravo, para poder reconhecê-lo melhor e estar mais seguro de sua posse221. A última parte desse estatuto prevê que certos pobres devem ser empregados pela localidade ou pelos indivíduos que lhes deem de comer e de beber e queiram encontrar trabalho para eles. Esse tipo de escravos paroquiais subsistiu na Inglaterra até o avançar do século XIX, sob o nome de roundsmen (circulantes). (p.982) Elizabeth, 1572: mendigos sem licença e com mais de 14 anos de idade devem ser severamente açoitados e ter a orelha esquerda marcada a ferro, caso ninguém queira tomá- los a serviço por 2 anos; em caso de reincidência, se com mais de 18 anos de idade, devem ser executados, caso ninguém queira tomá-los a serviço por 2 anos; na segundan reincidência, serão executados sem misericórdia, como traidores do Estado. (p.982) Jaime I: alguém que vagueie e mendigue será declarado um desocupado e vagabundo. Os juízes de paz, nas Petty Sessionsp, têm autorização para mandar açoitá-los em público e encarcerá-los, na primeira ocorrência, por 6 meses, e na segunda, por 2 anos. Durante seu tempo na prisão, serão açoitados tanto e tantas vezes quanto os juízes de paz considerarem conveniente... Os vagabundos incorrigíveis e perigosos devem ser marcados a ferro no ombro esquerdo com a letra Rq e condenados a trabalho forçado, e se forem apanhados de novo mendigando devem ser executados sem perdão. Essas disposições legais, vigentes até o começo do século XVIII, só foram revogadas por 12 Ana c. 23. (p.982) Leis semelhantes foram promulgadas na França, onde, em meados do século XVII, estabeleceu-se um reino de vagabundos (royaume des truands), em Paris. Ainda nos primeiros anos de reinado de Luís XVI (ordenança de 13 de julho de 1777) dispôs-se que

Elizabeth impunham 10 dias de prisão para quem pagasse um salário mais alto, e 21 dias para quem o recebesse. Um estatuto de 1360 tornava mais rigorosas as penas e, inclusive, autorizava o patrão a empregar a coação física para extorquir trabalho pela tarifa legal de salário. Todas as combinações, convênios, juramentos etc. pelos quais pedreiros e carpinteiros se vinculavam entre si, eram declarados nulos e sem valor. Desde o século XIV até 1825, ano da revogação das leis anticoalizão, considerava-se crime grave toda coalizão de trabalhadores. O espírito do estatuto trabalhista de 1349 e de seus descendentes se revela muito claramente no fato de que o Estado impõe um salário máximo, mas de modo algum um mínimo. (p.986) No século XVI, como se sabe, a situação dos trabalhadores piorou consideravelmente. O salário em dinheiro subiu, mas não na proporção da depreciação do dinheiro e ao consequente aumento dos preços das mercadorias. Na realidade, portanto, o salário caiu. Todavia, permaneceram em vigor as leis voltadas a seu rebaixamento, acompanhadas dos cortes de orelhas e das marcações a ferro daqueles “que ninguém quis tomar a seu serviço”. O estatuto dos aprendizes 5 Elizabeth c. 3 autorizou os juízes de paz a fixar certos salários e a modificá-los de acordo com as estações do ano e os preços das mercadorias. Jaime I estendeu essa regulação do trabalho aos tecelões, fiandeiros e a todas as categorias possíveis de trabalhadores, e Jorge II estendeu as leis anticoalizão a todas as manufaturas. (p.986) No período manufatureiro propriamente dito, o modo de produção capitalista estava suficientemente fortalecido para tornar a regulação legal do salário tão inaplicável como supérflua, mas se preferiu conservar, para o caso de necessidade, as armas do velho arsenal. A lei 8 Jorge II ainda proibia que os oficiais de alfaiataria recebessem, em Londres e arredores, salários acima de 2 xelins e 71/2 pence por dia, salvo em casos de luto público; a lei 13 Jorge III c. 68 transferiu aos juízes de paz a regulamentação dos salários dos tecelões de seda; em 1796, foram necessárias duas sentenças dos tribunais superiores para decidir se os mandatos dos juízes de paz sobre salários também valiam para os trabalhadores não agrícolas; em 1799, uma lei do Parlamento confirmou que o salário dos mineiros da Escócia devia ser regulado por uma lei da época da rainha Elizabeth e por duas leis escocesas, de 1661 e 1671. [...] Por fim, em 1813, as leis de regulação dos salários foram revogadas. Elas eram uma ridícula anomalia, desde que o capitalista passara a regular a fábrica por meio de sua legislação privada, deixando que o imposto de beneficência complementasse o salário do trabalhador rural até o mínimo indispensável. As disposições do Estatuto do Trabalho sobre contratos entre patrões e assalariados, prazos para demissões e questões análogas, que permitem apenas uma ação civil contra o patrão por quebra contratual, mas uma ação criminal contra o trabalhador que cometer essa mesma infração, permanecem em pleno vigor até o momento atual. (p.987) As cruéis leis anticoalizões caíram em 1825, diante da atitude ameaçadora do proletariado. Apesar disso, caíram apenas parcialmente. Alguns belos resíduos dos velhos estatutos desapareceram somente em 1859. Finalmente, a lei parlamentar de 29 de junho de 1871 pretendeu eliminar os últimos vestígios dessa legislação classista, reconhecendo legalmente as trades’ unions. Mas uma lei parlamentar da mesma data (An act to amend the criminal law relating to violence, threats and molestations) restaurou, de fato, a situação anterior sob nova forma. Por meio dessa escamoteação parlamentar, os

meios a que os trabalhadores podem recorrer numa greve ou lock-out (greve dos fabricantes coligados, realizada mediante o fechamento simultâneo de suas fábricas) são subtraídos ao direito comum e submetidos a uma legislação penal de exceção, cuja interpretação cabe aos próprios fabricantes, em sua condição de juízes de paz. [...] Porém, jamais se permitiu que tal projeto chegasse a uma segunda leitura, e assim a questão foi protelada até que o “grande partido liberal”, por meio de uma aliança com os tories, ganhou finalmente a coragem de se voltar resolutamente contra o mesmo proletariado que o conduzira ao poder. Não satisfeito com essa traição, o “grande partido liberal” autorizou os juízes ingleses, sempre a abanar o rabo a serviço das classes dominantes, a desenterrar as proscritas leis sobre “conspirações” e a aplicá-las às coalizões de trabalhadores. Como vemos, o parlamento inglês só renunciou às leis contra as greves e trades’ unions contra sua vontade e sob a pressão das massas, depois de ele mesmo ter assumido, por cinco séculos e com desavergonhado egoísmo, a posição de uma permanente trades’ union dos capitalistas contra os trabalhadores. (p.988) Apenas muito recentemente ela foi riscada do Code Pénal [código penal]. Nada mais característico que o pretexto deste golpe de Estado burguês. “Ainda que seja desejável” – diz Le Chapelier – “que o salário ultrapasse seu nível atual, para que, desse modo, aquele que o receba escape dessa dependência absoluta condicionada pela privação dos meios de primeira necessidade, que é quase a dependência da escravidão”, os trabalhadores não devem ser autorizados, contudo, a pôrse de acordo sobre seus interesses, a agir em comum e, por meio disso, a mitigar sua “dependência absoluta, que é quase a dependência da escravidão”, porque assim feririam a “a liberdade de seus ci-devant maîtres [antigos amos], dos atuais empresários” (a liberdade de manter os trabalhadores na escravidão!), e porque uma coalizão contra o despotismo dos antigos mestres das corporações – adivinhe – equivaleria a restaurar as corporações abolidas pela constituição francesa. (p.989) Depois de termos analisado a violenta criação do proletariado inteiramente livre, a disciplina sanguinária que os transforma em assalariados, a sórdida ação do Estado, que, por meios policiais, eleva o grau de exploração do trabalho e, com ele, a acumulação do capital, perguntamo-nos: de onde se originam os capitalistas? Pois a expropriação da população rural, diretamente, cria apenas grandes proprietários fundiários. No que diz respeito à gênese do arrendatário, poderíamos, por assim dizer, tocá-la com a mão, pois se trata de um processo lento, que se arrasta por muitos séculos. Os próprios servos, e ao lado deles também pequenos proprietários livres, encontravam-se submetidos a relações de propriedade muito diferentes, razão pela qual também foram emancipados sob condições econômicas muito diferentes. (p.989) Na Inglaterra, a primeira forma de arrendatário é a do bailiff, ele mesmo um servo da gleba. Sua posição é análoga a do villicusu da Roma Antiga, porém com um raio de ação mais estreito. Durante a segunda metade do século XIV, ele é substituído por um arrendatário, a quem o landlord provê sementes, gado e instrumentos agrícolas. Sua situação não é muito distinta da do camponês. Ele apenas explora mais trabalho assalariado. Não tarda em se converter em metayer [meeiro], meio arrendatário. Ele investe uma parte do capital agrícola, o landlord a outra. Ambos repartem entre si o produto global em proporção determinada por contrato. Essa forma desaparece rapidamente na

[...] Ao mesmo tempo, ergueram-se grandes fiações e tecelagens de linho, nas quais os “liberados” passaram a trabalhar, agora por salários. O linho tem exatamente o mesmo aspecto de antes. Não se modificou nem uma única de suas fibras, mas uma nova alma social instalou-se em seu corpo. Ele constitui, agora, uma parte do capital constante dos patrões manufatureiros. Antes, ele era repartido entre inúmeros pequenos produtores, que, com suas famílias, o cultivavam e fiavam em pequenas porções; agora, ele se concentra nas mãos de um capitalista, que coloca outros para fiar e tecer para ele. Anteriormente, o trabalho extra gasto na fiação do linho resultava em receita complementar para inúmeras famílias camponesas ou, à época de Frederico II, em impostos pour le roi de Prusse [para o rei da Prússia]. Ele se realiza, agora, no lucro de poucos capitalistas. Os fusos e teares, antes esparsos pelo interior, agora se concentram em algumas grandes casernas de trabalho, do mesmo modo que os trabalhadores e a matéria- prima. E fusos, teares e matéria-prima, que antes constituíam meios de existência independentes para fiandeiros e tecelões, de agora em diante se transformam em meios de comandálos e de deles extrair trabalho não pago. Quando se observa as grandes manufaturas, bem como os grandes arrendamentos, não se percebe que são constituídos de muitos pequenos centros de produção, nem que se formaram pela expropriação de muitos pequenos produtores independentes. No entanto, um olhar imparcial não se deixa enganar. À época de Mirabeau, o leão da revolução, as grandes manufaturas ainda eram chamadas de manufactures réunies, oficinas reunidas, assim como falamos de lavouras reunidas. (p.993) A expropriação e expulsão de uma parte da população rural não só libera trabalhadores para o capital industrial, e com eles seus meios de subsistência e seu material de trabalho, mas cria também o mercado interno. (p.994) De fato, os acontecimentos que transformam os pequenos camponeses em assalariados, e seus meios de subsistência e de trabalho em elementos materiais do capital, criam para este último, ao mesmo tempo, seu mercado interno. Anteriormente, a família camponesa produzia e processava os meios de subsistência e matérias-primas que ela mesma, em sua maior parte, consumia. Essas matériasprimas e meios de subsistência converteram-se agora em mercadorias; o grande arrendatário as vende e encontra seu mercado nas manufaturas. Fios, panos, tecidos grosseiros de lã, coisas cujas matérias-primas se encontravam no âmbito de toda família camponesa e que eram fiadas e tecidas por ela para seu consumo próprio, transformam-se, agora, em artigos de manufatura, cujos mercados são formados precisamente pelos distritos rurais. A numerosa clientela dispersa, até então condicionada por uma grande quantidade de pequenos produtores, trabalhando por conta própria, concentra-se agora num grande mercado, abastecido pelo capital industrial. (p.995) Desse modo, a expropriação dos camponeses que antes cultivavam suas próprias terras e agora são apartados de seus meios de produção acompanha a destruição da indústria rural subsidiária, o processo de cisão entre manufatura e agricultura. E apenas a destruição da indústria doméstica rural pode dar ao mercado interno de um país a amplitude e a sólida consistência de que o modo de produção capitalista necessita. (p.995) No entanto, o período manufatureiro propriamente dito não provocou uma transformação radical. Recordemos que a manufatura só se apodera muito fragmentariamente da

produção nacional e tem sempre como sua ampla base de sustentação o artesanato urbano e a indústria subsidiária doméstica e rural. Toda vez que a manufatura destrói essa indústria doméstica em uma de suas formas, em ramos particulares de negócio e em determinados pontos, ela provoca seu ressurgimento em outros, pois tem necessidade dela, até certo grau, para o processamento da matéria-prima. Ela produz, assim, uma nova classe de pequenos lavradores, que cultivam o solo como atividade subsidiária e exercem como negócio principal o trabalho industrial para a venda dos produtos à manufatura, diretamente ou por meio do comerciante. [...] A causa principal é a seguinte: a Inglaterra é predominantemente, ora cultivadora de trigo, ora criadora de gado, em períodos alternados, e com essas atividades varia o tamanho da empresa camponesa. Somente a grande indústria proporciona, com as máquinas, o fundamento constante da agricultura capitalista, expropria radicalmente a imensa maioria da população rural e consuma a cisão entre a agricultura e a indústria doméstica rural, cujas raízes – a fiação e a tecelagem – ela extirpa. Portanto, é só ela que conquista para o capital industrial todo o mercado interno. (p.996) A gênese do capitalista industrial não se deu de modo tão gradativo como a do arrendatário. Sem dúvida, muitos pequenos mestres corporativos, e mais ainda pequenos artesãos independentes, ou também trabalhadores assalariados, transformaram-se em pequenos capitalistas e, por meio da exploração paulatina do trabalho assalariado e da correspondente acumulação, em capitalistas sans phrase [sem floreios]. Durante a infância da produção capitalista, as coisas se deram, muitas vezes, como na infância do sistema urbano medieval, quando a questão de saber qual dos servos fugidos devia se tornar mestre ou criado era geralmente decidida com base na data mais ou menos recente de sua fuga. Entretanto, a marcha de lesma desse método não correspondia em absoluto às necessidades comerciais do novo mercado mundial, que fora criado pelas grandes descobertas do fim do século XV. Mas a Idade Média havia legado duas formas distintas do capital, que amadureceram nas mais diversas formações socioeconômicas e, antes da era do modo de produção capitalista, já valiam como capital quand même [em geral]: o capital usurário e o capital comercial. (p.997) O regime feudal no campo e a constituição corporativa nas cidades impediram o capital monetário, constituído pela usura e pelo comércio, de se converter em capital industrial. Essas barreiras caíram com a dissolução dos séquitos feudais e com a expropriação e a parcial expulsão da população rural. A nova manufatura se instalou nos portos marítimos exportadores ou em pontos do campo não sujeitos ao controle do velho regime urbano e de sua constituição corporativa. Na Inglaterra se assistiu, por isso, a uma amarga luta das corporate townsv contra essas novas incubadoras industriais. (p.998) A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o globo terrestre como palco. Ela é inaugurada pelo levante dos Países Baixos contra a dominação espanhola, assume proporções gigantescas na guerra antijacobina inglesa e prossegue ainda hoje nas guerras do ópio contra a China etc. (p.998)

caráter cristão da acumulação primitiva. Esses austeros e virtuosos protestantes, os puritanos da Nova Inglaterra, estabeleceram em 1703, por decisão de sua assembly [assembleia], um prêmio de £40 para cada escalpo indígena e cada pele-vermelha capturado; em 1720, um prêmio de £100 para cada escalpo; em 1744, depois de MassachusettsBay ter declarado certa tribo como rebelde, os seguintes preços: £100 da nova moeda para o escalpo masculino, a partir de 12 anos de idade; £105 para prisioneiros masculinos, £50 para mulheres e crianças capturadas, £50 para escalpos de mulheres e crianças! (p.1001) O sistema colonial amadureceu o comércio e a navegação como plantas num hibernáculo. As “sociedades Monopolia” (Lutero) foram alavancas poderosas da concentração de capital. Às manufaturas em ascensão, as colônias garantiam um mercado de escoamento e uma acumulação potenciada pelo monopólio do mercado. Os tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio, a escravização e o latrocínio refluíam à metrópole e lá se transformavam em capital. A Holanda, primeiro país a desenvolver plenamente o sistema colonial, encontrava-se já em 1648 no ápice de sua grandeza comercial. Encontrava-se “de posse quase exclusiva do comércio com as Índias Orientais e do tráfico entre o sudoeste e o nordeste europeu. Sua pesca, frotas e manufaturas sobrepujavam as de qualquer outro país. Os capitais da República eram talvez mais consideráveis que os de todo o resto da Europa somados”. (p.1002) Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No período manufatureiro propriamente dito, ao contrário, é a supremacia comercial que gera o predomínio industrial. Daí o papel preponderante que o sistema colonial desempenhava nessa época. Ele era o “deus estranho” que se colocou sobre o altar, ao lado dos velhos ídolos da Europa, e que, um belo dia, lançou-os por terra com um só golpe. Tal sistema proclamou a produção de mais-valor como finalidade última e única da humanidade. (p.1002) O sistema de crédito público, isto é, das dívidas públicas, cujas origens encontramos em Gênova e Veneza já na Idade Média, tomou conta de toda a Europa durante o período manufatureiro. O sistema colonial, com seu comércio marítimo e suas guerras comerciais, serviu-lhe de incubadora. Assim, ele se consolidou primeiramente na Holanda. A dívida pública, isto é, a alienação [Veräusserung] do Estado – seja ele despótico, constitucional ou republicano – imprime sua marca sobre a era capitalista. A única parte da assim chamada riqueza nacional que realmente integra a posse coletiva dos povos modernos é... sua dívida pública243a. Daí que seja inteiramente coerente a doutrina moderna segundo a qual um povo se torna tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público se converte no credo do capital. E ao surgir o endividamento do Estado, o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, cede seu lugar para a falta de fé na dívida pública. (p.1003) A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como com um toque de varinha mágica, ela infunde força criadora no dinheiro improdutivo e o transforma, assim, em capital, sem que, para isso, tenha necessidade de se expor aos esforços e riscos inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. Na realidade, os credores do Estado não dão nada, pois a soma emprestada se converte em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que, em suas mãos,

continuam a funcionar como se fossem a mesma soma de dinheiro vivo. Porém, ainda sem levarmos em conta a classe de rentistas ociosos assim criada e a riqueza improvisada dos financistas que desempenham o papel de intermediários entre o governo e a nação, e abstraindo também a classe dos coletores de impostos, comerciantes e fabricantes privados, aos quais uma boa parcela de cada empréstimo estatal serve como um capital caído do céu, a dívida pública impulsionou as sociedades por ações, o comércio com papéis negociáveis de todo tipo, a agiotagem, numa palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia. (p.1003) Desde seu nascimento, os grandes bancos, condecorados com títulos nacionais, não eram mais do que sociedades de especuladores privados, que se colocavam sob a guarda dos governos e, graças aos privilégios recebidos, estavam em condições de emprestar-lhes dinheiro. Por isso, a acumulação da dívida pública não tem indicador mais infalível do que a alta sucessiva das ações desses bancos, cujo desenvolvimento pleno data da fundação do Banco da Inglaterra (l694). Esse banco começou emprestando seu dinheiro ao governo a um juro de 8%, ao mesmo tempo que o Parlamento o autorizava a cunhar dinheiro com o mesmo capital, voltando a emprestá-lo ao público sob a forma de notas bancárias. Com essas notas, ele podia descontar letras, conceder empréstimos sobre mercadorias e adquirir metais preciosos. Não demorou muito para que esse dinheiro de crédito, fabricado pelo próprio banco, se convertesse na moeda com a qual o Banco da Inglaterra tomava empréstimos ao Estado e, por conta deste último, pagava os juros da dívida pública. Não lhe bastava dar com uma mão para receber mais com a outra: o banco, enquanto recebia, continuava como credor perpétuo da nação até o último tostão adiantado. E assim ele se tornou, pouco a pouco, o receptáculo imprescindível dos tesouros metálicos do país e o centro de gravitação de todo o crédito comercial. (p.1004) Com as dívidas públicas surgiu um sistema internacional de crédito, que frequentemente encobria uma das fontes da acumulação primitiva neste ou naquele povo. Desse modo, as perversidades do sistema veneziano de rapina constituíam um desses fundamentos ocultos da riqueza de capitais da Holanda, à qual a decadente Veneza emprestou grandes somas em dinheiro. O mesmo se deu entre a Holanda e a Inglaterra. Já no começo do século XVIII, as manufaturas holandesas estavam amplamente ultrapassadas, e o país deixara de ser a nação comercial e industrial dominante. Um de seus negócios principais, entre 1701 e 1776, foi o empréstimo de enormes somas de capital, especialmente à sua poderosa concorrente, a Inglaterra. Algo semelhante ocorre hoje entre Inglaterra e Estados Unidos. Uma grande parte dos capitais que atualmente ingressam nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, é sangue de crianças que acabou de ser capitalizado na Inglaterra. (p.1005) [...] Os empréstimos capacitam o governo a cobrir os gastos extraordinários sem que o contribuinte o perceba de imediato, mas exigem, em contrapartida, um aumento de impostos. Por outro lado, o aumento de impostos, causado pela acumulação de dívidas contraídas sucessivamente, obriga o governo a recorrer sempre a novos empréstimos para cobrir os novos gastos extraordinários. O regime fiscal moderno, cujo eixo é formado pelos impostos sobre os meios de subsistência mais imprescindíveis (portanto, pelo encarecimento desses meios), traz em si, portanto, o germe da progressão automática. A sobrecarga tributária não é, pois, um incidente, mas, antes, um princípio. [...]

Liverpool empregava 15 navios no tráfico de escravos; em 1751, 53; em 1760, 74; em 1770, 96; e, em 1792, 132. (p.1009) Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo. (p.1009) Tantae molis erat [tanto esforço se fazia necessário] para trazer à luz as “eternas leis naturais” do modo de produção capitalista, para consumar o processo de cisão entre trabalhadores e condições de trabalho, transformando, num dos polos, os meios sociais de produção e subsistência em capital, e, no polo oposto, a massa do povo em trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos” livres, esse produto artificial da história moderna. Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces”, o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés. (p.1009) No que resulta a acumulação primitiva do capital, isto é, sua gênese histórica? Na medida em que não é transformação direta de escravos e servos em trabalhadores assalariados, ou seja, mera mudança de forma, ela não significa mais do que a expropriação dos produtores diretos, isto é, a dissolução da propriedade privada fundada no próprio trabalho. (p.1010) A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é o fundamento da pequena empresa, e esta última é uma condição necessária para o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do próprio trabalhador. É verdade que esse modo de produção existe também no interior da escravidão, da servidão e de outras relações de dependência, mas ele só floresce, só libera toda a sua energia, só conquista a forma clássica adequada onde o trabalhador é livre proprietário privado de suas condições de trabalho, manejadas por ele mesmo : o camponês, da terra que cultiva; o artesão, dos instrumentos que manuseia como um virtuoso. (p.1011) Esse modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos demais meios de produção. Assim como a concentração destes últimos, ele também exclui a cooperação, a divisão do trabalho no interior dos mesmos processos de produção, a dominação e a regulação sociais da natureza, o livre desenvolvimento das forças produtivas sociais. [...] Ao atingir certo nível de desenvolvimento, ele engendra os meios materiais de sua própria destruição. A partir desse momento, agitam-se no seio da sociedade forças e paixões que se sentem travadas por esse modo de produção. Ele tem de ser destruído, e é destruído. Sua destruição, a transformação dos meios de produção individuais e dispersos em meios de produção socialmente concentrados e, por conseguinte, a transformação da propriedade nanica de muitos em propriedade gigantesca de poucos, portanto, a expropriação que despoja grande massa da população de sua própria terra e de seus próprios meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e dificultosa expropriação das massas populares, tudo isso constitui a pré-história do capital. (p.1011)

A expropriação dos produtores diretos é consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis. A propriedade privada constituída por meio do trabalho próprio , fundada, por assim dizer, na fusão do indivíduo trabalhador isolado, independente, com suas condições de trabalho, cede lugar à propriedade privada capitalista, que repousa na exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre. (p.1012) [...] ; tão logo o modo de produção capitalista tenha condições de caminhar com suas próprias pernas, a socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior da terra e de outros meios de produção em meios de produção socialmente explorados – e, por conseguinte, em meios de produção coletivos –, assim como a expropriação ulterior dos proprietários privados assumem uma nova forma. Quem será expropriado, agora, não é mais o trabalhador que trabalha para si próprio, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores. (p.1012) Essa expropriação se consuma por meio do jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada capitalista liquida muitos outros. Paralelamente a essa centralização, ou à expropriação de muitos capitalistas por poucos, desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em escala cada vez maior, a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planejada da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho que só podem ser utilizados coletivamente, a economia de todos os meios de produção graças a seu uso como meios de produção do trabalho social e combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista. Com a diminuição constante do número de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a massa da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora, que, cada vez mais numerosa, é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. (p.1013) A transformação da propriedade privada fragmentária, baseada no trabalho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista, é, naturalmente, um processo incomparavelmente mais prolongado, duro e dificultoso do que a transformação da propriedade capitalista – já fundada, de fato, na organização social da produção – em propriedade social. Lá, tratava-se da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores; aqui, trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo. (p.1013)