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Este texto aborda as diferentes interpretações do conceito de pós-modernismo por louis oliveira, umberto eco, jean-françois lyotard, jean baudrillard e gianni vattimo. O texto discute como cada autor percebe o pós-modernismo, seja como uma forma de operar, domínio estético, simulacro, fractal, hiper-realidade ou pensamento débil. Além disso, o texto explora como o pós-modernismo afeta a razão, a interpretação e a compreensão da realidade.
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Tipologia: Notas de aula
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rogério de almeida Doutor em Educação pela Faculdade de Economia e Administração da Univer- sidade de São Paulo (FEAUSP), graduado em Letras pela Faculdade de Filoso- fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), professor de pós-graduação da Faculdade Campos Salles e professor e coorde- nador de Letras e Pedagogia da Faculdade Anhanguera-Faculdade Integração Zona Oeste (Fizo). E-mail: roalmeida@uol.com.br
RESuMO O objetivo deste artigo é refletir sobre a constituição dos heterônimos pessoa- nos, a partir de sua leitura simbólica, buscando uma compreensão mais abran- gente do que as estabelecidas pelo paradigma clássico da modernidade, que se utilizava exclusivamente do instrumental científico de base racional (aristotéli- co-cartesiana) para suas leituras e reflexões. A contemporaneidade, entendida como a abertura da modernidade, joga com a pluralidade das representações e a reabilitação de estruturas míticas que subjazem às configurações narrativas que expressam sentido, como é o caso da poesia. Inicialmente, são abordadas as noções de pós-moderno, paradigma, imaginário, mito e símbolo, para então se refletir sobre a pluralidade de sentidos da obra heteronímica de Fernando Pessoa e sua ligação com o mito de Hermes, presente na mediação que atua na identidade do sujeito pós-moderno.
Palavras-chave: Poesia portuguesa; Fernando Pessoa; Heteronímia; Imaginário; Pós-modernidade.
FERNANDO PESSOA E O
PÓS-MODERNO: UMA LEITURA
MÍTICO-SIMBÓLICA DA HETERONÍMIA
Fernando Pessoa e o pós-moderno — Rogério de Almeida
AbStRACt The objective of this article is to reflect on the constitution of Pessoa’s hete- ronyms using symbolic reading to achieve an understanding more detailed than the ones established for the classic paradigm of the modernity, that only use the scientific instrument of rational base (aristotelian-cartesian) for its lectures and reflections. The contemporaneousness, understood as the opening of moderni- ty, plays with the plurality of the representations, and the rehabilitation of mythi- cal structures usually concealed by narrative configurations that express sense, as poetry. The review of some concepts as post-modern, paradigm, imaginary, myth and symbol, will be first step to reflect on multitude of senses in Pessoa’s artistic production and its connection with the myth of Hermes, inserted in the mediation that mold the post-modern identity.
Keywords: Portuguese poetry; Fernando Pessoa; Heteronimity; Imagina- ry; Post-modernity.
E O MItO
momento contemporâneo pode ser assinalado como um momento de crise, e a palavra crise deve ser entendida, em seu sentido grego, como alteração, transformação, mudança. Independentemente do nome que possamos dar a essa crise ou a esse momento — modernidade líqui- da (Bauman, s.d.), capitalismo tardio (Jameson, 1985), hiper-realidade (Bau- drillard, 1991), sociedade transparente (Vattimo, 1988) etc. —, convém carac- terizá-lo como um momento de abertura, de transformações, mas não de ruptura. E para que não trafeguemos pelas idéias sem saber como chamá-las, fiquemos com o nome que hoje se faz mais corrente nas discussões intelectuais — chamemos o momento contemporâneo de pós-moderno. O pós-moderno, como conceitua Louis Oliveira, surge como uma nova paisagem, consolidada com a abertura, a desconstrução/transformação do mundo moderno, originan- do a fractalização dos sentidos, ou seja, surgem novos sentidos para o que antes possuía uma só razão.
O pós-moderno, assim, aparece como uma operação que diminui a força de certas estruturas modernas e, muito além de se caracterizar pelo termo fim ou destruição, faz aparecer outras paisagens desse mesmo mundo moderno. Essa operação rechaça as tiranias das tota- lidades e libera o espaço do domus , do insignificante, do pequeno (OLIVEIRA, 1999, p. 219).
Fernando Pessoa e o pós-moderno — Rogério de Almeida
A teoria, então, e o método imbricado a ela como práxis, busca antes uma relação com o mundo, o homem, ou o objeto de estudo, se assim se quiser, do que a sua representação ou explicação racional; a teoria é antes a explicitação de problemas, idéias-problemas, do que a sua solução. Nesse sentido, a teoria não fecha seu campo de atuação, traçando regras para uma ciência que isola, mutila e universaliza em busca de provas, sínteses e unificações, mas abre seus espaços para que circulem novos e antigos sentidos, novos e antigos métodos, a mesma e sempre diferente inquietação do homem com o seu conhecimento. Trata-se, portanto, de uma discussão epistemológica, necessária no mo- mento para que se estabeleça o solo paradigmático em que se cultivarão as reflexões que se apresentarão neste artigo sobre a atualidade dos heterôni- mos pessoanos. Assim, podemos, juntamente com Morin, pensar em um conhecimento complexo em oposição ao paradigma predominante na mo- dernidade, que o autor chama de clássico. Se o paradigma clássico “é um paradigma de simplificação, caracterizado por um princípio de generalida- de , um princípio de redução e um princípio de separação ” (MORIN, 1999, p. 329), o paradigma de complexidade aponta para o “conjunto dos princí- pios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo” (MORIN, 1999, p. 330). Nessa adoção de um novo paradigma surge a necessidade de ressignificar antigos conceitos, proporcionando uma abertura , no que antes se apresen- tava fechado , operando uma sutura no que antes havia de corte. “Fixar o campo teórico é, de início, desfazer-se de correntes e de modelos e, ao mes- mo tempo, apegar-se a certas teorizações. Enfim, o campo da interpretação é o grande referencial” (OLIVEIRA, 1999, p. 28). Isso porque presenciamos o “fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica” (SANTOS, 1988, p. 47). Ou, como pontua Bachelard (1978, p. 158):
Os próprios conceitos científicos podem perder sua universalidade. Como o diz Jean Perrin, “todo conceito acaba perdendo sua utilidade, sua própria significação, quando nos afastamos progressivamente das condições experimentais em que foi formulado”. Os conceitos e os mé- todos, tudo é função do domínio da experiência; todo o pensamento científico deve mudar diante duma experiência nova; um discurso sobre o método científico será sempre um discurso de circunstância, não des- creverá uma constituição definitiva do espírito científico.
Em termos mais exatos, podemos compreender o paradigma como
os conceitos fundamentais ou categorias mestras da inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações lógicas de atração/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre estes conceitos ou categorias (MORIN, s. d., p. 188).
Educação, Arte e História da Cultura • Volume 5/6 • Número 5/6 • 2005/
Assim, o paradigma adotado aqui fundamenta-se em uma ontologia plu- ralista, uma epistemologia interativa, uma lógica polivalente (contradito- rial), uma causalidade probabilística (em redes), uma metodologia fenome- nológico-compreensiva, uma análise estrutural e uma linguagem simbólica (CARVALHO, 1990). Como conseqüência dessa posição, há que se ressignificar também a razão, que se abre ao acaso, à desordem, a aporias, brechas lógicas, oximo- ros etc., alçando-se a uma razão sensível, “sinergia da matéria e do espírito” (MAFFESOLI, 1998, p. 152), ou razão complexa, que
já não concebe em oposição absoluta, mas em oposição relativa, isto é, também em complementaridade, em comunicação, em trocas, em ter- mos até ali antinômicos: inteligência e afetividade; razão e desrazão. Homo já não é apenas sapiens , mas sapiens/demens (MORIN, 1999, p. 168).
Por essa razão, a abertura pós-moderna e o saber complexo arrolado com ela nos intimam a uma análise mais antropológica, que revisite o ho- mem em sua origem e possibilite uma análise também complexa, que pro- cure a convergência dos saberes, em vez de se perder numa especificidade que, embora possa aprofundar nesta ou noutra faceta do homem, ficará longe de dar conta dele como um todo. Nesse sentido, a escolha epistemo- lógica pode constituir uma estratégia eficaz para a análise, e, no caso, a es- colha pelo paradigma do imaginário parece munir o estudioso de uma boa instrumentalização para uma análise abrangente e profunda, que veja o homem além de suas vestes culturalmente determinadas, para buscar seu corpo nu, ou seja, situar a investigação, e seu objeto, no entrecruzamento da natureza e da cultura, aceitando, ao mesmo tempo, a impossibilidade de isolar os pólos, uma vez que tanto o imaginário quanto o homem operam numa trajetividade, que Durand (1997) chama de “trajeto antropológico”, ou seja, a incessante troca entre os pólos das pulsões subjetivas e das inti- mações cósmico-sociais. Partindo dessas noções, é possível então empreender uma análise que contemple o imaginário, a partir das conceituações de Durand, segundo as quais há dois regimes do imaginário, um diurno e outro noturno, abrangen- do as estruturas figurativas do herói, do místico e do drama. Essas estrutu- ras associam-se aos reflexos dominantes, que realizam esquemas, que, por sua vez, se cristalizam em arquétipos, que por fim agenciam os símbolos. Dessa forma, o imaginário enraíza-se no próprio corpo e, diferentemente do racionalismo, não opera por cisão, em que somente a mente, situada no cé- rebro, seria o centro do saber racional. Assim, o imaginário atua incorporando a razão e promovendo a reabili- tação dos símbolos como mediadores do gesto de conhecer. O conhecimen-
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Dessa forma, o pós-moderno, ao instaurar a abertura das representações que a modernidade quis única e homogênea, propicia uma leitura simbólica em que o imaginário, compreendido como uma atualização mítica do dina- mismo das imagens que dotam de sentido a experiência e o conhecimento humano, guia a pluralidade de sentidos para uma visão mais complexa — como conceitua Morin (1999) — da realidade heteronímica. Assim, vere- mos que os heterônimos pessoanos expressam muito mais que um plano estético para a representação poética do mundo; expressam também uma weltanschauung cujo conjunto de símbolos remete a uma configuração ar- quetípica e mítica.
DE PENSAMENtOS
Alberto Caeiro é o poeta da natureza, o seu descobridor, o seu intérprete. Não é, se pensarmos num antropos tradicional, um nômade, coletor ou ca- çador, em busca de alimento; também não é um lavrador, não cultiva a agri- cultura sedentária, que exige a espera da colheita e da renovação dos ciclos, mas a junção dos dois ou, mais precisamente, o pastor, que circunvaga soli- tariamente com seu rebanho e cultiva a vida em seu ciclo de renovação. O pastor é forte como os caçadores, que aprimoram os músculos e a determi- nação, a velocidade e a percepção, a confrontação do mundo, mas é também sábio como os agricultores, que sabem o sabor das sazões e das searas, que se sentam onde há sombra e, se escurece, sabe o que ver ao olhar para as estrelas. Se o caçador, o nômade, luta com e contra a natureza, o agricultor, o sedentário, envolve-se nela e a revolve, mistura-se à terra, sulca-a, derrama a semente e espera a gestação do broto e a preparação do alimento. O pastor é a força de sua caminhada e a sabedoria do seu cultivo. Caeiro é esse pastor de pensamentos, sábio ao devolver o universo a ele mesmo, ao ensinar uma aprendizagem de desaprender e forte para ser um mestre, um guia e condu- zir o pensamento ocidental aos seus limites (PESSOA, 2001, p. 84):
Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras
A simplicidade de Caeiro consiste na sua complexa visão: ver as coisas como elas são. Essa é a sua ciência de ver , essa a sua educação. Educação tanto mais complexa, pois seu ver é essencialmente conhecer, conhecer pe- las sensações, pensar seus pensamentos que são todos sensações. O que Caeiro quer nos ensinar é que conhecemos pela nossa sensibilidade. Para
Fernando Pessoa e o pós-moderno — Rogério de Almeida
usar um termo durandiano, é a estrutura figurativa da sensibilidade que permite ao homem conhecer o mundo. Nesse sentido, sua sensibilidade de pastor, sua sensibilidade dramática, nega e afirma simultaneamente, nega qualquer sentido acrescentado, nega o pensar, que deve ser entendido aqui em seu sentido exclusivamente racional, e, conseqüentemente, nega a me- tafísica para afirmar o sentido próprio das coisas, que coincide com elas; para afirmar os pensamentos que são sensações, ou seja, o mundo que percebemos com nossa sensibilidade; e, finalmente, para afirmar uma on- tologia da diferença, que se sustenta na repetição cíclica da natureza. Álvaro de Campos, em suas Notas para a recordação do meu Mestre Caeiro , apresenta-o assim (PESSOA, 1998, p. 107):
Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não tem medo; depois, os ma- lares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. O cabelo, quase abundante, era louro, mas, se faltava luz, acastanhava-se. A estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O gesto era branco, o sor- riso era como era, a voz era igual, lançada num tom de quem não procura senão dizer o que está dizendo — nem alta, nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O olhar azul não sabia deixar de fitar.
Essa descrição de Caeiro, com seu estranho ar grego , corporifica sua personalidade, mais que isso, sua sensibilidade, e nos remete a um passa- do, mais que estritamente temporal e/ou cultural, mítico. Se considerarmos que seu criador se preocupou inclusive com seu mapa astral, mas quase nada com sua biografia — o que temos são dados gerais, como o fato de ter vivido quase toda a sua vida no campo, junto a uma tia —, percebemos a intencionalidade, válida para os demais heterônimos, de criar não exclusi- vamente biografias, mas principalmente psicografias, psicogenias ou, em uma terminologia mais abrangente, em operar uma mitopoese. Caeiro, as- sim como os demais heterônimos que o reconhecem como mestre, testemu- nha uma weltanschauung , uma visão de mundo, um modo de conhecer, uma estrutura de sensibilidade, uma paisagem mental própria. Surge como uma existência, cria-se como um mito, realiza o mito em seu destinar-se à vida, vida que, não nos enganemos, se desenvolve na imaginação, mas que, apesar disso ou justamente por isso, não deixa de ser real. Consciente ou não, divisão que não procede quando se trata de uma sensibilidade mitopoética, Fernando imaginou em Caeiro a harmonia dos opostos, dinâmica expressa no imaginário de sua poesia e no destinar-se de seu corpo, de estatura média, tanto alto quanto baixo, pois tendia-se mais
Fernando Pessoa e o pós-moderno — Rogério de Almeida
A conclusão do apontamento é que o artista que se guia pela sensibilida- de domina como o ditador ou o fundador de religiões. É claro que seu do- mínio não se dá pela imposição de seu raciocínio, de sua inteligência ou de sua lógica; o domínio se dá pela imposição de sua sensibilidade. “O artista verdadeiro é um foco dinamogêneo” (PESSOA, 1998, p. 244), em que a no- ção de dinamogenia, tanto para Pessoa quanto para Bachelard, está estrita- mente ligada à imaginação que movimenta a matéria, imaginação criativa. É assim que se deve entender Caeiro pela sua, muito particular, sensibi- lidade. Quando diz, por exemplo, não ter religião, é preciso não esquecer, no entanto, que está intimamente religado à natureza, com as partes que a compõem sem formá-la um todo, ou seja, há uma objetividade caeiriana que o faz dizer que “O que nós vemos das cousas são as cousas./Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?” (PESSOA, 2001, p. 60). Há, sem dúvida alguma, a negação do deus monoteísta, do deus cristão, mas em compensação há um profundo sentimento de religiosidade que confere um caráter sagrado à experiência que Caeiro tem da natureza. Sua objetividade foi interpretada, principalmente pelo heterônimo e dis- cípulo Ricardo Reis, como a essência do paganismo (PESSOA, 1998, p. 174):
Alberto Caeiro é mais pagão que o paganismo, porque é mais cons- ciente da essência do paganismo do que qualquer outro escritor pa- gão. Como o poderia ser um pagão, se concebia a essência do seu psiquismo em oposição a um sistema diferente de sensibilidade, como o cristianismo é? E quando se abria o conflito entre paganismo e cristianismo, na ascensão deste último, já a entorpecida e decaden- te mentalidade dos povos romanos era propriamente cristã, e não pagã de modo nenhum.
Mais produtivo que tentarmos acompanhar as muitas linhas que Pessoa dedicou ao assunto, inclusive com a criação do heterônimo Antônio Mora, especialmente nascido para isso, é percebermos a metáfora obsessiva, o fundo mitêmico que o faz insistir numa religiosidade alternativa ao cristia- nismo, ou cristismo, como ironicamente gostava de chamar. Pessoa é essen- cialmente plural, vê-se assim e a natureza também, o que o põe na contra- mão da modernidade, ainda comprometida com a idéia de unidade, tanto para o universo, por meio da ciência e da razão, quanto para o homem, com a noção de identidade.
A religião pagã é politeísta. Ora, a natureza é plural. A natureza, natu- ralmente, não nos surge como um conjunto, mas como “muitas coi- sas”, como pluralidade de cousas. Não podemos afirmar positivamen- te, sem o auxílio de um raciocínio interveniente, sem a intervenção da
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inteligência na experiência direta, que exista, deveras, um conjunto chamado Universo, que haja uma unidade, uma cousa que seja uma, designável por natureza. A realidade, para nós, surge-nos diretamente plural. O fato de referirmos todas as nossas sensações à nossa consci- ência individual é que impõe uma unificação falsa (experimentalmente falsa) à pluralidade com que as cousas nos aparecem. [...] A pluralida- de de deuses, portanto, o primeiro característico distintivo de uma re- ligião que seja natural (PESSOA, 1998, p. 175).
Antes, portanto, de ser pagão, Caeiro é natural, um pastor que navega nas “sensações verdadeiras” e aqui verdadeiro corresponde a imediato. Caeiro pensa através das sensações, anula a separação sujeito/objeto, pois a sen- sação corresponde ao objeto, não necessita da reflexão do sujeito sobre si mesmo, ação que, a partir do cogito de Descartes, passa a ser a forma úni- ca de validação do conhecimento. É, pois, no isolamento do objeto e na ci- são do sujeito que passa a ser dois, o que pensa e o que é pensado, que se processa a ciência. Na retomada da sensação, prevalece o olhar, a atenção, e o sujeito, não mais em oposição a si e ao objeto, pode ter, da sua relação com o objeto, a sensação que corresponde tanto ao objeto quanto à sua estrutura de sensibilidade.
A sensação da realidade era direta nos gregos e nos romanos, em toda a “antiguidade clássica”. Era imediata. Entre a sensação e o objeto — fosse esse objeto uma cousa do exterior ou um sentimento — não se interpunha uma reflexão, um elemento qualquer estranho ao próprio ato de sentir. A atenção era por isso perfeita, cingia cada objeto por sua vez, delineava-lhe os contornos, recortava-o para a memória. Quando era dirigida para o interior, [...] incidia atentamente sobre cada detalhe da vida espiritual, concretizando-o pela própria acuidade equilibrada da atenção (PESSOA, 1998, p. 424).
Não há melhor explicação para a ciência de ver defendida por Caeiro. A constituição de sua estrutura mítica de sensibilidade concretiza o que Pes- soa idealizou como sensacionismo , corrente literária que é também uma cosmovisão e, “ao passo que qualquer corrente literária tem, em geral, por típico excluir as outras, o Sensacionismo tem por típico admitir as outras todas” (PESSOA, 1998, p. 434). Essa admissão tem uma única condição, que não se aceite nenhuma separadamente. Essa harmonia das diferenças buscada por Pessoa o leva a desejar que a arte seja “um todo em que haja a precisa harmonia entre o todo e as partes componentes, não harmonia feita e exterior, mas harmonia interna e orgânica” (PESSOA, 1998, p. 434). Caeiro é este todo em que as partes se harmonizam, mesmo quando contraditórias, pois a força de sua poesia está na sensação, nas imagens, na
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moderno, tanto em seu cotidiano quanto em suas inquietações metafísicas. Mas não nos enganemos quanto à sua existência. Não só sua poesia, e a constituição da pessoa Campos como poeta, é plausível, como também con- vincente. Se nos esquecermos de que Álvaro é uma criação ou uma extensão ou um descentramento de Fernando, não haverá um só evento, estilístico, biográfico ou psicológico, que o desabone como estrutura de sensibilidade. É bem verdade que não existiu em carne e osso, mas assim como certas personagens são tão reais que nos convencem de sua existência, podemos falar de Álvaro de Campos como um arquétipo; há sangue, suor, sêmen em suas palavras, há a sua verdade, uma realização arquetipal que é própria do homem moderno, inclusive e principalmente por sua carga de fracasso e de estilhaçamento.
Campos era um homem do sul. A sua cidade natal, Tavira, na costa do Algarve, é como um quadro cubista de casas caiadas, podia surgir na costa da Sicília ou da Grécia. Do homem meridional, além dos traços somáticos (tinha o aspecto do judeu sefardita, especifica Pessoa) teve também a índole e os gostos: os ardores, as paixões, os entusiasmos; e os conseqüentes desalentos e desenganos. Deles, e de si próprio, soube ter pena: mas da sua pena soube sorrir com um sorriso lúcido e impiedoso, muitas vezes sarcástico (TABUCCHI, 1984, p. 48).
Sorriso, lucidez, impiedade sarcástica como a que se encontra em “Taba- caria”, poema-paradigma que ao lado do “Wasted Land”, de T. S. Eliot, sintetiza a primeira metade do século XX, o entreguerras , em que o homem calca aos pés “a consciência de estar existindo,/ Como um tapete em que um bêbado tropeça / Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada” (PESSOA, 1997, p. 238). Nada, aliás, que é mote de muitos dos poemas de Campos. Niilismo, certamente, mas que dialoga constantemente com seu oposto, como atestam os versos iniciais de “Tabacaria”:
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo (PESSOA, 1997, p. 235).
Todos os sonhos do mundo que o introduz no mundo, no centro de um mundo que o antropos ancestral soube (com)partilhar, fazer parte , soube se (con)fundir, mas do qual o homem moderno se afastou, com sua consci-
3 Publicado em 1922, é uma alegoria ao mundo moderno, privado de alma: I will show you fear in a handful of dust (“Vou te mostrar o medo num punhado de pó”) (ELIOT, 1969, p. 61).
Fernando Pessoa e o pós-moderno — Rogério de Almeida
ência racionalmente crítica. Daí a impossibilidade de ser qualquer coisa que não seja o nada , pois “O mundo [moderno] é para quem nasce para o conquistar” (PESSOA, 1997, p. 236). Conquista que é um mitologema pro- meteico, um ato heróico, como derrubar portas, diante do qual certas sen- sibilidades, mais afeitas ao labirinto, à viagem, ao caminho, se vêem angus- tiadamente estagnadas, como lamenta Álvaro:
Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira (PESSOA, 1997, p. 237).
O fracasso de Campos talvez seja o que mais sobressaia em sua poesia, mas uma leitura complexa está atenta ao que à primeira vista parece uma contradição, pois é essa contradição que revela, na verdade, a ambivalência do símbolo, das imagens e da vida, para não dizer do homem, ser plural que, por isso mesmo, é antes de tudo paradoxal. Não por outra razão o fracasso de Campos se resolve em seus versos, “Pórtico partido para o Im- possível” (PESSOA, 1997, p. 237), impossibilidade que, no entanto, não só é possível, mas realizável, ainda que na dimensão da poesia, do sonho, da sensibilidade. Afinal, se Campos falhou em tudo , “talvez tudo fosse nada” (PESSOA, 1997, p. 236). Negada a racionalidade do mundo moderno, que convoca para a ação objetivada, um mundo de possibilidades impossíveis ou de impossibilidades possíveis se abre ao homem. Mundo pré-moderno, arcaico, tradicional, imaginário, pós-moderno? Talvez todos ou simples- mente um mundo antropológico, objetivo na subjetividade do homem ou subjetivo na objetivação que o homem lhe dá, mas sem dúvida mundo que constitui a trajetividade:
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras. [...]
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como varias pessoas, Quanto mais personalidades eu tiver, Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas ellas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente attento, Estiver, sentir, viver, fôr, Mais possuirei a existencia total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fora, Mais analogo serei a Deus, seja elle quem fôr,
Fernando Pessoa e o pós-moderno — Rogério de Almeida
lógicas da Física, tanto de Einstein quanto de Schröedinger e a revaloriza- ção da mitologia; enfim, de um lado o declínio do instituído, de outro a for- ça nascente e germinadora do instituinte. Poucos foram, no âmbito da arte, os que souberam operar a coincidentia oppositorum , harmonizando os contrários em suas obras e antecipando o ressurgimento de Hermes, cujos mitemas só se tornam socialmente visíveis com a pós-modernidade (DU- RAND, 1992). Exceção feita a Proust, Joyce e Pessoa, entre essas antenas da raça , que visionariamente delinearam uma nova epistemologia, cuja base é a complexidade, como mostra Morin (1999), mas também trouxe- ram à baila novas roupagens de antigos mitos, reatualizando arquétipos ancestrais que, sem deixar de existir, foram sufocados pela civilização mo- derna, como dão prova C. G. Jung (1998) e G. Durand (1992). Álvaro de Campos é a representação mais bem-acabada do fracasso moderno, que transformou o homem em um ser da ação (BERMAN, 1987). Incapaz de agir, sobrou ao poeta estilhaçado o sonho metafísico de um mundo cujo sentido é dado pela imaginação. Campos reconheceu na mo- dernidade sua absoluta falta de sentido, instância que o pós-moderno reconhece como base de sua operação. O pós-moderno opera com o plu- ral, com o deslocamento dos eixos, com os sentidos vividos pela própria experiência, sem espaço para teorizações racionalistas que lhe imprimam uma representação única e compartilhada por toda a sociedade. É, de fato, — e Campos o exprimiu bem — a derrota do pensamento, como o quis Finkielkraut (1989), mas também o deslocamento desse pensamen- to racionalizado (e derrotado) para o ressurgimento da sensibilidade, que conhece não pelo rigor da razão, mas pelo vigor do vivido.
tRANqüILIDADE
Se há uma atitude ante a vida e o destino que pode resumir o heterônimo mais altivo de Fernando Pessoa é a tranqüilidade. Como viver, ou passar pela vida, está no cerne de sua obra poética. Aceitação tranqüila do destino, aceitação da brevidade da vida, aceitação do tempo que passa e leva consigo a permanência: fomos, já não somos; somos, já não fomos.
Nada, senão o instante, me conhece. Minha mesma lembrança é nada, e sinto Que quem sou e quem fui São sonhos diferentes (PESSOA, s. d., p. 133).
Atado ao instante, o presenteísmo faz com que o poeta não projete o futu- ro, espaço da morte e do fim, nem se prenda a lembranças do passado. O que
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passou é de outro que não eu. Resta-lhe o destino, o Fado, superior a ele e aos próprios deuses, com quem conversa, pedindo que dele não se lembrem.
Quero dos deuses só que me não lembrem. Serei livre — sem dita nem desdita, Como o vento que é a vida Do ar que não é nada. O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos, Cada um com seu modo, nos oprimem. A quem deuses concedem Nada, tem liberdade (PESSOA, s. d., p. 147).
Passando ao largo do amor e do ódio, em uma palavra, dos extremos, Ricardo Reis busca a calma de passar pela vida sem se entregar aos senti- mentos. Essa é a sua liberdade, embora saiba que “só na ilusão da liberda- de/A liberdade existe” (PESSOA, s. d., p. 107). Poderíamos glosar os versos e completá-los sem prejuízo ao poeta: só na ilusão da tranqüilidade, a tran- qüilidade existe. Porque por detrás da tranqüilidade buscada esconde-se uma inquietude por ser, por conhecer, por realizar-se. Poderíamos, sem exagero, entender que Reis, ao aderir a uma espécie de estoicismo epicurista, está buscando uma compreensão trágica da vida, so- bre a qual erige o seu imaginário poético, simbolizado pela rosa, pelo rio, pelo destino, pelos deuses, pelo jogo, enfim, tudo o que remete à brevidade da vida.
Breve o dia, breve o ano, breve tudo. Não tarda nada sermos (PESSOA, s. d., p. 136).
Concepção trágica da vida que evidencia uma filosofia da vida. Na pri- meira pessoa do plural ou na segunda, Reis vai compondo uma espécie de código de como viver. À maneira de um Grácian, pensador trágico, ou de um Horácio, que o inspira, ensina a viver, entre o gozo dos prazeres e a atenuação dos sofrimentos.
Colhe as flores mas larga-as, Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica E sê rei de ti próprio (PESSOA, s. d., p. 104).
Breve ensinamento do nada que somos. Belo ensinamento de como, a despeito disso, sermos reis. Não do mundo, mas de nós mesmos. Colher as flores, ou colher o dia, é um dos poucos prazeres da vida, assim como se
Educação, Arte e História da Cultura • Volume 5/6 • Número 5/6 • 2005/
Ricardo Reis mostra-se inteiro em seus versos, criados, poeta e obra, por Fernando Pessoa, que se pôs inteiro na criação desse heterônimo. Se Caeiro procura expressar uma alternativa ao pensamento abstrato e tormentoso, que tanto atribulou Pessoa; se Campos procura exteriorizar uma emoção que em Pessoa é pura contenção, Reis busca a calma, uma calma qualquer, que é a que Pessoa nunca teve. Domínio do sentir, domínio da emoção, domínio do querer. Reis abdica para ser rei, consola-se com a aceitação do destino, ao qual os próprios deuses estão subordinados, para poder consolar. Fernando Pessoa (1998, p. 139) assim o viu nascer:
O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realiza- ção, da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as cousas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reação momentânea. Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo princípios que não adoto nem aceito.
É contra os excessos da modernidade que nasce Reis, propondo uma teoria neoclássica, contida em seus versos, que é anúncio de um renasci- mento dos deuses, paganismo em oposição ao cristianismo, ou, como o próprio poeta chamou, cristismo.
Deponhamo-los [os versos] como oferendas, tábuas votivas, no altar dos Deuses, gratos simplesmente porque eles nos hajam livrado, e posto a salvamento, daquele naufrágio universal que é o cristismo (PESSOA, 1998, p. 146).
E é naufrágio universal porque assenta-se, filosoficamente, sobre um sistema dualista. Divide espírito e corpo, matéria e substância, eternidade e tempo presente.
O Cristianismo afirma que há duas realidades, duas coisas igualmente verdadeiras, igualmente reais. Ora, dizer que a verdade é de duas es- pécies é dizer que há duas realidades, duas verdades (PESSOA, 1998, p. 554).
De fato, a cisão imposta pelo pensamento judaico-cristão, reforçada pela filosofia ocidental da modernidade, tornará as duas realidades cada vez mais incomunicáveis. No entanto, na concepção de Pessoa (1998, p. 555), “a dualidade é transitória, o espírito é realmente a única realidade”.
Fernando Pessoa e o pós-moderno — Rogério de Almeida
A dualidade é transitória porque surge da cisão de algo que é integral; é transitória porque busca retornar, ou avançar, ao que é integral. Nesse sen- tido, o espírito é, também, matéria. O paradoxo, que nada mais é que a in- tegração dos contrários, exprime aqui uma concepção pagã da religiosida- de, que é a de Reis:
Os deuses gregos representam a fixação abstrata do objetivismo con- cretizador. Nós não podemos viver sem idéias abstratas, porque sem elas não podemos pensar. O que devemos é furtar-nos a atribuir-lhes uma realidade que não derive da matéria de onde as extraímos. Assim acontece aos deuses. […] Os deuses são portanto reais e irreais ao mesmo tempo. São irreais porque não são realidades, mas são reais porque são abstrações concretizadas. […] Uma idéia só se torna Deus quando é devolvida à concreção. Passa então a ser uma força da Natu- reza. Isso é um Deus (PESSOA, 1998, p. 147-148).
Uma idéia devolvida à concreção. Extraímos as idéias da matéria, a ela as devolvemos. É dessa sinergia entre matéria e espírito que surge a razão sen- sível com a qual reaprendemos a olhar o mundo em sua interidade. Caeiro nos ensinou a despir o olhar dos conceitos, Reis nos ensina a vestir o olhar de deuses, esses conceitos (teoria, de teos ) enraizados na matéria, portanto abstração concretizada, ou racionalismo poético (BACHELARD, 1978), as- sim como o próprio gesto heteronímico. Pessoa, ao criar homens abstratos e dar-lhes obras materiais, deu à sua própria subjetividade uma objetividade prenhe de subjetividade; subjetividade outra, é verdade, mas idéia tornada matéria, reatualização dos deuses, mitologia. Não seria o mito também uma concreção do abstrato, na dupla via recursiva da abstração do concreto? Pessoa, criador de mitos, dá a Reis os versos com os quais se pode conhe- cer, sob o prisma do epicurismo e do estoicismo, o mundo. Reis é estóico na medida em que aceita e cumpre o destino, mas não crê que esse destino afine- se com a voz divina; antes, crê que o Fado rege os próprios deuses. Não nega a força dos deuses ou sua realidade no mundo, mas também não busca sua intervenção, apenas sua indiferença: “Quero dos deuses só que não me lem- brem” ou “Aos deuses peço só que me concedam / O nada lhes pedir” (PES- SOA, s. d., p. 147). Essa aceitação de Reis, essa adequação à situação, não coaduna com a ética do dever estóica. Não há que se buscar, também, a razão com que se atingir a virtude, basta sermos o que somos (PESSOA, s. d., p. 147):
Não tenhamos melhor conhecimento Do que nos coube que de que nos coube. Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado.