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Bruxaria e Feitiçaria no Vice-Reinado do Peru: A Perseguição e os Imaginários Misturados, Notas de aula de Idiomas

Este documento discute sobre a perseguição à bruxaria e feitiçaria no vice-reinado do peru, durante a chegada dos espanhóis até meados do século xviii. Ele aborda a preocupação com a bruxaria diabólica, a obsessão pela mesma e as acusações contra indígenas, europeus, africanos e judeus. Além disso, ele menciona os estudiosos que dedicaram-se aos assuntos relacionados à bruxaria, como francisco de vitória e jean bodin.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Feitiçaria, bruxaria e o pacto demoníaco
Ana Raquel Portugal
Universidade Estadual Paulista/Franca – SP (Brasil)
Os espanhóis que cruzaram o Atlântico trouxeram em seu imaginário
medos, crenças, bruxos e demônios com os quais povoaram o Novo Mundo.
Essas manifestações faziam parte de um aparato cognitivo simbólico há muito
difundido1. Vários escritores se dedicaram a elaborar obras que explicassem
a presença do mal personifi cado em fi guras demoníacas, necessariamente
acompanhadas de bruxos e bruxas, fi éis seguidores das artes maléfi cas. Entre
eles, podemos destacar os dominicanos Heinrich Kramer e Jakob Sprenger,
que escreveram um manual para identifi car e castigar bruxas, que contavam
com o auxílio do Demônio e a permissão divina para realizar seus male-
fícios2. Assim, o medo das forças diabólicas foi transposto para a América
pelos espanhóis quinhentistas, que tinham familiaridade com o sobrenatural,
o desconhecido e temido mundo das trevas e seus personagens fantásticos.
Nesse contexto cristalizou-se a idéia de bruxaria, que tinha a participação de
magos, feiticeiros e bruxos conspirando contra os cristãos e, por isso, a prática
de magia, adivinhação e curandeirismo foi sendo associada a heresia pelos
religiosos e isso se consolidou no imaginário europeu.
O medo do desconhecido, do mar e dos monstros marinhos acompanhou
esses homens que cruzaram o oceano3, que traziam também a obrigação de
propagar a fé católica e conseqüentemente a persecução àqueles que conspi-
rassem contra a cristandade. Chegando à América, não hesitaram em matar,
saquear e conquistar, material e espiritualmente, os povos aqui encontrados,
pois como afi r mou Sepúlveda era o correto a se fazer em relação a esses bár-
baros, que de homens ímpios e servos do demônio, passariam a ser civiliza-
dos, cristãos e cultores da verdadeira fé4.
Para que o domínio fosse completo, esses homens preocuparam-se em
compreender os signos do ‘outro’, a linguagem, costumes e tudo mais que
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Feitiçaria, bruxaria e o pacto demoníaco

Ana Raquel Portugal Universidade Estadual Paulista/Franca – SP (Brasil)

Os espanhóis que cruzaram o Atlântico trouxeram em seu imaginário medos, crenças, bruxos e demônios com os quais povoaram o Novo Mundo. Essas manifestações faziam parte de um aparato cognitivo simbólico há muito difundido^1. Vários escritores se dedicaram a elaborar obras que explicassem a presença do mal personificado em figuras demoníacas, necessariamente acompanhadas de bruxos e bruxas, fiéis seguidores das artes maléficas. Entre eles, podemos destacar os dominicanos Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, que escreveram um manual para identificar e castigar bruxas, que contavam com o auxílio do Demônio e a permissão divina para realizar seus male- fícios^2. Assim, o medo das forças diabólicas foi transposto para a América pelos espanhóis quinhentistas, que tinham familiaridade com o sobrenatural, o desconhecido e temido mundo das trevas e seus personagens fantásticos. Nesse contexto cristalizou-se a idéia de bruxaria, que tinha a participação de magos, feiticeiros e bruxos conspirando contra os cristãos e, por isso, a prática de magia, adivinhação e curandeirismo foi sendo associada a heresia pelos religiosos e isso se consolidou no imaginário europeu. O medo do desconhecido, do mar e dos monstros marinhos acompanhou esses homens que cruzaram o oceano^3 , que traziam também a obrigação de propagar a fé católica e conseqüentemente a persecução àqueles que conspi- rassem contra a cristandade. Chegando à América, não hesitaram em matar, saquear e conquistar, material e espiritualmente, os povos aqui encontrados, pois como afirmou Sepúlveda era o correto a se fazer em relação a esses bár- baros, que de homens ímpios e servos do demônio, passariam a ser civiliza- dos, cristãos e cultores da verdadeira fé^4. Para que o domínio fosse completo, esses homens preocuparam-se em compreender os signos do ‘outro’, a linguagem, costumes e tudo mais que

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pudesse proporcionar poder e sucesso em suas investidas de conquista^5. Assim, apareceram as primeiras descrições da sociedade andina, seus grupos étnicos, formas de subsistência, religiosidade, esta última, equiparada aos modelos demonológicos europeus. Os responsáveis pelo espaço sagrado desses povos foram transformados em bruxos e feiticeiros^6 , como poderemos comprovar na descrição de Polo de Ondegardo^7 :

Otro gênero de hechizeros auía entre los Índios, permitidos por los Ingás en cierta manera, que son como brujos. Que toman la figura que quieren y van por el ayre en breue tiempo, mucho camino; y ven lo que passa, hablan don el demonio, el qual les responde en ciertas piedras, ó en otras cosas que ellos veneran mucho (1916 [1571], t.III, p.29).

Percebe-se que os elementos simbólicos familiares aos europeus foram utilizados para interpretar as crenças nativas e por isso, bruxos voavam e davam sinais de lealdade ao demônio. Iniciou-se a partir do século XVI no vice-reinado do Peru a onda per- secutória contra a bruxaria e manifestações malignas que deveriam ser suprimidas, atingindo todo aquele que atentasse contra a cristandade, fosse protestante, cristão-velho ou novo, ou até mesmo indígena neófito na fé cristã. Muito embora a partir da Real Cédula de 1571 de Felipe II, os índios não pudessem ser processados pela Inquisição, mesmo assim, foram perse- guidos e ficaram sobre a alçada das autoridades civis ou episcopais. Para esse fi m, foram criadas as campanhas de extirpação de idolatrias, que tinham por objetivo terminar com todos os ídolos e rituais indígenas, visto que estes con- tradiziam o cristianismo, ao adorarem criaturas no lugar do Criador, o Deus cristão^8. Isso simbolizou a tentativa de cristianizar o imaginário indígena, em que seus deuses foram transformados em demônios^9. Seguindo o modelo demonológico da Inquisição européia, perseguiram-se também aqueles que praticavam malefícios, sendo acusados de bruxaria^10. Na análise específica de bruxaria, feitiçaria, demônio e outros conceitos pertinentes ao estudo de fontes inquisitoriais e de extirpação de idolatrias foi criada uma acepção compreensível a espanhóis e indígenas, a partir do encon- tro de distintos imaginários culturais. Corroborando as idéias de Jacques Le Goff^11 e de Cornelius Castoriadis^12 podemos afi rmar que o imaginário não

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ligado a uma interpretação negativa do paganismo por parte dos cristãos. Ele tomou forma a partir dos séculos XI-XII e iconograficamente passou a ser identificado e virou uma verdadeira obsessão, transformando-se naquele que castigava e seduzia os homens, levando-os à perdição^17. Proliferaram, graças também à invenção da imprensa, as publicações demonológicas que tinham por objetivo ensinar a humanidade a se defender das armadilhas desse ser maligno, que era responsável pelas secas, enfermidades e todo tipo de desgraça que se abatesse sobre a indefesa cristandade. Algumas dessas obras tiveram inúmeras edições, como o já citado Malleus Malefi carum , um verda- deiro manual de caça às bruxas que foi reeditado mais de 80 vezes em menos de 200 anos. No caso específico da Espanha, Trevor Roper^18 defende que essa perse- guição teria sido mais branda por conta da intolerância religiosa contra os judeus. Já Brian Levack^19 salienta que tal aparente indulgência da Inquisição espanhola para com os casos de bruxaria nada tinha a ver com os judeus, e sim, com a forma como tal delito era compreendido naquele momento, ou seja, por conta do ceticismo que dominou a mentalidade dos Inquisidores ibéricos, que conforme Gustav Henningsen trataram a bruxaria como mera superstição e os castigos variavam de simples reprimendas a desterros perpé- tuos^20. Henry Kamen^21 mostrou que no começo do século XVI, quando a Inquisição iniciou as investigações em torno da bruxaria enquanto heresia, a repressão a esse delito prosseguia em mãos dos tribunais do estado. A relu- tância dos inquisidores em intervir neste assunto estava em parte motivada pela dúvida se na bruxaria existiam elementos heréticos e por isso, não foi considerada um grande problema até fi ns do século XV. O mais importante para a Inquisição espanhola e para as justiças seculares e eclesiásticas era dife- renciar claramente bruxaria, tida como diabólica, de feitiçaria. A bruxaria podia atuar à distância, não havendo a necessidade de fi ltros, objetos ou ora- ções, pois bastava o desejo do bruxo para que o malefício se realizasse. Isso correspondia ao imaginário cristão de pacto com o Demônio, a quem se entregava a alma e se prestava um verdadeiro culto de idolatria^22 , renegando a fé cristã, em troca da aquisição de poderes sobrenaturais malignos. Já a fei- tiçaria necessitava de um meio para alcançar seu objetivo, seja ele material ou simbólico, como por exemplo, o uso de amuletos, animais, imagens, poções, entre outros, e do ritual para que se realizasse o desejo do feiticeiro ou da

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pessoa para quem o feitiço era feito, visto que podia ser para curar ou deixar doente, ter sorte ou azar, prever o futuro e muito mais. Como a bruxaria dia- bólica era considerada voluntária, negativa e seu objetivo era praticar o mal, normalmente seus praticantes se agrupavam no sabbat^23 para adorar o Diabo, praticavam canibalismo e grandes orgias, ou seja, uma série de comporta- mentos simbolicamente contrários ao cristianismo^24. Sendo assim, além do pacto demoníaco, a bruxaria estava associada ao malefi cium , a magia maléfica, que aparece na Bula Summis Desiderantes de Inocêncio VIII (1484):

...muitas pessoas de ambos os sexos, a negligenciar a própria salvação e a desgarrarem-se da Fé Católica, entregaram-se a demônios, a Ín- cubos e a Súcubos, e pelos seus encantamentos, pelos seus malefícios e pelas suas conjurações, e por outros encantos e feitiços amaldiço- ados e por outras também amaldiçoadas monstruosidades e ofensas hórridas, têm assassinado crianças ainda no útero da mãe, além de novilhos, e têm arruinado os produtos da terra, as uvas das vinhas, os frutos das árvores, e mais ainda: têm destruído homens, mulhe- res, bestas de carga, rebanhos, animais de outras espécies, parreirais, pomares, prados, trigo e muitos outros cereais; estas pessoas mise- ráveis ainda afligem e atormentam homens e mulheres, animais de carga, rebanhos inteiros e muitos outros animais com dores terríveis e lastimáveis e com doenças atrozes, quer internas, quer externas; e impedem os homens de realizarem o ato sexual e as mulheres de conceberem, de tal forma que os maridos não vêm a conhecer as esposas e as esposas não vêm a conhecer os maridos; porém, acima de tudo isso, renunciam de forma blasfema à Fé que lhes pertence pelo Sacramento do Batismo, e por instigação do Inimigo da Hu- manidade não se escusam de cometer e de perpetrar as mais sórdidas abominações e os excessos mais asquerosos para o mortal perigo de suas próprias almas, pelo que ultrajam a Majestade Divina e são causa de escândalo e de perigo para muitos^25.

A partir daí, a bruxaria passou a ocupar um lugar central no campo das acusações de práticas mágicas ante os tribunais inquisitoriais, pois os diver- sos malefi cium acima citados, segundo Keith Thomas, colocavam em risco a

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aparecem fazendo parte do sabá , contraindo pactos com o demônio e reali- zando todas as tarefas próprias desse imaginário. Podemos concluir que em realidade qualquer um que representasse a transgressão social nesse mundo repleto de superstições acabava sofrendo os rigores da Inquisição. A invenção da bruxaria e as concepções demonológicas aplicadas aos indí- genas neófitos Depois de analisada a diferença entre feitiçaria e bruxaria na Europa, pas- samos ao estudo da aplicação dessas crenças quando da chegada dos espanhóis à região andina. A persecução à bruxaria e feitiçaria no vice-reinado do Peru se dá em três grandes momentos, pois desde a chegada dos espanhóis até mea- dos do século XVII, período em que na Europa acontecia a ‘caça às bruxas’, a Reforma e a Contra-Reforma, houve uma grande preocupação com a bruxaria diabólica, sendo que logo os índios ficaram fora da jurisdição inquisitorial e o Santo Ofício se dedicou a perseguir europeus, africanos, judeus e mouros por tal heresia. Os indígenas não escaparam dessa histeria, pois para eles foi criada a Visita de Idolatrias, que também buscava descobrir idólatras, feiticeiros e até mesmo aqueles que tivessem pacto com o demônio. Num segundo momento, que se estendeu do final do século XVII a meados do XVIII, mesmo com o conservadorismo implantado pela Contra-Reforma, a obsessão pela bruxaria diminui devido à mudança do imaginário espanhol, que se reflete no processo de alteridade. O conhecimento do ‘outro’ permite melhorar as relações entre índios, brancos, negros e mestiços e até o pacto demoníaco deixa de estar tão presente nos processos, dando lugar a um número maior de acusações por fei- tiçaria e curandeirismo. O último grande momento de controle das práticas mágicas se dá no final do século XVIII até à Independência. Nessa época a sociedade do vice-reinado do Peru já era mestiça e na Espanha começa a des- pontar o Iluminismo, o que traz mudanças na forma de ver e tratar tais delitos. Sob o governo dos Bourbons, essas práticas passam a ser consideradas problema do Estado e vistas como ‘ignorância’, ‘superstição’, ‘curandeirismo’ e ‘engano’. Pouco a pouco, as acusações por bruxaria diabólica desapareceram e apenas em lugares longínquos persistiram por um tempo a mais^29 .Toda essa preocupação dos espanhóis em controlar as superstições e extirpar as heresias está atrelada ao medo do desconhecido e, sobretudo, porque para eles o encontro com outras culturas foi bastante inquietante. Como afirmou Gustav Henningsen^30 , a crença nas bruxas é uma espécie de mitificação dos grupos socialmente marginalizados

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e corroboramos esse posicionamento verificando que os processos inquisitoriais e de idolatrias, em geral, tratam de acusações contra brancos pobres, mestiços, negros, índios, que são ‘intermediários culturais’^31 , pois transitam entre diver- sos mundos, na fronteira entre a cultura popular e de elite. Normalmente os acusados de bruxaria eram feiticeiros, curandeiros, envenenadores ou aqueles que de alguma forma violassem as convenções sociais e que por isso, deveriam ser castigados numa tentativa de fazê-los retornar à ordem social. Para compre- endermos melhor o imaginário espanhol transladado ao vice-reinado do Peru e que foi aplicado ao mundo indígena, é interessante antes de tudo fazer um estudo dos léxicos produzidos nessa época e nos quais aparecem os significados em quéchua e aymara do que estes europeus concebiam como bruxaria, feitiçaria, bruxos(as), curandeiros(as), demônio e outros vocábulos relativos a essa tarefa de endemoniar os cultos e práticas dos povos andinos. Quando são analisados processos em que indígenas foram acusados de praticarem feitiços influencia- dos pelo demônio, mesmo estando fora da alçada da Inquisição e sabendo que os tribunais seculares não tinham interesse em ‘criar’ testemunhos e verdades, visto não usarem a sistemática inquisitorial e nem terem obsessão em relação aos delitos da fé, que necessariamente procuravam informações sobre o pacto, o sabá e outras características da bruxaria, mesmo assim, encontram-se casos em que o réu foi acusado de ser ‘bruxo’ e praticar ‘feitiços’ com o auxílio da figura satânica, o que demonstra que o uso dos vocábulos bruxaria e feitiçaria em relação aos indígenas não necessariamente tinham a mesma concepção de quando utilizados pelos inquisidores em relação aos processados pelo Santo Ofício, mas percebe-se sim uma simbiose dessas crenças. Um pequeno exemplo, antes de começarmos a examinar os dicionários da época, é o caso do índio Domingo Guaman Iauri, de Ambar, datado de 1662, em que este foi acusado de ser ‘bruxo’ e de sair à noite para suas ‘bruxarias’^32 pelo licenciado Juan Sarmiento de Vivero, visitador geral e de idolatrias do Arcebispado de Lima. Ao longo do processo ele é tido como um feiticeiro que foi enganado pelo demônio:

...en ser hechisero idolatra y em aber usado de supersticiones de hechisos de yerbas, aguas, tierras, polbos, sebo de llama, coca, lanas de colores, pajaros y demas cosas de que los hechiseros usan engañados del Demonio nuestro ene- migo y en que dixere la verdad que el dicho señor visitador no se espantara

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simbólicos. No final do século XVI continua-se ampliando a análise da língua e sua estrutura, assim como aumentam o número de vocábulos conhecidos que foram apresentados por Gonzalez Holguin e Torres Rubio [1619]. Essa é a época dos sermões de Ávila (1608), dos estudos fi lológicos de Garcilaso (1609) em seus Comentarios Reales e das crônicas bilíngües de Guaman Poma de Ayala (1615) e Santa Cruz Pachacuti (1613)^39. Gonzalez Holguín publicou em 1607 sua Gramatica e em 1608 seu Vocabulário, sendo este último de grande valor para os estudos de quéchua devido à grande quantidade de vocábulos e suas inovações fonéticas. Sua intenção era usar os idiomas indígenas como instrumentos de cristianização^40. Torres Rubio teve grande prestígio no século XVII, pois dominou o quéchua , o aymara e o guarani. De todos esses idiomas publicou ‘Vocabularios’, como a Arte de la lengua aymara , em 1616; Arte de la lengua quíchua , em 1619; e a Arte de la lengua guarani , em 1627. Durante trinta anos se dedicou ao ensino da língua aymara em Chuquisaca e Potosi, demonstrando grande habilidade didática. Devido ao seu conhecimento lingüístico adquiriu grande fortuna, pois suas obras eram sucintas e de fácil consulta^41. Ávila foi um dos melhores escritores da língua quéchua. Nascido em Cuzco em 1573, se educou no colégio jesuítico da cidade e entrou para a carreira eclesiástica em 1596. Como cura de San Damián de Huarochiri, lutou contra os ritos gentílicos sobreviventes, acabando com ídolos, conopas (objetos sagra- dos caseiros) e amuletos. Predicou contra os deuses mais venerados da região, entre eles, as montanhas Pariacaca e Chaupiñamoc e ao mesmo tempo foi coletando as lendas andinas na própria língua original. Tendo sido acusado de cometer abusos contra os índios, conseguiu defender-se e pediu para ser transferido para outra paróquia. Em 1610 foi nomeado pelo Arcebispo de Lima, Lobo Guerrero, como primeiro Visitador de Idolatrias. Nessa função deu prosseguimento às suas pesquisas sobre a sobrevivência da antiga fé nos povoados de San Damián, Mama, San Pedro de Casta, Huarochiri e San Lorenzo de Quinti. Profundo conhecedor de quéchua , predicava todos os dias aos indígenas em seu próprio idioma^42. A obra Vocabulário em la lengua general del Peru llamada quíchua,y en la lengua española publicada em 1586 tem por autor Antonio Ricardo, mas ele próprio indica que não o é. Essa obra foi atribuída a vários autores, como: González Holguín, Santo Tomás, Torres Rubio, Blas Valera e Juan Martinez. Quase

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todos os quechuístas da época foram apontados como presumíveis autores, mas ainda não se chegou a nenhuma conclusão plausível^43. Essa obra foi pre- parada a pedido do III Concílio Provincial de Lima (1583) com o propósito de facilitar a catequização dos indígenas^44. Como pudemos perceber, a produção desses léxicos tinha como objetivo principal facilitar o processo de evangelização dos povos indígenas. Por isso, eles são de grande ajuda quando se analisam processos inquisitoriais e de extirpa- ção de idolatrias. Diante de tais informações, consultamos alguns desses dicio- nários e encontramos a tradução de vocábulos importantes para compreender essa mescla de imaginários, como por exemplo, em aymara bruxo ou bruxa, feiticeiro e demônio aparecem assim identificados por Ludovico Bertonio:

‘Bruxo o bruxa que daña con su vista permitiendolo Dios’. Hukhini. + Y dañar assi: Hukhiquiptatha. ‘Hechicero’. Layca, tala, tata, troqqueni, hamuni, hamuttani, vel um. Co- munes, a varon y mujer. ‘Demonio.’ Supayu. Antiguamente decian: Hahuari que es fantasma. + En- demoniado: Supayona maluta, vel alcomaata haque 45.

No dicionário quechua de Diego Gonzalez Holguin, as mesmas palavras aparecem assim:

‘Bruxo Bruxa’. Caucho, o el ojeador. ‘Hechizero’. Humu. ‘Demonio’. Çupay. Endemoniado, çupaypa yaucusccan^46_. ‘Alli zupay’. angel bueno; ‘mana alli zupay’ – angel malo_^47

Nos léxicos do século XVI e XVII bruxos e feiticeiros são tidos como semelhantes e o demônio aparece como anjo fiel à divindade e também como rebelde. Certamente essa interpretação vai influenciar cronistas, religiosos e também os inquisidores e extirpadores de idolatrias. Isso significa que nos processos de extirpação de idolatrias a diferença entre feitiçaria e bruxaria, tão importante na Europa e também para a Inquisição, é bastante discutível em função de questões lingüísticas e também dos interesses da Igreja e da Coroa em manter a ordem social.

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Notas e Referências

1 Imaginário é o conjunto de estilos y las técnicas de expresiones, memorias, y las percepciones del tiempo y del espacio que uma comunidade de pessoas compartilha (Serge GRUZINSKI. The conquest of México: the incorporation of indian societies into the western world, 16th-18th centuries. Cambridge: Polity Press, 1993, p.3). Sobre imaginário e simbolismo ver também: Bronislaw BACZKO. “Imaginação social”. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985; Mircea ELIADE. Imagens e símbolos : ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1996; Gilbert DURAND. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1995; Ernst CASSIRER. Antropologia fi losófi ca. México: Fondo de Cultura Econômica, 1989; Serge GRUZINSKI. A colonização do Imaginário ; Sociedades indí- genas e ocidentalização no México espanhol, séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 2 ...é inútil argumentar que todo o efeito das bruxarias é fantástico ou irreal, pois não poderia ser realizado sem que se recorresse aos poderes do diabo; é necessário, para tal, que se faça um pacto com ele, pelo qual a bruxa de fato e verdadeiramente se torna sua serva e a ele se devota - o que não é feito em estado onírico ou ilusório, mas sim concretamente: a bruxa passa a coope- rar com o diabo e a ele se une. Heinrich KRAMER; Jakob SPRENGER. Malleus Malefi carum. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2001, p.57. 3 Jean DELUMEAU. História do Medo no Ocidente. 1300-1800 uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 4 ‘As justas causas de guerra contra os índios, segundo o Tratado Democrates Alter de Juan Ginés de Sepúlveda – 1547’. Paulo SUESS (Org.). A con- quista espiritual da América espanhola , 200 documentos - Século XVI. Petrópolis: Vozes, 1992. 5 Sobre alteridade ver: Tzvetan TODOROV. A conquista da América; a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1988.; François HARTOG. O espelho de Heródoto ; ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: UFMG,

6 Laura de Mello e SOUZA. Inferno Atlântico; demonologia e colonização. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Paulo SUESS (Org.). Op.cit.

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7 Juan POLO DE ONDEGARDO. “Informaciones acerca de la religión e gobierno de los incas. Seguidas de las Instrucciones de los Concilios de Lima”. Por: URTEAGA, Horacio H. CLDRHP. Lima: Imprenta y Librería San Marti, 1916, t.III. 8 Pierre DUVIOLS. Cultura andina y represion; procesos y hechícerias. Cajatambo, siglo XVII. Cusco: Centro de Estudios Rurales Andinos “Bartolomé de las Casas”, 1986. 9 Serge GRUZINSKI. La colonización de lo imaginario; sociedades indígenas y occidentalización en el México español. Siglos XVI-XVIII. México: Fondo de Cultura Económica, 1991. 10 O início da perseguição européia à bruxaria deu-se após a bula papal de Inocêncio VIII Summis Desiderantis Affectibus , de 1484. (Heinrich KRAMER; Jakob SPRENGER. Op. cit. , p.43-46). 11 Jacques LE GOFF. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994. 12 Cornelius CASTORIADIS. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 13 Sebastián COBARRUVIAS OROZCO. Tesoro de la Lengua Castellana o Española. Madrid: Turner, 1610. 14 Norman COHN. En pos del Milênio. 5. reimp. Madrid: Alianza Editorial, 1997; Jean DELUMEAU. Op.cit., 15 Russel Hope ROBBINS. The encyclopedia of withcraft & demonology. London: Phoebus/Octobus, 1974. 16 Por muito tempo, a bruxaria foi alvo de estudos de antropólogos ou his- toriadores das religiões, mas a obra de Evans-Pritchard sobre a bruxaria entre os Azande favoreceu a aproximação da antropologia com a histó- ria e hoje esses estudos se multiplicaram facilitando uma compreensão, inclusive, do fenômeno da ‘caça às bruxas’ (E.E. EVANS-PRITCHARD. Brujería, magia y oráculos entre los Azande. Barcelona: Editorial Anagrama, 1976). 17 Jean DELUMEAU. Op.cit., p. 239 18 H. R. TREVOR-ROPER. “A obsessão das bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII”. In:______________________. Religião, reforma e transfor- mação social. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1981. 19 Brian P.LEVACK. La caza de brujas en la Europa moderna. Madrid: Alianza Universidad, 1995, p.286-287.

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27 E. E. EVANS-PRITCHARD. Op.cit .; Manuel FERNÁNDEZ ÁLVAREZ. Poder y sociedad en la España del Quinientos. Madrid: Alianza Universidad, 1995. 28 Brian P.LEVACK. Op. cit. 29 Diana Luz CEBALLOS GÓMEZ. Op.cit. 30 Gustav HENNINGSEN. Op. cit. 349. 31 Michel VOVELLE. Ideologias e mentalidades. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. 32 Agustin Capcha fiscal mayor paresco ante vuestra merced como mas a mi dericho combenga digo que mi querello contra Domingo Guaman Yaure endio residente en este pueblo de Ambar al qual acoso criminalmente permiso lo necesario refiriendo al caso digo que el dicho endio tengo noticia por muy cirto que es brujo y que sale de noche a sus brujerías hecho relum- brante al modo de candela que los an visto unas endias… “Querella de Agustin Capcha, fiscal contra Domingo Guaman Sauri, indio del pueblo de Aillon, sobre que es brujo”. Ambar, 1662. AAL, Idolatrias, Leg. IV, exp.8. (Juan Carlos GARCÍA CABRERA. Ofensas a Dios, pleitos e injurias. Cajatambo siglos XVII-XIX. Cuzco: Centro de Estudios Regionales Andinos Bartolomé de Las Casas, 1994). 33 Idem. 34 Os manuscritos consultados para esta pesquisa enocntram-se depositados no ARQUIVO ARCEBISPAL DE LIMA AAL, Idolatrias, Leg. IV, exp.8. 35 Hapuñuñu, o hapiyñuñu. Fantasma, o duende que solía aparecerse con dos tetas lar- gas que podían asir dellas. (Diego GONZALEZ HOLGUIN. Vocabulario de la lengua general de todo el Perú llamada qquichua o del Inca. 3. ed. Lima: UNMSM, 1989 [1607], p.150 ). Phantasma por el Demonio que se aparecia con pechos largos de mujer. Hapiy ñuñu. (Idem, p.629). 36 Y passado algunos años, después de aberlos ydo y echado a los demonios ‘hap- piñuños’ y ‘achacallas’ deste tierra , an llegado entonçes a estas provincias y reynos de ‘Tabantinsuyo’ un hombre barbudo, mediano de cuerpo u con cabellos largos y con camissas largas, y dizen que era ya hombre passado, más que de moço, que trayeya las canas, y el qual andaba con su bordón y era que enseñaba a los naturales, con gran amor, llamándoles a todos hijos e hijas, el qual no fueron oydos ni hecho casso de los naturales, y quando andaba por todas las provincias an hecho muchos milagros etc. Bisibles, solamente con tocar a los enfermos los sanaban. El qual no trayeya enterés ninguno, ni trayeya hatos, el qual dizen que todas las lenguas hablava mejor que los naturales e le nombravan ‘Tonapa o Tarapacá’ <a este barón les llama- van> ‘Uiracocham Pacha Yachachip cachan o pachaccan y bicchai camayoc, cunacuy camayoc’ los yndios de aquel tiempo dizen que suelen burlar deziendo tan parlero

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hombre. Aunque los predicava siempre, no fueron oydos, porque los naturales de aquel tiempo no hizieron caudal ni casso del hombre. Pues se llamó a este barón ‘Tonapa Uiracochampa cachan’, pues ¿no era este hombre el glorioso apóstol Sancto Thomás? ( Joan de Santa Cruz PACHACUTI YAMQUI SALCAMAYGUA. Relacion de antiguedades deste reyno del Piru. Estudio Etnohistórico y Linguístico de Pierre Duviols y César Itier Cuzco: CERA, BLC/IFEA, 1993, p.188- 189). 37 Fr. Domingo de SANTO THOMAS. Léxico Quechua. Ed. Jan Szemiñski. Lima: Ediciones el Santo Oficio, 2006, p. 9. 38 Raúl PORRAS BARRENECHEA. “Prologo”. In: Diego GONZALEZ HOLGUIN. Vocabulario de la lengua general de todo el Perú llamada qquichua o del Inca. 3. ed. Lima: UNMSM, 1989. 39 Diego GONZALEZ HOLGUIN. Op. cit. ; Diego de TORRES RUBIO. Arte de la lengua Qvichva [...] Lima: Francisco Lasso, s/d.; Francisco de AVILA. Ritos y tradiciones de Huarochiri. Manuscrito quechua de comienzos del siglo XVII. Trad. Gerald Taylor. Lima: IEP/IFEA, 1987; Inca GARCILASO DE LA VEGA. Comentarios Reales de los Incas. Lima: FCE, 1991, 2t; Felipe GUAMAN POMA DE AYALA. Nueva coronica y buen gobierno. Lima: FCE, 1993; Joan de Santa Cruz PACHACUTI YAMQUI SALCAMAYGUA. Op. cit. 40 Idem; Sabine DEDENBACH-SALAZAR SÁENZ. Un aporte a la reconstruc- cion del vocabulario agricola de la epoca incaica. Bonn: Estudios Americanistas de Bonn, 1985. 41 Raúl PORRAS BARRENECHEA. Op. cit. 42 Raúl PORRAS BARRENECHEA. Op. cit. , p.XVII; Sabine DEDENBACH-SALAZAR SÁENZ. Op. cit. , p.43. 43 Guillermo ESCOBAR RISCO. “Prólogo”. In: Antonio RICARDO. Vocabulario de la lengua general del Peru llamada Quichua y en la lengua española. Nuevamente enmendado y añadido de algunas cosas que faltavan por el Padre Maestro Fray Martinez [...] Lima: Escobar Risco, 1951. 44 Guillermo ESCOBAR RISCO. Op. cit. , p.10. 45 Ludovico BERTONIO. Vocabulario de la Lengva Aymara. Prol. Enrique Fernández García S.J. Arequipa: Ediciones El Lector, 2006, p.126, 256, 181. 46 Diego GONZALEZ HOLGUIN. Op. cit. ; p.438, 543 e 477. 47 Fr. Domingo de SANTO THOMAS. Op. cit. ; p. 148 e 36.

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