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Estudos do IPEA
Tipologia: Notas de estudo
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Não perca as partes importantes!
(^45) anos Por um Brasil desenvolvido
Instituto de PesquisaEconômica Aplicada
Organizador JOSÉ CELSO CARDOSO JR.
Volume 1
Governo Federal
Ministro de Estado Extraordinário de Assuntos Estratégicos – Roberto Mangabeira Unger
Secretaria de Assuntos Estratégicos
Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos, o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais – possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiro – e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus técnicos.
Presidente Marcio Pochmann
Diretor de Administração e Finanças Fernando Ferreira Diretor de Estudos Macroeconômicos João Sicsú Diretor de Estudos Sociais Jorge Abrahão de Castro Diretora de Estudos Regionais e Urbanos Liana Maria da Frota Carleial Diretor de Estudos Setoriais Márcio Wohlers de Almeida Diretor de Cooperação e Desenvolvimento Mário Lisboa Theodoro
Chefe de Gabinete Persio Marco Antonio Davison
Assessor-Chefe da Assessoria de Imprensa Estanislau Maria de Freitas Júnior Assessor-Chefe da Comunicação Institucional Daniel Castro
Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria
URL: http://www.ipea.gov.br
© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2009
Projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro Série Acompanhamento e Análise de Políticas Públicas
Volume 1 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada: recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas econômica e social, José Celso Cardoso Jr. (Organizador)
Volume 2 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada: recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas regional, urbana e ambiental, José Celso Cardoso Jr., Paulo R. Furtado de Castro e Diana Meirelles da Motta (Organizadores)
Equipe Técnica José Celso Cardoso Jr. (Coordenador) Carlos Henrique Romão de Siqueira José Carlos dos Santos Maria Vilar Ramalho Ramos
A Constituição brasileira de 1988 revisitada : recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas econômica e social / organizador: José Celso Cardoso Jr. – Brasília : Ipea, 2009. v.1 (291 p.) : gráfs., tabs.
Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7811-020-
As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e de inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratégicos.
É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.
APRESENTAÇÃO Diretoria Colegiada .............................................................................................................
INTRODUÇÃO A CF/88: ECONOMIA E SOCIEDADE NO BRASIL Ricardo L. C. Amorim ...........................................................................................................
CAPÍTULO 1 PARA ALÉM DA AMBIGUIDADE: UMA REFLEXÃO HISTÓRICA SOBRE A CF/ Plínio de Arruda Sampaio ..................................................................................................
CAPÍTULO 2 A CF/88 E AS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS Jorge Abrahão de Castro, José Aparecido Ribeiro, André Gambier Campos e Milko Matijascic .............................................................................................................
CAPÍTULO 3 A CF/88 E AS FINANÇAS PÚBLICAS BRASILEIRAS Cláudio Hamilton dos Santos e Denise Lobato Gentil .......................................................
CAPÍTULO 4 A CF/88 E A INFRAESTRUTURA ECONÔMICA BRASILEIRA Ricardo Pereira Soares, Carlos Alvares da Silva Campos Neto, Bolívar Pêgo, Francesca Abreu e Alfredo Eric Romminger ......................................................................
CAPÍTULO 5 A CF/88 E O MARCO REGULATÓRIO BRASILEIRO Lucia Helena Salgado ......................................................................................................
CAPÍTULO 6 A CF/88 E AS POLÍTICAS DE INCENTIVO À CT&I BRASILEIRAS Mansueto Almeida ..........................................................................................................
CAPÍTULO 7 OS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES E O PAPEL DO ESTADO Gilberto Bercovici ............................................................................................................
APRESENTAÇÃO
Na atual quadra histórica de desenvolvimento da sociedade brasileira, as desigual- dades sociais e regionais, a pobreza extrema, a extravagante concentração de fluxos de renda e estoques de riqueza, a insegurança no trabalho e nas ruas, as discrimina- ções de raça, gênero e idade, a baixa qualidade dos serviços públicos, entre outros problemas relevantes, são fenômenos analiticamente inteligíveis, mas moralmente inaceitáveis. Porquanto muito se tenha avançado na compreensão desses fenôme- nos, ainda não é possível vislumbrar uma concentração de interesses que rompa rápida e estruturalmente com as mazelas que assolam o cotidiano dos brasileiros.
Passados mais de vinte anos daquele que foi o “lento, gradual e seguro” pro- cesso de redemocratização da sociedade brasileira, e exatos vinte anos da chamada Constituição Cidadã, devemos dizer que inúmeros avanços foram obtidos, mas, igualmente, reconhecer que imensos obstáculos ainda precisam ser examinados e superados. Para tanto, um aspecto que precisa ser considerado com mais atenção, entre nós brasileiros, é que os complexos embates que envolvem os processos decisórios em contextos democráticos refletem tanto o grau de amadurecimento das instituições e dos grupos de interesses organizados como a própria herança social e os ambientes políticos e econômicos dentro dos quais eles atuam. Por isso, recursos de poder muito diferentes e assimétricos em posse dos diversos grupos sociais em movimento na conjuntura, e estratégias de ação coletivas nem sempre transparentes ou respeitosas das regras democráticas vigentes, estariam a desnudar um caráter mais competitivo que cooperativo das posições políticas em disputa, não raras vezes dotadas de um viés perigosamente conflitivo.
É nesse contexto que foi colocado, para os pesquisadores do Ipea, o desafio deste projeto de reflexão sobre os vinte anos da Constituição Federal de 1988 (CF/88), buscando-se, sobretudo, realizar um trabalho de atualização e de ressig- nificação histórica acerca dos avanços, limites e horizontes que se apresentam hoje para as políticas públicas e para a construção de um projeto de desenvolvimento econômico e humano inclusivo no país.
Importante dizer que o esforço de reflexão aqui realizado visa instituciona- lizar e sistematizar, no Ipea, uma prática de acompanhamento, análise, avaliação e prospecção das diversas políticas, programas e ações governamentais de âmbito federal. Para tanto, além do trabalho cotidiano de assessoramento técnico prati- cado por boa parte de seus técnicos junto a diversos parceiros em ministérios e outros órgãos e instâncias de governo, torna-se necessário, também, desenvolver metodologias específicas e outras ferramentas de trabalho coletivo, visando pro- mover, de modo permanente, essas atividades de acompanhamento e avaliação
das ações do governo federal em cada um dos campos de atuação e conhecimento das diretorias do Ipea. Assim, pretende-se obter, ao longo dos anos, capacitação técnica e visão institucional abrangente e aprofundada acerca dos problemas na- cionais e da capacidade das políticas públicas de enfrentá-los adequadamente.
Esse objetivo, que é o cerne da existência e do funcionamento do Ipea, ganha um impulso decisivo com esta publicação, revelando capacidade técnica e condições excepcionais para sua realização.
Boa leitura e reflexão a todos!
Marcio Pochmann Presidente do Ipea
Diretoria Colegiada Fernando Ferreira João Sicsú Jorge Abrahão de Castro Liana Maria da Frota Carleial Márcio Wohlers de Almeida Mário Lisboa Theodoro
10 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada
Federativa do Brasil. Para tanto, na primeira seção, a problemática cidadania bra- sileira receberá atenção, assim como sua difícil construção. Na seção seguinte, será apontado como a grave crise que se abate sobre o Brasil no começo dos anos 1980 inicia uma transição que levará toda a década para ser concluída, resultando em um novo projeto de país já no início dos anos 1990. Será exatamente os anos 1990 o assunto da próxima seção. Aqui, promulgada a nova Constituição – cidadã, segun- do Ulysses Guimarães –, será percebido um processo de desconstrução da vontade escrita na Lei, enfraquecendo o Estado e seus compromissos com a prosperidade da Nação e os problemas sociais. Por fim, apenas como fecho da discussão, a conclusão mostrará que, mesmo sofrendo críticas, por vezes injustas, a Constituição Federal de 1988 foi fundamental para que o país avançasse sobre questões fundamentais, como a indesculpável pobreza brasileira.
2 A CONSTRUÇÃO INTERROMPIDA DA CIDADANIA
A ideia de cidadania está longe de ser consenso ou ter uma forma ideal e final. Seu apelo, porém, nas últimas décadas, ganhou ares do mais nobre desejo social e da mais legítima aspiração de homens e mulheres de um país. O problema é que, como tudo em sociedade, essa ideia não é algo nascido naturalmente, anseio intrínseco das populações que buscam o progresso.
A cidadania nasce com a fabulosa transformação histórica sofrida pela Europa desde o fim do feudalismo. Dali em diante, a burguesia, o grupo social que alçou ao poder, fez dos princípios que hoje compõem essa ideia uma poderosa ideologia, capaz de mover corações, mentes e armas a seu favor. Isso fica claro quando, obser- vando a história, percebe-se que os mesmos princípios exerceram papéis opostos na criação e consolidação do mundo burguês e depois na manutenção dele: primeiro como arma de transformação poderosa, apta a convencer todo o Terceiro Estado so- bre a importância do indivíduo e a construção de uma nova ordem social; segundo, no momento em que a burguesia já se tornou o grupo dominante, também como uma arma, mas agora apontada na posição contrária, como ideologia conservadora e de dominação sobre o restante dos grupos que compõe a sociedade.^1
De outra maneira, ao fim do Regime Feudal, a burguesia, inclusive para agir eco- nomicamente, lutou e conseguiu, pela cooptação ou pelo argumento dos fuzis, impor aos antigos grupos dominantes uma série de direitos hoje conhecidos como civis. Isto é, normas que garantiam a vida, a liberdade e o fim do arbítrio dos mandatários sobre os indivíduos.^2 Ou seja, algo revolucionário e apropriado para raspar do mapa a velha ideia de superioridade a partir do sangue, referida e justificada no direito divino.
Recuperação Histórica e Desafios Atuais 11
Apesar do avanço inegável que foi a constituição dos direitos civis, o poder ainda não estava nas mãos da burguesia, posto que os direitos políticos se con- centravam no rei. A conquista dos direitos políticos seria, então, a segunda fase para a construção da sociedade burguesa moderna, onde todo o homem é igual perante a lei e é por ela protegido, e também possui a faculdade de participar do governo de sua sociedade. 3
Entretanto, quando a burguesia assume definitivamente o poder e a lógi- ca da sociedade capitalista torna-se dominante, os novos grupos sociais nascidos com a burguesia também passaram, com o tempo, a se entender como indivíduos portadores de direitos civis e, logo, políticos. Com o surgimento das massas tra- balhadoras e camadas médias, a burguesia viu-se do outro lado da mesa: não era mais ela quem reivindicava, mas, sim, era sobre seu poder e riqueza que pesavam as exigências dos novos grupos. Neste momento, as reivindicações, além das tra- dicionais, envolvendo questões civis e políticas, ganharam tons sociais, isto é, pela distribuição dos frutos do progresso e da riqueza cada vez mais visível e concen- trada. As mais importantes pugnas, então, giravam em torno das condições degra- dantes de trabalho, dos salários muito baixos, do abandono dos impossibilitados e acidentados e, principalmente, da pobreza e miséria. 4
De outro modo, quando as revoluções burguesas da França e dos Estados Unidos elaboraram as primeiras regulações sociais da nova ordem que se instalava, os direitos civis e os políticos surgem de maneira revolucionária, como conquis- tas de uma nova era, capaz de varrer os privilégios de sangue e a arbitrariedade. Agora, o mérito, o valor de cada indivíduo deveria contar mais do que a cor, a origem e a nobiliarquia. Todavia, só com as lutas organizadas dos novos grupos subalternizados é que os direitos sociais ganham a agenda.
Mesmo assim, até o começo do século XX, esses ganhos foram lentos, entrecortados, e seguem de perto o surgimento dos partidos trabalhistas e do movimento de esquerda na Europa.^5 Apesar disso, o que se entende atualmente como a cidadania mais avançada, sempre referenciada nos países desenvolvidos, não foi fruto apenas das lutas sociais normais absorvidas nas instituições democráticas. O chamado, hoje, Estado de Bem-Estar Social nasceu de uma ruptura violentíssima que, ao seu final, apontava – ou pelos menos se temia – para o risco de espalhamento dos regimes socialistas pela Europa destruída, fragilizada, faminta e vítima de muitas dores. Foram a segunda Guerra Mundial e a ascensão da União Soviética que fortaleceram as lutas sociais e impuseram ao Ocidente a urgência da reconstrução do Velho Continente em
Recuperação Histórica e Desafios Atuais 13
Naturalmente, essa forma de agir gerou forte apoio urbano-popular ao presidente da república e sua identificação como o pai dos pobres. Nesse sentido, os direitos não foram percebidos por essa população como uma conquista, mas, sim, como um gesto do líder, uma benevolência do patriarca preocupado com seu povo.
Por isso mesmo, a lógica da luta pelos direitos e a própria educação social de homens e mulheres por meio da percepção do seu papel no cotidiano e nos conflitos reivindicatórios não aconteceu no Brasil. A população, mesmo a urbana, ligada aos setores modernos, não foi um agente consciente da construção dos seus próprios direitos, turvando e adiando as noções de grupo, coletividade e organi- zação. Destarte, não é difícil intuir parte das raízes que levaram, há bem pouco tempo, a população a perceber no Estado sua fonte de direitos e para quem deve ser direcionada a franca maioria das suas aspirações.
Outra consequência da criação dos direitos sociais à frente dos demais é a capacidade de controle sobre o movimento popular adquirido pelo capital e pelo Estado. Mesmo não se tratando das particularidades de controle das organizações dos trabalhadores pelo governo de Getúlio, fica evidente que a escolha dos grupos incluídos na garantia de direitos perante o Estado – os que tinham carteira de trabalho – configurou a construção de uma cidadania regulada , na qual não só os direitos a serem concedidos eram claramente os que o Estado julgava adequados, como também seus recebedores eram escolhidos entre a população urbana. 9
Esse processo era ainda mais fortalecido pelo momento ditatorial da política nacional, varrendo instituições, organizações e pessoas inconvenientes que criti- cavam o regime. Ou seja, ali, naqueles primeiros passos da moderna cidadania brasileira, pouco ou quase nada se viu de garantia de direitos políticos e civis. 10
A ausência desses dois últimos blocos de direitos se abrandaria, contudo, no final dos anos 1940, dando à década de 1950 uma aparência pouco comum à his- tória do país: anos de crescimento econômico com democracia formal. O Brasil vivia, então, o auge do nacional-desenvolvimentismo, que prometia modernizar e desenvolver o país por meio da industrialização. O Estado era bem-vindo em suas intervenções econômicas e o debate estava francamente a favor dos intelectuais e burocratas defensores das ideias cepalinas e keynesianas. 11
Esse ambiente, entretanto, não seria duradouro. O avanço do capitalismo industrial no país e o abrandamento da repressão vivida na ditadura getulista tornaram o ambiente fértil para a rápida reorganização dos trabalhadores e
14 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada
o surgimento de movimentos combativos no campo em favor da reforma agrária, até então nunca realizada. Assim, enquanto o país crescia a taxas elevadas – em média 7,4% ao ano, entre 1951 e 1960 –, as tensões sociais cresciam, mas também eram acomodadas pelo movimento ascensional de parte da população nos quadros sociais e pelo aumento significativo da renda, principalmente nos estratos mais ricos.
Quando o pacote de investimentos do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek (1956-1960) exauriu-se e o Estado se viu endividado e com a infla- ção se acelerando, as acomodações políticas foram se tornando cada vez mais di- fíceis. Os trabalhadores mais organizados faziam greve e reivindicavam salários e melhores condições de trabalho, o campo soltava sua voz em favor de reformas urgentes e o capital, por sua vez, via suas taxas de lucro não se sustentarem. Nas palavras de Mantega, não havia propriamente uma contestação das princi- pais bandeiras do desenvolvimentismo, que pregava a industrialização, a criação de infraestrutura ou a modernização do país. Havia, sim, objeções quanto à liberdade de manifestações populares e às reivindicações salariais que se multi- plicavam nesse período. Vários segmentos das classes dominantes e mesmo da classe média estavam descontentes com a mobilização e a crescente capacidade de reivindicação das classes populares, que aumentavam com a ineficiência dos governos e a deterioração do desempenho econômico (MANTEGA, 1997, p. 8).
Os problemas que terminaram no golpe de 1964 possuem vasta litera- tura e, por isso, não serão discutidos aqui. O que importa é reter que, mais uma vez, os direitos políticos e sociais foram cortados e retirados das ruas sem, desta vez, contudo, alterar diretamente os direitos sociais estabelecidos. 12 De qualquer modo, mais uma vez, a cidadania brasileira foi podada em sua construção e as instituições mostraram-se incapazes de absorver os naturais e esperados conflitos surgidos na dinâmica de uma sociedade capitalista. A democracia brasileira de então se mostrou frágil e as tradicionais elites foram incapazes de dialogar e dividir qualquer parcela do bolo da renda nacional.
Esse novo período durou 21 anos e apenas na década de 1980 o poder voltou às mãos dos civis. Agora, porém, o modelo de crescimento econômico vivido pelo Brasil desde 1930 parecia não ter mais sustentação. O Estado havia perdido sua capacidade indutora, a inflação crescia, os trabalhadores voltavam a se organizar e a elite do país dividia-se sem apontar rumos. Será em meio a essa crise e, talvez, em função dela que se recuperam direitos e o Brasil debate, constrói e promulga uma constituição ímpar, diferente das anteriores. Uma constituição cidadã, nas palavras do velho Deputado Ulysses Guimarães.
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É nesse sentido que a Crise da Dívida nos anos 1980 exacerba os conflitos: o Estado estava endividado e internamente não havia nenhum canal de financia- mento para continuidade do investimento e dos gastos públicos. Ou seja, sem recursos externos e internos, a fuga para frente tornara-se impraticável e o pacto político perdia a capacidade de cooptação, engendrando uma crise política que ensejou uma profunda transformação no Estado em relação à sociedade.
Já a segunda impossibilidade marcou o fim de um padrão de acumulação, desarticulando o tripé Estado – capital privado nacional – capital estrangeiro. Era evidente que o Estado já não tinha condições de promover o crescimen- to econômico e planejar boa parte dos movimentos da economia brasileira. Assim, os demais capitais, dada a queda na demanda efetiva, entraram em com- passo de espera, aguardando o melhor momento para reiniciar sua expansão. Ou seja, sem confiança nos lucros futuros e sem fontes adequadas de financia- mento, o setor privado naturalmente recua em seus investimentos. 14
O problema é que o Estado não se recuperou do tombo sofrido e os diferentes grupos da elite não entraram em acordo sobre qual rumo deviam tomar as ações e os, agora reduzidos, gastos públicos. O resultado não poderia ser outro: queda na formação bruta de capital fixo desde o início dos anos 1980, seja ele público, seja ele privado, e sua oscilação sem caminho de crescimento daí em diante, conforme apontado no gráfico 1. 15
Recuperação Histórica e Desafios Atuais 17
GRÁFICO 1 Formação bruta de capital fixo (1901-1997) – Brasil
1901190519091913191719211925192919331937194119451949195319571961196519691973197719811985198919931997
Fonte: Ipeadata.
Com taxas ruins de investimento e, consequentemente, com baixo crescimen- to econômico (gráfico 2), a arrecadação tributária não alcança patamares capazes de devolver ao Estado sua capacidade de implantar projetos de fôlego e gerar efeitos para frente e para trás nas cadeias produtivas. A partir dali, não se verá tão cedo o multipli- cador keynesiano da renda acelerando fortemente toda a parte moderna da economia.
GRÁFICO 2 Produto Interno Bruto (PIB)per capita brasileiro (1947-2004) (Em R$ de 2004)
19471950195319561959196219651968197119741977198019831986198919921995199820012004 Fonte: Ipeadata.
Recuperação Histórica e Desafios Atuais 19
produtivo, então vivido, impediam que o maior ajuste se fizesse sobre este grupo. Ou seja, o governo não contava com instrumentos e força para impor perdas a qualquer grupo social a partir do enfraquecimento da sua posição. Em outras palavras, o governo estava desarmado para arbitrar o conflito distributivo – travestido de inflação – e, impondo perdas a algum grupo social, retomar o controle sobre a economia.
Por outro lado, a elite brasileira não se entendia sobre qual direção seguir, aguçan- do a disputa por quinhões de poder e gastos do Estado. Desse modo, e em resumo, sem a imposição de perdas, com a fraqueza do Estado sobre a economia e sem uma pactua- ção sobre rumos, o caminho para a estabilidade continuou impedido até os anos 1990.^17
Essa problemática fica mais clara quando se recorda que, após o fracasso do Plano Cruzado, outros se seguiram com fórmulas similares e nenhum alcançou sucesso no combate à inflação. Esta, aliada a componentes expectantes inquietan- tes gerados pelos diferentes planos econômicos de estabilização de preços imple- mentados nestes anos, explodiu a taxas nunca vistas (gráfico 3). 18
GRÁFICO 3 Inflação medida por diferentes indicadores – Brasil (Variação anual em %) Geral (1940-2005)
1940194319461949195219551958196119641967197019731976197919821985198819911994199720002003
0
500
IPC (Fipe)
1 o^ Período (1940-1985): a aceleração
0
50
100
19401942194419461948195019521954195619581960196219641966196819701972197419761978198019821984
150
200
250
300
IPC (Fipe) ICV - SP (Dieese) IGP - DI (FGV) 2 o^ Período (1986-1994): o descontrole
0
500
1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 IPC (Fipe) ICV (Dieese) IGP - DI (FGV)
3 o^ Período (1995-2005): a estabilização
0
5
10
15
20
25
30
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 IPC (Fipe) ICV (Dieese) IGP - DI (FGV) Fonte: Ipeadata.
20 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada
Ainda no campo estritamente econômico, tais eventos, entretanto, não eram tudo. O Brasil também patinava, dada a queda nos investimentos, sobre um crescen- te atraso tecnológico e a gravíssima deterioração dos serviços públicos. Essa paralisia, marcadamente no Estado, é, segundo o professor Ricardo Dathein (2006), o motivo da semiestagnação da economia brasileira iniciada há mais de duas décadas.
Esse conjunto de problemas gerado pela crise econômica e pelo imobilis- mo do Estado, dada a crise de fundo, levaram, no transcorrer da década, a um questionamento feroz e intensificado de sua ação. A elevada e crescente taxa de inflação e os planos heterodoxos de estabilização, entremeados por políticas econômicas do tipo arroz com feijão , associaram a crise econômica ao interven- cionismo estatal e, por este caminho, ao desenvolvimento patrocinado pelo Estado. Todos os setores incluídos na sociedade passaram a pedir mudanças, nas quais o centro era a ação intervencionista estatal. O antigo pacto conservador teria de mudar: era necessário que o país voltasse a crescer. Mais: significava, em breve, mudanças em toda a economia.
É neste ambiente que se instala a Assembleia Nacional Constituinte.
4 A PARCIAL DESCONSTRUÇÃO DA VONTADE POPULAR: OS ANOS 1990
Os anos 1990, contudo, foram um divisor de águas na economia brasileira e, neste ponto, a alteração ou mesmo o enfraquecimento da Constituição Federal, promulgada em 1988, foi importante instrumento para isso. O capítulo eco- nômico (Capítulo I – Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica), escrito pelo Senador Severo Gomes, possuía, originalmente, um teor nacionalista e relativamente protecionista, permitindo que esses instrumentos fossem utili- zados em favor da continuidade da industrialização do país. Nos anos 1990, marcadamente após 1995, porém,
[...] afirmava-se que a Constituição inviabilizava a estabilidade e o crescimento eco- nômico e, ademais, tornava o país ingovernável. Esse discurso passou a ser repetido, por todos, sem que praticamente ninguém se abalasse em indagar por que, como, onde e quando a Constituição seria perniciosa, comprometendo os interesses da sociedade brasileira. [...] Estranhamente, após alcançados os específicos resultados visados pelo capital internacional, ao serviço de quem se colocou o Poder Executivo, a Constituição passou a ser palatável (GRAU, 2008, p. 175-176). Primeiro, o governo de Fernando Collor de Mello, em discurso e em ações, atacou o antigo tripé Estado – capital nacional – capital estrangeiro, com o Estado constituindo peça essencial no processo de acumulação. Sua equipe econômica havia diagnosticado que a crise brasileira tinha raízes na perda de competitividade da indústria nacional e na instabilidade inflacionária. Logo, um programa