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Uma análise sobre a produção poética de joaquim serra, um escritor maranhense que se destaca por sua poesia ruralista e sertaneja, mas que também explora gêneros urbanos marcados por um registro humorístico. Serra é descrito como um poeta romântico que operou frequentemente com um híbrido de gêneros, justificável pelos preceitos estéticos do romantismo, mas que também revela uma inquietação com as limitações impostas pelas convenções genéricas. O texto aborda as palavras-chave joaquim serra, humor romântico e mistura de gêneros.
Tipologia: Slides
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Resumo: Este ensaio detem-se numa parcela da poesia de um nome hoje praticamente ignorado na tradição literária brasileira: Joaquim Serra (1838-88). Dono de extensa produ- ção, o maranhense foi importante jornalista, político, grande publicista ligado à imprensa abolicionista, dramaturgo e poeta. Como poeta, embora tenha também composto versos em diálogo com as tendências dominantes na lírica romântica, Serra teve seu nome associa- do a um gênero de poesia ruralista ou sertanista, que surgiu no quadro dessa mesma gera- ção romântica. Mas aqui, o que interessa da produção poética de Serra não são os quadros rústicos e sim os tableaux urbanos marcados pelo registro humorístico na caracterização de cenas e tipos, e concebidos em intenso diálogo com o teatro, numa mescla ou fusão de gêneros que, graças ao salvo-conduto do romantismo, explorou em outros tantos momen- tos de sua obra. Palavras-chave: Joaquim Serra, humor romântico, mistura de gêneros.
Abstract: This paper proposes a brief commentary about a part of the poetry of a name now virtually ignored in the Brazilian literary tradition: Joaquim Serra (1838-88). Creator of a extensive body of work which is widely forgotten, the author born in the state of Maranhão was also an important journalist, politician, a great political writer linked to the abolitionist press, playwright and poet. As a poet, although having also created verses in dialog with the predominant tendencies in romantic literature, Serra became associated with a ruralist or “sertanista” genre of poetry, which surfaced inside this same romantic generation. Herein, what strikes most about Serra’s poetry work aren’t the rustic pictures but the urban tableaux with a humorous registry of the characterization of scenes and types, and conceived in a inten- se dialog with the theatre, in a mixture or fusion of genres which, thanks to the safe conduct of the Romanticism, he explored in several other moments in his works. Keywords: Joaquim Serra, romantic mood, fusion of genres.
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D ono de extensa produção em prosa e verso, hoje praticamente ignorada, o mara- nhense Joaquim Maria Serra Sobrinho (1838-88) foi importante jornalista e político, seguindo, ao que parece, as pegadas do pai, Leonel Joaquim Serra, que também mili- tara na política e no jornalismo maranhense, redigindo periódicos como O Cometa (1835) e a Crônica dos Cronistas (1838). Formado em humanidades, o filho foi ainda professor de gramática e literatura no Liceu Maranhense, escritor, teatrólogo e poeta. Isso sem esquecer sua incursão pela política, como secretário de governo da Paraíba (1864-7) e deputado geral por sua província natal (1878-81). P assando brevemente para suas funções de maior projeção, sua atividade como jor- nalista se iniciou muito cedo, com a publicação dos primeiros escritos (1858-60) no Publicador Maranhense, folha oficial, política, literária e comercial fundada em 1842 por João Francisco Lisboa e redigida, desde 1856, por Sotero dos Reis.^1 Em 1862, Serra fundou com alguns amigos o jornal A Coalição (sic), em substituição ao hebdomadá- rio Ordem e Progresso (criado em janeiro do ano anterior), ambos órgãos do partido progressista (produto da liga entre liberais e conservadores). Cessada a publicação de A Coalição quatro anos depois, Serra fundou, em 1867, o Semanário Maranhense, revista literária que, no ano seguinte, parou de circular. Em 1883, legou um livro que inventariava o jornalismo de sua Atenas brasileira, sabidamente terra de grandes publicistas como o autor do Jornal de Timon. O livro Sessenta anos de jornalismo – a imprensa do Maranhão, 1820-80 teve repercussão imediata, suscitando uma segunda edição naquele mesmo ano. Com a mudança em 1868 para a Corte – onde já estivera, entre 1854 e 1858, com o intuito de ingressar na Escola Militar, carreira logo abando- nada –, Serra se projetou como o cronista empenhado de “Argueiros e Cavaleiros” e “Tópicos do Dia”, de O País, e dos “Folhetins Hebdomadários” da Gazeta de Notícias. N a verdade, ele já fora apresentado literariamente à Corte antes, por Machado de Assis, numa das crônicas do Diário do Rio de Janeiro (de 24 de outubro de 1864). Mas só quando fixou residência definitiva na Corte Serra fez carreira admirável no mundo do jornalismo, chegando a ocupar o cargo de diretor do Diário Oficial
1 Para a composição deste pequeno retrato intelectual, valho-me das seguintes fontes: BLAKE, Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Conselho Federal de Cultura, 1870, v. 4 (fonte obrigatória dos demais); a biografia constante do site da Academia Brasileira de Letras; o discurso de posse de Olegário Mariano (que ocupou a mesma cadeira de José do Patrocínio, quem, aliás, elegeu Serra por patrono), além de informações colhidas em Machado de Assis e Joaquim Nabuco, referidos adiante. No que tange especificamente à sua trajetória como jornalista, valho-me do que o próprio Joaquim Serra registra, sob o pseudônimo de Ignotus, em seu Sessenta annos de jornalismo: a imprensa no Maranhão (1820-1880). 2. ed. Rio de Janeiro: Faro & Lino Editores, 1883.
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Era modesto até à reclusão absoluta. Suas ideias saíam todas endossadas por pseudô- nimos. Eram como moedas de ouro, sem efígie, com o próprio e único valor do metal. Daí o fenômeno observado ainda este ano. Quando chegou o dia da vitória abolicio- nista, todos os seus valentes companheiros de batalha citaram gloriosamente o nome de Joaquim Serra entre os discípulos da primeira hora, entre os mais estrênuos, fortes e devotados; mas a multidão não o repetiu [,] não o conhecia. Ela, que nunca desapren- deu de aclamar e agradecer os benefícios, não sabia nada do homem que, no momento em que a nação inteira celebrava o grande ato, recolhia-se satisfeito ao seio da família. Tendo ajudado a soletrar a liberdade, Joaquim Serra ia continuar a ler o amor aos que lhe ensinavam todos os dias a consolação.
Mas eu vou além. Creio que Joaquim Serra era principalmente um artista. Amava a justiça e a liberdade, pela razão de amar também a arquitrave e a coluna, por uma neces- sidade de estética social. Onde outros podiam ver artigos de programa, intuitos parti- dários, revolução econômica, Joaquim Serra via uma retificação e um complemento; e, porque era bom e punha em tudo a sua alma inteira, pugnou pela correção da ordem pública, cheio daquela tenacidade silenciosa, se assim se pode dizer, de um escritor de todos os dias, intrépido e generoso, sem pavor e sem reproche.
Não importa, pois, que os destinos políticos de Joaquim Serra hajam desmentido dos seus méritos pessoais. A história destes últimos anos lhe dará um couto luminoso. Outrossim, recolherá mais de uma amostra daquele estilo tão dele, feito de simplicidade e sagacidade, correntio, franco, fácil, jovial, sem afetação nem reticências. Não era o humour de Swift, que não sorri, sequer. Ao contrário, o nosso querido morto ria larga- mente, ria como Voltaire, com a mesma graça transparente e fina, e sem o fel de umas frases nem a vingança cruel de outras, que compõem a ironia do velho filósofo.^3
O excerto é interessante por mais de um motivo, entre os quais o de iluminar não só a forma de comicidade característica dos escritos de Serra, mas, por contraste, do próprio sense of humour machadiano. Para o escopo deste ensaio, interessa só o humorismo do primeiro, do qual tratarei mais adiante. Sigo, ainda, traçando o perfil intelectual e literário do poeta maranhense.
3 ASSIS, Machado de. Joaquim Serra. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 5 nov. 1888. Texto-fonte: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, v. III, 1994.
(^388) • CAMILO, Vagner. entre “o romantismo tão gasto e o realismo tão vasto”
A cercando-se do domínio do literário, Serra enveredou pela dramaturgia, estimula- do pela inauguração da Ópera Nacional do Rio de Janeiro, que, segundo ele, causou verdadeira “hidrofobia patriótica”, dado o “açodamento com que nos atiramos desa- piedados sobre o papel, a fazer libretos para as partituras nacionais”.^4 Julgando que “o gênero espanhol das zurzuellas” fosse “o mais próprio para o nosso teatro”, 5 compôs a ópera-cômica Quem tem boca vai a Roma, que não chegou, todavia, ao palco porque censurada pelo Conservatório Dramático, com a alegação de inconveniência devido à imagem depreciativa da Igreja e de seus representantes. Serra publicou os pareceres dos censores (datados de 1857) na edição impressa da peça, logo depois do prefácio endereçado ao dr. Raimundo A. de Carvalho Filgueiras, em que argumenta contra a pecha de imoral, estabelecendo comparações significativas com outras tantas repre- sentações cômicas da figura do religioso, sobretudo na tradição local:
Mas, se por um lado as expressões animadoras do Conservatório satisfizeram o meu orgulho de autor (nobre ambição, como és apreciável nos anões!) [,] pelo outro lado doía-me a injustiça do Conservatório, que, licenciando a Tia Bazu, Bodas de Merluchet e outras produções decotadas demais achava vislumbres de desonestidade nos meus humildes lapsos de lápis.
Quero que por conveniências, que respeito, não se apresentasse em cena um grosso Franciscano, desses pintados pelo Bocage e Álvares de Azevedo, concordo em parte; mas a essa inconveniência unir-se a pecha de imoral, é que eu não podia tragar.
O Frei Gil do Antônio José, o Noviço da comédia do Pena e o próprio Tartufo de Molière aí estavam para me autorizar a exibição pública de um fradalhão de bom quilate; mas admitindo que a sátira nesses casos possa pecar por muito genérica e ter seus laivos de impiedade, eu concordaria em tudo com o Conservatório menos com a pouca decência de meu trabalho, pautado pelo mote de José de Alencar– fazer rir sem fazer corar.^6
4 SERRA, Joaquim. Quem tem boca vai a Roma: ópera cômica em um ato. São Luís: Tipografia de B. de Mattos, 1863, p. 4. A maioria das obras de Joaquim Serra encontra-se hoje disponível no site da Biblioteca Digital Brasiliana USP, <www.brasiliana.usp.br>. 5 Idem, p. 4. 6 Idem, p. 4-5.
(^390) • CAMILO, Vagner. entre “o romantismo tão gasto e o realismo tão vasto”
dóceis ao jugo das finanças e da economia política, ciências cujos foros colocam acima dos que tem adquirido a teologia, que não dá regras para amontoar moedas. Sabe que sem ser isto, só alguma excentricidade, algum escândalo estrondoso os pode distrair de seus estudos capitalísticos, industriais e utilitários feitos por amor proximal. Debaixo destas vistas, o autor atira com um grande escândalo em cena, certo de conseguir o favor do público, que há de conseguir, repito, se a peça for representada.
Tanto o autor reconhece que seu provérbio Quem tem boca vai a Roma encerra imorali- dade contra a religião, que não o finda sem contar uma pequena palinódia… mas a sorte estava lançada, ele passou o Rubicon. […] O sacerdócio é muitas vezes exercido por mãos indignas e caracteres depravados, mas não há de ser o teatro, por mais que fustigue esses profanadores da lei do Cristo, que os há de chamar à razão no império da Cruz. São relapsos eivados da gangrena do século, contaminados da podridão dos vícios, para os quais nem as masmorras do santo ofício trariam correção.^8
É importante observar, de passagem, que não só o matemático é poupado, mas tam- bém o pintor, o que equivale a conferir à arte mérito equiparável ao da ciência e da razão. P or último, vale notar que o contraponto campo x cidade, província x corte está presente em vários momentos da obra de Serra. Eduardo, por exemplo, é tido pelo coro dos moradores da província como bom rapaz justamente por ser “o excelente pintor que não quer saber da vida na cidade…”.^9 Veremos adiante a reiteração dessa visão na poesia do maranhense. O veio cômico-satírico de Joaquim Serra se estende a outros gêneros fora do teatro, como se pode notar no poema “A capangada”, cujo subtítulo diz se tratar de paró- dia muito séria, tendo sido publicado, com o nome de “Amigo Ausente”, em 1872, pela tipografia da Reforma, responsável pelo periódico liberal para o qual Serra colaborava. O alvo da sátira são as estratégias eleitorais e a composição ministerial, atacando nada mais, nada menos do que o Visconde do Rio Branco, considerado um dos maiores estadistas do Segundo Reinado por uma figura do peso de Joaquim Nabuco, que louva a atuação política de José Maria da Silva Paranhos na implantação de medidas liberais, a despeito de sua filiação ao partido conservador. Boris Fausto nota, a esse respeito, que, ao propor a Lei do Ventre Livre, o gabinete conservador de
8 Idem, p. 8-9. 9 Idem, p. 14.
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1871, presidido por Rio Branco, arrebatou “a bandeira do abolicionismo das mãos dos liberais”.^10 A investida satírica de Serra contra o visconde e seu gabinete pode talvez ser lida, nesse sentido, como fruto do ressentimento de um liberal tremendamen- te empenhado na causa abolicionista que vê sua militância solapada pelo inimigo político-ideológico, mas o fato é que parece haver muito fundamento histórico nesse ângulo nada enobrecedor por onde o poeta maranhense flagra a atuação “pública” do venerando Rio Branco, a quem se refere, num retrato picaresco, como o
… grande Paranhos Malasarte Hoje feito valido e potesdade! O Poder Pessoal com jeito e arte Patriarca te fez dessa irmandade!^11
T alvez mais do que o gabinete conservador de 7 de março de 1871, presidido por Paranhos, ao mesmo tempo que assumia a presidência do Conselho de Ministros, o poema parece aludir à sequência de gabinetes conservadores que antecederam esse do visconde, como o do Marquês de São Vicente, de setembro de 1870, referi- do expressamente nos versos. Todos participariam da capangada referida no título, liderada por Rio Branco, contra a qual Serra busca empregar, em reação à violência armada de que ela se valeu para manipular urnas e eleições, “a arma perigosa” da “chalaça”, a fim de que “a galhofa sepulte um ministério”. 12 O subtítulo (que exemplifica mais uma vez a mescla de registros com que o poeta frequentemente opera) se explica pelo fato de o poema se construir à custa da “paró- dia muito séria” de Os lusíadas, apropriado desde a dedicatória, como comprovam as estrofes abaixo, vertidas, é claro, em oitava rima e versos decassilábicos:
A malta de ministros desbragados, Essa caterva ilustre e veneranda, Mais os seus gazeteiros alugados,
10 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1999, p. 217. Sobre a atuação de Rio Branco na reforma de 1871 e em meio às consequências político-partidárias dessa lei, ver CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; Relume-Dumará, 1996, p. 286 ss. 11 [SERRA, Joaquim.] A capangada. Paródia muito séria pelo Amigo Ausente. Rio de Janeiro: Typ. da “Reforma”, 1872, p. 4. 12 Idem, p. 3-4, 9 e 11.
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A paródia segue na contrafação de célebres episódios camonianos, como o de Inês de Castro:
Estavas, ó Chuleta, em teu sossego Lá no Morro do Chá, mansão querida, Naquele engano d’alma ledo e cego, Passando milagrosa e fresca vida; Não tinhas outra ideia e outro emprego Senão amar Manduca, doce lida! Aos montes ensinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas!
Do ausente amador te referiam Cousas tristes que muito te aterravam: Ele na corte estava, onde diziam Que do Alcazar as ninfas o enlevavam. À noite feios sonhos te oprimiam. Do dia mil terrores te assaltavam; Não podendo conter o desvario Te pusestes em caminho para o Rio.^14
O u ainda se apropria do Canto v, desde a abertura, quando já cinco sóis eram passa- dos, até a aparição do gigante Adamastor, a quem é equiparada, na chave do grotesco, a figura ridicularizada de Aristeu de Itaverava, que tratará de violar as urnas eleitorais a serviço dos interesses da capangada:
Porém já cinco sóis eram passados Depois desse congresso eleitoral, E os ministros ainda atarantados Andavam com o negócio capital! Tinham mesários seus bem despejados Nas paróquias e a gente marcial, Mas o povo era todo adversário, E o Duque-Estrada um grande salafrário. […]
14 Idem, p. 5-6.
(^394) • CAMILO, Vagner. entre “o romantismo tão gasto e o realismo tão vasto”
Correram o reposteiro, e uma figura Em frente apareceu robusta e válida, De sertaneja, insigne estatura, O rosto aparvalhado, a barba esquálida, Olhos encarniçados e a postura, Ridícula e má a cor vermelha e cálida, Medonha a penca, furibunda tromba, Nariz que tudo fere e tudo arromba!
E disse: Ó gente ousada outrora e brava, Como assim conspirais nesta cafurna, Sem que o Aristeu de Itaverava Seja presente à reunião noturna? O que vos falta? eu sou pesada clava Capaz de pôr em cacos férrea urna! Ninguém ao meu nariz aqui resiste, Falai, falai, que estou de lança em riste!^15
M ais adiante, Serra faz de Paquetá a versão degradada da Ilha dos Amores, a que tem acesso, como prêmio, a malta de ministros do conselho que vence à força as eleições. Num lauto piquenique com iguarias locais e a companhia de ninfas modernas, do Alcazar e do Paraguai (aludindo, decerto, ao fato de Paranhos ter sido designado como secretário do ministro plenipotenciário na região do rio da Prata, o futuro Marquês de Paraná). Veja o excerto, que começa com a evocação da musa da épica:
Agora tu, Calíope, me ensina O modo de contar a patuscada: Que fizeram os heróis da trampolina Depois qu’a apuração foi publicada; Empresta-me harmonia peregrina, Leva-me a Paquetá, ilha encantada, Ali a festa foi, jardim de Armida, Ou nova Ilha de Amores tão querida.
15 Idem, p. 8-9.
(^396) • CAMILO, Vagner. entre “o romantismo tão gasto e o realismo tão vasto”
E Junqueira, Duarte de Azevedo; Barros Barreto, caravana feia! A rabadilha enorme que faz medo E que o orçamento hoje rodeia
Há de podre cair, volver ao nada… E dou minha missão por terminada.^17
A lgo dessa crítica ao estado de corrupção generalizada na vida política, social, eco- nômica da nação, comparece também em Fábio, poema de Serra cuja autoria fictícia é atribuída a certo frei Bibiano, embora publicado por aquele que se nomeia apenas como Um Amigo, responsável pelas longas notas ao final do volume, que dão o fundamento histórico às alusões contidas na narrativa em versos. O protagonista que dá nome ao poema é um jovem cioso dos brios da pátria, da soberania do Estado abalada pela aplicação do Abeerden Act e os inúmeros aciden- tes diplomáticos que o cercaram, bem como os que envolveram a Questão Christie, entre outros episódios. Ele se mostra indignado diante dos horrores da escravidão, denunciada num tom veemente em que bem se reconhece a oratória condoreira e, em certas passagens, a evidente apropriação de trechos de “O navio negreiro” e outros poemas castroalvinos. Decide participar da guerra do Paraguai, sobre a qual se detém boa parte do poema, por esse seu empenho nas causas nacionais. O retrato de Fábio é o de uma espécie de anti-Macário, como se nota nos versos abaixo, que claramente se apropriam, pela negativa, dos perfis byronianos cunhados por Álvares de Azevedo com um misto de frescor juvenil e fatigada senilidade (diria Antonio Candido), numa evidente atitude crítica, pessimista e sarcástica em relação ao otimismo e o empenho nacionalista da intelectualidade áulica ligada ao ihgb e à primeira geração romântica:^18
17 Idem, p. 20. 18 Busquei examinar essa descrença e tal sarcasmo em Macário e no perfil do eu poético de Álvares de Azevedo, a partir da apropriação da tópica clássica do puer senex, tendo em vista a atitude crítica do poeta em relação ao nacionalismo e ao contexto histórico-político do Segundo Reinado. Ver: CAMILO, Vagner. Álvares de Azevedo, o Fausto e o mito romântico do adolescente no contexto político-estudantil do Segundo Reinado. itinerários n. 33. Araraquara: UNESP, 2011, p. 61-108. Ver também CUNHA, Cilaine Alves. Entusiasmo indianista e ironia byroniana. São Paulo: USP, 2000 (tese de doutorado).
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Era Fábio seu nome. A juventude Não a vazara nas febris orgias Das taças ao clarão, à fúria rude Das impudicas, torpes alegrias; Neste vasto cenário onde a virtude Caiu de rasto ao som das vozerias, Onde a velhice e a mocidade agora D’alma o pudor frenética desflora […] Era bem moço, e devassando ousado Da ciência os umbrais, armas vestira Com que da vida à luta preparado O bom defenda, o miserável fira. Sacerdote do bem, fora sagrado Em lições que o saber e a honra inspira. Partiu seguro e lá no torvelinho Da vida humana foi abrir caminho.^19
O estado de corrupção reinante na vida pública, somado à alienação generalizada da jovem geração que lhe é contemporânea, alcança o domínio das artes, quando o eu poético, a dada altura de Fábio, se dirige à musa lamentando a carência de grandes poetas e o baixo nível da vida literária nacional depois da morte, respectivamente, de Gonçalves Dias, Junqueira Freyre, Álvares de Azevedo e Araújo Porto-Alegre:
Aqui, ó Deusa, à copa dos coqueiros Raros cultores cercam teus altares; O poeta dos índios forasteiros Dorme sem vida nos profundos mares; O moço monge à sombra dos mosteiros Já não fere o laúde dos pesares; E o gênio a quem devora amargo afã Pende também da vida na manhã.
19 [SERRA, Joaquim.] Fabio por Frei Bibiano. Annotado por um amigo. Rio de Janeiro: Typ. de Aranha & Guimarães, 1871, p. 9-10.
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Tirando os jurisconsultos e alguns historiadores, dos autores vivos não se ergueram à posteridade.^21
S erra opera, frequentemente, com um híbrido de gêneros, o que não deixava de ser justificável pelos preceitos estéticos do romantismo então em voga, mas que tam- bém revela uma inquietação com as limitações impostas pelas convenções genéricas. Compôs, assim, o romance em versos Um coração de mulher, no qual, para além do enredo melodramático e moralizador, já desponta o gosto pela composição dos cená- rios campesinos em que se notabilizaria, devido à modalidade poética mais praticada por ele, da qual trato a seguir. Antes, porém, gostaria de registrar rapidamente, que a mescla ou fusão de gêneros foi também promovida em suas crônicas abolicionistas, algumas das quais redigidas em versos, como dá exemplo Raimundo Magalhães Jr. ao recolher uma delas em sua Antologia do humorismo e da sátira.
Serra poeta lírico e poeta sertanejo
C omo poeta, Serra compôs alguns poucos poemas inspirados em certas tendências da lírica romântica de então, em especial a de Álvares de Azevedo. São, em geral, versões medianas dentre as quais valesse talvez destacar três momentos de exceção, em que sua poesia no gênero me parece alçar ao nível do autor da Lira dos vinte anos. É o caso de “Sonhando”, incluído em Quadros:
Sonhando
A noite ia bela tocando a seu termo, A brisa passava qual eco de amor, E já descorada, sentindo a alvorada, A lua mostrava mais pálida cor.
O mar preguiçoso n’areia batia De leve, qual som de trêmulo beijo De amante ditoso, que vai receoso Beber as primícias de um longo desejo.
21 Idem, p. 78.
(^400) • CAMILO, Vagner. entre “o romantismo tão gasto e o realismo tão vasto”
O ar era brando, corriam perfumes Das flores abertas por entre a verdura, O rórido prado e o céu anilado Mostravam nessa hora igual formosura. E tu descansavas do sono nos braços, Sonhando venturas, comigo sonhando! Sentias meu peito, em chamas desfeito, Talvez junto ao teu bater desmaiando.
Um riso amoroso abria teus lábios, A face de um anjo se via em tua face; Sem arte vestida, deitada, dormida, No teu desalinho, ai… quanto realce!
E vi-te dormindo e quis despertar-te, Chamei por teu nome, um grito soltei! Mas, ah! quem dormia era eu que te via, Era eu que sonhava, e que despertei!^22
A lém do poema homônimo, os versos acima dialogam com outros tantos momentos da Lira (“Quando à noite no leito perfumado” ou “Pálida à luz da lâmpada sombria”, por exemplo) ao repor a situação paradigmática ideal do eu lírico contemplando o sono da amada, indagando por quem sonha e por que sorri a bela adormecida, que, numa nota de sensualismo, comparece com as roupas em desalinho no leito, realçando suas formas juvenis, enquanto o apaixonado se consome em chamas e sente seu peito bater junto ao dela, quase a desmaiar. Como é recorrente também nos poemas de Álvares de Azevedo, o desejo e o erotismo são projetados na composição do cenário natural, evocado nas três primeiras estrofes. A diferença é que Serra rompe a ambiguidade tantas vezes mantida nos poemas azevedianos, quando, no final dos versos, ao gritar pela bela adormecida, com o intuito de acordá-la, percebe, despertando, que quem sonhava… era ele! O utro momento que me parece ainda mais belo nos Quadros de Serra vem repre- sentado pelo seguinte poema sem título:
22 SERRA, Joaquim. Quadros. Rio de Janeiro: Garnier, 1873, p. 105-6.
(^402) • CAMILO, Vagner. entre “o romantismo tão gasto e o realismo tão vasto”
tadora para o eu lírico e faz com que ele abandone, sem pesar, a leitura mal iniciada de um livro, representando, desse modo, a precedência conferida à vivência em detrimento do trabalho intelectual, reflexivo. A idade da inocência fala mais alto que a da razão. É assim também que, no último poema selecionado aqui, o eu tipicamente român- tico, agora em diálogo aberto consigo mesmo, e, portanto, cindido em dois, investe contra a severidade, altivez e frieza da voz encarnada pela razão, em favor ou defesa incondicional do sentimento ou das razões do coração…
Comigo mesmo…
É severa demais, eu não escuto Essa voz que me fala altiva e fria, Falta nela o carinho que consola Nela falta o encanto da harmonia…
Devo ouvi-la? Por quê? Acaso o homem Há de vítima ser de um preconceito Que ele próprio criou, que nada exprime, Calcando o coração dentro do peito?
A razão! Mas quem foi que a fez tão fera, E refratária, e surda ao sentimento? Com que paga as contínuas exigências Ela, que assim nos mata a fogo lento?
Faz-nos escravos seus, c’roa de espinhos Nos reserva… Qu’estólida vaidade, Preferir prêmio tal aos sonhos nossos, As doçuras da eterna felicidade!
Não escuto a razão! O seu auxílio Chega tarde… Deixou-me ao desabrigo Quando o peito buscava o qu’ora encontro. Exulta, coração, eu vou contigo!^24
24 Idem, p. 77-8.
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M as não foram esses poemas, concebidos dentro dos padrões da lírica romântica então em voga, que permitiram a Serra alcançar algum reconhecimento como poeta. Ele foi mais lembrado pelo gênero de poesia ruralista ou sertanista que surgiu no quadro da segunda geração, com Juvenal Galeno, Bittencourt Sampaio, Bruno Seabra e Fagundes Varela, entre outros. Seus poemas no gênero foram recolhidos no mesmo volume, Qua- dros, título que na sua singeleza se ajusta bem ao caráter meio pictural das descrições versificadas de paisagens locais. Trata-se de outra tendência menos celebrada (em rela- ção ao indianismo, por exemplo) de nacionalismo literário, que seria como o equiva- lente em versos ao regionalismo ficcional, nascendo no bojo do movimento romântico. N o discurso de posse da cadeira 21 da abl, cujo patrono era justamente o poeta maranhense, escolhido por José do Patrocínio quando a ocupou pela primeira vez, o sucessor, Olegário Mariano, evocou a lembrança de alguns versos ruralistas do poeta maranhense que chegaram a conhecer certa nomeada, a ponto de serem incluídos na Selecta clássica, de João Batista Regueira Costa. Mariano, que estudou com essa antologia, diz a respeito:
Aprendi-o insensivelmente, como aprendemos certas canções populares à força de ouvi- -las repetidas a todo instante. Era a famosa “Missa do galo”, correntia composição setis- silábica, de feição descritiva, que, lida, ficaria depois a cantar-me no ouvido […].
F austo Cunha fez uma breve apreciação desse gênero de poesia em mais de um momento e, num dos ensaios, chama a atenção para a curiosa coincidência entre o poema “Rasto de sangue” de Serra e “Le jaguar” de Leconte de Lisle (único que representa o poeta francês na seleta de Marcou, Recueil de morceaux choisis, adotada em colégios brasileiros e franceses), ao descreverem, ambos, a corrida alucinante e a luta agônica de um touro atacado por jaguar, flagradas da perspectiva do atacante, “heroicizado”, por assim dizer, nos dois poemas, que só se diferenciam no desfe- cho. Enquanto no maranhense “os dois animais rolam exangues no abismo (posição romântica, com a morte sempre a funcionar como desenlace)”, no parnasiano fran- cês, “neutro na descrição”, como “um naturalista de câmara em punho”, a “disparada não se interrompe, o poeta semeia dentro da paisagem o seu grupo estatuesco […]. Só se quisermos dar de Le jaguar os alexandrinos de Le rêve du jaguar é que veremos a fera dilacerando a carne taurina”.^25
25 CUNHA, Fausto. O romantismo no Brasil. De Castro Alves a Sousândrade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; INL, 1971, p. 131-2.