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Este documento discute sobre a fusão de literatura e música na canção diáspora, composta pelo grupo musical brasileiro tribalistas (2017). O texto aborda como a narrativa e os eventos não narrativos na letra se combinam com a música, especialmente através do trabalho de percussão. Além disso, o documento examina como a música e a literatura se alinham com os desejos sonoros e como a intermidialidade entre eles resulta em uma expressão poética intergênica. O texto também discute a história e o significado do termo diáspora.
Tipologia: Exercícios
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Franksnilson Ramos Santana^1 RESUMO: O presente artigo discute os momentos narrativos e não narrativos na canção - Diáspora , do grupo musical brasileiro Tribalistas (2017), observados tanto no interior da sua letra quanto no seu todo melódico, partindo-se da hipótese de que o trânsito pelos dois campos satisfaz um propósito mimético descentralizado, por meio do qual o poeta-compositor abre mão da veiculação da trama única, da linearidade de um relato, para chegar à pluralidade de histórias a partir de alusões, cenas opacas, referências, descrições, discursos diretos, súplicas, junto a toda uma estratégia sonora e rítmica, sobretudo via trabalho percussional. A combinação entre o diegético e o lírico se intensifica no percurso da arte da Modernidade à Pós-modernidade, no modo como o artista se liberta da “necessidade do épico” para exprimir o poético em estruturas intergenéricas, intermidiáticas, intertextuais. Considera-se, enfim, como a Diáspora e a MPB, no geral, conseguem fundir literatura e música, narratividade e livre expressão poética, conto e canto. PALAVRAS-CHAVE: Poesia; Narrativa; Música; Tribalistas; Diáspora. BETWEEN THE TELLING AND THE SINGING OF THIS SONG-POEM: A LISTENING AND READING OF “DIÁSPORA” BY TRIBALISTAS ABSTRACT: This paper discusses about the narrative, and non-narrative events in the song Diáspora , a song of the Brazilian musical group called “Tribalistas” (2017). These aspects are noted as in the lyrics as in the rhythm of the song, from the hypothesis that both paths satisfy a decentralized mimetic purpose. Through which the poet-composer gives up the broadcast of the single plot, from the linearity of a report to the stories plurality as the allusions, dull scenes, references, descriptions, direct speech, pleas, together with all the audio and rhythmic strategy, especially by the percussion work. The combination between the diegetic and the lyric intensifies the course of art from the Modernity to Post-Modernity, in the way the artist set frees himself from the “need of the epic” to express the poetic in intergeneric, intermediatic, intertextual structures. It is considered, as the Diáspora and MPB^2 , in general, can join literature and music, narrativity, and free poetic expression, the short story and the singing. KEYWORDS: Poetry; Narrative; Music; Tribalistas ; Diáspora. (^1) Graduado em Letras Espanhol pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre e Doutor em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Contato: franksnilson@hotmail.com. (^2) Brazilian Popular Song
Literatura e música se entrecruzam não apenas por uma afinidade mimética, mas no modo como fazem seus códigos, respectivamente a escrita e a fala, se alinharem aos desígnios do som : “são filhas do som e do tempo virtual, dotadas ambas de atributos como altura, duração, intensidade, timbre e ritmo [...] Literatura e Música não deixaram de ser irmãs” (OLIVEIRA, 2020, p. 94). O grau de “irmandade” não chega a indicar que a musicalidade no texto literário remete a um traço imanente de todas as literaturas, assim como pode ocorrer de pela música resultar satisfatória somente a experimentação das múltiplas possibilidades de encontros sonoros por instrumentalização. O ato mimetizador, por intermédio de operações que estimulam nossa percepção auditiva, aguça nosso senso sobre um contato entre música e poesia, na ocasião em que esta é confundida, sem maior rigor crítico, com uma das suas formas, a lírica. Mas não por acaso. A designação “poema lírico” resguarda a referência da “lira”, instrumento musical de popular uso na Antiguidade, como que avisando sobre a “natureza essencialmente emotiva” desta poesia (COSTA, 1997, p. 58), além de nos levar à inferência de que, assim como o poema pode ser musicalizado, as melodias podem acolher nas suas pautas a linguagem humana comum. Da relação empreendida entre música e poema vemos germinar um dos seus frutos mais conhecidos: a canção. Na poesia lírica, o ponto de partida ou a fabulação que move o exercício do poeta são as emoções , que estimulam um resultado discursivo poético independente de enquadramento em alguma estrutura diegética. No discurso narrativo, a fábula motivadora do poeta são, em um primeiro e suficiente plano, as ações. O registro dos acontecimentos corresponde à diegesis aristotélica, por meio da qual torna-se prescindível que uma história seja contada pela representação direta das ações pelas personagens, que é a mímesis em sua acepção mais antiga. Contudo, a diegesis – ou a narrativa , história , trama , expressões que se equivalem com os estudos formalistas e estruturalistas da literatura ficcional em prosa (GENETTE, 1988) – pode se inscrever mesmo na poesia lírica, de modo a não se fixar como traço marcante do texto. Assim também, numa escrita em que a narratividade sobressai, elementos mais presentes nos versos líricos, como a afirmação desimpedida do poeta, intervêm na estruturação de um texto/obra. Essa mesma tensão que coloca o “dizer” de encontro ao “contar”, e vice-versa, perpassa a escritura/partitura de uma canção.
As muitas combinações empreendidas entre som e letra vêm sendo estudadas e teorizadas à luz de disciplinas como a Semiótica, Intersemiótica, Teoria da Poesia (ou do poema), ou a Melopoética. No que diz respeito a esta última, entende-se, sobretudo a partir das pesquisas de Steven Paul Scher (1982), que tal
o som da voz humana. Tão entrelaçados assim, música e poema compartilham de um vocabulário teórico similar em várias ocasiões: No caso da fala, a identidade com os sons da música é observada sob os parâmetros de registro grave/agudo, da textura dos sons, do ritmo desenvolvido ao discurso, considerando-se as pausas, os dados entoacionais indicados pelos sinais de pontuação e recursos onomatopaicos, sem falar dos recursos estilísticos que exploram a matéria sonora da palavra: a aliteração, a assonância, a tmese, a rima, os anagramas e outros jogos sonoros. (COSTA, 1997, p. 58). A gravação de uma canção se abre a um trabalho secundário, mas nunca dispensável, em que músicos e arranjistas potencializam a melodia principal, a que é cantada, com combinações harmônicas e melódicas provenientes dos instrumentos musicais. Esses aportes melódicos podem ceder à função de efundir ou narrar, de acordo ou não com a intenção da letra tornada música pela primeira vez. Assim se finalizou a canção Um mundo de possibilidades (Brasil na Panela) (2019), de Gustavo Kurlat, interpretada por Bia Sá^3 , cujo arranjo de percussão se dá em panelas – em um projeto que celebra os mais de 40 anos da marca Tramontina no Brasil – , combinando com o texto da música, que exalta nomes de pratos típicos brasileiros. Há outras ocasiões em que, por exemplo, instrumentos musicais reproduzem por verossimilhança o som do animal relatado na letra, como em Boi Bumbá (1965), de Luiz Gonzaga e Gonzaguinha^4 , ou em que a melodia se encarrega de enfatizar um ponto específico da narrativa da canção, como o som do estalo do chicote em Tropeiros da Borborema (1980), de Raimundo Asfora e Rosil Cavalcanti^5. Em outra via, pode ocorrer de estarem, música e letra, em uma mesma circunscrição, ocorrendo paralelamente, mas respeitando as suas próprias leis. Algo assim é observável nas músicas popularmente conhecidas como sendo do “gênero brega”, nas quais, ou nos espaços que antecedem a parte final da canção, ou em sua conclusão, o cantor adere à fala comum, ou a um recitativo. Aqui, o ato de declamar atende aos propósitos harmônicos e rítmicos do poema em si, enquanto o arranjo que o acompanha cumpre uma função de pano de fundo de tal leitura (ex.: Lembranças do Rei [1978], de Bartô Galeno^6 ). Essa outra possibilidade do som humano na música abre margem para que a canção abarque versos ou textos outros de autoria alheia, em uma situação nítida de intertextualidade e intermidialidade. À medida que música e poema vão interagindo e compartilhando entre si seus componentes, o propósito narrante e a linguagem lírica vão nos conduzindo pelo território da mimese e suas exterioridades. São de interesse para este artigo os pontos de contato até aqui (^3) Disponível em: https://vimeo.com/367347709. Acesso em: 19 de ago. 2021. (^4) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nbazwvLmAfM. Acesso em 19 de ago. 2021. (^5) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TESceNskyow. Acesso em 19 de ago. 2021. (^6) Disponível em: https://immub.org/album/no-toca-fita-do-meu-carro. Acesso em: 19 de ago. 2021.
referidos, observados com maior presteza a seguir na canção Diáspora (2017), do grupo musical brasileiro Tribalistas.
“Diáspora” é a primeira faixa do álbum segundo lançado em agosto de 2017, que leva o mesmo nome do supergrupo da MPB, Tribalistas, composto por Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. A canção possui autoria dos mesmos músicos e explora o tema, como sugere o título, de emigrações sob uma condição na maioria das vezes involuntária. Na sua origem, o termo “diáspora” é utilizado para remeter à dispersão de povos, diferenciando-se de uma espécie de emigração individual, viagem ou turismo: o vocábulo, do grego, que significa dispersar, ou semear, está associado a ideias de migração e colonização na Ásia Menor e no Mediterrâneo, na Antiguidade – de 800 a.C. a 600 a.C. Na tradução bíblica (Deuteronômio 28:25), a palavra designa a dispersão dos judeus exilados da Palestina depois da conquista babilônica e da destruição do Templo no ano de 586 a.C. (PEREIRA, 2016, p. 72). Nesta primeira diáspora, os refugiados judeus são deportados, a mando do imperador de Babilônia, Nabucodonosor II, para a Mesopotâmia, cumprindo-se, segundo a crença judaico-cristã, a profecia mencionada no último livro do pentateuco bíblico. Uma nova diáspora ocorre por volta de 70 d.C., quando o general romano Tito cerca Jerusalém e promove um dos maiores eventos sanguinários da história, desencadeando a morte de pelo menos 100 mil judeus e tornando em ruínas a cidade e o seu Templo Sagrado. Chama-se também diáspora o trânsito de africanos, de 1525 a 1866, a terras do continente americano, aportados como mercadorias, na condição de escravos, assim como o de todo povo, ou um tipo de povo ou uma quantidade significativa de certo povo, que, por circunstâncias diversas – política, ideológica, religiosa, étnica, fóbica etc. – , vê a necessidade ou é constrangido ao acontecimento do deslocamento, da dispersão, do refúgio, da estada em um lugar desconhecido, da sobrevivência num não-território. Em Diáspora não há menção específica sobre o povo que executa a diáspora. Mas a canção se escreve nos bastidores de um cenário no qual a Síria se isola, em termos numéricos, como a nação com maior número de emigrantes: cerca de 6, milhões espargidos pelo mundo até o fim de 20 18 , segundo o ACNUR (Agência da ONU para refugiados). Além disso, se alastrava, desde 2015, o número de venezuelanos que atravessavam suas fronteiras em busca de sobrevivência e convivência em outros países, sobretudo os seus vizinhos.
narrativos ora independentes, ora compenetrados. Podemos observar, já na primeira parte da estrofe inicial, algo parecido ao que Jean-François Lyotard pensou sobre a não completude das estruturas de relatos que se escrevem principalmente a partir da segunda metade do século XX: A função narrativa perde seus atores ( functeurs ), os grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos etc., cada um veiculando consigo validades pragmáticas s ui generis. Cada um de nós vive em muitas destas encruzilhadas. Não formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis, e as propriedades destas por nós formadas não são necessariamente comunicáveis. (LYOTARD, 2009, p. XVI^7 ). Nos três primeiros versos, com um discurso narrativo mais evidente, temos um espaço diegético multidimensional, anacrônico. Não há, em toda a primeira estrofe, relato de uma “sucessão de acontecimentos” (BREMOND, 2011) no interior de uma história que insinuou ser desenvolvida, e sim a presença de um “núcleo narrativo” (BARTHES, 2011), uma ação suficiente – “atravessamos o mar” – semanticamente potente à medida que evoca a pluralidade de personagens envolvidas em histórias de diásporas, de refugiados, viajantes comparados “aos romanos sem Coliseu”. Não há até aqui indícios de uma trama única. Somos colocados nesta mesma travessia do mar – em razão da conjugação verbal (atravessamos [nós]); neste desejo poético somos os retirantes, com cubanos, sírios, ciganos, em um mesmo barco, abdicando de nossos costumes, cultura (“sem Coliseu”). Nessa embarcação talvez todos os tripulantes levem consigo a hipocrisia farisaica, visando a sobrevivência própria e simulando a preocupação com a situação do outro. A segunda parte da estrofe continua com o registro solitário do verbo “atravessar”, e com o reforço da “linguagem descritiva” (GENETTE, 2011), conservando a instabilidade de uma narrativa centralizada. Primeiro, temos a revelação do destino da travessia, objetiva, por assim dizer: “pro outro lado”. O verso subsequente sugere uma nova cena: um percurso no Rio Vermelho do mar sagrado. As metáforas, posicionadas inversamente, suscitam uma pluralidade de leituras. Na escolha mais óbvia, portanto menos poética, se optaria pelas adjetivações “Mar Vermelho” e “rio sagrado”. Diz a principal narrativa do Pentateuco que uma multidão de judeus, na diáspora guiada pelo profeta Moisés, cruzou o Mar Vermelho, em terra seca, escapando dos domínios egípcios, e indo ao encontro de uma terra a eles prometida por Deus. O rio sagrado reporta, para que continuemos na literatura (^7) Páginas da Introdução do livro citado são numeradas com algarismos romanos.
judaico-cristã, ao rio “puro da água da vida, claro como cristal, que procedia do trono de Deus e do Cordeiro”, na visão do discípulo João do final dos tempos (Apocalipse 22:1). Na canção ficam de fora essas obviedades. É o rio que na sua estreiteza deve ser vermelho, como um percurso sangrento, dolorido, que alguém faz na expectativa de uma paz perene, de um mar sagrado que dissipe esta cor. Mas essa travessia não é mais que um modo figurado de o narrador deixar sua voz narrante, e chegar, como eu-lírico, ao canto da crueza das diásporas no mundo contemporâneo, no qual observamos, entre inúmeras situações, “center shoppings superlotados / de retirantes refugiados”. Na estrofe a seguir, quer dizer, no refrão, testemunhamos algo mais claro da quebra do que seria uma unilateralidade diegética: You, where are you? Where are you? Where are you? (ANTUNES; MONTE; BROWN, 2017). O discurso direto, que realiza a pergunta “onde você está”, carece de narrativização prévia que indique a quem o sujeito lírico busca, ainda que a entrada na língua inglesa funcione como metonímia de um acontecimento de imigração em solo estadunidense, da procura, ou da saudade de um ente ou amigo que se perdeu na dispersão. Não há, da parte desta voz emissora, especificação da história ou a qual diáspora ela remete, algo ainda mais claro na última parte da letra musicalizada, da melodia principal: Onde está Meu irmão Sem Irmã O meu filho sem pai Minha mãe Sem avó Dando a mão pra ninguém Sem lugar Pra ficar Os meninos sem paz Onde estás Meu Senhor Onde estás? Onde estás? (ANTUNES; MONTE; BROWN, 2017). O discurso direto segue nesta última estrofe. Mas já não sabemos se o emissor é o mesmo do que cantou no inglês. É possível que tenhamos aí cinco sujeitos líricos distintos: o que enuncia “onde está meu irmão sem irmã”, outro para “o meu filho sem pai”, um terceiro que diz “minha mãe sem avó, dando a mão pra ninguém,
Os que a estes mares ontem se arriscaram E vivem os que por um amor tremeram E dos céus os destinos esperaram” (SOUSÂNDRADE apud ANTUNES; MONTE; BROWN, 2017). A citação é uma modalidade de escrita intertextual, no qual temos “a presença efetiva de um texto em outro” (GENETTE, 2010, p. 14). Os versos são articulados por recitação e não por melodia cantada, e atendem a uma narração que não nos entrega um enredo com todos os seus elementos. Eis a fronteira entre o narrativo e o lírico, ou entre o relato e a expressão livre: quando o poeta abre mão da narrativa das ações para ceder à escrita do sentimento ou do pensamento sobre as mesmas ações. O enxerte narrativo de “O Guesa”, junto a núcleos narrativos apresentados no decorrer da canção – “atravessamos o mar”, “atravessamos pro outro lado”, mostram que os compositores, ao menos no que tange à parte escrita da Diáspora , têm histórias de partida, no entanto, não as transportam a um total discurso narrativo. Objetiva-se que as referências sejam exploradas na linguagem do sentimento e do pensamento, da fala comum e da ação direta. Aos poucos vemos a insuficiência narrativa das diásporas aludidas ser absorvidas pelo “canto da diáspora”. Aqui a potência semântico-temática independe de um ajustamento a estruturas fixas. A citação não está deslocada, semanticamente, dos instantes narrativos e toda escritura de Diáspora : remete a uma epopeia cujo protagonista é um adolescente índio, tirado à força do seio familiar, que, como um errante, é constrangido a uma jornada pelo continente americano, ao longo da qual buscam sacrificá-lo, até que fixe migração em Nova Iorque, onde sofrerá com a mecânica de um capitalismo consolidado. O recorte de “O Guesa” não consegue expor essa síntese narrativa. A captação do intertexto reivindica um leitor específico, com conhecimento no mínimo da literatura romântica brasileira. Sua menção, inclusive, é exterior ao espaço da música, como, nos websites dos três compositores, ou na descrição do lyric vídeo da canção, no canal de Marisa Monte, publicado na plataforma de compartilhamento de vídeos^8. Contudo, o fragmento, em suas poucas linhas, concorda com a parte inicial da canção propriamente dita, na ocasião em que começa a relatar uma travessia: “uma tempestade acalmada”, “a morte dos que enfrentaram o mar”, “e a sobrevivência daqueles que decidiram amar”, são ações que antecedem o “cruzamento do mar Egeu”. Essa primeira intertextualidade funciona como uma epígrafe de livro. A outra citação ocorre antes que o refrão seja cantado pela segunda vez: Deus! Ó Deus, onde estás que não respondes? (^8) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=neR2vTRrs4M&list=RDneR2vTRrs4M&start_radio=1. Acesso em: 20 de ago. 2021.
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito Que embalde desde então corre o infinito Onde estás, Senhor Deus?...” (ALVES apud ANTUNES; MONTE; BROWN, 2017). Aqui temos a primeira estrofe do poema “Vozes d’África” (1868), de Castro Alves, também correspondente ao terceiro período do romantismo literário brasileiro. Sai agora o discurso narrativo explicitado com o uso do pretérito constante e pela narração em terceira pessoa, e entra a liberdade expressiva lírica de quem se comunica diretamente com um “tu”. Numa prosopopeia, a África se personifica como criatura (mãe) que brada por justiça, por misericórdia para seus filhos; é um grito de lamento, de queixa, de incompreensão dolorosa da escravidão dos nascidos no continente, transportados involuntariamente em embarcações europeias ao Novo Mundo. A canção não apenas é o produto de combinação de mídias, a música com o poema, mas é também um espaço mimético onde uma pode dissociar-se da outra por um tempo, ainda que imbuídas em uma mesma “faixa” musical. É o caso da inserção de fragmentos dos poemas referidos, quando não há necessidade de que os mesmos se adequem a uma melodia particular, ou nos intervalos de pausa, de silêncio da música vocal, à medida que soa a música instrumental, com seus arranjos e segmentos melódicos próprios (mas não dissonantes do todo da música). Restaria adentramos mais na musicalidade da Diáspora e em questões sobre sua poeticidade. Primeiramente, ela transita entre “canção popular” e a “canção política” (FABBRI, 2017, p. 14). O pop esbarra em um problema conceitual, teórico. Sua afirmação enquanto “gênero” ou “estilo” musical diz respeito não apenas a formas específicas nas quais se estrutura determinada música ou canção, senão também em razão de seu nascedouro, seus referentes, sua recepção, sua temporalidade, e sua comercialização próprias. Essas cinco últimas particularidades fizeram, ao longo do tempo (pensando no Brasil), a primeira se ofuscar: quando a música pop subsiste, em diferentes gêneros, ritmos e estilos musicais, contanto que cumpra com os demais “requisitos” – por isso “música popular” acaba como apelido para algo que entra no mercado como samba, bossa nova, pagode, balada, forró, sertanejo, funk etc. Diáspora justifica o rótulo de “música popular brasileira” (MPB), em linhas gerais, porque exprime “não apenas um estilo musical, mas um tipo de comportamento diante do mundo político de então” (BURNETT, 2008, p. 106). A despeito de serem mais comuns letras dotadas deste intento na segunda metade do século XX, sobretudo como “canções protesto” em face da ditadura militar no Brasil, a canção se volta a dramas atuais de povos diversos. Assim, não se trata da música popular em sua origem, a folclórica, – como define Mário de Andrade – ou nacionalista, indianista, interiorana, regional, sertaneja, mas a urbana, e em todos os sentidos: seus
o lírico, os versos ao menos atendem aos desígnios poéticos, ali em suas microestruturas, nos instantes em que a linguagem em seu estado poético se propõe a dizer aquilo que a linguagem comum não consegue senão por segmentação, por “separação e disjunção dos significantes, dos significados, de significante e do significado” (GENETTE, 2015, p. 156). A expressão poética compensa a carência de linguagem; simula sua completude ao ignorar as barreiras gramaticais, fônicas, estilísticas, midiáticas, genéricas. Logo o desvio da trama, logo a loucura de os fariseus estarem com cubanos, sírios e ciganos em um mesmo barco e trânsito. Por coincidência ou não, a ação da diáspora e a volatilidade formal da MPB dialogam com isso que é o literário por ângulos mais distantes: a mimese das ações, dos sentimentos, das ideias. Neste mesmo propósito mimetizante, requer-se que o poeta-compositor-letrista transite pelas múltiplas estruturas literárias, artísticas, gêneros, estilos ou ritmos musicais. Diáspora , enfim, conta no seu limite, pois é também no canto, nos desvios narrativos, que as referências das narrativas de diáspora e histórias de dispersão são, do ponto de vista poético, satisfatoriamente realizadas, restando uma expressão de sentimento, uma absorção de vozes de alteridades, uma ideia de que “a sociedade deve melhorar”. Mas quando? Como? Eis a poesia... ou “a linguagem em seu estado de sonho” (GENETTE, 2015, p. 156).
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