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Artigo científico apresentado como requisito necessário à conclusão do Curso de Licenciatura em História presencial, UFRN.
Tipologia: Esquemas
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Artigo apresentado como requisito necessário à conclusão do Curso de Licenciatura em História presencial, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no semestre 2025.1. Orientador: Prof. Dr. Sinuê Neckel Miguel.
This article analyzes the formation of private life in Portuguese America as an expression of a model of domination rooted in patriarchal authority and personalized networks of power inherited from the Iberian Ancien Régime. It argues that the Luso-Brazilian colonial structure was not organized around a separation between public and private spheres, but rather through the overlapping of household and court — both articulated through symbolic, patrimonial, and affective ties. Situated within the context of the Portuguese Catholic monarchy, the study highlights the court as an extension of the royal household and a site for the exercise of sacralized, decentralized, and relational power, sustained by patronage practices and juridically pluralistic privileges. The objective is to understand how the centrality of the household, the patriarchal family model, and a culture of personal rule contributed to consolidating a politics of intimacy that took root and endured in the colonial setting. The methodological approach is historical-interpretive, based on a critical and interdisciplinary literature review, drawing from Early Modern History, Colonial History, and Historical Sociology. The study mobilizes authors such as Pierre Bourdieu, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando A. Novais, António Manuel Hespanha, William Doyle and João Fragoso.. The research highlights the role of both the casa-grande and the patrimonial court as radiating centers of symbolic power, revealing that patriarchalism and cordial authoritarianism in contemporary Brazil are enduring legacies of an Iberian political culture rooted in the personalization of authority. By recognizing this tradition, the study contributes to a critical understanding of the historical roots of inequality and the symbolic forms of domination still present in Brazilian society.
Keywords: patriarchalism; cordial authoritarianism; patrimonial court; power networks; Portuguese America.
A compreensão das estruturas sociais e culturais que moldaram a vida privada na América portuguesa exige uma análise que ultrapasse os limites geográficos e temporais da colônia. Este artigo parte da hipótese de que o patriarcalismo e o autoritarismo cordial — este último entendido como uma forma de dominação que se disfarça sob relações afetivas e pessoais —, marcas profundas da sociedade brasileira, não emergem exclusivamente do contexto colonial, mas constituem uma herança das formas de organização social e política do
Antigo Regime ibérico. Ao investigar a centralidade da casa e da família patriarcal como núcleos do poder, busca-se demonstrar como o espaço privado se tornou também um lugar de exercício da autoridade, do controle e da reprodução de hierarquias sociais. A metáfora presente no título — entre a casa e a corte — sintetiza o argumento central deste estudo. Enquanto a casa representa o núcleo doméstico do poder patriarcal, onde se constroem e se reproduzem desigualdades sob a autoridade privada, a corte simboliza o centro da autoridade régia no Antigo Regime ibérico, não como sede de um poder impessoal e universalista, mas como extensão da casa real: uma instância patrimonial, personalizada e simbólica, na qual o poder se exercia por meio de vínculos de fidelidade, patronato e privilégios particulares. Defende-se aqui que, no caso luso-brasileiro, a corte não se ergueu em oposição à casa, mas em continuidade com ela: o espaço de governo foi moldado pelas mesmas lógicas privadas e hierárquicas que estruturavam a vida colonial, consolidando uma cultura política personalista e autoritária. Neste sentido, o objetivo central deste trabalho é analisar como os modelos de dominação próprios da Península Ibérica — baseados na autoridade do chefe de família, na naturalização das desigualdades e na sobreposição entre as esferas doméstica e governamental — foram transplantados e adaptados à realidade colonial brasileira, contribuindo para a consolidação de um poder simbólico de longa duração. A tese defendida é a de que a vida privada colonial, longe de ser um espaço neutro ou íntimo, foi uma expressão concreta das formas modernas de dominação herdadas do Antigo Regime. Nesse aspecto, a leitura de António Manuel Hespanha é fundamental para compreender a lógica descentralizada, personalizada e juridicamente plural que caracterizava o governo no Império português. Para isso, utiliza-se uma abordagem histórico-interpretativa, ancorada na revisão bibliográfica crítica de autores como Pierre Bourdieu, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando A. Novais, António Manuel Hespanha e João Fragoso. Ao recorrer a esses referenciais, busca-se compreender como o poder patriarcal e cordial se estruturou historicamente e como ele se articula com a formação social brasileira. A originalidade da proposta reside na articulação entre a História Moderna europeia e a História Colonial brasileira, destacando os vínculos entre a cultura política ibérica e os mecanismos de dominação simbólica no Brasil. Ao recuperar esse processo, este artigo pretende contribuir para a reflexão crítica sobre as raízes históricas das desigualdades sociais e das práticas autoritárias ainda presentes na sociedade brasileira contemporânea.
particularista, marcada por privilégios, costumes locais e jurisdições sobrepostas — os chamados iura propria. Nesse contexto, o exercício da autoridade ocorria por meio de vínculos pessoais, familiares e locais, o que tornava inviável a imposição de um modelo uniforme de governo, inclusive nas colônias (HESPANHA, 2001, p. 172). De modo semelhante, Gilberto Freyre (2006) descreve a casa-grande como o centro da vida social, política, econômica e religiosa, reforçando a sobreposição entre as esferas pública e privada. A casa, nesse contexto, não era apenas uma unidade residencial, mas a célula básica da vida social, política e simbólica. O patriarca exercia poder sobre a família, os empregados e até sobre agregados e vizinhos, numa dinâmica em que a autoridade não emanava de instituições impessoais, mas da sua posição social e simbólica como chefe legítimo da ordem doméstica. Essa autoridade era legitimada por tradições culturais, valores cristãos e pela própria organização do espaço doméstico. Como observa o autor, “a família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil” (FREYRE, 2006, p. 81). Como destaca Pierre Bourdieu (2001), o espaço doméstico tem um papel central na reprodução da ordem masculina, pois nele se impõem desde cedo as divisões simbólicas que estruturam a percepção do mundo. A casa, ao ser organizada de modo sexuado — com tarefas, espaços e papéis distintos para homens e mulheres — reforça a dominação masculina de forma invisível e durável. O autor observa que “as partes da casa são todas sexuadas” e que “as oposições estruturantes do espaço social são impostas como naturais” (BOURDIEU, 2001, p. 40). Assim, a casa-grande colonial brasileira não apenas reproduzia o modelo patriarcal europeu, mas o reforçava por meio da ritualização do mando e da internalização da desigualdade. Segundo Bourdieu, essa dominação se sustenta sobre “sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação”, os quais são incorporados desde a infância e moldam de forma duradoura a maneira como os sujeitos experimentam o mundo social (BOURDIEU, 2001, p. 22). A autoridade masculina, nesse contexto, não era vivida como mera imposição, mas como algo que parecia natural e legítimo tanto para quem a exercia quanto para quem a sofria — uma dominação com aparência de normalidade. No mundo colonial, isso se materializou na figura do senhor de engenho, símbolo da virilidade, da honra e da capacidade de governar. Bourdieu mostra que essa virilidade era construída socialmente a partir de critérios como “domínio sobre os outros e sobre si mesmo”, “autoridade moral e política” e capacidade
de mando, todos associados ao ideal masculino dominante (BOURDIEU, 2001, p. 22). Gilberto Freyre (2006) reforça essa leitura ao retratar o senhor de engenho como o centro da vida rural, acumulando funções administrativas, jurídicas, políticas e religiosas no interior da casa-grande. Como ele observa, “a família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas...” (FREYRE, 2006, p. 85). Essa cultura política assentava-se em valores como a obediência, a deferência e o privilégio, sendo marcada por uma profunda desconfiança em relação à igualdade e à liberdade — valores que só mais tarde seriam promovidos pelos ideais iluministas. No universo ibérico e luso-brasileiro, o poder era menos institucional e mais performático: manifestava-se por meio de rituais, símbolos, gestos cotidianos e relações interpessoais. A autoridade era tanto mais eficaz quanto mais íntima, pois, como observa Bourdieu, a violência simbólica só se sustenta porque os dominados acabam por colaborar com ela, ao aceitarem como legítimas as estruturas que os oprimem: “a violência simbólica se exerce com a cumplicidade daqueles que a sofrem” (BOURDIEU, 2001, p. 11). É nessa fusão entre família e governo, entre lar e Estado, que se enraíza o poder privado como forma predominante de organização social. A casa funcionava como um microcosmo político, onde a autoridade se naturalizava pela convivência cotidiana e pela internalização das hierarquias. Como sintetiza Freyre (2006), a casa-grande foi o ponto de partida de quase tudo o que se passou a considerar brasileiro — desde a política local até os costumes cotidianos. Compreender esse modelo é essencial para analisar a maneira como tais estruturas foram não apenas transferidas, mas também adaptadas e reforçadas no contexto colonial brasileiro.
3. A TRANSFERÊNCIA CULTURAL: ENTRE A METRÓPOLE E A COLÔNIA
Nesse estágio da análise, é fundamental compreender como os modelos sociais e políticos do Antigo Regime ibérico foram transplantados para o contexto colonial da América portuguesa. A colonização não implicou apenas a imposição de uma autoridade externa, mas envolveu um profundo processo de transferência cultural, no qual os valores, as instituições e as práticas do Velho Mundo foram adaptados às novas condições da terra conquistada. Esse transplante, contudo, não foi mecânico ou uniforme: sofreu reformulações, acomodações e ressignificações, ajustando-se às exigências da economia escravista, às distâncias administrativas e à heterogeneidade das populações coloniais.
madrugou, chocando-se ainda em meados do século XV com o clericalismo dos padres das campanhas...” (FREYRE, 2006, p. 85). O poder colonial, assim, não era exercido de maneira impessoal ou institucional, mas por meio da força privada, legitimada pela tradição, pela autoridade doméstica e pela aliança com a religião. Nesse processo, a cultura política da metrópole – baseada em vínculos de fidelidade, relações de compadrio, troca de favores e clientelismo – foi reatualizada na colônia, assumindo contornos ainda mais intensos e personalistas. João Fragoso (2001) demonstra que o mundo colonial luso-brasileiro se estruturava segundo a lógica do “Antigo Regime nos Trópicos”, expressão que designa uma sociedade organizada a partir de estamentos, privilégios e da indistinção entre as esferas pública e privada. Segundo o autor, “as ‘melhores famílias da terra’ eram produto das práticas e instituições – e de suas possibilidades econômicas – do Antigo Regime português, presentes também em outras partes do ultramar, quais sejam: a conquista, a administração real e a câmara municipal”, sendo que tais mecanismos permitiam a reprodução do poder social menos por força de leis e mais pela autoridade pessoal, legitimada por hereditariedade, títulos e posse fundiária (FRAGOSO, 2001, p. 42). Essa transferência cultural também implicou a manutenção e o fortalecimento do modelo patriarcal, que organizava tanto a estrutura da família quanto as relações sociais mais amplas. Como observa Gilberto Freyre (2006), a casa-grande tornou-se o núcleo irradiador de poder local, funcionando como centro de decisões políticas, jurídicas, religiosas e administrativas. “A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil” (FREYRE, 2006, p. 81). A ausência de uma autoridade estatal efetiva e centralizada favoreceu essa privatização da esfera pública, fazendo com que a vida política colonial se estruturasse em torno de casas, famílias e nomes de prestígio. Essa perspectiva é reforçada por Freyre e pelo que aponta António Manuel Hespanha (2001) em sua análise da constituição imperial portuguesa. Hespanha mostra como a estrutura do império era profundamente plural, desprovida de uma constituição colonial unificada, e organizada por uma multiplicidade de vínculos pessoais, normas locais e direitos particulares (pp. 169–173). Nesse quadro, a autoridade doméstica não apenas refletia os padrões da metrópole, mas ganhava contornos próprios, com maior grau de autonomia, principalmente na medida em que os governadores e agentes locais agiam com amplos poderes excepcionais, em nome do serviço real.
A casa patriarcal, no contexto colonial, intensificava esse modelo descentralizado e não hierarquizado, sendo a base efetiva do exercício do poder nos trópicos. A dominação privada assumia também o papel de governo, como reconhece Hespanha ao indicar que os espaços coloniais eram frequentemente governados “em nome do rei”, mas com forte atuação de interesses e normas locais (p. 171–172). Assim, a transferência cultural entre a metrópole e a colônia não apenas garantiu a continuidade de práticas autoritárias e patriarcais, mas também fortaleceu a presença do poder privado como forma dominante de organização social. Compreender a estrutura desse poder doméstico e suas funções múltiplas é essencial para analisar como se consolidaram, no Brasil colonial, as formas específicas de vida privada, com ênfase na casa, na família e nas redes simbólicas de mando.
Compreender a formação da vida privada no Brasil colonial exige que se ultrapassem as noções modernas de individualidade e intimidade, frequentemente associadas à esfera doméstica. No contexto colonial, o espaço da casa — especialmente a casa-grande — não era um refúgio da política, mas um dos principais palcos do exercício do poder. A residência senhorial não funcionava apenas como espaço de moradia, mas como unidade produtiva, núcleo de sociabilidade e instância de autoridade jurídica e moral. Para Gilberto Freyre (2006), a casa funcionava como a célula-mãe de todas as instituições brasileiras. Conforme citado anteriormente, “a família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil”. Essa centralidade da casa e da família reflete a permanência de padrões herdados do Antigo Regime ibérico, nos quais a autoridade pública se confundia com a autoridade privada, mas também adquiriu formas singulares no contexto da experiência colonial brasileira. Nesse sentido, António Manuel Hespanha (2000) observa que o Império português era regido por uma estrutura política fragmentária e centrífuga, sem hierarquias rígidas nem regras uniformes de governo. A ausência de centralização e a autonomia dos poderes locais permitiram que a casa — enquanto unidade de mando e de organização social — assumisse papéis que, noutros contextos, caberiam a instituições públicas formais (HESPANHA, 2001, p. 170–175).
Como observa Gilberto Freyre, refletindo os valores racistas e sexistas da época, “branca para casar, mulata para..., negra para trabalhar”; ditado em que se expressa “o convencionalismo social da superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta” e também “a preferência sexual pela mulata” (FREYRE, 2006, p. 72). A casa-grande, portanto, não apenas reproduzia as hierarquias de classe e etnia, mas também aprofundava desigualdades de gênero, funcionando como aparelho disciplinador de corpos e afetos. Além disso, a escravidão impôs uma lógica de violência sistemática ao espaço doméstico. Os senhores não exerciam autoridade apenas sobre os membros de sua família, mas também sobre uma população escravizada que era concebida como propriedade. A intimidade da casa, nesse sentido, era também o espaço da dor e do castigo. Como observa Bourdieu (2001), a violência simbólica é tanto mais eficaz quanto mais íntima, pois se exerce com a cumplicidade daqueles que a sofrem. No ambiente doméstico colonial, essa cumplicidade era produzida por um cotidiano marcado por trocas ambíguas, afetos controlados, ameaças implícitas e gestos de paternalismo autoritário. O espaço da casa, então, não apenas refletia a cultura política ibérica, mas operava como meio de sua ampliação e aprofundamento. Essa fusão entre lar e trono, entre família e Estado — que agora podemos compreender melhor como uma sobreposição entre a casa senhorial e a lógica patrimonial da corte — possibilitou a consolidação de uma forma específica de dominação no Brasil colonial: pessoalizada, patriarcal, hierárquica e revestida de rituais e símbolos que conferiam legitimidade ao mando. A vida privada, longe de se restringir ao domínio do íntimo, tornou-se mecanismo central da reprodução das hierarquias sociais. A casa foi o palco onde se formaram subjetividades marcadas pela internalização da autoridade e pela aceitação das diferenças sociais como naturais. Essa estrutura não apenas organizou a experiência cotidiana da colônia, mas também sedimentou uma cultura política fundada na pessoalização das relações, no prestígio familiar e na centralidade da autoridade doméstica como pilar de sustentação da ordem social. O poder ali exercido, embora travestido de afeto e proximidade, ocultava um regime de dominação profunda, que resistiu às transformações formais da história e se prolongou sob diversas formas nos séculos seguintes.
5. O AUTORITARISMO CORDIAL E A CULTURA POLÍTICA COLONIAL
A cultura política brasileira foi moldada por um tipo particular de dominação que combinava formas tradicionais de autoridade herdadas do Antigo Regime com uma
sociabilidade fortemente marcada por relações pessoais e afetivas. Sérgio Buarque de Holanda foi quem melhor captou essa síntese ao cunhar a expressão “autoritarismo cordial”, que define um modelo de poder em que a obediência e a hierarquia são mantidas não por meio da impessoalidade institucional, mas através de laços emocionais, familiares e pessoais. Tal arranjo configura um paradoxo: o exercício da autoridade se dá por intermédio da afetividade e da proximidade, mas não deixa de ser hierárquico, excludente e, por vezes, brutal. Na lógica colonial, essa forma de dominação encontrava solo fértil. O poder não se estruturava em instituições impessoais e estáveis, mas na figura do patriarca, do senhor, do chefe local. A casa continuava a ser o núcleo irradiador de poder, e a autoridade senhorial transbordava do espaço privado para o público. As instituições formais do Estado eram substituídas pelas relações de mando doméstico. A elite colonial, formada por proprietários de terra e senhores de escravos, governava comunidades inteiras a partir da casa-grande, controlando não apenas a produção econômica, mas a justiça, a religião, os costumes e a política local. Diferentemente das monarquias absolutistas europeias, onde o poder se manifestava com pompa, decretos e tribunais, no Brasil colonial o poder se expressava no cotidiano por meio de relações pessoais, da lógica do compadrio, do favor e da obediência íntima. Essa configuração favorecia o que Holanda denominou de cordialidade, termo que não significa gentileza, mas a tendência brasileira de agir "a partir do coração", ou seja, da emoção. “O homem cordial não é o homem afável. A lhaneza no trato, a afabilidade, podem muito bem conciliar-se com a ordem patriarcal mais desumana” (HOLANDA, 2004, p. 146). Essa constatação revela como a afetividade no Brasil não anulou o autoritarismo, mas o tornou mais difícil de ser enfrentado, pois estava mascarado sob gestos de simpatia e familiaridade. A dificuldade histórica de separar o público do privado foi um traço marcante das sociedades ibéricas do Antigo Regime. Como destaca António Manuel Hespanha (2000), o exercício do poder nas monarquias católicas não se baseava em uma distinção moderna entre esferas institucionais, mas em uma lógica de governo plural e patrimonial, na qual “a administração do império era uma acumulação de situações locais, cada uma delas com o seu modo próprio de funcionar” (p. 170). Isso implicava que a autoridade se exercia em espaços privados e por vínculos personalizados — como a casa, os círculos clientelares ou os mecanismos de favor —, sendo o rei, muitas vezes, representado como chefe de uma vasta e multifacetada casa política. Essa concepção favoreceu, na colônia, a naturalização de
O impacto dessa estrutura sobre a formação histórica do Estado brasileiro é profundo. Ao delegar funções públicas aos patriarcas coloniais, valendo-se de sua autoridade privada para o controle territorial, consolidou-se uma tradição política em que o poder se exerce não pela legalidade impessoal, mas por favores, alianças pessoais e redes de proteção. O patrimonialismo, o clientelismo e o mandonismo são expressões dessa cultura política, enraizada na experiência colonial ibérica transplantada aos trópicos. Freyre reforça que essa articulação entre casa e corte estruturava uma forma de governo em que a autoridade pública era exercida a partir da legitimidade privada, consolidando uma cultura política centrada na figura do patriarca, que unia prestígio, fé e propriedade. Ao entender a cultura política brasileira como expressão da vida privada colonial — e não como ruptura com ela —, compreendemos que o autoritarismo cordial não é uma simples anomalia ou traço de personalidade coletiva, mas uma construção histórica, simbólica e institucional. É fruto de um longo processo de reprodução de práticas sociais, linguagens morais e estruturas de mando que têm origem na casa-grande patriarcal e se projetam sobre a vida pública. A autoridade, nesse modelo, não se impõe pela força bruta nem pela legalidade universal, mas pela familiaridade, pelo favor e pela lealdade pessoal — mecanismos que tornam o poder mais íntimo e, por isso mesmo, mais difícil de questionar. Esse tipo de dominação, embora tenha sido forjado no contexto colonial, atravessou os séculos e deixou marcas profundas na vida política e social brasileira. As práticas de compadrio, o culto à figura do “chefe”, a resistência à impessoalidade da lei e a constante confusão entre o interesse público e o privado continuam a operar em diferentes esferas da sociedade. A crítica ao autoritarismo cordial exige, portanto, uma análise histórica das suas raízes e das suas formas de adaptação. Mais do que um traço do passado, ele é uma herança viva, cuja compreensão é fundamental para o enfrentamento dos desafios democráticos do presente.
6. PERMANÊNCIAS E RESSIGNIFICAÇÕES
A herança do patriarcalismo e do autoritarismo cordial não se encerrou com o fim do período colonial. Ao contrário, modelos de poder estruturados sobre a centralidade da casa, da autoridade patriarcal e das relações pessoais continuaram a se reproduzir com força ao longo da história brasileira. Mesmo após a Independência, a Abolição e a Proclamação da República, as formas simbólicas e práticas da dominação herdadas do Antigo Regime ibérico
foram ressignificadas, adaptadas às novas conjunturas, sem que seus fundamentos tenham sido efetivamente superados. A historiografia tem evidenciado que as rupturas políticas formais do século XIX não representaram um corte estrutural com o passado colonial. Como aponta João Fragoso (2001), os instrumentos do Antigo Regime — como os vínculos senhoriais, os privilégios herdados e o poder local — continuaram a operar sob novas formas, pois “as ‘melhores famílias da terra’ eram produto das práticas e instituições [...] do Antigo Regime português, presentes também em outras partes do ultramar, quais sejam: a conquista, a administração real e a câmara municipal” (FRAGOSO, 2001, p. 42). Essas estruturas não desapareceram com a Independência, mas foram reelaboradas nos marcos da legalidade do Estado imperial, garantindo a permanência de uma lógica social baseada na autoridade patriarcal e na dominação pessoalizada. Nesse contexto, a casa patriarcal manteve-se como espaço de poder simbólico e material. A autoridade masculina, o controle moral e a pessoalização das relações sociais continuaram a operar como princípios organizadores da vida privada e, por extensão, da cultura política. A abolição da escravidão, longe de eliminar essas estruturas, apenas deslocou seus mecanismos. Como demonstra Lilia Moritz Schwarcz, “o sistema escravocrata transformou-se num modelo tão enraizado que acabou se convertendo numa linguagem” (SCHWARCZ, 2019, p. 22), onde “a escravidão foi bem mais que um sistema econômico: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais” (SCHWARCZ, 2019, p. 23). A subalternização das populações negras persistiu sob novas formas, por meio do racismo institucional, da exclusão econômica e da marginalização social. As mulheres, embora tenham conquistado alguns direitos, seguiram relegadas ao espaço doméstico e submetidas ao ideal do chefe de família como figura de referência — herança de um sistema que, segundo Schwarcz, “delineava uma ‘cultura do estupro’, ainda hoje enraizada no país” (SCHWARCZ, 2019, p. 23). Gilberto Freyre, ao retratar a família patriarcal rural, destacou a importância do modelo doméstico como base da identidade nacional, descrevendo a sociedade colonial como “agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio e mais tarde de negro na composição” (FREYRE, 2006, p. 65). Porém, como desvela Schwarcz, essa narrativa ocultou a violência estrutural: “um sistema que prescreve a propriedade de uma pessoa por outra não tem nenhuma chance de ser benevolente” (SCHWARCZ, 2019, p. 23).
“amnésia nacional sobre a escravidão” (SCHWARCZ, 2019, p. 37), na qual “o racismo estrutural vem de uma zona de silêncio no meio social” (SCHWARCZ, 2019, p. 29). Heloisa Murgel Starling e Lilia Moritz Schwarcz, em Brasil: uma biografia, destacam que o Brasil “não passou por revoluções políticas que tivessem abalado as estruturas de sua hierarquia social” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 504), perpetuando formas simbólicas coloniais. Essas análises encontram confirmação em dados oficiais e no diagnóstico de Schwarcz sobre a violência racial: “um jovem negro no Brasil tem, em média, 2,5 vezes mais chances de morrer do que um jovem branco” (SCHWARCZ, 2019, p. 27). De acordo com o IBGE (2023), a renda média das pessoas negras equivale a apenas 58,3% da das pessoas brancas, e mulheres negras recebem cerca de 48% da renda de homens brancos. A PNAD Contínua (2022) mostra que aproximadamente 92% das trabalhadoras domésticas são mulheres, das quais 66% são negras, muitas delas em situação de informalidade. O desemprego entre mulheres negras foi de 9,2%, acima da média nacional de 7,4%. O Atlas da Violência 2023 reforça essa desigualdade ao revelar que 68,2% dos feminicídios registrados no Brasil são contra mulheres negras, com taxa de 4,3 por 100 mil habitantes — 1,7 vez maior do que entre mulheres não negras —, e que 35% desses crimes ocorreram dentro da própria residência da vítima, o que aponta para a persistência do controle violento sobre os corpos femininos no espaço privado. Frente a esse cenário, movimentos sociais têm desempenhado um papel central na denúncia dessas permanências e na construção de alternativas. A Marcha das Mulheres Negras (2015), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Movimento Negro Unificado (MNU) e organizações como o MST e o MTST revelam que a crítica à casa-grande e à corte patrimonial é também uma luta por redistribuição de poder, reconhecimento e transformação institucional. Tais resistências ecoam a luta destacada por Schwarcz, onde “o ativismo negro pressiona para que no ensino superior as ementas reconheçam a relevância desses atores” (SCHWARCZ, 2019, p. 30) e o “feminismo negro questionou os demais feminismos, expondo as especificidades dessas mulheres” (SCHWARCZ, 2019, p. 29). Essas resistências mostram que o modelo herdado, embora resiliente, não é imutável. Ele sobrevive por meio de atualizações simbólicas e institucionais, mas encontra oposição crescente numa sociedade que demanda justiça social, igualdade de direitos e valorização da diversidade. Como assevera Pierre Bourdieu, “os mecanismos de reprodução simbólica só operam com eficácia quando não são percebidos como tal” (BOURDIEU, 2001, p. 40).
Trazer essas estruturas à visibilidade — por meio da crítica historiográfica, da ação social e da análise de dados — é um passo fundamental para romper com práticas patriarcais e cordialmente autoritárias que ainda moldam o Brasil contemporâneo. Afinal, como conclui Schwarcz, “nós, brasileiros, andamos atualmente perseguidos pelo nosso passado e ainda nos dedicando à tarefa de expulsar fantasmas que, teimosos, continuam a assombrar” (SCHWARCZ, 2019, p. 32).
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise desenvolvida ao longo deste artigo permitiu compreender que a vida privada na América portuguesa não foi um espaço neutro ou isolado da esfera pública, mas sim o epicentro de uma forma específica de organização social e política: patriarcal, hierarquizada, simbólica e profundamente enraizada na tradição ibérica do Antigo Regime. A casa, com sua estrutura autoritária e funcionamento ritualizado, não apenas refletia os valores da metrópole, mas os ampliava sob as condições singulares da colônia — como a escravidão, o latifúndio e a ausência de um Estado impessoal. O modelo de dominação formado nesse contexto articulava a autoridade masculina, o controle moral e a pessoalização das relações sociais. Como se evidenciou ao longo do trabalho, essas estruturas não desapareceram com a Independência ou a República, mas foram ressignificadas, sustentando o ideal do patriarca como símbolo de poder legítimo e da casa como núcleo irradiador de mando e deferência. A dominação simbólica descrita por Bourdieu, o patriarcalismo interpretado por Freyre como síntese de afeto e hierarquia, a lógica descentralizada e personalista de governo examinada por Hespanha, e a cordialidade autoritária observada por Holanda convergem para explicar como o Brasil produziu uma cultura política avessa à impessoalidade, à igualdade formal e à racionalidade institucional. Ao entrelaçar a história moderna europeia com a experiência colonial brasileira, evidenciou-se que o autoritarismo cordial não representa uma contradição ao espírito democrático nacional, mas sim uma herança persistente de estruturas coloniais de poder simbólico. A lógica da casa, do prestígio do nome, do favor pessoal e da lealdade afetiva ainda marca a vida pública e privada, criando entraves à cidadania plena e à consolidação de instituições republicanas. Essa herança — embora resiliente — não constitui um destino irrevogável. Como toda construção histórica, é passível de transformação. A emergência de novos sujeitos políticos, os debates feministas e antirracistas, as disputas em torno da memória e do