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Guias e Dicas
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Schopenhauer: A Vida, a Intuição e a Filosofia, Notas de aula de Comunicação

Arthur schopenhauer justificou sua decisão de abandonar a medicina para se dedicar à filosofia afirmando que cada conhecimento, mesmo intuitivo e inconsciente, pode ser decodificado como texto. Em seu trabalho 'tudo o que é material em nossa conhecimento', ele discute a importância da intuição objetiva e da experiência interna na filosofia, além de sua leitura influente da upanishads e a importância do conceito de 'caráter inteligível' na obra de kant e platão.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Maracana85
Maracana85 🇧🇷

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UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
DISSERTAÇÃO
As inspirações filosóficas de Schopenhauer: elementos do
platonismo, do hinduísmo e do kantismo presentes na
metafísica da vontade
Daniel Rodrigues Braz
2019
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UFRRJ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

DISSERTAÇÃO

As inspirações filosóficas de Schopenhauer: elementos do

platonismo, do hinduísmo e do kantismo presentes na

metafísica da vontade

Daniel Rodrigues Braz

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

AS INSPIRAÇÕES FILOSÓFICAS DE SCHOPENHAUER:

ELEMENTOS DO PLATONISMO, DO HINDUÍSMO E DO KANTISMO NA

METAFÍSICA DA VONTADE

DANIEL RODRIGUES BRAZ

Sob orientação do Professor

Leandro Pinheiro Chevitarese

Dissertação submetida como requisito

parcial para obtenção do grau de

Mestre em Filosofia , no Curso de Pós-

Graduação em Filosofia, na Área de

Concentração em Filosofia.

Seropédica, RJ

Dezembro de 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

DANIEL RODRIGUES BRAZ

Dissertação submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia , no Curso de Pós-Graduação em Filosofia, área de concentração em Filosofia. DISSERTAÇÃO APROVADA EM 11/12/2019.


Leandro Pinheiro Chevitarese. Prof. Dr.. UFRRJ. (Orientador)


José Nicolao Julião. Prof. Dr. UFRRJ.


Edgard José Jorge Filho. Prof. Dr. PUC-Rio

Ao meu felino, Krishninha. गुरुर्ब्रह्मा गुरुर्विष्नुः गुरुर्देवो महेश्वरः गुरुर्वि ष्नुः गुरुर्देवो महेश्वरः गुरुर्दे  ो महेश्वरः महेश् रः गुरुर्देवो महेश्वरः | गुरुः गुरुर्देवो महेश्वरः सा गुरुर्विष्नुः गुरुर्देवो महेश्वरः क्शा गुरुर्विष्नुः गुरुर्देवो महेश्वरः त् परब्रह्मा तस्मै श्रीगुरवे नमः परर्ब्रह्मा गुरुर्विष्नुः गुरुर्देवो महेश्वरः तस्मै श्रीगुरवे नमः श्र ीगु र े नमः गुरुर्देवो महेश्वरः || gururbrahmā gururviṣnuḥ gururdevo maheśvaraḥ | guruḥ sākśāt parabrahmā tasmai śrīgurave namaḥ || “O mestre é Brahmā, o criador; o mestre é Viṣnu, o mantenedor; o mestre é Maheśvara, ou Śiva, o destruidor. O mestre é a testemunha, o ser supremo e ilimitado. Saudações a esse mestre.”

RESUMO

BRAZ, Daniel. As inspirações filosóficas de Schopenhauer: elementos do platonismo, do hinduísmo e do kantismo na metafísica da vontade. 2019, 69 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2020. A motivação básica dessa dissertação de mestrado é oferecer uma análise das principais inspirações filosóficas de Arthur Schopenhauer, partindo do princípio de que esse conhecimento dará ao estudante uma leitura mais privilegiada de sua obra. Investigaremos, especialmente, em que medida seu interesse por Kant, por Platão e pelas Upanixades sagradas do hinduísmo fundamentou sua filosofia. Abordaremos tais fontes como elementos de uma mistura que se tornou particularmente homogênea no pensamento schopenhaueriano. Afinal, se, fora do domínio da filosofia de Schopenhauer, a harmonia de tais ingredientes não figura como uma possibilidade tão clara, o fato de eles terem sido assim reunidos e assinalados por ele mesmo como pré-requisitos para a leitura de sua obra principal, O mundo como vontade e como representação (1819), deve ser considerado significativo. Não nos interessa, todavia, penetrarmos em polêmicas sobre os sentidos originais das fontes citadas, mas apenas destacarmos o que é relevante nestas para o melhor entendimento de Schopenhauer, sobretudo no que concerne sua metafísica da vontade. Palavras-chave: Schopenhauer, Kant, Platão, Upanixades , Metafísica.

ABSTRACT

BRAZ, Daniel. The philosophical inspirations of Schopenhauer: elements of platonism, hinduism and kantism in the metaphysics of the will. 2019, 69 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2020. The primary motivation of the present dissertation is to afford an analysis of the main philosophical inspirations of Arthur Schopenhauer, assuming that this knowledge will give the student a more privileged reading of his work. We are going to inquire, especially, to that extent his interest in Kant, Plato, and the sacred Upanishads of Hinduism grounded his philosphy. We are going to approach these sources as elements of a mixture which turned to be particularly homogeneous in schopenhauerian thought. After all, if, outside Schopenhauer's philosophy domain, the harmony of those ingredients doesn't seem as such a clear possibility, the fact that they were gathered and remarked by himself as a precondition to the reading of his main work must be taken as meaningful to the scholarship. It’s not of our interest, though, to fathom the polemics about the original senses of the mentioned sources, but only to highlight what is relevant in them for the best understanding of Schopenhauer and his metaphysics of the will. Key words: Schopenhauer, Kant, Plato, Upanishads , Metaphysics.

1 INTRODUÇÃO

Durante a juventude, dá-se a colheita dos materiais para o próprio conhecimento, para as visões originais e profundas, logo, para aquilo que um espírito privilegiado está destinado a presentar ao mundo: mas só em anos bem posteriores é que esse espírito será mestre do seu material (SCHOPENHAUER, 2009, p. 264). Como sugere a passagem acima, extraída de sua última obra, Parerga e Paralipomena , de 1851, Schopenhauer considerava a juventude como tendo um papel fundamental na consolidação de uma forma de pensar. “Em termos práticos somos determinados na juventude pelo que foi intuído e por sua respectiva impressão, na velhice apenas pelo que foi pensado” (SCHOPENHAUER, 2009, p. 263) Em se tratando de seu caso particular, não poderia ser diferente. Certa visão básica já figurava em seus escritos desde a tenra juventude, no período anterior à sua transferência para a faculdade de filosofia, embora ainda sob a forma de crisálida. Podemos atestar tal fato em registros ainda muito antigos, considerando que a sua maturidade só se materializou com a publicação da obra O mundo como vontade e como representação (1819). O seguinte registro de uma visita que Schopenhauer fez em abril de 1811 ao poeta romântico Christoph Martin Wieland (1733-1813), por exemplo, ilustra tal fato. “A vida é um assunto miserável e eu decidi passá-la pensando sobre ela” (SCHOPENHAUER; HÜBSCHER, 1971, p. 22), justificou-se na ocasião quando perguntado a respeito do motivo pelo qual havia largado a medicina para dedicar-se ao estudo de filosofia. Outro relato significativo é o da neta do poeta, Wilhelmine Schorcht (1792-1834), no mesmo mês e ano: Recentemente o jovem Schopenhauer esteve por um tempo em Weimar. Ele veio cheio de ideias filosóficas e está totalmente devotado a uma filosofia (que eu não sou capaz de nomear) que é excessivamente austera: toda e qualquer inclinação, desejo, e paixão precisa ser eliminada e combatida. Eu desejo a ele toda a força necessária para vencer essa guerra, porque uma alma gigante é necessária para preencher todas essas demandas completamente, como ele está determinado a fazer (SCHOPENHAUER; HÜBSCHER, 1971, p. 23). Vemos, portanto, que o problema do sofrimento intrínseco à afirmação da vida e dos desejos individuais, bem como sua possível solução através da negação dessa inclinação básica, já rondava a mente de Schopenhauer. Ora, qualquer um que tenha lido seus escritos, sobretudo sua obra principal, é capaz de perceber que essa continuou sendo a grande questão do seu pensamento. Levando isso em consideração, precisamos agora entender a forma como o filósofo de Danzig desenvolveu esse pensamento em uma doutrina filosófica séria e bem acabada. Foram muitas as suas inspirações, mas apesar de podermos citar várias influências importantes, três delas ganham um destaque impossível de ser ignorado. Nas palavras do próprio autor no prefácio de sua obra máxima, são elas: 7

A filosofia de Kant [...] é a única cuja intima familiaridade é requerida para o que aqui será exposta. ‒ Se, no entanto, o leitor já frequentou a escola do divino Platão, estará ainda mais preparado e receptivo para me ouvir. Mas se, além disso, iniciou-se no pensamento dos VEDAS, cujo acesso permitido pelas Upanixades , aos meus olhos, é a grande vantagem que este século ainda jovem tem a mostrar aos anteriores, pois penso que a influência da literatura sânscrita não será menos impactante que o renascimento da literatura grega no século XV, se recebeu e assimilou o espírito da milenar sabedoria indiana, então estará preparado da melhor maneira possível para ouvir o que tenho a dizer. Não lhe soará, como a muitos, estranho ou mesmo hostil; pois até gostaria de afirmar, caso não soe muito orgulhoso, que cada // aforismo isolado e disperso que constitui as Upanixades pode ser deduzido como consequência do pensamento comunicado por mim, embora este, inversamente, de modo algum esteja lá contido (SCHOPENHAUER, 2013, p. XXIX; MVR I XII-XIII). Para além de seus textos publicados, consideramos particularmente curiosa uma nota em seu caderno, de 1816, ano anterior ao início da redação de O mundo como vontade e como representação (1819), em que Schopenhauer escreveu: “eu confesso que não acredito que minha doutrina poderia de algum modo ter surgido antes que as Upanixades, Platão e Kant tivessem simultaneamente lançado seus raios dentro da mente de um homem” (1988, p. 467; apud APP, 2014, p. 4). Em outra nota ( Tabela 1 ), anterior a esta, mas do mesmo ano, Schopenhauer esquematiza em uma tabela o que podemos entender como o conteúdo completo de seu pensamento através dos principais conceitos oriundos destas três inspirações citadas, dando forma geral àquilo que irá se converter nos assuntos de cada um dos quatro livros de sua futura obra máxima. Esboço de sistema filosófico feito por Schopenhauer em 1816 (continua) Universal Particular Metafísica Ideia platônica A coisa em si de Kant A sabedoria dos Vedas Aquilo que se torna, nunca é. Fenômeno. Maya. Estética Puro sujeito do conhecimento, com tranquilidade e bem-aventurança Satisfação da arte Ideia platônica como objeto da arte Conhecimento escravo da vontade, com ansiedade e angústia. Desgraça da realidade. Coisa particular como o objeto da vontade Moral A retirada da vontade da vida devido à realização da verdadeira natureza do mundo, manifestando como Intensa vontade-de-vida em geral, porém guerra com sua manifestação, paixão, avareza, raiva, inveja, ânsia 8

relacionando esses fatos com o modo como o próprio Schopenhauer descreve em sua obra o modo como ocorre o amadurecimento de uma filosofia verdadeira. No capítulo 4, abordaremos a forma particular como Schopenhauer absorveu elementos do platonismo e da sabedoria dos hindus, traçando um caminho que parte da absorção daquele até a descoberta desta. Buscaremos apontar para as contiguidades que ambas possuem quando articuladas a partir da leitura de mundo e das aspirações filosóficas que o alemão vinha esboçando desde a tenra juventude. No capítulo 5, analisaremos os elementos da influência kantiana em Schopenhauer, apontando em que medida a sua fidelidade ao mestre é incontestável, e em que medida não é. Desenvolveremos o tema de forma a demonstrar que as bases da filosofia kantiana se confundem com as bases da filosofia do próprio Schopenhauer, destacando, pois, a importância do kantismo para a concretização do pensamento schopenhaueriano enquanto um sistema fundamentado na visão crítica das faculdades cognitivas humanas. No capítulo 6, faremos breves considerações finais a respeito do conjunto dos temas discutidos, tendo em vista o alcance da nossa abordagem na satisfação das metas iniciais de pesquisa. Encerrados esses comentários, detalharemos, no último capítulo, a totalidade das referências bibliográficas utilizadas. No mais, todas as traduções dos trechos de obras estrangeiras para o português aqui citados são de nossa autoria. 10

2 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A METAFÍSICA DA

VONTADE

Schopenhauer afirma que não podemos delegar à filosofia apenas o estudo das formas da aparência, mas também a especulação a respeito do conteúdo do que aparece através delas, do estofo ( Stoff ) dos objetos da experiência que nos são dados intuitivamente, in concreto. Poder-se ia dizer que cada um, sem ajuda de ninguém, sabe o que é o mundo; de fato, cada um é o próprio sujeito do conhecimento, cuja representação é o mundo (e isso é um princípio verdadeiro, não importa quão longe se vá). Mas tal conhecimento é intuitivo, é conhecimento in concreto : reproduzi-lo in abstracto, ou seja, elevar as intuições sucessivas que se modificam, bem como tudo o que o vasto conceito de SENTIMENTO abrange e meramente indica como saber negativo, não abstrato, obscuro, a um saber permanente – eis a tarefa da filosofia (SCHOPENHAUER, 2013, p. 97). Consideramos pilares do sistema schopenhaueriano: (i) o insight fundamental do idealismo transcendental kantiano, que afirma não ser possível conhecermos as coisas em si mesmas para além de sua aparência, por sua vez, sempre condicionada pelas formas a priori da sensibilidade e do entendimento; (ii) a redução de todas as categorias kantianas à categoria da causalidade como função única do entendimento, acompanhada da discriminação das quatro raízes do princípio de razão suficiente como alternativa de explicação da totalidade das maneiras possíveis de conceber um objeto da experiência; (iii) a reformulação do conceito kantiano de “entendimento” como sendo a parte ativa da intuição – e não algo separado desta e já próprio da faculdade da razão –, afirmando, assim, uma diferença fundamental entre intuir e pensar, ou entre entendimento e razão; (iv) o destaque ao duplo aspecto em que um indivíduo pode tomar a si mesmo, a saber, como o sujeito que conhece e como o sujeito que quer; (v) o argumento analógico que nos leva à dupla maneira de conceber também o mundo objetivo, i.e., como representação e como vontade, sendo esta a chave para compreender o que seria aquela em si mesma. Somente dados esses passos é que se pode começar a falar em outros elementos importantes para a compreensão da metafísica de Schopenhauer, como: a concepção de Ideia indicando um grau determinado de objetivação da vontade na natureza; a de força natural como instância última de toda explicação etiológica; a interpretação idealista da tradição oriental; e todas as implicações metafísicas na ética e na estética. Cremos, neste momento, que esses cinco pontos consistem nas fundações mínimas, as quais já distinguem 11

A experiência interna – ou sentido interno, que é a consciência do que se passa no corpo, desde os fenômenos mais vagos ou indistintos, como as sensações, os sentimentos, as emoções, até os graus mais complexos de objetividade constituintes da experiência, como a atividade intelectual e suas representações abstratas – é, pois, para Schopenhauer, a origem intuitiva do conceito mais bem indicado para sustentar uma analogia capaz de, ainda que apenas enquanto abstração, nos dar uma chave hermenêutica eficaz na construção de um discurso com sentido referente à coisa em si. Pois a coisa em si, ainda que permaneça, em última instância, sendo aquilo que é, por princípio, incognoscível no mundo, continua sendo também o que é propriamente metafísico no mundo, assunto de especulações que, se não forem levadas a cabo pela filosofia como algo de sua responsabilidade, continuarão sendo feitas de um modo ou de outro por outros discursos que se proponham a tal, dada a sua importância na fundamentação das crenças básicas de todo o conhecimento abstrato. Importância esta que merece ser objeto de considerações racionais que sejam mesmo úteis como guia para a ciência. Afinal, a significância do assunto, longe de ser meramente de cunho teórico, remonta ao espanto originário do indivíduo humano diante do conhecimento da finitude de sua existência, tematizado não apenas pela filosofia, mas pelo mito e pela religião. O espanto dessa ‘essência íntima da natureza’ é tanto mais sério pelo fato de aqui pela primeira vez estar com consciência EM FACE DA MORTE e também se impõe, ao lado da finitude de toda existência, em maior ou menor medida, a vaidade^4 de todo esforço. Com essa introspecção e esse espanto nasce, portanto, a NECESSIDADE DE UMA METAFÍSICA, própria apenas do humano: este é pois um animal metaphysicum (SCHOPENHAUER, 2015, p. 195). Longe, pois, de ser apenas uma curiosidade teórica, o que leva o indivíduo humano a procurar conhecer o mundo para além de sua aparência, é, de fato, a insegurança sobre nossa própria condição mundana e extramundana, o que nos faz buscar um sentido metafísico para a realidade – ou seja, por trás do interesse meramente teórico, há, desde sempre, questões de cunho prático direcionadas à elucidação do significado da nossa forma de vida. Colocando-se em confronto direto com Kant, Schopenhauer não considera que uma metafísica a priori – i.e., que se limite apenas à análise das condições formais de possibilidade da experiência – possa ser mesmo chamada de metafísica, já que tal delimitação do objeto de estudo o deixaria aquém do que realmente interessa a uma tal ciência. É demasiadamente pouco para a metafísica se dedicar somente à dedução dos limites formais dos objetos intuídos e pensados; pois, em verdade, caberia a ela principalmente investigar do que poderia se tratar o estofo dos objetos intuídos, a coisa mesma que se manifesta sob o invólucro da representação. Não seria antes mais apropriado assumir que a CIÊNCIA DA EXPERIÊNCIA EM GERAL e como tal é também haurida da experiência? Se o seu problema mesmo lhe é empiricamente dado; então por que a sua solução também não teria a ajuda da experiência? Não é um contrassenso, que quem fala da natureza das coisas, não deva olhar para as coisas mesmas, mas apenas ater-se 4 No original, Vergeblichkeit , melhor traduzido aqui talvez como “inutilidade”. 13

a certos conceitos abstratos? Em verdade, a tarefa da metafísica não é a observação de experiências singulares, mas sim a explicação correta da experiência em seu todo. O fundamento da metafísica, portanto, tem de ser do tipo empírico (SCHOPENHAUER, 2015, p. 220). Embora nos tempos atuais a filosofia não seja mais definida rigorosamente sob esses termos, para Schopenhauer a disciplina tem ainda o caráter moderno de uma ciência da totalidade, do mundo em geral, da experiência em geral. O conceito de vontade resgataria, considerando o legado da Crítica da Razão Pura (1781), uma metafísica que trouxesse à tona de maneira legítima o problema da essência do mundo considerado dessa forma, enquanto objeto total da filosofia, não mais limitando a metafísica aos estudos das condições a priori do conhecimento dos objetos, como o fez Kant, mas aceitando que a posteriori o mundo que intuímos pode nos indicar nele mesmo os contornos de sua essência. Trata-se de um conhecimento de ordem inteiramente outra, cuja verdade, justamente por isso, não pode ser incluída nas quatro rubricas por mim arroladas no § 29 do ensaio Sobre o princípio de razão, que reparte todas as verdades em lógica, empírica, metafísica e metalógica: pois agora a verdade não é, como os outros casos, a referência de uma representação abstrata a uma outra representação, ou à forma necessária de se representar intuitivo ou abstrato; mas é a referência de um juízo à relação que uma representação intuitiva, o corpo, tem com algo que absolutamente não é representação, mas toto genere diferente dela, a saber: vontade. Gostaria, por conta disso, de destacar essa verdade de todas as demais e denominá-la VERDADE FILOSÓFICA καθ'ἐξοχήν. A expressão da mesma pode ser dita de diversas maneiras: meu corpo e minha vontade são uma coisa só; ou, o que como representação intuitiva denomino meu corpo, por outro lado denomino minha vontade, visto que estou consciente dele de uma maneira completamente diferente, não comparável com nenhuma outra; ou, meu corpo é a OBJETIDADE da minha vontade; ou, abstraindo-se o fato de que meu corpo é minha representação, ele é apenas minha vontade etc. (SCHOPENHAUER, 2013, p. 120). Ainda que objetivamente não se possa negar que nós, corpos materiais que somos, estejamos, como qualquer outro objeto da intuição, submetidos às mesmas leis que regem as mudanças de estados da matéria; do ponto de vista empírico representamos a nós mesmos necessariamente como seres que se autodeterminam, isto é, seres cuja origem de suas ações é interna e não dependente de serem movidos por nada externo – “o milagre par excellence ” (SCHOPENHAUER, 1997, p. 211-212), afinal. A vontade individual é experimentada como espontânea e indeterminada, um dado empírico que não está submetido às leis da objetividade, permanecendo, pois, algo inexplicável, que nos aponta para uma consideração do mundo que vai além do fato de este ser representação, e em direção a uma interpretação possível da relação entre esta e a coisa em si. Essa interpretação é possível pois podemos iluminar a essência da atividade em nosso corpo com o conhecimento de nós mesmos: Todo conhecimento pressupõe sujeito e objeto; desse modo, mesmo a autoconsciência não é absolutamente simples, mas, como a nossa consciência 14

intuitivamente uma essência metafísica para o mundo radicada na irracionalidade, como veremos subsequentemente. Porém, a questão girava em não reconhecer que a natureza é inteligente, mas apenas admitir que, se ela se organiza, o faz de acordo com fins cegos que visam a continuidade da atividade ( Wirklichkeit ) da vontade. É o que Schopenhauer argumenta, sobretudo em seu tratado Sobre a vontade na natureza (1836). A imagem do mundo em espaço e tempo que então surge é apenas o plano sobre o qual os motivos se apresentam como fins: ela também condiciona a coerência espacial e causal dos objetos intuídos entre si, mas é, ainda assim, somente o intermediário entre o motivo e o ato da vontade. Que salto seria, então, tomar essa imagem do mundo, que dessa maneira se constitui acidentalmente no intelecto, isto é, na função cerebral de entes animais, ao apresentar-lhes os meios para seus fins, iluminando a esses seres efêmeros o seu caminho sobre o planeta – tomar essa imagem, digo eu, esse mero fenômeno cerebral, como a verdadeira e última essência das coisas (coisas em si) e o encadeamento de suas partes como a ordem cósmica absoluta (relações entre as coisas em si), e supor que tudo isso também estaria dado independentemente do cérebro! (SCHOPENHAUER, 2018, p. 125-126). De qualquer maneira, tanto a vontade quanto a coisa em si compartilham algo fundamental, que é o fato de suas existências se darem para além do fenômeno geral da representação, sendo, pois, reconhecíveis, porém incognoscíveis. O irracional não possui fundamento, pois, se assim fosse, teria racionalidade, ou normatividade. A coisa em si é concebível como vontade na medida em que o intelecto nos permite abstrair tudo o que a priori constitui a experiência, ou seja, espaço, tempo e causalidade, tudo o que é propriamente racional ou normativo, conservando apenas a noção de vontade como aquilo que permanece necessariamente operando livre dessas formas, como condição para a entrada em cena destas. Prosseguindo nessa investigação racional, reconhecemos que, em nosso corpo, portanto, a vontade transparece como substrato e estofo de toda atividade interna que conhecemos: toda representação só é concebível completamente através de sua relação com a vontade, que é exatamente aquilo sob cujas formas a representação salienta. Dizendo de outro modo: se o sujeito possui um cérebro, dotado de estruturas que representam, isto se dá devido, primordialmente, à funcionalidade mais ampla do próprio corpo em sua totalidade; sendo assim, o cérebro não é independente do corpo inteiro, de que é mero órgão. Mas o corpo, por sua vez, é apenas um esforço que alimenta a perpetuação da vida em sentido absoluto. Desse modo, enfim, por um argumento analógico, Schopenhauer se vale do conhecimento direto que teríamos da vontade como aquilo que subsiste em todos os nossos atos individuais isolados para pensar aquilo que subsiste em toda representação. Por conhecermos aquela como o núcleo da representação em nosso sentido interno, é nos permitido pensar o núcleo de toda a multiplicidade de aparências como constituindo algo análogo ao que conhecemos em nós mesmos como vontade – mesmo aquelas aparências desprovidas da faculdade cognitiva, como nos reinos vegetal e mineral. Ao contrário do que se costumou defender ao longo de toda a tradição de pensamento ocidental, Schopenhauer argumenta que não é a cognição que impulsiona a vontade a vir à tona, mas, ao invés disso, é 16

a vontade que, sendo substrato do mundo da representação, é, logo, a condição ontológica de possibilidade de toda cognição. Ora, sendo a vontade aquilo em função do qual toda aparência é o que é, a cognição não poderia nunca guiar a vontade, mas apenas ser por ela guiada, nada mais sendo que mero órgão da mesma. Entendemos desse procedimento filosófico que Schopenhauer, de fato, parte dos elementos do idealismo transcendental kantiano para chegar ao conceito de “vontade” como chave de sua filosofia. Contudo, no momento em que lança mão propriamente de sua metafísica da natureza, colocando a vontade como essência não só da aparência do próprio corpo, mas, de forma análoga, também como essência de todas as aparências, o autor parece, num salto, sair do terreno puramente idealista transcendental. O que se ganha com isso é a possibilidade de se interpretar a coisa em si de alguma forma – forma esta que converge com resultados da ciência empírica, como mostrou o filósofo sobretudo em Sobre a vontade na natureza (1836). O que se perde? Talvez apenas a oportunidade de pensar a coisa em si de outros modos. No próximo capítulo, nos dedicaremos a uma análise de aspectos da vida de Schopenhauer em seu período de juventude, buscando extrair dela o trajeto intelectual cujo ponto de chegada veio a ser O mundo como vontade e como representação (1819). Queremos oferecer ao leitor uma perspectiva a respeito do modo como se desenvolveu o sistema filosófico schopenhaueriano do ponto de vista subjetivo do autor, contrastando aquilo que ele escrevia com aquilo que ele provavelmente sentia. Ora, sabemos que a absorção de influências por parte de Schopenhauer se deu, em geral, de modo a reforçar seu próprio pensamento, o que inclui Kant, Platão e a sabedoria hindu. Ao mesmo tempo, parece bem claro que a tentativa de esboçar uma interpretação filosófica da realidade é algo que está presente desde cedo em sua juventude melancólica. Logo, se queremos entender, apesar dos hoje tão alardeados limites de tais aproximações, porque o pessimista reivindica a herança dessas correntes, devemos nos engajar em entender em que sentido ele se apropria delas. Tendo isso em vista, precisamos investigar um pouco do contexto pessoal em que seus interesses filosóficos surgiram. 17