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Linguística e da Antropologia, na produção acadêmica de Joaquim Mattoso Câmara Junior e nas políticas linguísticas em que se inscreve.
Tipologia: Provas
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Leitura, Maceió, n. 70, mai./ago. 2021 – ISSN 2317- 9945
Juciele Pereira Dias
Juciele Pereira Dias^1
Neste trabalho objetivamos descrever e interpretar o modo como a Linguística se constituiu no Brasil, tendo como ponto de sustentação relações de sentidos entre diferentes campos do conhecimento, dentre eles o da Linguística e da Antropologia, na produção acadêmica de Joaquim Mattoso Câmara Junior e nas políticas linguísticas em que se inscreve. Inscrita no campo do saber da História das Ideias Linguísticas, por uma perspectiva discursiva, essa pesquisa traz como proposta a constituição de um arquivo, em que se busca compreender o processo de produção desse discurso fundador da Linguística Brasileira (conjunto de documentos de/sobre as línguas brasileiras produzidos também no Museu Nacional), organizado junto às diferentes maneiras de se ler esses documentos.
Joaquim Mattoso Câmara Junior.
This work aims to describe and interpret how the field of Linguistics has been constructed in Brazil, considering the effects of meaning between distinct knowledge areas, including Linguistics and Anthropology, especially in the academic production of Joaquim Mattoso Câmara Junior and the language policy in which he finds himself. In the field of knowledge of History of Linguistic Ideas, from a discursive perspective, this research intends to constitute an archive that enables the comprehension of the production process of the founding discourse of Brazilian Linguistics (set of documents of / about the Brazilian languages also produced at the National Museum). This archive will be organized along with different ways of reading these documents.
Mattoso Câmara Junior. Recebido em : 18 /04/2021. Aceito em : 15/06/2021. Introdução Neste trabalho, inscrito no campo do saber da História das Ideias Linguísticas, em uma perspectiva discursiva, temos como objetivo constituir um espaço de discussões sobre (^1) Pesquisadora em pós-doutorado sênior, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro, Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas (Profllind), no Setor de Linguística do Museu Nacional do Rio de Janeiro, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). ORCID: https://orcid.org/0000- 0001 - 5242 - 0371
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Juciele Pereira Dias o arquivo do discurso fundador de uma Linguística Brasileira na relação com as pesquisas sobre as línguas brasileiras, as políticas linguísticas (FERREIRA e DIAS, 2021), tomando como objeto o trabalho produzido por Joaquim Mattoso Câmara Junior nas possíveis relações entre Linguística e Antropologia, a partir de pesquisas no Museu Nacional do Rio de Janeiro, ao lado de outros pesquisadores_._ Entendido na perspectiva de Orlandi (1993, p. 7), esse discurso fundador “não se apresenta como já definido, mas antes como uma categoria do analista a ser delimitada pelo próprio exercício de análise dos fatos que o constituem, observada a sua relevância teórica”, especificamente no modo o saber científico sobre a língua e a cultura determina o imaginário de unidade língua-estado-nação brasileira, ou seja, os sentidos de Brasil, de brasileiros e suas línguas na sociedade e na história. Tomamos, assim, como ponto de partida os resultados de pesquisas sobre a história do Setor de Linguística (SOUZA, 2010; SOUZA, 2016) e sobre a história da produção e circulação acadêmica do linguista Joaquim Mattoso Câmara Junior (NARO, 1976; LEITE, 2004; GUIMARÃES, 2004; BALDINI, 2005; ALTMAN, 2004; UCHÔA, 2004; LAGAZZI RODRIGUES, 2007; DIAS, 2009; MOURA, 2010; FERREIRA, 2013) para constituirmos trajetos de leituras no conjunto de documentos disponíveis sobre a história da Linguística no Brasil. Isso implica em discutir o modo como as políticas linguísticas (FERREIRA e DIAS, 2021), engendradas nessa prática institucional, dão forma ao conhecimento sobre as práticas linguageiras dos brasileiros, sobre as línguas brasileiras e sobre o sujeito pesquisador-linguista em sua constituição histórica, ideológica e política na tensa relação entre língua falada, língua fluida e língua escrita, língua imaginária (ORLANDI; SOUZA, 1988). A atualização dessa memória está, ainda, inscrita em uma prática interdisciplinar da Linguística, na sua relação com as ciências sociais e do homem, pelas quais são definidas áreas – diferentes e afins – de produção do conhecimento que, por sua vez, determinam os trabalhos produzidos por aqueles que se empenham na prática científica brasileira, os quais têm história que demanda por gestos de interpretação, por uma posição profissional, para estar disponível à sociedade. Quando falamos em uma Linguística Brasileira , a partir de Auroux (2001) estamos compreendendo-a como uma forma do saber metalinguístico, saber científico sobre a língua, que se inscreve na história do conhecimento linguístico produzindo uma ruptura com outras formas do saber coexistentes. O efeito dessa ruptura, em certas condições de produção do conhecimento, pode ser interpretado como a fundação de uma nova ciência ou de um novo método ou de uma nova abordagem teórica; porém, de nossa parte, cabe analisar como esse efeito (se) inscreve (n)a história do conhecimento produzindo diferentes gestos de interpretação, por diferentes lugares, por diferentes posições sujeito autor, com formas singulares de descrever e interpretar um objeto que nos é tão caro: as línguas brasileiras, ou seja, as línguas do Brasil, presentes de diferentes maneiras nas nossas relações sociais cotidianas. A noção de político que fundamenta essa pesquisa “considera as relações históricas e sociais do poder” (ORLANDI, 1988, p. 7) , a divisão dos sentidos em disputa e com dominância na sociedade, a própria divisão do sujeito nas diferentes tomadas de posição frente ao processo de produção do conhecimento científico, em que a contradição é constitutiva de todo dizer. Ao falarmos, é pela linguagem que tomamos posição e ao significar colocamos em prática diferentes formas do conhecimento sobre mundo, determinadas nas tensas tentativas de administração de sentidos, pelas instituições, frente à diversidade desses sentidos que se encontram e se desencontram sob imaginários do “mesmo”, da univocidade. O político é constitutivo das nossas diferenças nas relações sociais cotidianas, que se dão pela linguagem e é também pela linguagem que ele é determinado, administrado, sendo recoberto
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Juciele Pereira Dias identidade histórica” (Orlandi, 1993, p. 12). A questão é: como se constroem esses discursos fundadores? O que o caracteriza como fundador – em qualquer caso mas precipuamente neste – é que ele cria uma nova tradição, ele re-significa o que veio antes e institui aí uma memória outra. É um momento de significação importante, diferenciado. O sentido anterior é desautorizado. Instala-se outra “tradição” de sentidos que produz os outros sentidos nesse lugar. Instala-se uma nova “filiação”. Esse dizer irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu próprio surgir produz sua “memória”. Esse processo de instalação do discurso fundador, como dissemos, irrompe pelo fato de que não há ritual sem falhas, e ele aproveita fragmentos do ritual já instalado – da ideologia já significante – apoiando-se em “retalhos” dele para instalar o novo. (ORLANDI, 1993, p. 13). Com o acontecimento histórico do incêndio do espaço físico do Museu Nacional, há a instauração de sentidos outros em circulação e que demandam por uma responsabilidade ética e política dos profissionais da área de Linguística para com esta instituição. Junto a outros sentidos, outros materiais significantes são lembrados por histórias profissionais e de vida trazidas à tona, assim como se coloca a urgência de trabalhos voltados para a acolhida deste acervo sócio-histórico. O incêndio significa em uma memória institucional produzindo fissuras, lacunas, as quais ao mesmo tempo que apagam a possibilidade de emergência de determinados sentidos, também podem dar condições de possibilidade para que outros sentidos venham a se atualizar, sob diferentes formas de circulação. Um arquivo não é somente um conjunto de documentos disponíveis sobre uma questão, mas com ele estão implicadas as discussões sobre os métodos de leitura e as projeções sobre os procedimentos de análise desses documentos textuais, em suas diferentes materialidades (formatos, suportes), no âmbito do fomento à pesquisa na sociedade. Essas discussões metodológicas (e teóricas) tratam tanto da maneira como esses documentos são organizados textualmente, quanto da nossa própria maneira de ler esses documentos, de interpretar. Na Análise de Discurso, esta pesquisa se inscreve no campo da História das Ideias Linguísticas, na especificidade das relações de trabalho concretizadas a partir do programa de pesquisa coordenado por Eni Orlandi, do qual destacamos a participação da profa. Dra. Tânia Clemente de Souza ao lado de outros pesquisadores, que desde seu início têm as noções teóricas de língua e de discurso como basilares para o empreendimento analítico. Na relação com essa rede de pesquisas, buscamos analisar como determinados sentidos de Linguística Brasileira e de língua brasileira e não outros passam a ter ampla circulação e adesão no país, sobrepondo-se à diversidade de saberes linguísticos aqui presentes. Trata-se de um momento de ler e de compreender a história da fundação da Linguística Brasileira, das línguas brasileiras, que fazem parte da história do Museu Nacional do Rio de Janeiro e da História do Brasil. Inscritos nas inciativas de projetos de manutenção do Museu Nacional #museunacionalvive, de sua vivência enquanto uma instituição autônoma, integrante do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculada ao Ministério da Educação e que completou 200 anos em 2018, há um amplo trabalho de pesquisa científica empreendido por profissionais de diferentes áreas do conhecimento que fazem parte dessa instituição, tendo, dentre eles, representado o campo da Linguística Brasileira. Na atualidade, o Setor de Linguística do Museu Nacional é composto por três
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Juciele Pereira Dias cursos (o CELIB – Curso de Especialização em Línguas Indígenas, o CGEC – Curso de Gramática Gerativa e Estudos de Cognição e o Profllind – Programa de Pós-Graduação stricto sensu modalidade profissional – Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas), que (se) inscrevem (em) uma memória do espaço simbólico que sustenta o discurso fundador de uma nova forma da ciência da(s) língua(s), a Linguística, no Brasil consolidada a partir do percurso acadêmico do linguista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Junior e de outros pesquisadores a ele relacionados. Após as primeiras “lições” do linguista no final dos anos 30, na antiga Universidade do Distrito Federal (DIAS, 2009) e a publicação da obra Princípios de Linguística Geral em 1941, Mattoso Câmara foi convidado a ministrar um curso de Linguística a etnólogos no Museu Nacional do Rio de Janeiro e, no mesmo ano, segundo Luís de Castro Faria (1965, p. 8), recebeu “uma bolsa da fundação Rockfeller e o patrocínio do Museu Nacional e da Faculdade de Filosofia” para uma viagem de estudos entre os anos de 1943 e 1944, nos Estados Unidos. Ainda antes do linguista Joaquim Mattoso Câmara Junior ser pesquisador do Museu Nacional do Rio de Janeiro, de ser um dos responsáveis pela criação do Setor de Linguística da Divisão de Antropologia do Museu Nacional, essa instituição já estava na base do empreendimento de uma ciência Linguística Brasileira nos anos 1940. A constituição de um arquivo sobre o percurso e a produção acadêmica de Mattoso Câmara tem como ponto de partida a nossa pesquisa de iniciação científica (Bolsista CNPq PIBIC 2006), quando participamos do trabalho de constituição de um arquivo da linguista brasileira Neusa Martins Carson, pesquisadora da língua Macuxi (DIAS, 2013); trabalho que fez parte da pesquisa de nossa orientadora, professora Amanda Eloina Scherer, no projeto “Linguística no Sul: estudo das ideias e organização da memória” (PQ CNPq), na Universidade Federal de Santa Maria (SCHERER, 2005). Dos primeiros gestos de leitura do arquivo de Neusa Carson e de outras pesquisas sobre a Linguística no Sul, Amanda Scherer criou o Fundo documental Neusa Carson, pioneiro em uma “política de Fundos documentais” (SCHERER; PETRI; OLVEIRA; PAIM, 2013) que hoje integram o Centro de Memória e Documentação da UFSM/Laboratório Corpus. Dentre os documentos do final dos anos 1960 do arquivo de Neusa Carson, há duas cartas de Mattoso Câmara destinadas à linguista santa-mariense, há certificados de participação em cursos e institutos de linguística, dentre eles um curso ministrado por Joaquim Mattoso Câmara Junior e um curso ministrado por Aryon Rodrigues no I Instituto Brasileiro de Linguística do verão de 1967/1968, em Porto Alegre, bem como uma intrínseca relação entre os conceitos de língua e cultura se faz presente nas pesquisas de Carson e na sua prática como professora de Linguística e também a obra de Mattoso Câmara é referência nos diários de classe. Os gestos de leitura desse arquivo nos levaram, ainda na iniciação científica e principalmente no mestrado (CAPES 2007-2009), ao trabalho sobre a história da Linguística no Brasil a partir de obras publicadas pelo linguista. Já no doutorado (CAPES 2009 - 2012), passamos a pesquisar sobre o modo como as diferentes formas do saber linguístico determinam a definição (os sentidos) do nome gramática em diferentes manuais de ensino de língua no Brasil, da colonização até o momento em que a produção de Mattoso Câmara é referenciada especialmente a partir dos anos 1960, já contando com uma expressiva produção de conhecimento sobre a língua, desde manuais de ensino de línguas nas escolas até manuais de introdução à linguística na universidade (DIAS, 2009). Se de um lado temos um gesto de leitura de documentos principalmente físicos, na materialidade do papel, da produção acadêmica de Mattoso Câmara e de manuais de ensino de língua (séculos XVI ao XX), na atualidade, com as demandas contemporâneas do digital,
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Juciele Pereira Dias países, o processo de produção do saber metalinguístico, legitimado, deu-se e foi, principalmente, por iniciativa de professores públicos, de instituições de ensino, que, por vezes, fundamentavam suas produções nas ideias linguísticas emergentes na América do Norte ou na Europa, no século XIX e início do século XX. Joaquim Mattoso Câmara Junior, da posição sujeito linguista, também foi um pioneiro na historicização do conhecimento linguístico brasileiro, posição pela qual produziu gestos de filiação da forma do saber da linguística estruturalista à tradição das outras formas de saber sobre a língua já legitimadas nos manuais de ensino de língua portuguesa no Brasil (DIAS, 2012). Além de livros de ampla circulação, História da Linguística^3 ([1962] 1975) e História e estrutura da língua portuguesa ([1972] 1975), Joaquim Mattoso Câmara Junior também produziu outros trabalhos sobre a história do conhecimento linguístico no Brasil, tais como: o artigo intitulado Filologia, publicado em 1949 no Manual bibliográfico de estudos brasileiros e posteriormente, em 2004, na revista Confluência ; e o capítulo intitulado Brasilian linguistics, publicado em Current Trends in Linguistics , em 1968 e posteriormente traduzido e publicado no Brasil em 1976, com o título Linguística Brasileira, na obra Tendências da Linguística , organizada por Anthony Naro. É desta última publicação, do final dos anos 1960, que trazemos a denominação “Linguística Brasileira” e trabalhamos com os efeitos de sentido dessa forma de saber científico do linguista na definição do objeto língua. Tendo em vista essas leituras, buscaremos, na especificidade deste trabalho, partir da organização da obra Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. , por Carlos Uchôa, que apresenta uma reunião singular de textos, dentre os quais voltamos nossa leitura para a Parte V, considerando como reconhecidos em uma história do conhecimento linguístico brasileiro os títulos que compõem a Parte IV, intitulada “Mattoso Câmara e a história das ideias linguísticas”, na referida obra. Já a parte V, intitulada “Mattoso Câmara, a Linguística e a Antropologia”, demanda por gestos de leitura sobre o modo como os textos significam nessa nossa história. Passamos aos títulos dos textos a serem trabalhados:
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Juciele Pereira Dias numa sociedade fornece os recursos de método e técnica para focalizar-lhe o fenômeno cultural básico, isto é – a língua (CÂMARA Jr., [1953] 2004, p. 276, negritados nossos). Ao situar o estado do estudo da Linguística e propor uma relação com a Antropologia, Mattoso Câmara faz um relatório com o objetivo de produzir um debate sobre o que pode ser feito para que as pesquisas linguísticas possam trazer uma contribuição na área dos estudos em antropologia e destaca, a partir da adversativa “ mas ”, “ a língua ” enquanto “ fenômeno cultural básico ” a ser estudado nos cursos de Letras. Assim, ele parte para uma apresentação sobre: a fonética; a distinção entre fonética e fonologia; a análise mórfica; as categorias gramaticais; as noções obsoletas que possam desvirtuar a pesquisa; a linguística histórica; e a aculturação nas línguas. Com o desenvolvimento desses estudos/lições propostos, o linguista busca contribuir com as condições para a articulação estreita entre Antropologia e Linguística, que na Antropologia norte-americana “ tornou possível a exploração metódica e rigorosamente científica das línguas índias ”. Se de um lado temos gestos de leitura dessa aproximação pela constituição de um lugar institucionalizado de relações de trabalho, no âmbito da produção de conhecimento a prática se dá também na definição das relações entre os objetos língua e cultura. Após essa Primeira reunião de Antropologia em 1953, no ano de 1954 há a publicação da segunda edição da obra Princípios de Linguística Geral , com novo subtítulo “como introdução aos estudos superiores de língua portuguesa” (DIAS, 2009), em que, da posição sujeito linguista em relação com antropólogos/Antropologia, passa a se fazer presente o conceito de cultura posto em relação com o conceito de língua (UCHÔA, 2004), porém essa introdução se dá por um deslocamento produzido na noção de cultura em relação ao conceito de linguagem na sua especificidade do que é do humano. Tal formulação toma forma também no seu texto intitulado 2 - Língua e Cultura, publicado enquanto capítulo da Parte V, na obra Dispersos de Mattoso Câmara e transcrito da revista Letras , na qual foi publicado em
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Juciele Pereira Dias lugares já legitimados dos estudos da língua e dos estudos da cultura, respectivamente, a filologia e a antropologia. Cabe destacar que até então a linguística não tem um lugar instituído, oficial, dentre as disciplinas dos cursos superiores no Brasil^6 e esse processo de definição do objeto da ciência, no Brasil, ao mesmo tempo que historiciza, também inscreve essa forma do saber sobre a língua na história da produção do conhecimento, significada por uma relação com outro lugar já instituído: neste caso, o da antropologia. Buscarmos, desse modo, compreender o percurso pelo qual, da posição sujeito linguista, cultura é definida, primeiramente diferenciando-a dos sentidos presentes na filologia ( civilisation e politesse ) e ressignificando-a em relação ao sentido presente na antropologia ( humanitas ), campo legitimado dos estudos culturais. A seguir, para estabelecer essa relação com a antropologia, na tensão entre fazer parte, mas de maneira singular, da posição sujeito linguista, definir o que é língua e cultura, foi produzida a seguir uma definição do que é o humano, passando, pelo conceito de linguagem e sua diferenciação entre o fenômeno físico (nível inorgânico), o fenômeno biológico (nível orgânico) e X (nível superorgânico). Neste X, a partir da segunda edição da obra Princípios de Linguística Geral , caberia o “fenômeno de cultura” ou ainda na introdução do texto Língua e Cultura, poderia ser denominado como “fenômeno cultural”. A relação entre língua e cultura, da produção de Joaquim Mattoso Câmara Junior de meados dos anos 1950, inscreve-se na definição de língua da Moderna Gramática Portugueza , de Evanildo Bechara, de 1961, no título “A língua é um fenômeno cultural” e na definição “A língua não existe em si mesma: fora do homem é abstração, e no homem é resultado de um patrimônio cultural que a sociedade a que pertence lhe transmite”^7. As relações com a(s) antropologia(s) americana(s) na criação do Setor de Linguística A obra Language , de 1921, de Edward Sapir, foi traduzida por Mattoso Câmara em 1938 e a tradução foi publicada em 1954, sob a direção de Augusto Meyer no Instituto Nacional do Livro. Quando a obra apareceu, em 1921, Edward Sapir já tinha em seu ativo muitas e percucientes pesquisas nas línguas índias dos Estados Unidos e do Canadá, como o takelma (Oregon), o yana (Califórnia), o nutka (ilha de Vancouver), o paiúte (Utah) e o sarci [sarcee] (Aberta). Fôra principalmente levado para esse âmbito pela sua comunhão com o trabalho de Franz Boas, o grande antropólogo da Universidade de Colúmbia, que se propusera continuar o empreendimento de J. W. Powell, no Bureau de Etnologia Americana da Instituição Smithsoniana, no sentido de levantamento e análise das línguas índias da América do Norte. Na equipe que então se constituiu e culminou com a elaboração do Manual de Línguas Índias Americanas , publicado a partir de 1911, Sapir se destacou pela sua formação linguística especializada, decorrente da condição de graduado em (^6) A partir de uma Resolução especial do Conselho Federal de Educação de 1962, a Linguística passa a fazer parte do novo currículo mínimo (obrigatório) das licenciaturas em Letras (Cf. Scherer, 2005). Lembramos que quem estava a frente desse conselho era o antropólogo Darci Ribeiro. (^7) Como ponto de sustentação dessa definição de língua em relação à cultura, Bechara (1961) traz uma citação da parte introdutória da obra Linguagem , de Edward Sapir, explicitando o linguista brasileiro enquanto tradutor.
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Juciele Pereira Dias filologia germânica pela Universidade de Colúmbia. (CÂMARA Jr, 1954, p. 8 - 9). Ao situar os estudos linguísticos nos estudos antropológicos, naquele texto da Primeira Reunião de Antropologia, de novembro de 1953, Mattoso Câmara já apontava uma direção de sentidos para a maneira como as relações entre essas áreas se deu na Linguística Norte-América. Neste, por sua vez, há uma especificação da obra de Sapir traduzida em 1954 e da equipe que fez parte no levantamento e análise das línguas índias da América do Norte. E o ano de 1955, da publicação do texto Língua e Cultura, é também o ano em que, segundo Castro Faria (1965, p. 7), “o panorama dos estudos e pesquisas sobre as línguas indígenas do Brasil começou a mudar sensível e rapidamente”, sob a direção de José Candido de Melo Carvalho. Em janeiro de 1956 recebíamos do Peru uma carta do Prof. KENNETH L. PIKE, diretor dos cursos do Summer Institute of Linguistics, comunicando sua próxima visita ao Brasil e o propósito de entrar em contato conosco. Em abril chegava ao Rio de Janeiro o famoso professor, que a convite da Casa Rui Barbosa proferiria uma pequena série de conferências. (CASTRO FARIA, 1965, p. 7). Na estadia de Pike, foram realizadas discussões sobre aspectos do programa de desenvolvimento das pesquisas no setor de línguas indígenas, que, posteriormente, em 26 de abril, dirigiu-se oficialmente ao Summer Institute of Linguitics (SIL) solicitando cooperação técnica. Em 26 de julho o Conselho diretor comunicou o aceite e enviou ao Brasil o pesquisador Dale Kietzman para a execução do projeto. Segundo Castro Faria (1965, p. 8), “como coordenador geral do projeto, da parte do Brasil, foi encarregado o Prof. J. MATTOSO CÂMARA JR” e no ano de 1957 publicou o Manual de Transcrição Fonética, preparado por Mattoso Câmara, para o trabalho dos estudiosos brasileiros. É nessas circunstâncias sócio-históricas que “em 1958 o Setor Linguístico da Divisão de Antropologia foi definitivamente estruturado, com suas normas e as suas linhas de trabalho fixadas em regulamento próprio, segundo a orientação de MATTOSO CÂMARA (cf. Relatório Anual 1958, pp. 44-45)” (CASTRO FARIA, 1965, p. 9). Em 1959 foi preparado, discutido, aprovado e firmado o Acordo entre o Museu Nacional e o Summer Institute of Linguistics. Segundo Souza (2010), em janeiro de 1956, antes ainda da oficialização do Setor de Linguística, o CNPq disponibilizou verba para compra de aparelhagem de registro sonoro de qualidade, o que contribuiu para a organização das atividades de pesquisa em línguas indígenas. Até a organização do Setor, de acordo com Souza (2010), o registro das línguas indígenas, em grande parte, era constituído de listas de palavras coletadas por antropólogos, etnólogos e outros pesquisadores de diversas áreas que os faziam de forma aleatória, esporádica e sem orientação científica em linguística. É como parte dessas demandas de formação de pesquisadores com conhecimento linguístico que, no ano de 1960, Joaquim Mattoso Câmara Junior é encarregado de ministrar um curso de pós-graduação, introdutório, sobre o método linguístico e a sua aplicação ao estudo das línguas indígenas (CASTRO FARIA, 1965). As aulas foram gravadas e transformadas no livro Introdução às línguas indígenas , texto em que mais fortemente se presentificam as relações entre língua e cultura (DIAS, 2006).
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