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Guias e Dicas
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ECOS DA ÁFRICA OCIDENTAL: o que a mitologia dos orixás ..., Notas de aula de Antropologia

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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DIEGO FERNANDO RODRIGUES AZORLI
ECOS DA ÁFRICA OCIDENTAL:
o que a mitologia dos orixás nos diz sobre as
mulheres africanas do século XIX
Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” Assis, para a obtenção do
título de Mestre em História (Área de
Conhecimento: História e Sociedade).
Orientador: Fabiana Lopes da Cunha
Assis
2016
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DIEGO FERNANDO RODRIGUES AZORLI

ECOS DA ÁFRICA OCIDENTAL:

o que a mitologia dos orixás nos diz sobre as

mulheres africanas do século XIX

Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de

Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista

“Júlio de Mesquita Filho” Assis, para a obtenção do

título de Mestre em História (Área de

Conhecimento: História e Sociedade).

Orientador: Fabiana Lopes da Cunha

Assis

Azorli, Diego Fernando Rodrigues, 1985– A996e Ecos da África Ocidental: o que a mitologia dos orixás nos diz sobre as mulheres africanas do século XIX / Diego Fernando Rodrigues Azorli. – Assis, 2016. 165 f. – ils., mapa. Orientadora: Fabiana Lopes da Cunha

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2016.

  1. Mulheres – África Ocidental – História, séc. XIX. 2.Mitologia – África Ocidental, séc. XIX. 3. Religião – Candomblé – Mulheres, séc. XIX. 4. Mitologia – Candomblé – Orixás. I. Título. II. Universidade Estadual Paulista. III. Faculdade de Ciências e Letras. CDD 299.

Elaborado por Marcos A. Rodrigues do Prado CRB-8, inscrição: 7.

Bibliotecário da UNESP, Câmpus Experimental de Ourinhos

Agradecimentos

Aos meus pais que me deram a vida, amor e que acreditam em mim e no meu trabalho. A minha orientadora Fabiana, que me recebeu em sua sala com uma ideia maluca na cabeça em 2011 e de lá pra cá tem me respaldado nas minhas crises, lutas, ansiedades e agora divide essa conquista comigo. Agradeço pelas conversas, músicas, conselhos, bibliografia indicadas e emprestadas, confiança e carinho. Agradeço por sempre me colocar diante de inquietantes questionamentos e por olhar meu tema sempre por novos ângulos. As professoras Selma e Lúcia que aceitaram tão carinhosamente o meu convite e por sua atenção o tempo todo. Aos professores Milton e Fabiana que eu queria ter comigo nesse dia, mas o protocolo me impede. Ao Sidney de Logun-edé por ter aberto sua casa para mim, pelo seu carinho de sempre com as minhas insistentes e intermináveis perguntas. A Mazé, Rodrigo, Patrícia, Flávia, Ronaldo e outros filhos da casa por partilhar comigo os conhecimentos adquiridos em suas experiências de vida. Aos amigos de perto e de longe. Celso por ter acompanhado esse trabalho bem de pertinho e ser um amigo de todas as horas, ajudando-me com bibliografias, cafés, conversas e uma grande parceria. Johnny por ser um grande companheiro de tudo e estar sempre presente, mesmo longe, nossas conversas diárias me ajudaram a organizar ideias e a diminuir a ansiedade diante de tanta coisa pra pensar. Aos outros queridos amigos: Gabriela, Inêz, Edson, Yume, Thamiris, Rodolfo, Marcella, Andréia, Andreia (pois tenho sorte de ter duas amigas muito queridas e com o mesmo nome), Valentina e Elisa pelos papos, carinho, cafés, bolos e por me suportarem falar pela milésima vez sobre o meu trabalho. Aos bibliotecários, Laryssa, Marcos e Rafael pela paciência com nossos pedidos de livros e nossa chatice diária. A equipe da escola onde trabalho que sempre são tão delicados e adoráveis comigo. Aos amigos do mestrado, Roger, Everton, Carla, Diogo e Rafaela que dividem comigo as angústias dos trabalhos sem fim. A CAPES pela bolsa, sem ela teria sido muito difícil trilhar esse caminho. Sem a atenção e carinho de vocês eu não estaria realizando mais esse sonho.

Ora a mulher é fogo, devastadora das rotinas familiares e da

ordem burguesa, devoradora, consumindo as energias viris,

mulher das febres e das paixões românticas, que a psicanálise,

guardiã da paz das famílias, colocará na categoria das

neuróticas; filhas do diabo, mulher louca, histérica herdeira das

feiticeiras de outrora. A ruiva heroína dos romances de folhetim,

essa mulher cujo calor do sangue ilumina pele e cabelos, e

através da qual chega a desgraça, é a encarnação popular da

mulher ígnea que deixa apenas cinzas e fumaça.

Outra imagem, contrária: a mulher-água, fonte de frescor para o

guerreiro, de inspiração para o poeta, rio sombreado e pacífico

para o banhar-se, onda eslanguescida cúmplice dos almoços na

relva, mas ainda água parada, lisa como um espelho oferecido,

estagnante como um belo lago submisso; mulher doce, passiva,

amorosa, quieta, instintiva e paciente, misteriosa, um pouco

traiçoeira, sonho dos pintores impressionistas...

Mulher-terra, enfim, nutriz e fecunda, planície estendida que se

deixa moldar e fustigar, penetrar e semear, onde se fixam e se

enraízam os grandes caçadores nômades e predadores; mulher

estabilizadora, civilizadora, apoio dos poderes fundadores,

pedestal da moral; mulher matriz, que sua excepcional

longevidade transforma em coveira, mulher da agonias da morte,

dos ritos mortuários, guardiã das tumbas e dos grandes

cemitérios sob a lua, mulher negra do dia dos mortos...^1

(^1) PERROT, Michelle. Os excluídos da história. 1988, p. 188.

AZORLI, Diego Fernando Rodrigues. Echoes of West Africa: what the

mythology of Orishas tells us about African women of the nineteenth

century. 2016. 165 f. Master's thesis (academic master's degree in History). -

Faculty of Sciences and Letters, Universidade Estadual Paulista "Julio de

Mesquita Filho", Assis, 2016.

Abstract

We try to think, in this work, a story of women in West Africa of the nineteenth

century from the mythology of the orishas. These African gods have their

mythological stories full of everyday indications of these Yoruba women who

were also portrayed by travelers who passed through Africa in that period,

although with different objectives from ours. The day-to-day performance of

their social duties of mother and wife, were also found in the revenue collected

by Pierre Verger. We complement our analysis with Odus of Ifa - reports of a

prime time, where we advise how to live and carry so that you can develop a life

according to the will of the gods - where women are interpreted by male

perspective, since that only they held the secret of this oracle. The african

woman, of the region studied by us, have been described and reinterpreted by

men and women who are recalled them after the African Diaspora in the New

World, reminiscing masked in the mythologies of the Orishas: Eua, Nanã, Oba,

Iansa and Oshun. Among the topics addressed by us are marriage, domestic life,

motherhood, design and other nuances of the lives of these women.

Key words: History. Mythology. Women. Candomblé. Orishas.

Índice de Imagens

  • Imagem 01 : Xangô
  • Imagem 02 : Oxé
  • Imagem 03 : Nanã
  • Imagem 04 : Ibiri
  • Imagem 05: Iansã
  • Imagem 06: Espada e eruexim
  • Imagem 07 : Ogum
  • Imagem 08 : Asofá
  • Imagem 09: Oxum
  • Imagem: 10: Abebé
  • Imagem 11: Iemanjá
  • Imagem 12: Abebé
  • Imagem 13: Logum edé
  • Imagem 14: Gbojutó
  • Imagem 15: Oxumarê
  • Imagem 16: Dan
  • Imagem 17: Oxalá
  • Imagem 18: Opaxorô
  • Imagem 19: Euá
  • Imagem 20: Exu
  • Imagem 21: Ogó e tridente
  • Imagem 22: Oxóssi
  • Imagem 23: Ofá e Eruexim
  • Imagem 24: Obá
  • Imagem 25: Espada, escudo e iruquerê
  • Imagem 26: Omulu
  • Imagem 27: Xaxará e bengala
  • Imagem 28: Mapa: África divisão política
  • Imagem 29: Mapa: Espaços políticos do Saara ao Equador, no século XVII
  • Imagem 30: Initiation of an african fetich-priest ………………………………...…………
  • ……………………………………………………………………………………………….. Imagem 31: First catholic mission in Lagos directed by the fathers of the society of african
  • Imagem 32: Fetich tree
  • Imagem 33: A human sacrifice to Ugun, the god of war …………………………...…...….
  • Imagem 34: Capa do livro Dahomey and the Dahomans de Frederick E. Forbes
  • Imagem 35: Ia Mi Oxorongá
  • Introdução SUMÁRIO
  • Capítulo 1: Primeiro contato: a religião dos orixás
  • 1.1. Primeiro contato
  • 1.2. Os filhos-de-santo
  • 1.3. O terreiro
  • 1.4. O jogo de búzios
  • 1.5. Música e dança
  • 1.6. Candomblé não é umbanda
  • 1.7. Os orixás
  • 1.7.1. Xangô
  • 1.7.2. Nanã
  • 1.7.3. Iansã (Oiá)
  • 1.7.4. Ogum
  • 1.7.5. Oxum
  • 1.7.6. Iemanjá
  • 1.7.7. Logum edé
  • 1.7.8. Oxumarê
  • 1.7.9. Oxalá (Orixanlá – Obatalá – Oxalufã )
  • 1.7.10. Euá
  • 1.7.11. Exu (Legba – Eleguá – Bará)
  • 1.7.12. Oxóssi
  • 1.7.13. Obá
  • 1.7.14. Omulu (Xapanã – Sapatá – Obaluaê)
  • Capítulo 2: Mito, Mitologia e História
  • 2.1. Mitologia e História
  • 2.2. O umbigo do mundo
  • 2.3. As sociedades na África Ocidental
  • 2.4. Arranjos mitológicos: a mitologia viva
  • 2.5. A memória coletiva: o que é lembrado e o que é esquecido
  • orixás Capítulo 3: Uma história das mulheres africanas do século XIX a partir da mitologia dos
  • 3.1. A mulher africana na mitologia dos orixás
  • 3.2. A africana como esposa
  • 3.3. A africana como mãe
  • 3.4. Apenas esposa e mãe?
  • Considerações Finais
  • Bibliografia
  • Anexos
  • Anexo 1 – Tabela de mitos dos orixás por obra e ano de publicação
  • Anexo 2 – Tabela de Odu s selecionados
  • Anexo 3 – Tabela de receitas e trabalhos selecionados
  • Anexo 4 – Tabela de resumo dos mitos dos orixás selecionados

Introdução

A África já foi considerada um continente sem história pelos pensadores dos países europeus que a queriam dominar, extorquir e reescrever sua história. O modelo europeu de produzir história estava preso à ideia de que sem documentos escritos não era possível escrever história alguma. Essa definição, de povos e continente sem história, figurou nos livros até o final da Segunda Guerra Mundial, quando, junto à emergência de historiadores africanos e africanistas, a ideia de produzir história precisava ser revisada. A UNESCO e a Organização das Nações Unidas, procurando pensar esse novo contexto, reuniu uma diversificada equipe técnica, com cerca de 350 especialistas internacionais e após mais de 35 anos, escreveu uma coleção intitulada “História Geral da África”^2. A obra, com oito volumes e mais de oito mil páginas, trata das origens do continente africano, desde sua Pré-história até os dias atuais. A ausência de documentos escritos, uma vez que os povos africanos eram ágrafos, teve de ser “remediada” com histórias coletadas através de tradições orais dos povos locais, entrecruzandas com informações colhidas através de livros europeus (e orientais) escritos sobre os africanos. Foi preciso deixar vir à tona que a África imaginada, inventada e contada pelos olhos dos europeus estava repleta de preconceitos resultantes do confronto entre dois modos de pensar e ver o mundo de forma muito distinta. Descrita como bárbara, incivilizada, idólatra e excêntrica, essa África “européia” serviu muito bem aos interesses do homem branco durante vários anos, principalmente no período chamado neocolonialismo: afirmando que esses povos eram um “fardo” e por isso deveriam civilizar e levar até ela a “fé verdadeira”. Na tradição oral^3 , entre os africanos, existe a dinâmica daquilo que é frequentemente contado e ressignificado, pois as histórias se transformam pelos que contam e ouvem as mesmas. Mas há elementos dessas tradições que permanecem fixos. Foi a partir do cruzamento dessas “persistências” das histórias contadas pelos africanos que os pesquisadores da ONU puderam produzir essa monumental e relevante obra. No entanto, ainda há muito que ser descoberto na continente africano e na África que foi dispersa pelo mundo, resultado de longos séculos de escravidão do seu povo. O trauma da separação do indivíduo do seu mundo cultural necessitava ser pensado numa espécie de

(^2) Cf. BARBOSA, M. S. A África por ela mesma. 2012. (^3) A tradição oral iorubá é composta por: Odù (signos de Ifá), Ilàna Ìsin (liturgia), Orin (cânticos), Ède (linguagem) e Òwe (provérbios) (BENISTE, J. Òrun Àiyé. 1997).

A análise mais detida dessa mitologia revela histórias muito humanas. Deuses que lutam pelo amor das deusas, assim como disputam os homens as mulheres; deusas que querem casar seus filhos para deixá-los numa vida de segurança, como também desejam as mães aos seus filhos humanos; deusas que sofrem com a ira de seus maridos deuses, como sofrem as mulheres humanas com seus maridos; dentre outras belas e interessantes histórias. Quando nos deparamos com situações cotidianas dos humanos nas mitologias passamos a mapear as categorias inseridas na vida feminina: o desejo de engravidar, o cotidiano da esposa, o casamento e o modo como são tratadas pelos maridos, etc. Nesse momento, o livro de Reginaldo Prandi, Mitologia dos Orixás , foi de valor inestimável, pois sem ele teria sido difícil analisar tantos mitos. Esse compêndio mitológico é a maior reunião de mitos dos orixás já publicada, e que, é claro, passou por algumas adequações de estilo narrativo para que se tornasse levemente homogêneo, sem com isso, prejudicar a essência das narrativas^5. No entanto, ainda era difícil seguir em frente apenas com a mitologia dos deuses. Mas, como nos lembra Sidney Chalhoub, na introdução de seu livro Visões da Liberdade , é preciso investigar os rastros dos fatos nos documentos e construí- los a partir dos interesses específicos de cada autor, além de uma imaginação controlada, característica da disciplina histórica^6. É também o que Carlos Ginzburg chamou de “método Morelli”: “é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros [...] pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis^7 ”. Procuramos, então, viajantes que pudessem ter visitado a região da África Ocidental e descrito, em seus relatos, cenas cotidianas das mulheres, mesmo que esse não fosse o foco principal deles: nosso material foi assim ganhando corpo. Decidimos avolumar a mitologia que tínhamos em mãos com os Odus dos orixás. Os Odus são relatos de um tempo antigo onde são narrados eventos aleatórios, de situações que envolviam humanos, deuses e animais e eram consultados quando surgiam dúvidas. Neles estariam contidas todas as respostas e soluções necessárias^8. Na África eram em número de duzentos e cinqüenta e seis, no Brasil

(^5) “Os mitos que compõem esta coleção estão numerados, fornecendo-se sua fonte, fequentemente mais de uma, em notas arroladas ao final do texto. Através das notas o leitor pode acompanhar a trajetória do mito na literatura. Nas notas incluí também indicações de variantes, informações etnográficas e outros comentários que me pareceram oportunos” (PRANDI, R. 6 Mitologia dos Orixás. 2009, p. 32). 7 CHALHOUB, S.^ Visões da Liberdade. 1990, p. 18. 8 GINZBURG, C.^ Mitos, emblemas, sinais.^ 1989, p. 144. “Cada odu é um conjunto de mitos, cabendo ao babalaô descobrir qual deles conta a história que está acontecendo ou que vai acontecer na vida presente do consulente que o procura em busca de solução para suas aflições. [...] A fórmula receitada é a mesma aplicada no passado, quando foi usada com sucesso, conforme narra o mito. Nada é novo, tudo se refaz” (PRANDI, R. Segredos Guardados. 2005, p. 40-1).

são apenas dezesseis. Nossa pesquisa ganhava mais informações para suprir os questionamentos que também aumentavam. Por fim, decidimos juntar a esse material as receitas coletadas por Pierre Verger, quando esteve nessa parte da África para investigar a sociedade da qual se originou o culto aos orixás. Essas receitas versam sobre variada gama de sortilégios e encantamentos que pretendem servir de socorro para as dores, aflições e conflitos humanos. Nosso recorte temporal procura se manter no século XIX, uma vez que os relatos do viajante principal, John Duncan^9 , é dessa época, mas também vai mais além e aquém quando nescessário. Quanto aos mitos, seria impossível datá-los, uma vez que são obra de construção coletiva e atemporal, bem como as receitas e os Odus. Para desvendar as nuances e possíveis armadilhas que nos reservariam os mitos, valemo-nos de autores como Carlos Ginzburg, Joseph Campbell, Robert Darnton e Mircea Eliade, autoridades no assunto. Por outro lado, para que nossa pesquisa não ficasse apenas no nível bibliográfico, fizemos frequentes visitas a um terreiro de candomblé de nossa cidade, onde observamos os ritos abertos ao público, além de mantermos constante conversa com o dirigente e os seguidores há mais de cinco anos. Desejamos, com esse trabalho, por um lado despertar a curiosidade de acadêmicos e não-acadêmicos para o uso da mitologia como forma de explorar a cultura africana persistente nelas, e por outro contribuir para uma História da África que possa ser utilizada em sala de aula (na educação básica e superior) para aproximar-nos dessa rica cultura, como postula a lei nº 10.639/03. Procuramos também utilizar outras mitologias como caminho para discutir nossas questões. A grega, por exemplo, mais conhecida que a africana, nos serve, em diversos momentos, como fio condutor, mostrando as riquezas que permeiam as duas mitologias, além de semelhanças e divergências. No intuito de aproximar o leitor do tema, procuramos iniciar a dissertação com um capítulo didático, para que a linguagem ou a especificidade cultural não seja um impeditivo para a leitura dos capítulos seguintes. Nele procuramos explicar quem são os orixás e qual é o

(^9) DUNCAN, J. Travels in Western Africa. 1845-1846. 2 v. Duncan era um vice-consul britânico da África Ocidental, com sede na ilha de Fernando Pó. Ele esteve na África entre os anos de 1844 e 1847 a serviço da Sociedade Geográfica Real. Durante esse tempo, ele visitou a costa ocidental africana duas vezes. A segunda visita, no início de março de 1845, quando explorou as lagoas de Ouidah a Porto Seguro e de lá cruzou o Lago Togo, é a que mais nos interessa. Seus dois livros em forma de relato de viagem contêm relevantes informações sobre as mulheres africanas, embora esse não fosse o seu foco. Realizou, em 1849, nova viagem em companhia do oficial naval Frederick Forbes e do cônsul John Beecroft, missão em que faleceu no dia 29 de outrubro de

Capítulo 1: Primeiro contato: a religião dos orixás

Esse capítulo foi pensado para ser didático. Procura desvendar termos e significados que tornem possível a leitura dos capítulos seguintes da dissertação. Trazemos nosso relato da primeira experiência em campo para aproximar o leitor do universo que tratamos. Há também uma pequena seção que procura apresentar os orixás e trazer algumas de suas mitologias mais conhecidas. Tratamos também do espaço físico onde ocorre a devoção a esses deuses africanos e as festas públicas, além dos procedimentos necessários para que alguém ingresse na religião.

1.1. Primeiro contato

É tarde da noite. Quase vinte e duas horas. Estou empolgado. Depois de muita insistência fui convidado pra ver uma festa de candomblé em Ourinhos. Há algum tempo, antes da faculdade, fui convidado por um amigo para participar da preparação de uma escola de samba em Rio Claro. Eu estava desempregado, a ajuda de custo era pequena, mas aceitei por poder ter contato com algo que nunca havia feito. O tema da escola eram os orixás. Aos poucos fui adentrando naquele mundo incrível, do qual pouco sabia. Descobrir que os orixás não eram todos “demônios” como eu havia ouvido durante muitos anos, que cada um tinha tantos detalhes e especificidades que os fazia um universo à parte dos outros me trouxe um mundo novo. Ficava empolgado a cada nova mitologia que era descrita, narrada e encenada pela escola de samba, assim como pelas comidas, cores que eram descortinadas a cada passo e a cada verso do samba-enredo que passeava pela avenida. Após o desfile da escola tudo isso ficou no passado. Eu passei a ver esses deuses africanos com outros olhos e a tentar contribuir para desmistificá-los para os outros. Ingressei na faculdade em Ourinhos. Procurei uma casa de produtos religiosos e perguntei ao dono se poderia me indicar um terreiro de candomblé ou umbanda, pois a curiosidade sobre os orixás permanecia. Fui até o terreiro de umbanda que me indicaram. Fiquei fascinado com a simpatia e simplicidade da dirigente. Depois de algum tempo, ela me disse que era ligada a um terreiro de candomblé na mesma cidade. Eu fiquei curioso para conhecê-lo. Ela me fez o convite e eu não hesitei em aceitar.

Voltando à nossa narrativa, fiquei feliz pela festa de Iansã não ter tido início sem a minha presença. O Ile Ase Omi Oju Aro^11 fica em um bairro de periferia em Ourinhos. Quando estamos dentro do terreiro é impossível não reparar na diversidade e fartura de plantas. Sou logo advertido por alguém que não devo tocar nelas: elas têm dono e tocá-las seria desrespeitoso. Refreio minha curiosidade de pesquisador e me desculpo com um sorriso amarelo por ter sido pego em flagrante. Adentro o barracão através de uma bonita e sólida porta de madeira. Antes dela existem pratos fundos com ovos e oferendas para os orixás. No alto da porta há fileiras de umas folhas de palmeira. Cadeiras brancas de plástico são organizadas em duas partes divididas uma em cada lado do corredor. A platéia me olha curiosa: sou um estranho com uma câmera na mão. Tento não ser notado sentando-me em qualquer lugar vago. Nas paredes há diversas fotos do babalorixá dirigente da casa além de outras pessoas que devem pertencer à sua família-de-santo. Há também insígnias em madeira dos instrumentos dos orixás: espadas, espelhos, peixes, dentre outros. Bonecas sentadas sobre vasos de barro, dispersos pelo barracão, estão meticulosamente vestidas com as cores de cada orixá. A platéia é composta por gente visivelmente humilde. O portão da rua e a porta do barracão permanecem o tempo todo abertas para quem quiser entrar. À frente das cadeiras há um amplo espaço. No centro desse espaço uma grande peça de madeira em forma de vaso, contendo comidas votivas muito bem enfeitadas com flores. Laços de tecido estão por todo o canto. À minha frente, mas distante, existem cadeiras de madeira. Uma que está no meio e outra mais elevada que possui espadas de madeira em seu encosto. As cadeiras são encimadas por quadros das divindades feitos pelo próprio babalorixá que é professor de Artes. Do lado extremo esquerdo, um tanto distante de mim há três tambores. Postados atrás deles estão três homens em pé. Um possui varetas nas mãos. Todos vestidos de branco e em tom muito sério aguardam algum sinal. De repente iniciam um toque solene com os três tambores de uma só vez. O chamado parece pedir o silêncio e máxima atenção da platéia para o “espetáculo” que se segue. Um segundo toque anuncia a entrada de mulheres e poucos homens todos vestidos de um branco impecável. Seus pescoços estão repletos de colares de contas coloridas, seus

(^11) Este terreiro de candomblé é dirigido por Sidney de Logum-edé. Inicialmente foi fundado em outro município e está em Ourinhos há mais de 25 anos.

Depois de tantas canções, o babalorixá brande um chocalho acima das cabeças dos filhos-de-santo, enquanto toca-se uma canção frenética. O chocalho é agitado cada vez mais alto até que o surpreendente acontece: os filhos-de-santo recebem, diante de quem quiser ver, seus deuses-orixás em seu próprio corpo: agora eles são os próprios deuses. Os orixás incorporados nos filhos são retirados do recinto. O babalorixá pede alguns minutinhos para que possa paramentar os deuses e apresentá-los em toda pompa que merecem. Deixamos o barracão num intervalo que durará cerca de uma hora. Os presentes saem para áreas abertas para fumar, conversar, se reencontrar com conhecidos e falar sobre a festa e os presentes. Um novo toque solene dos tambores nos convida a regressar ao barracão. Depois que nos sentamos, é aberta ao fundo, próximo à cadeira onde o babalorixá se sentou, uma porta de onde saem duas mulheres. A primeira está consciente e com uma travessa de barro na cabeça, enquanto uma animada cantiga louva Iansã. A segunda está “no santo” e também traz uma travessa mas, ao lado do corpo. Enquanto a primeira mulher se dirige para um lado da platéia, a deusa (no corpo da filha) vai ao outro. O conteúdo da travessa é oferecido para os presentes. Trata-se de bolinhos de feijão fritos em azeite de dendê: são acarajés, a comida favorita da deusa Iansã. Após servir a platéia a deusa vai até o centro e dança com os filhos-de-santo animadas cantigas, onde ela também parece interpretar com as mãos e o corpo os feitos mitológicos junto a outros deuses. Após dançarem fartamente, os deuses deixam o recinto e finda a cerimônia, todos os presentes são convidados para jantar. Mesas improvisadas são colocadas no barracão que outrora serviu de salão para a dança dos deuses. Come-se fartamente, comenta-se a beleza da festa. Todos estão visivelmente cansados: tanto os visitantes da longa cerimônia como os filhos-de-santo, estes útimos ainda mais, pois se desdobraram na longa preparação do ritual nos dias que antecederam o bonito “espetáculo”. Despedimo-nos do babalorixá, elogiando a festa e, agradecendo pela permissão para as filmagens e prometendo voltar mais vezes.

1.2. Os filhos-de-santo

O candomblé é uma religião aberta a todos que dela queiram fazer parte^14. Pode-se acompanhar as festas, deslumbrar-se com sua beleza, sem ser necessariamente adepto do culto. No entanto, quem quiser fazer parte gozando dos prestígios da religião precisa “fazer o seu santo”. A expressão é utilizada para indicar a ligação entre o devoto e o seu orixá. O encontro do orixá com o noviço ocorre de duas maneiras. Ou o fiel procura o terreiro para “feitura do santo” ou o santo “pede a cabeça” do fiel. Pedir a cabeça é o nome dado quando uma pessoa (que não tem o santo feito) vai assistir uma festa de candomblé e começa a sentir a presença do seu orixá: sua frio, treme, se arrepia, dentre outros sintomas. A pessoa pode “cair no santo” ou “bolar”, que é como se diz quando a pessoa incorpora o santo sem que haja uma ligação oficial entre os dois. Os praticantes também chamam essa divindade de “santo bruto”. É comum uma pessoa que passa por essa experiência “receber o santo bruto” dançar e depois voltar a si e não se lembrar de nada. Qualquer pessoa pode se ligar ao seu orixá, mas nem todos podem incorporá-lo. Os que podem são chamados de iaó e não há distinção entre homem e mulher. Os que não podem receber os orixás em seus corpos podem se tornar ogãs , prestigiados tocadores dos tambores sagrados, ou ekedes , as cuidadoras dos deuses quando incorporados. Para que um orixá se manifeste em um ser humano são necessárias algumas práticas rituais. Primeiro é preciso que o devoto se intere da seriedade do processo que não pode ser desfeito. Depois é necessário reunir tudo que for pedido para o tempo que o noviço ficará recluso no terreiro. Os búzios^15 são consultados para que se possa inferir qual é o orixá a “ser feito”. Conforme a mitologia, cada pessoa já nasce com um orixá “dono de sua cabeça”. As práticas rituais para ligar o orixá ao devoto são secretas para os pesquisadores, embora diversos deles tenham tido acesso e a descrito. De forma sintética, os cabelos do devoto são raspados e são feitos cortes na cabeça e no corpo. Nesses cortes são esfregados preparos de ervas específicos para cada orixá. O noviço, ou abiã , como é chamado, recebe diversos banhos de ervas e só

(^14) As afirmações feitas a partir desse momento e até o fim desse capítulo são baseadas nos autores referenciados a seguir e foram suprimidos do corpo do texto para trazer maior fluidez ao mesmo. BENISTE, J. As águas de Oxalá. 2009. BENISTE, J. Òrun Àiyé. 1997. LODY, R. Tem dendê, tem axé. 1992. PRANDI, R. Mitologia dos Orixás. 2009. PRANDI, R. Os candomblés de São Paulo. 1991. PRANDI, R. Segredos Guardados. 2005. SILVA, V. Candomblé e Umbanda. 1994. SILVA, V. Orixás da metrópole. 1995. VERGER, P. Ewé. 1995. VERGER, P. 15 Notas sobre o culto aos Orixás... 2000. VERGER, P. Orixás. 1981. Cf sobre o jogo de búzios na página 22.