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Grego Português
Tipologia: Notas de estudo
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A língua pode muito bem ser uma pátria, como escreveu Fernando Pessoa, porque como pátria se ganha, se perde, se adopta ou repudia. Mas, antes de pátria, a Língua é sempre algo de mais íntimo: padrão e medida da nossa alma; referência da nossa arte...
João de Melo
A Grécia é um ponto de partida a que justamente é preciso regressar porque então o homem tentou partir da imanência, partir do seu estar na terra...
Sophia de Mello Breyner Andresen
1. A língua, casa do ser.
Quando Martin Heidegger publica o decisivo Sein und Zeit (Ser e Tempo), em 1927, na revista de Husserl Jahrbuch f. Phil. Und phänomelog. Forschung, afirma-se, acima de tudo, um esforço singular para libertar das garras aduncas do esquecimento a questão do ser, num gesto titânico e prometeico do próprio pensamento.
O centro da reflexão de Heidegger é o homem e o sentido do ser, o modo como aparece a si mesmo e se revela como passo na caminhada para a compreensão do ser em geral. Assim, o filósofo utiliza o método fenomenológico de modo a analisar a ontologia fundamental a fim de descobrir as estruturas ontológicas do Dasein (ser - aí). Por outro lado, há que pensar as relações entre o homem e o mundo pois ele é um ser-no-mundo (In - der - Welt - sein) constituindo este um verdadeiro horizonte a partir do qual reflecte e compreende as coisas e a si próprio.
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Numa linha de contiguidade, desenvolve-se o fulcro da reflexão heideggeriana centrado no ser, na verdade e na linguagem. O homem, no fundo, habita na verdade do ser. A linguagem não pode ser vista como uma construção humana de sinais convencionais; a linguagem é a casa do ser. Martin Heidegger percorre em viagem iniciática os mistérios da linguagem humana e faculta-lhe um sentido ontológico (principalmente em A caminho da linguagem, Unterwegs zur Sprache, Pfullingen, 1959).
Na esteira de Heidegger podemos afirmar que a língua é porta do ser, percepção do mundo, meio privilegiado de apropriação do real, instrumento de inserção no mundo e veículo de construção interior.
Quando Aristóteles, na Política (1253a) caracteriza o homem como sendo «o único que tem fala de entre os animais» ( ), inicia-nos no percurso de pensamento que o título desta nótula apresenta.
É pela palavra que nos conhecemos e conhecemos o mundo. É pela palavra que reflectimos sobre a palavra e sobre o seu valor. É pela palavra, enfim, que se inicia o sortilégio, o encanto e o mistério que é o uso e o conhecimento da língua. Ao cogitarmos sobre a palavra, assoma-nos à mente a sua função face à realidade e ao mundo que é «uma proposta muda para que falada exista», no verbo de Vergílio Ferreira em Invocação ao meu corpo.
A língua é algo de íntimo que a palavra molda e metamorfoseia na nossa alma e, por isso, é pátria mas também espírito que conhece e se conhece na interacção sortílega entre a linguagem, a língua e o verbo.
Se por um lado a linguagem é uma cadeia de sons articulados, marcas escritas ou gestos, quanto ao seu revestimento material, por outro, num ângulo relativo à sua génese, concluímos que é a faculdade do homem de criar símbolos.
A linguagem, num sentido próprio, consiste em que o homem se manifesta e comunica, de acordo com Herculano de Carvalho.
Inserida nas actividades culturais, entendendo nós que a cultura é todo o conjunto de actividades que são realizadas pelo homem como membro de uma comunidade, a linguagem deve ser enquadrada no processo a que pertence.
Para isso, é necessário reflectir sobre as suas finalidades e o seu modo de realização.
Antes de mais, recordemos que a Linguística é a ciência que se debruça sobre a linguagem verbal, constituindo o seu objecto material.
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Aguiar e Silva (1) define sistema semiótico como «uma série finita de signos interdependentes entre os quais, através de regras, se podem estabelecer relações e operações combinatórias, de modo a produzir-se semiose» que Charles Morris define de uma forma muito lata como «o processo no qual alguma coisa funciona como um sinal».
Como constatámos, a necessidade de comunicar liga-se intimamente à condição social do homem, a um impulso irreprimível de estabelecer intercâmbio, de se relacionar.
O ser humano é levado a comunicar, a transmitir o que pensa, sente e conhece como afirma Herculano de Carvalho: «...comunicar também indirectamente significa estabelecer comunidade; que os homens realizam comunidade pelo facto mesmo de que uns com os outros comunicam».(2)
Para satisfazer essa necessidade, o homem pode utilizar vários processos, por exemplo, qualquer uma das formas de arte mas se a arte é, sem dúvida, um veículo da comunicação humana, não é aquele que realiza essa função de um modo mais completo e eficaz.
Assim, o homem possui a actividade da linguagem, realizando através dela o que denominamos de comunicação linguística.
Martinet diz-nos que «a função essencial do instrumento que é a língua é a da comunicação».
Para comunicar, o homem utiliza essencialmente a linguagem, o sistema de comunicação mais rico e maleável que conhecemos.
A linguagem, de acordo com a definição de Benveniste é um sistema de signos socializado e, de facto, é um fenómeno cultural, não é inata, foi-nos ensinada.
O fenómeno da comunicação liga-se em absoluto à feição social do homem.
Se a língua é o principal sistema de comunicação entre os homens não podemos esquecer que a cultura é a soma dos reportórios dos comportamentos codificados, realizados e interpretados pelos membros da organização social em situações comunicativas, como diz Trager o que equivale a dizer que cultura é igual a comunicação.
Devemos ainda ter em mente que a comunicação é um sistema de códigos interdependentes transmissíveis através de canais influenciáveis com base sensorial na linha do que afirma BirdWhistell.
Assim, verdadeiramente, uma língua é uma pátria, uma percepção do mundo tal como a palavra «é a marca da personalidade, do país natal, e da nação, o título de nobreza da humanidade. O
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desenvolvimento da linguagem está tão inextrincavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, do país natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que podemos perguntar se ele não será um simples reflexo ou se não é tudo isso: a própria fonte do seu desenvolvimento», para recordarmos Louis Hjelmslev.(3)
O encanto da língua ganha matizes sem par quando no curso elocutório mais singelo do nosso quotidiano entabulamos um qualquer exercício discursivo no qual ecoa a sua história.
Como sabemos, a maioria dos vocábulos portugueses provém do latim mas existem inúmeras palavras que enriquecem o nosso português contemporâneo que vieram da língua grega.
Encetemos então uma peregrinação em demanda do Grego Antigo, da construção do Português Contemporâneo na sua herança, do sortilégio da língua e da epifania da cultura...
2. A Língua grega – sinopse histórico-linguística.
O grego é uma língua indo-europeia. Este grupo ou família engloba um conjunto algo vasto de línguas que apresentam traços de similitude entre elas e que leva a pensar numa origem comum, uma língua que sofreu sucessivas alterações e se particularizou: o Indo-Europeu. Esta língua é uma hipótese (pois não existem quaisquer documentos escritos que a atestem), sendo uma reconstituição elaborada através do método comparativo a partir das várias línguas indo-europeias. Na verdade, a gramática comparativa nasce deste exercício de comparação de línguas cognatas (que têm uma origem comum), principalmente da análise e estudo do sânscrito, grego e latim, possibilitando a tese da origem comum. Em teoria, o Indo-Europeu corresponde à língua que os povos da Europa Central até às estepes siberianas utilizaram cerca de 5.000 a.C.
O Indo-Europeu, designação do «pai» Franz Bopp, o emérito estudioso das línguas comparadas, estende-se hoje, com as suas heranças, por todos os continentes – na Europa só não estão incluídas nesta família o turco, o finlandês, o húngaro e o basco, para além das línguas esquimós.
A língua grega integra-se nas ramificações do Indo-Europeu, todavia, apresenta um fenómeno multímodo: os textos antigos revelam o seu carácter dialectal.
De facto, a Grécia Antiga, no princípio da época histórica, não conhece uma só língua comum a todos os gregos. Encontramos vários falares ou dialectos que ostentam diferenças significativas, principalmente no aspecto fonético, traduzindo o exercício linguístico num exemplo de diversificação explicada por razões históricas, cronológicas (vários invasores), políticas e geográficas.
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Em data incerta, a partir de 1450 em Creta e de 1275 no continente, muito provavelmente, o Linear A foi substituído pelo Linear B, adaptação feita pelos Gregos da escrita dos Minóicos e que revela um estádio do Grego arcaico. O Linear B inclui 88 símbolos que foram decifrados em 1953 pelo arquitecto inglês M. Ventris e pelo filólogo J. Chadwick.
Uma última nota para o alfabeto grego. Os caracteres usados pelos Gregos eram chamados
(letras fenícias) pois apresentam muitas semelhanças com o alfabeto fenício e é aceitável a tese que defende a sua origem fenícia.
3. A Língua Grega, factor de unidade cultural.
Os Gregos, quando se referiam ao seu país, utilizavam o topónimo Hélade ( / ), que deriva de Heleno ( ), o pai mítico que originou as diferentes veias gregas, chamando-se a si mesmos Helenos ( / ).
Tanto o topónimo Grécia como o etnónimo Gregos têm uma origem latina (Graecia e Graeci) e originariamente designavam uma região e um grupo étnico do litoral do Epiro até que entraram em Roma, através dos etruscos, ganhando uma nova dimensão, ad aeternum.
Apesar de ter conhecido mudanças variadas na pronúncia, ortografia, morfologia e vocabulário, a língua grega, através da união conferida por um só alfabeto, é um verdadeiro símbolo da unidade helénica. Quando Platão se refere à aprendizagem da língua grega no Alcibíades 111 a-d, não foca a particularidade de um qualquer dialecto, preferindo apresentar o , sobre o qual as diferentes cidades concordam. Mardónio, antes da realização da segunda expedição persa, dirige-se a Xerxes caracterizando os Helenos como fracos no combate e eternamente debilitados pelos conflitos internos apesar de terem uma só língua e não resolverem as suas disputas pelas palavras e sim pela guerra.
De facto, apesar da variedade dialectal, podemos referir como Finley que o grego «remained astonishingly stable for something like a thousand years»(5), na linha do que Heródoto afirmara convictamente quando opina que os helenos, aparentemente, parecem usar desde sempre a mesma língua:
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Esta unidade dos Gregos era sentida também através dos Poemas Homéricos, principalmente a Ilíada que narra a expedição de todos os Aqueus contra Tróia, como nota Snell.(6) As obras de Homero eram textos fundamentais na educação por toda a Grécia Antiga, por vezes, decorados, como é o caso de Nicérato no Banquete de Xenofonte (III, 5.6), para além de constituírem base para argumentação de toda a ordem.
A união passa pela língua pelo que os Gregos cedo se «afastaram» culturalmente dos não-Gregos. A dicotomia Grego-Bárbaro surge precisamente como argumento linguístico: Bárbaro era o que não falava grego. Inicialmente, o sentido de barbaros liga-se a um som áspero, rude, ininteligível, que não é eufónico. Posteriormente, será a designação do estrangeiro, cuja fala é comparada, não raras vezes, ao pipilar da andorinha. Por isto, concordamos com K. Dover quando afirma que «what the Greek cities had in common was their language and the community of culture which followed from community of language».(7)
Para além do sentido de ininteligível, estrangeiro em termos linguísticos e estrangeiro com valor inferior, bárbaro significa incivilizado. O último sentido faz transparecer a ideia de superioridade de língua mas sobretudo de hábitos, costumes e cultura.
Ainda que em Homero exista nobreza no retrato do Grego e do não-Grego, é possível identificar laivos de antipatia pelos Troianos e seus aliados. Por exemplo, enquanto que os Aqueus avançam para o combate com ordem e em silêncio, os seus opositores fazem um terrível ruído, com gritos e incitamentos estridentes, sendo, por isso, comparados a um rebanho que berra desencontrado ou ao grasnar das gralhas quando emigram (Ilíada, III. 1-9 e IV. 422-438). Mais ainda, um dos povos aliados de Tróia os Cários, eram chamados sintomaticamente de barbarophonoi.
Um autor que afirma sem dúvidas a superioridade natural dos Gregos é Eurípides. O tragediógrafo utiliza frequentemente o vocábulo barbaros com profundo sentido pejorativo chegando quase a tornar-se insultuoso. Por vezes, defende-se a inferioridade moral dos Bárbaros, a supremacia dos Gregos que nasceram para governar (e os Bárbaros para obedecer) e um verdadeiro catálogo de atributos negativos dos não-Gregos: não respeitam os amigos, não admiram os mortos que faleceram heroicamente, são insensatos, impetuosos, sem moderação, instintivos, regem-se pela violência e não conhecem a razão, a justiça e as leis.(8)
Todavia, deve ser destacado o facto de que os não-Gregos não eram apenas considerados com sentido pejorativo. Álcman, Safo e Alceu elogiam os Lídios, os Egípcios são vistos como possuidores de poderes relevantes na medicina nos Poemas Homéricos e Heródoto destaca algumas imitações dos Gregos relativamente aos Bárbaros, para além dos Fenícios que levaram à Hélade inúmeros conhecimentos, como o alfabeto. A dicotomia Gregos/Bárbaros deixará o seu sentido estritamente linguístico a partir do
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humana, é digno de ser tomado como modelo para aprender com ele e regular toda a vida segundo as normas deste poeta, deveremos beijá-los e saudá-los como as melhores pessoas que é possível, e concordar que Homero é o maior dos poetas e o primeiro dos tragediógrafos, mas convém saber que, em matéria de poesia, só se devem admitir na cidade hinos aos deuses e encómios aos varões honestos; pois, se se receber a Musa graciosa, quer a lírica, quer a épica, governar-nos-ão na cidade o prazer e a dor, em vez da lei e do princípio que o Estado reconhece ser sempre o melhor.
República, 66 e-607 a
Estrabão considerava Homero mestre de todos, incluindo em geografia, Pausânias fala dele como a maior autoridade em qualquer assunto e a partir dos Sofistas, a Ilíada e a Odisseia são vistas como uma espécie de enciclopédia. Podemos, de facto, concordar com a ideia de que os Poemas Homéricos abrangem inúmeros domínios: religião, poesia (são heranças para o género épico os epítetos, os símiles, a apóstrofe, a narrativa in medias res, precedida da proposição e invocação), língua (os vocábulos e expressões homéricas podem encontrar-se nos mais variados autores) e acima de tudo, costumes e ideias (respeito pela súplica, hospitalidade, sacrifício, coragem).
Homero, funcionando como paradigma, uniu as almas dos Gregos, ultrapassando barreiras linguísticas e cimentando a coesão cultural e espiritual.
5. A palavra e o pensamento.
Existe um conjunto de vocábulos gregos, que hoje conhecemos na íntegra ou incorporados em palavras portuguesas, que cristalizaram um pouco da ideia do mundo que os Helenos possuíam e que nós ainda utilizamos. Elegemos as mais relevantes:
a)
Presente nos vocábulos portugueses filósofo ou teosofia, a palavra aparece na Ilíada uma só vez num símile que caracteriza a perícia e habilidade de um homem que talha a quilha de um navio depois de receber inspiração da deusa Atena (XV. 410-413).
Em Xenófanes, significa arte poética ou sabedoria, como em Sólon, evoluindo para uma mistura entre experiência e capacidade intelectual.
Aristóteles, na Ética a Nicómaco, fala da dos artistas como produto do («entendimento») e («saber»).
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O sábio desde muito cedo foi chamado de. Uma tradição tardia (Diodoro Sículo, Diógenes Laércio, Plutarco, Lâmblico, Cícero, Valério Máximo, Lactâncio, Santo Agostinho) defende que Pitágoras escolheu para si, pela primeira vez, o termo («amigo da sabedoria»).
Os Sofistas escolhem esta palavra para se designarem (sábio) criando o descrédito do vocábulo. Assim, Platão fala dos Pitagóricos como mas não dos Sofistas.
b)
As palavras psicanálise, psicologia ou psiquiatria têm origem nesta forma grega.
Começa por designar a própria vida em Homero e Hesíodo, evoluindo para o sentido de «alma» em Xenófanes (referindo-se a Pitágoras) e Anacreonte. Neste fio evolutivo, ficou cristalizada em metáfora de cocheiro, no mito de Fedro, de Platão:
Ó jovem de olhar virginal,
eu te busco, mas tu não atendes,
sem saberes que da minha alma
deténs as rédeas.
c)
Em Português, utilizamos as palavras cosmos, cosmonauta ou cosmologia mas na origem grega, como nos textos de Homero, o vocábulo começa por designar um adereço ou enfeite e também ordem.
Píndaro usa a palavra com o significado de «adereço moral» ou «honra» e Heródoto de «ordenação do Estado» (I. 65).
O sentido «ordem do mundo» aparece, pela primeira vez, no Górgias, 508a:
É por isso que eles chamam a este universo kosmos («ordem mundial»), meu amigo, e não akosmia («desordem mundial»).
Mais tarde, uma evolução semântica fez com que Kosmos assimilasse as noções de céu ( ),
o todo ( ) e o conjunto ( ).
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A Língua e a Cultura Portuguesa estão enformadas pela presença clássica. A perenidade das marcas romanas é incontestável, ou não fosse o nosso país caracterizado pela permanência latina e seus variados frutos na arte e na língua. A Romanização legou-nos o seu bem mais precioso, o latim, metamorfoseado pelos séculos no Português, língua novilatina.
A notória presença latina impede-nos frequentemente de discernir de uma forma clara um outro conjunto de heranças que, mais ou menos diluídas, constituem marcas indeléveis e de significado cultural muito profundo da Cultura Grega e da excelsa língua helénica.
Como compreender a Antígona de António Pedro sem Sófocles ou os Encantos de Medeia de António José da Silva sem o original de Eurípides? Como compreender clássicos e modernos, de Camões a Augusto Gil, de António Ferreira a Ricardo Reis, Eugénio de Andrade ou Sophia de Mello Breyner Andresen, sem conhecer a cultura clássica e mais concretamente nestes autores sem conhecer a herança grega?
A cultura greco-latina e o seu conhecimento são um verdadeiro pilar para o saber. Recordemos um episódio elucidativo. Quando Jorge de Sena no segundo volume de Poesia de 26 Séculos, escreveu a propósito dos versos «Para mim mesmo ergui, não com as mãos, monumento... / Não morrerei de todo...» de Pushkin, que constituem «uma das mais orgulhosas e arrogantes proclamações de genialidade que um grande poeta escreveu», suscitou o seguinte comentário em tom irónico de Vergílio Ferreira, Conta Corrente I, p. 129: «Ora isto, meu caro Sena, é o Monumentum exegi aere perenius ... / Non omnis moriar... de Horácio».
Com efeito, a formação do homem passa necessariamente pela cultura, ideia que a célebre metáfora de Cícero consagrou:
ut ager, quamuis fertilis, sine cultura fructuosus esse non potest, sic sine doctrina animus... cultura autem animi philosophia est.
Tusculanas,II. 5.13.
A cultura moderna continua a reflectir a influência clássica. Por exemplo, são extremamente numerosas as palavras e expressões da linguagem comum, para além da língua literária, que encontram a sua origem na cultura greco-latina. Seleccionemos apenas os mais correntes, a maioria herdada da mitologia grega:
Pomo da discórdia.
«O motivo do conflito ou da disputa»
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A deusa Éris, ou Discórdia para os Romanos, ressentida pelo facto de não ter sido convidada para as bodas de Peleu e Tétis, colocou sobre a mesa do banquete onde estavam as deusas Hera, Atena e Afrodite uma maçã com a seguinte mensagem «Para a mais bela». Gerou-se a discórdia. Por ordem de Zeus, Páris foi escolhido para resolver a questão. Hera aliciou-o com o domínio de toda a Ásia, Atena com a sabedoria e a vitória em todas as batalhas e Afrodite ofereceu o amor de Helena de Esparta, que Páris escolheu e viria a levar para Tróia, originando a histórica guerra entre Gregos e Troianos.
Bela como Helena.
Helena de Tróia, a mulher mais bela da Hélade. Raptada por Páris, originou a Guerra de Tróia.
Belo como Adónis ou ser um Adónis.
Jovem de grande beleza, protegido por Afrodite. Daí o verbo adonisar, «tornar galante», «enfeitar-se» ou «tornar-se presumido».
Ser um apolo.
Do deus Apolo, representado como belo e forte.
Ser uma Cassandra ou fazer de Cassandra.
«Anunciar ou profetizar desgraças». Cassandra, filha de Príamo e Hécuba, tinha o dom da profecia como atestam os exemplos da vinda para Tróia de Páris, que provocou a ruína da cidade. Opôs-se veementemente à entrada do Cavalo de Madeira na cidade mas ninguém a ouviu.
Levar uma vida de sibarita.
«Ter uma vida de luxo e prazer». Os Sibaritas eram os habitantes da cidade de Síbaris, cidade fundada por gregos ao sul da Itália, notável pela sua opulência.
Trabalhos ciclópicos.
«Trabalhos gigantescos, de elevada dificuldade». Os Ciclopes eram gigantes de uma força colossal. Na Odisseia, encontramos o temível Polifemo.
Esforço titânico.
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Representa o engenho do seu criador Ulisses mas simboliza a traição.
Olhar esfíngico.
A esfinge tinha um olhar misterioso, enigmático.
Olhar de lince.
Linceu, da expedição dos Argonautas, é conhecido pelo olhar penetrante (mesmo através de paredes).
Olhar de Argos.
«Ver tudo». Argos tinha inúmeros olhos. Vigiou Io de Zeus, por ciúmes de Hera.
Ser anfitrião e ser um sósia.
Da peça de teatro Anfitrião de Plauto, tornam-se substantivos: «o que recebe bem em casa» e «pessoa muito parecida».
Enamorada de Alcmena, mulher de Anfitrião, Júpiter assumiu as suas feições para a cortejar; Mercúrio, companheiro de aventura de Júpiter, assumiu as feições do escravo Sósia.
Ter um olhar de Medusa.
«Olhar que petrifica». Medusa, Górgona terrível, morta por Perseu, tinha serpentes em vez de cabelos e tudo o que olhava transformava-se em pedra.
Um labirinto.
«Uma questão intrincada sem saída aparente». Recorde-se o labirinto de Creta, onde estava encerrado o Minotauro, morto por Teseu, que conseguiu fugir usando um fio dado por Ariadne.
Ser um dédalo.
Dédalo construiu o labirinto. Simboliza o engenho e a habilidade.
Ser uma megera.
«Mãe ou mulher cruel»
Megera era uma das três Fúrias.
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Encantos de Circe.
Circe, feiticeira poderosa, transformou os companheiros de Ulisses em porcos.
Encantos de Medeia.
Feiticeira que se apaixonou por Jasão.
Ser um ícaro ou fazer uma tentativa icária.
Ícaro, filho de Dédalo, voou demasiado alto, até ao Sol, que derreteu a cera das duas asas. Atrevido, fracassou.
Barca de Caronte.
As almas dos mortos viajavam nesta barca até ao Hades.
Calcanhar de Aquiles.
Aquiles fora banhado nas águas do rio Estige pela mãe Tétis, o que o tornou invulnerável excepto no sítio onde a deusa lhe pegou. Aí acertou a seta disparada por Páris na Guerra de Tróia, provocando a sua morte através do seu único ponto fraco.
Canto das sereias.
Atraíam até à perdição os marinheiros incautos.
Um nó górdio.
Existia em Górdio, cidade da Frígia, um nó que ninguém desfazia. Um oráculo disse a Alexandre Magno que quem o desatasse seria o dominador da Ásia. Cortou-o com a espada.
Educação espartana.
Alusão à rígida educação na cidade de Esparta, plena de austeridade e sobriedade.
Espada de Dâmocles.
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No caso das heranças gregas, destaquemos o papel da Psicanálise que recuperou inúmeros mitos (Complexo de Édipo, Complexo de Electra, Complexo de Zeus, Complexo de Prometeu, Complexo de Narciso, Complexo de Fedra, Complexo de Faetonte, etc.).
São também gregas as palavras democracia ou pedagogo. De acordo com Forrest e Ehrenberg, o vocábulo democracia terá surgido por volta do Século V e na sua composição encontramos dêmo e Krat (referente a Kratos, «força» ou «soberania»). De forma semelhante encontramos aristocracia, regime dominado pelos aristoi, «os melhores» de acordo com a noção social, e de plutocracia, regime em que a riqueza dita o acesso ao poder. Segundo o próprio vocábulo, democracia é o «governo pelo dêmos», o povo. Um dos problemas que encontramos após a análise etimológica ou linguística é definir exactamente o que era o dêmos na ilustre democracia ateniense do séc. V pois podia significar «os cidadãos no seu conjunto» ou «os pobres, dentre os cidadãos» como afirma Eutidemo quando dialoga com Sócrates sobre a democracia (como nos mostra Xenofonte num passo da sua obra Memoráveis). Quanto ao pedagogo, era o escravo que acompanhava as crianças às aulas de música, ginástica ou das primeiras letras.
Sempre que um qualquer vulto é esquecido ou afastado, utilizamos a expressão «foi votado ao ostracismo».
Trata-se de outra herança da vida política grega. Depois de Clístenes ter instalado a democracia em Atenas em 508 a.C., foi criada uma lei que permitia à Assembleia afastar qualquer cidadão que pretendesse instalar um regime pessoal ou tirânico. Os cidadãos escreviam o nome do indesejado em cacos de cerâmica, os ostraka, votando-o ao ostracismo, ao exílio, por 10 anos. Mégades, Temístocles, Aristides, Címon e o próprio Péricles sofreram essa pena. Quando regressaram, estavam esquecidos, daí o sentido que hoje encontramos na língua portuguesa.
Um vocábulo curioso não muito utilizado em Português é sicofanta. Significando «patife» ou «impostor», quase se esquece o sentido inicial. Em Atenas, existia uma lei que proibia a exportação de figos, produto básico na alimentação grega. Todavia, tentava-se a exportação clandestina. Quem prevaricasse, via a sua carga apreendida e, se fosse uma denúncia, o seu autor recebia metade, tal como o Estado. Daí surgirem os sicofantas, «descobridores de figos» ( , «dizer, nomear» e , «figo») ou seja, delatores. Deste sentido negativo, o vocábulo atingiu uma dimensão semântica ainda mais profunda, resultando no significado de «malandro».
Ainda que o aforismo «graecum est, non legitur» («é grego, não se lê!») se tenha perpetuado ao lado de autores que consideram restrita a implantação do Grego na cultura portuguesa, como Carlos Eugénio Paço d’Arcos que chega mesmo a afirmar: «o grego não pegou em Portugal»(11), é grandiosa a
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herança. Antenor Nascentes, no seu Dicionário Etimológico, avaliou o número de vocábulos da Língua Portuguesa distribuindo-os segundo as categorias:
Vocábulos da Língua Portuguesa - 140.
Arcaísmos, provincianismos e exotismos no Brasil, África e Oceânia - 40.
Palavras de origem europeia - 2.
Palavras de origem asiática - 949
Palavras de origem africana - 47
Palavras de origem americana - 102
Palavras de línguas oceânicas - 37
Palavras de origem latina - 80.
Palavras de origem grega - 16.079.
Assim, a língua grega é um fundamento basilar do Português, tanto em quantidade como em qualidade!
Desde o estudo de Antenor Nascentes, a nossa língua foi enriquecida com inúmeros helenismos por via erudita.
Porém, a maioria dos vocábulos gregos evoluiu para a nossa língua por via popular: (12)
a) ou vieram por intermédio do latim vulgar:
abantesma (fantasma) < , visão, fantasma, espectro;
adega e bodega (botica) < , depósito, armazém;
amêndoa (amígdala) < , amêndoa;
espada < , espátula, vara, espada;
gesso < , gesso, etc.