Baixe Consenso de Roma III sobre Dispepsia: Caracterização e Abordagem e outras Esquemas em PDF para Diagnóstico, somente na Docsity!
Rev Med (São Paulo). 2008 out.-dez.;87(4):213-23.
Dispepsia: caracterização e abordagem
Dyspepsia: clinical aspects and current
approach
Fernando Marcuz Silva^1
(^1) Médico Assistente do Serviço de Clínica Geral e Propedêutica, Divisão de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – HC-FMUSP, Doutorando em Gastroenterologia pela FMUSP. Endereço para correspondência: Fernando Marcuz Silva. Hospital das Clínicas da FMUSP – ICHC - PAMB – 4º. Andar, sala
- Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 155. Cerqueira César. São Paulo, SP. CEP: 05 403-900. E-mail: fmarcuz@hcnet.usp.br
Silva FM. Dispepsia: caracterização e abordagem. Rev Med (São Paulo). 2008 out.- dez.;87(4):213-23.
RESUMO: A dispepsia é uma síndrome de alta prevalência, embora somente uma pequena parte dos pacientes que sofrem com ela procure atenção médica. Os conceitos e abordagens relacionadas à síndrome, apoiados nas sugestões do Consenso de Roma III, são apresentados neste artigo. Casos da síndrome na prática médica são propostos para auto-avaliação, e suas soluções e comentários são também apresentados.
DESCRITORES: Dispepsia. Úlcera gástrica. Refluxo gastroesofágico. Úlcera Péptica. Neoplasias gástricas.
Caracterização
A
síndrome dispéptica, um problema atual
comum e universal, é caracterizada
por sintomas relacionados ao aparelho
digestório alto. É manifestação de diferentes doenças,
mas principalmente das doenças pépticas, ou seja,
das doenças determinadas pela disfunção cloridro-
péptica: a doença de refluxo gastro-esofágico
(DRGE), a úlcera péptica gastroduodenal e a
dispepsia funcional 7.
Conceitos e sintomas
Os sintomas que a caracterizam são sempre
sintomas relacionados ao aparelho digestório
alto: mais pertinentes como a dor epigástrica e
o desconforto pós-prandial; mais sugestivos de
doenças do esôfago: como a pirose retroesternal,
a azia, a regurgitação, a disfagia e a odinofagia;
inespecíficos como a eructação excessiva e a
aerofagia; ou ainda os de base fisiopatológica mais
ampla como as náuseas e os vômitos 33.
O consenso de Roma III 6 , direcionado para
as doenças funcionais do aparelho digestório
sugere que, para o diagnóstico de dispepsia, sejam
considerados como sintomas de dispepsia apenas a
dor epigástrica : sensação subjetiva e desagradável
que os pacientes sentem quando está havendo lesão
tecidual, restrita a região do epigástrio, a pirose
epigástrica : sensação desagradável de queimação
limitada à região do epigástrio, a plenitude pós-
prandial : sensação desagradável que a comida
permanece prolongadamente no estômago; e a
saciedade precoce : sensação que o estômago fica
cheio logo depois de iniciar a comer, desproporcional
Seção Aprendendo
Silva FM. Dispepsia: caracterização e abordagem.
ao volume ingerido, tanto que não se consegue
terminar a refeição. Estes sintomas poderiam ter
um significado fisiopatológico mais específico para
dispepsia, enquanto os demais estariam definindo
outras síndromes.
O consenso propõe ainda diferentes tipos
de dispepsia: a dispepsia funcional , em que os
sintomas não estão relacionados a doenças de base
orgânica e os achados de endoscopia são normais
ou menores (gastrite); a dispepsia orgânica , em
que os sintomas dispépticos estão relacionados a
uma doença orgânica, como a úlcera péptica; e a
dispepsia não diagnosticada , quando os sintomas
dispépticos ainda não foram investigados e para
a qual o consenso propõe apenas algumas regras
gerais de abordagem.
Propõe-se ainda que, quando os sintomas
predominantes do paciente sejam pirose retrosternal,
azia (sensação de regurgitação ácida ou azeda) ou
regurgitação, anteriormente definindo a dispepsia
tipo refl uxo , ele seja diagnosticado como portador
da DRGE e abordado como tal. É verdade que, para o
diagnóstico desta doença, não há um exame padrão
ouro, e cerca de metade dos casos são de DRGE não
erosiva, que à endoscopia digestiva poderiam ser
confundidos com casos de dispepsia funcional 9.
Os sintomas de náuseas e vômitos são
comuns, com um extenso diagnóstico diferencial
e com fisiopatologia não necessariamente afeito a
um sintoma dispéptico do tipo dismotilidade gástrica
e, por isso mesmo, quando não associados uma
doença orgânica definida, devem ser considerados
num grupo fisiopatológico diferente da dispepsia:
Distúrbios de Náusea e Vômitos Funcionais.
Apesar da dor abdominal na dispepsia ser uma
dor do tipo visceral, portanto sem uma relação direta
com o sitio anatômico afetado, o consenso também
propõe que dores localizadas fora do epigástrio
não sejam consideradas sintomas dispépticos.
Localizadas no andar superior do abdômen, quando
no hipocôndrio direito são mais sugestivas de doença
biliar, e a investigação vai exigir ultra-sonografia.
Quando no hipocôndrio esquerdo pode estar mais
relacionada ao intestino.
Sintomas do aparelho digestório alto associados
as do aparelho digestório baixo também não devem
ser considerados como sintomas de dispepsia,
porque a síndrome do intestino irritável se sobrepõe
à dispepsia, com fisiopatologia semelhante, existindo
mesmo quem considere que ela deva ser chamada
de síndrome do aparelho digestório irritável^27.
O u s o d e a n t i i n f l a m a t ó r i o s e a l g u n s
outros medicamentos podem determinar lesões
gastrintestinais, mais freqüentemente úlceras e
erosões, principalmente de características agudas.
Podem ser acompanhadas de sangramento digestivo
e caracterizam uma doença orgânica bem definida:
lesões gastrintestinais por medicamentos e
assim não devem ser abordadas, em princípio, como
quadros de dispepsia 2.
A dispepsia não diagnosticada
O Consenso de Roma III está focado na
dispepsia funcional. Assim, para critérios diagnósticos,
propõe as restrições sintomáticas acima e define
ainda uma duração de sintomas que devem ser
estar presente por pelo menos 3 meses, com pelo
menos 6 meses do início dos sintomas. Para a
dispepsia não diagnosticada, não se tem definida uma
duração mínima, embora alguns autores considerem
pelo menos 4 semanas nos últimos 3 meses. O
consenso Roma III é menos específico e propõe como
orientações gerais:
- Certificar-se de que os sintomas são restritos
ao trato digestivo alto;
- Identificar os sinais ou sintomas de alarme:
perda de peso inexplicada, vômitos recorrentes,
disfagia progressiva, sangramento gastrointestinal,
anemia, visceromegalia, etc., que não são comuns na
prática diária e que podem ter valor preditivo positivo
para doenças orgânicas. Quando presentes ditam a
indicação de endoscopia digestiva de início;
- C e r t i f i c a r - s e d o p o s s í v e l u s o d e
antiinflamatórios não esteroidais;
- Caracterizar como uma Doença de Refluxo
Gastro-Esofágico a presença de sintomas típicos de
refluxo.
De acordo com as condições do local, indicar
a endoscopia digestiva de início para pacientes
idosos.
O Helicobacter pylori na dispepsia
O Helicobacter Pylori ( H. pylori ) é uma bactéria
espiralada, flagelada, gram-negativa, microaerófila,
que consegue infectar o estômago e sobreviver no
ambiente ácido graças a sua capacidade de produção
de urease e de alcalinização do seu microambiente.
Tem alta prevalência no mundo todo, com taxas mais
altas nos países desenvolvidos, quando comparado
com os em desenvolvimento 3. No nosso meio esta
taxa é de 65% da população 34. A contaminação
ocorre principalmente na infância e dificilmente ocorre
eliminação espontânea da bactéria, o que determina
uma infecção crônica em todos os infectados. A
maioria das pessoas é assintomática, mas uma
pequena parte da população pode desenvolver úlcera
péptica, linfoma tipo MALT e câncer gástrico 22.
A erradicação da bactéria previne a recidiva
Silva FM. Dispepsia: caracterização e abordagem.
A dispepsia funcional é a causa mais freqüente
da dispepsia não investigada (Quadro 2). A preva-
lência da úlcera péptica vem diminuindo (exceto a
forma hemorrágica em idosos 8 ), enquanto a DRGE
vem aumentando, provavelmente pela queda da
prevalência da infecção pelo H. pylori e pelo aumento
QUADRO 2. Achados endoscópicos em pacientes dispépticos
Fonte
Pacientes n Refluxo %^
Úlcera %
Câncer %
Funcional % Ayoola et al. 10.112 11 17 1,5 70
Hungin et al. 6.744 17 15 0,6 67
Hallisey et al. 2.659 19 16 2,7 62
Fedail et al. 2.500 8 18 2,2 71
Mansi et al. 2.086 5 13 1,5 81
Holdstock et al. 1.805 9 14 2,0 75
Fjosne et al. 1.275 10 23 4,0 62
Capurso et al. 1.1.53 3 8 0,6 89
Stanghellini et al. 1.057 9 21 0,6 69
Davenport et al. 1.041 ND 24 2,6 ND
Nyren et al. 972 3 23 0,3 74
Gear et al. 968 5 17 2,3 76
Joahnnessen et al. 930 15 17 1,0 67
Bytzer et al. 878 2 15 1,4 82
Talley et al. 820 14 23 3,4 60
Williams et al. 686 14 28 2,5 56
Saunders et al. 559 31 23 0,2 46
Intervalo (%) 2-31 13-28 0,2-4,0 35-
Média (%) 12 17 1,6 70
Modificado de Arents et al. 1
Abordagem
A dispepsia pode ser abordada de formas
diferentes. A rigor, características da população,
prevalência da infecção pelo H. pylori , prevalência
do câncer gástrico, custos e disponibilidade da
endoscopia digestiva alta devem ser adequadamente
estudados para cada região. Também os métodos
diagnósticos não invasivos para a bactéria e outros
fatores (inclusive também a vontade do paciente)
devem ser levados em conta na adoção de uma
estratégia específica.
Na prática, três estratégias são mais
comumente utilizadas: Endoscopia de início,
identificação da infecção pelo H. pylori e sua
erradicação (estratégia “teste e trate”) e tratamento
empírico inicial.
Endoscopia inicial
A endoscopia de início tem sido proposta
como abordagem que faz o diagnóstico da dispepsia
precocemente. Tranqüiliza o paciente 19 e identifica
tanto os casos de dispepsia funcional (a maioria dos
da obesidade. Há uma maior preocupação hoje em
dia com as complicações da DRGE, já que parece
estar havendo um aumento da incidência do adeno-
carcinoma da junção gastro-esofágica nos países
ocidentais 18 e mesmo no Japão 10.
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casos), que são benignos e não vão exigir muitos
recursos no seu acompanhamento, bem como os
casos de neoplasia gástrica. Porém, a endoscopia
digestiva é um exame que tem restrições de oferta
e, em alguns países, tem alto custo, de maneira
que economizar sua indicação muitas vezes é uma
necessidade real 17.
Teste e trate
A estratégia do “teste e trate”, que consiste
em erradicar o H. pylori em pacientes dispépticos
jovens e sem sinais de alarme, apresenta uma
relação custo benefício melhor que a endoscopia
inicial e pode economizar até 30% de exames 11.
Porém é necessária a disponibilidade dos testes
não invasivos para o H. pylori. A prevalência da
infecção também não pode ser alta ou muito baixa,
porque ou se erradicaria a bactéria em quase todos
os dispépticos ou em muito poucos e mesmo em
pacientes ulcerosos, a erradicação da bactéria pode
não acabar com os sintomas 26.
Tratamento empírico
O tratamento empírico inicial (prova terapêutica)
é uma estratégia também direcionada para pacientes
adotada a faixa etária dos Estados Unidos: 55 anos
(Quadro 4). Em princípio, para localidades com alta
prevalência de câncer gástrico, recomendam-se
faixas etárias mais baixas 31.
QUADRO 3. Sinais e sintomas de alarme em dispepsia
Emagrecimento inexplicado Anemia Sangramento digestivo Disfagia progressiva Vômitos persistentes Cirurgia gástrica prévia Visceromegalia Icterícia Tumoração ou adenopatia abdominal Sintomas sistêmicos Idade (1) Uso de antiinflamatórios (2) (1) verificar a faixa etária; (2) sem gravidade, não considerar alarme.
Sintomas dispépticos
Sintomas de refluxo (pirose retrosternal, azia ou regurgitação)
Dispepsia sem refluxo ou uso de anti-inflamatórios
Dispepsia com uso de anti-inflamatórios
Tratar como Doença de Refluxo Gastro Esofágica
Suspender anti-inflamatório e medicar com Inibidor de bomba de prótons ou Bloqueador H 2
Com sinais de alarme ou mais de 55 anos
Sem sinais de alarme ou menos de 55 anos
Prova terapêutica com Inibidor de bomba de prótons ou Bloqueador H 2
Endoscopia Digestiva
Falha ou Recidiva
Normal, Gastrite ou Duodenite
Dispepsia Funcional
Esofagite, Úlcera ou Câncer
Tratamento Específico Modificado de A.G.A^29
QUADRO 4. Abordagem da dispepsia pelo tratamento empírico
dispépticos jovens e sem sinais de alarme,
que propõe um tratamento empírico,
normalmente utilizando supressores
ácidos, quem com resposta adequada do
pacientem é mantida por algum tempo,
visando a resolução dos sintomas 20. Para
os pacientes que não respondem ao
tratamento, a endoscopia está indicada e,
para os pacientes cujos sintomas recidivam,
também. É verdade que cerca de metade
dos casos de dispepsia funcional são
recidivantes, mas o princípio da abordagem
permite o diagnóstico das úlceras pépticas
e das doenças de refluxo, que respondem
ao tratamento de supressão ácida, mas
sempre recidivam.
Também é importante salientar que,
para esta estratégia (também a do teste
e trate), o reconhecimento dos sinais de
alarme (sinais ou sintomas que denotam
gravidade em doença orgânica) indica
endoscopia inicial 12 (vide os principais
sinais de alarme no Quadro 3).
De maneira geral, quase todos os
trabalhos apontam a idade como um sinal
de alarme, variando a faixa etária proposta.
O ideal é que cada localidade faça estudos
para determiná-la. No Brasil normalmente é
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A doença de refl uxo gastro-esofágico
De fisiopatologia ainda não bem determinada,
parece decorrer do desbalanço entre os mecanis-
mos de defesa contra o refluxo gástrico e, princi-
palmente, a acidez do refluído gástrico. O esfíncter
inferior do estômago é a mais importante barreira
contra o refluxo, e a hipotonia episódica deste es-
fíncter é a principal causa da doença. É possível
ocorrer doença extra-digestiva (asma, faringite e
laringite de refluxo, sem esofagite concomitante).
O tratamento é baseado principalmente no uso do
inibidor de bomba de prótons e nas modificações
do estilo de vida: elevação da cabeceira da cama,
redução do peso corpóreo, abstenção do álcool,
tabaco e medicamentos agressivos (alendronato,
sildenafila, anti-inflamatórios), dieta sem irritantes
e fracionada 24.
A dispepsia funcional
A mais freqüente causa de dispepsia ainda
não tem sua fisiopatologia bem definida, embora
seja uma doença benigna e a investigação endoscó-
pica mostre mucosa gastroduodenal normal ou com
lesões mínimas (gastrite). Talvez seja multi-causal,
e a agressão cloridro-péptica, a hipersensibilidade
visceral, a dismotilidade gastroduodenal e distúrbios
psicológicos e do sistema nervoso central estejam
envolvidos 24.
Seu tratamento pode ser difícil e não há
medicamentos de grande eficácia a serem usados.
Uma proposta para a abordagem medicamentosa é
apresentada no Quadro 7.
DOR EPIGÁSTRICA DESCONFORTO PÓS-PRANDIAL
INIBIDOR DE BOMBA PROCINÉTICOS
(Dose usual) insucesso insucesso
PROCINÉTICOS INIBIDOR DE BOMBA
(Dose usual) insucesso
INIBIDOR DE BOMBA
(Dose dupla) insucesso insucesso
ANTIDEPRESSIVO TRICÍCLICO
PSICOTERAPIA
insucesso
ERRADICAÇÃO DO H. pylori
Insucesso
MEDICAMENTOS EXPERIMENTAIS
(Sumatriptan, Buspirona)
QUADRO 7. Tratamento da dispepsia funcional
Tratamento comportamental visando a
utilização de uma dieta saudável, sem irritantes, evitar
o uso de medicamentos agressivos para a mucosa
gástrica e minimizar as situações de ansiedade ou
depressão podem ser úteis, embora não hajam
estudos adequados verificando a eficácia destas
medidas.
É sempre muito importante compreender a
limitação do uso de medicamentos, dar suporte
psicológico ao paciente, conscientizando-o de que
a doença é benigna e aguardar o surgimento de
medicamentos mais eficazes 21.
Silva FM. Dispepsia: caracterização e abordagem.
Casos problemas - resolução
1. Paciente feminina de 16 anos refere desconforto
epigástrico há 3 meses, que piora com a ingestão de alimentos gordurosos. Tem náuseas freqüentes pela manhã. Nega vômitos. Nega emagrecimento, uso de anti-inflamatórios, álcool e tabaco. Nega passado mórbido. É muito emotiva e reconhece que os sintomas são mais intensos e freqüentes quando fica ansiosa. Caso de dispepsia sem sinais de alarme em paciente jovem. A proposta é realizar um tratamento empírico com supressores ácidos por 4 a 8 semanas. Se a paciente não responder ao tratamento ou em caso de recidiva após tratamento, indicar endoscopia. Verificar a necessidade de tratamento da ansiedade.
- Paciente masculino de 52 anos tem dor epigástrica há 5 anos, em crises de meses de duração, que melhora com a alimentação. Refere “clocking” freqüente. É pedreiro e tabagista de 20 cigarros por dia. Nega perda de peso. Há 1 semana evacuou durante 3 dias fezes escuras e de mau cheiro. Refere melhora da dor com a ingestão de leite ou de bicarbonato. Caso de dispepsia com sinal de alarme: sangramento digestivo. Indicar endoscopia o mais breve possível. Medicar se possível com inibidor de bomba de prótons. Verificar o uso de anti-inflamatório, porque o paciente tem uma profissão sujeita a lesões osteo-musculares, situação de uso freqüente destes medicamentos. O paciente tem os sintomas recidivantes e clocking , o que pode ser mais sugestivo de úlcera péptica. O paciente tem dor típica: melhora com alcalinos, porém usa bicarbonato, medicamento que é absorvido e pode determinar alterações eletrolíticas sistêmicas. É tabagista, hábito que aumenta a freqüência de recidiva ulcerosa e aumenta o tempo de cicatrização da úlcera. Esta característica pode ser minimizada se o paciente for portador da infecção pelo H. pylori e erradicar a infecção.
- Paciente masculino de 65 anos, natural de Portugal, no Brasil há 10 anos. Ex-fumante, abstêmio há 5 anos, sempre gostou de alimentos defumados, com baixa ingesta de verduras. Há 3 meses apresenta epigastralgia leve, sem passado dispéptico prévio, que piora com a ingestão de alimentos, sem náuseas ou vômitos, porém com anorexia. Perdeu 2 kg de peso no período. Dispepsia com sinal de alarme: perda de peso, em paciente idoso, procedente de um país com alta prevalência de câncer gástrico, com dispepsia de início recente. Também tem hábitos de risco para câncer gástrico. Solicitar endoscopia o mais procecemente possível. Medicar se possível com inibidor de bomba de prótons.
- Paciente feminina de 45 anos refere há um ano queimação retroesternal, que piora após as refeições e é mais intensa à noite, dificultando o seu sono. Tem azia constante e episódios repetidos de regurgitação.
Apresenta intolerância aos gordurosos e ao álcool. É obesa e não consegue emagrecer. Fuma e não quer interromper o hábito porque tem medo de engordar. Já fez diversos tratamentos com antiácido ou cimetidina, com melhora transitória (enquanto está usando o medicamento). Caso sugestivo de DRGE sem sinais de alarme. Medicar com inibidor de bomba de prótons por seis meses, orientar medidas comportamentais: elevação da cabeceira da cama, evitar deitar logo após as refeições, dieta fracionada, seca, em especial sem bebidas gasosas, diminuição da ingesta de café e gordurosos, estimular a abstenção de álcool e tabaco, orientar e apoiar as medidas para perda de peso. A paciente tem melhora transitória com uso de supressão ácida de menor potência. É possível que eventualmente tenha necessidade de usar dose dobrada de inibidor de bomba de prótons e que a suspensão do uso deste tipo de medicamentos se siga de recidiva precoce dos sintomas. Nesta situação poderá ser candidata ao uso crônico de inibidor de bomba de prótons. Resposta inadequada a dose dobrada do medicamento por mais de um mês de tratamento, é indicação de endoscopia e reavaliação do diagnóstico. Em pacientes mulheres de mais idade verificar o uso de alendronato.
- Paciente feminina de 21 anos refere epigastralgia de forte intensidade, que piora com as refeições e com qualquer tipo de alimento. Está fazendo uso de omeprazol por orientação médica há uma semana, sem melhora. Há 6 meses teve episódio semelhante, quando fez endoscopia digestiva que mostrou uma gastrite enantemática, H. pylori ⊕. Melhorou com uso de bromopride. Quer repetir a endoscopia, porque como acha a dor atual muito mais intensa, acredita que a gastrite se transformou em úlcera. Caso de dispepsia funcional. O tratamento é sintomático e a supressão ácida potente não necessariamente melhora os sintomas. Às vezes o uso de procinéticos pode ser mais eficaz. Verificar a necessidade de se tratar ansiedade ou depressão associada. A erradicação do H. pylori não está indicada, porque até o momento não há evidências que a erradicação da bactéria melhore os sintomas. Não há necessidade de se repetir a endoscopia, porque a intensidade dos sintomas não se correlaciona com a gravidade da gastrite e a não ser em caso de mudança dos sintomas o quadro dispéptico recidivante está associado ao mesmo achado endoscópico. Estes casos são os mais difíceis de se tratar na prática médica: demandam apoio médico constante, cuidado em não supervalorizar medicamentos e exames laboratoriais e aconselhamento continuado para uma vida saudável e de menor preocupação com os sintomas dispépticos, porque a entidade é benigna.
- Paciente masculino de 51 anos tem epigastralgia há 10 anos. Já fez inúmeras endoscopias, que sempre mostram úlcera duodenal (às vezes, mais de uma). Obtém melhora transitória com uso de ranitidina, porém quando suspende a medicação volta a ter
Silva FM. Dispepsia: caracterização e abordagem.
sentar uma dificuldade técnica importante, já que o paciente apresenta úlcera ativa e com necessidade de supressão ácida potente. Além disso, a presença da infecção pelo H. pylori também pode determinar alteração da gastrinemia e o uso de inibidor de bomba de prótons também podem mascarar a presença da infecção. No entanto a presença de úlceras múltiplas em especial mais distalmente ao estômago também podem sugerir hiperacidez gástrica. O paciente tem história de nefrolitíase e no caso de gastrinoma associado à síndrome NEM (neoplasia endócrina múltipla), a hipercalcemia associada ao adenoma de paratireóide surge normalmente antes do apare- cimento do gastrinoma. Este tipo de gastrinoma tem
carater familiar e frequentemente apresenta múltiplos pequenos tumores na parede duodenal. No entanto, a Síndrome de Zollinger-Ellison (gastrinomas asso- ciados à úlcera péptica e hipersecreção gástrica) é uma síndrome muito rara. Neste caso seria adequado realizar nova dosagem da gastrina em situação ideal, pesquisar e erradicar o H. pylori , se presente, medicar o paciente por um período mínimo de 4 semanas com inibidor de bomba de prótons em dose dobrada e se a situação clínica se mantiver, encaminhar o paciente para a especialidade para a pesquisa de gastrinoma. Gastrimenias entre 100 e 500 pg/mL são mais sugestivas de hiposecreção gástrica, freqüente em gastrites atróficas.
Silva FM. Dyspepsia: clinical aspects and current approach. Rev Med (São Paulo). 2008 out.- dez.;87(4):213-23.
ABSTRACT: Dyspepsia is a syndrome with a high prevalence in general population, but only few patients seek medical care by his symptoms. The concepts and the approaches related to syndrome, supported by Roma III Consensus, are presented in this article. Clinical cases in medical practice are proposed for self evaluation and the solutions with proper commentaries are presented also.
KEY WORDS: Dyspepsia. Stomach ulcer. Gastroesophageal reflux. Peptic ulcer. Stomach neoplasms.
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