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Regência: Augusto Silva Dias 1
Direito Penal I (resumos)
1) Direito penal e a sua ciência no sistema jurídico estadual
1.1. Sistema do Direito Penal
Direito Penal:
- Conjunto de normas jurídicas que se autonomizam no Ordenamento Jurídico
- Atribuí a certos factos descritos pormenorizadamente, consequências jurídicas privativas deste ramo de direito o Factos // crimes o Consequências // pena e medidas de segurança
- Ramo do Direito público, por excelência, o que significa que tanto a doutrina do crime como a dos seus efeitos assumem uma estreitíssima conexão com o direito constitucional e com a teoria do Estado^1 o Em relação ao direito constitucional, o Direito penal assume um carácter de dependência análogo ao de qualquer outro ramo jurídico do direito ordinário o Quanto aos outros ramos do direito ordinário: ▪ Beleza dos Santos e Eduardo Correia: o direito penal assume um carácter de dependência relativamente a estes ramos, que são os verdadeiros criadores de ilicitude. Esta conceção parte da teoria das normas de Binding, que parte da distinção entre “norma” e “lei penal” (enquanto a primeira antecede a segunda e contém um mandato imperativo de fazer ou não fazer, o qual, se for violado, dá origem à ilicitude da ação ou da omissão, a segunda apenas pretende sancionar com meios específicos, sob certas condições, a ilicitude em causa), e da qual Beling afirmou a unidade da ilicitude, isto é, não há ilicitude especificamente penal, civil ou administrativa, antes, se uma ação viola um imperativo jurídico qualquer, visto que a ilicitude se constitui, por força do principio da ordem jurídica, em ilícito pra todos os ramos de Direito ▪ Figueiredo Dias: o direito penal é autónomo e criador de uma especifica ilicitude penal, correspondente à especificidade e à qualificação das consequências jurídicas que a um tal ilícito se ligam. Isto porque a função do direito penal radica na proteção das condições indispensáveis da vida comunitária, cumprindo-lhe, deste modo, selecionar, de entre os comportamentos em geral ilícitos, aqueles que, de uma perspetiva teleológica, representam um ilícito geral digno de uma sanção de natureza criminal (^1) Esta conexão é reforçada pelo facto de os instrumentos sancionatórios específicos do direito penal representarem, pela sua própria natureza, negações ou fortíssimas limitações de direitos fundamentais das pessoas, e pelo facto de se verificar a necessidade de uma relação de mútua referência entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre tutelar
Regência: Augusto Silva Dias 2 2 O ordenamento jurídico-penal abrange: ➢ Direito penal substantivo – define os pressupostos de crime e as suas concretas formas de aparecimento ➢ Direito penal executivo – regulamenta juridicamente efetiva execução da pena e/ou medida de segurança decretadas na condenação proferida no processo penal ➢ Direito processual penal – regulamente juridicamente os modos de realização prática do poder punitivo estadual O Direito penal em sentido estrito (e, por sua vez, o Código Penal), compõe-se de uma parte geral e de uma parte especial. Na parte geral definem-se os pressupostos de aplicação da ei penal, os elementos constitutivos do conceito de crime e as consequências gerais que da realização de um crime, total ou parcial, derivam as penas e as medidas de segurança. A doutrina da parte geral divide-se, ainda, em dois tratamentos fundamentais:
- Fundamentos gerais de todo o direito penal (determinação do lugar do direito penal no sistema jurídico, a função do direito penal no sistema social e os seus limites, fontes e o âmbito de vigência, temporal e espacial, da lei penal; estudo da construção dogmática do conceito do facto punível; corresponde ao disposto nos art.1º a 39º CP)
- Consequências jurídicas do crime (estudo das sanções criminais; corresponde ao disposto nos art.40º a 130º CP) Na parte especial estabelecem-se os crimes singulares e as consequências jurídicas que à prática de cada um deles concretamente se ligam.
1.2. Ciência do Direito Penal
Enciclopédia das ciências criminais – conjunto das disciplinas jurídicas que têm o crime por objeto, sendo essas, disciplinas a sociologia criminal, a antropologia criminal, etc., cujos conhecimentos são tomados em conta pela ciência estrita do direito penal (ou dogmática jurídico-penal)^3 Von Liszt criou, nos finais do séc. XIX, um modelo tripartido, ao qual chamou ciência conjunta do direito penal. Esta ciência conjunta compreende: i. Ciência estrita do direito penal (conjunto de princípios que subjazem ao ordenamento jurídico-penal e devem ser explicitados dogmática e sistematicamente) ii. Criminologia (ciência das causas do crime e da criminalidade) (^2) Direito Penal objetivo: expressão ou emanação do poder punitivo do Estado Direito Penal subjetivo: poder punitivo resultante da sua soberana competência para considerar como crimes certos comportamentos humanos e ligar-lhes sanções específicas (^3) Isto não significa que a dogmática jurídico-penal é uma ciência interdisciplinar, isto é, uma ciência que assenta na reunião de campos especiais e de métodos diversificados num trabalho comum, mas capaz de coordenar corretamente os resultados parcelares especializados dentro de uma consideração unitária e nova do seu objeto global Direito Penal lato sensu Direito penal em sentido objetivo ( ius paenale ) Direito Penal em sentido subjetivo ( ius puniendi )
Regência: Augusto Silva Dias 4 denominador comum a característica de possuir na sua base uma conduta socialmente danosa o Durkheim, que sustentava que a única característica comum a todos os crimes residia no facto de estes constituírem atos universalmente reprovados pelos membros de cada sociedade o Von Liszt, que afirmava que o crime era a agressão tida, na perspetiva do legislador, como especialmente danosa para uma dada ordenação social, a interesses juridicamente protegidos pelo lado da perigosidade social revelada em tal agressão por uma personalidade responsável Apesar de ter tentado, pela primeira vez, estabelecer de forma concertada e sistemática um conceito pré-legal de crime, esta perspetiva é criticável porque: (1) é imprecisa, visto que não é possível determinar com um mínimo de segurança em que consiste a ofensividade ou a danosidade social determinante da “essência” de crime; (2) é demasiado larga para se alcançar os limites da criminalização, já que, apesar de o crime se traduzir num comportamento determinante de uma danosidade ou ofensividade social, nem toda esta danosidade ou ofensividade social deve legitimamente constituir um crime. ➢ Perspetiva moral ético-social – vê na essência do crime a violação de deveres ético- sociais elementares ou fundamentais. Como exemplo desta perspetiva temos as lições de: o Welzel, que via como tarefa primária do direito penal a proteção dos valores elementares de consciência, de carácter ético-social, e só por inclusão na proteção dos bens jurídicos particulares o Jescheck, segundo o qual são os valores fundamentais da ordem social, consubstanciados em normas ético-sociais, que ao direito penal cabe tutelar. Ainda que esta perspetiva corresponda a uma atitude enraizada no espirito da generalidade das pessoas para quem o direito penal constituiria a tradução das noções de pecado e de castigo, vigentes na ordem religiosa, ou de imoralidade e de censura da consciência, vigentes na ordem moral, esta não pode merecer, no plano da ordem jurídica estatal e da ordem jurídica-penal, aceitação, já que não é função, nem primária nem secundária, do direito penal tutelar a virtude ou a moral. ➢ Perspetiva teleológico-funcional e racional – reconhece que o conceito material de crime tem de ser encontrado no horizonte de compreensão imposto ou permitido pela própria função que ao direito penal se adscrevesse no sistema jurídico-social, e que este resulta da função atribuída ao direito penal de tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou seja, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna e necessitada de pena. Esta conceção teleológico-funcional e racional do bem jurídico exige que o conceito se deva traduzir, em primeira linha, um conteúdo material, não bastando por isso que se identifique com os preceitos penais cuja essência pretende traduzir, ou com qualquer técnica jurídica de interpretação, ou de aplicação do direito; deve servir como padrão crítico de normas constituídas ou a constituir, surgindo assim como noção transcendente e transistemática ao sistema normativo jurídico-penal; e deve ser politico-criminalmente orientado e nesta medida, intrassistemático relativamente ao sistema social e jurídico-constitucional. Tendo em conta que a perspetiva teleológico-funcional é aquela que tem vindo a ser adotada pela maior parte da doutrina, importa desenvolver mais o tema do bem jurídico. 2.1.1. Teoria do bem jurídico
Regência: Augusto Silva Dias 5 Seguindo a teoria da sociedade, quer sob a forma da teoria crítica, quer sob a forma da teoria do sistema social:
- Amelung veio, com recurso à teoria da sociedade, basear o conceito material de crime e, consequentemente, o conceito de bem jurídico, na noção de dano social. Para este autor, a disfuncionalidade sistémica dos comportamentos que se deveria impedir pela utilização das sanções criminais é essencial para a determinação da ordem social dos bens jurídicos. Não longe desta via, temos autores como Hassemer que afirmam que toda a análise da questão te de entrar em linha de conta com o sistema social de uma comunidade legitimado pela Lei Fundamental.
- Jakobs, por outro lado, reconhece que a noção de crime é determinada através da danosidade social, que é aferida em função do sistema respetivo.
- Augusto Silva Dias que, baseando-se na análise sociológica de Habermas, define bem jurídico como objeto de valor que exprime o reconhecimento intersubjetivo e cuja proteção a comunidade considera essencial para a realização individual do cidadão participante, sendo este o domínio dos delicta in se (fora da validade jurídico-penal estariam os delicta mere prohibita , que revelam uma razão de ser sistemática e contemplam lesões de meros interesses funcionais. O prof. Figueiredo Dias critica o recurso à teoria da sociedade para definir os termos da validade/legitimação jurídico-penal: i. Esta teoria só pode servir o processo legitimador de todo o Direito, e não especificamente do direito penal ou mesmo só de uma parte do direito penal positivo ( delicta in se ) ii. A teoria da sociedade esquece que o “sistema” é simultaneamente “ambiente”, e constitui nesta medida uma dimensão do próprio modo-de-ser pessoa iii. Por esta via, retirar-se-ia à Constituição o papel diretor que materialmente lhe cabe da ordem legal dos bens jurídico-penais. Ou seja, a crítica que se deve dirigir a estas conceções que apelam à teoria da sociedade prende- se com a insuficiência destas para os efeitos práticos da aplicação do direito, visto que é impossível emprestar ao conceito de bem jurídico a sua indispensável concretização fazendo-se apelo direto ao sistema social como um todo. Segundo o prof. Figueiredo Dias, os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e económica, sendo por esta via que os bens jurídicos se transformam em bens jurídicos dignos de tutela penal (ou com dignidade jurídico-penal). Isto porque um bem juridicamente político-criminalmente tutelável existe onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que “preexiste” ao ordenamento jurídico-penal. Este relacionamento entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos dignos de tutela penal permite alcançar e fundamentar a distinção entre:
- Direito penal de justiça (ou primário) – corresponde ao direito que se encontra contido no Código Penal. Os crimes do direito penal de justiça relacionam-se, em último termo, direta ou indiretamente, com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos, liberdades e garantias das pessoas., visto que se situa na zona da atividade tutela do Estado que vis proteger a esfera de atuação especificamente pessoal do homem.
- Direito penal administrativo (ou secundário) – encontra-se em legislação avulsa não integrada no Código Penal, e relacionasse essencialmente com a ordenação jurídico- constitucional relativa aos direitos sociais e à organização económica, já que se situa na
Regência: Augusto Silva Dias 7 insuficientes ou inadequados, caso contrário, essa intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao principio da proporcionalidade, sob a forma de violação dos princípios da subsidiariedade e da proibição de excesso. Princípio da não-intervenção moderada – o Estado e o seu aparelho formalizado de controlo do crime devem intervir o menos possível, e devem intervir só na precisa medida requerida pelo asseguramento dessas condições essenciais de funcionamento da sociedade. Posto isto, podemos retirar dos critérios de bem jurídico, duas implicações: a) Do âmbito deste conceito têm de ser retirados todos os comportamentos que não acarretem lesão, ou perigo de lesão, para bens jurídicos claramente definidos ou que, ainda quando a acarretem, possam razoavelmente ser contidos ou controlados por meios não penais de política jurídica ou mesmo de política social não jurídica^4 b) Os processos novos de criminalização (neocriminalização) só devem ser aceites como legítimos onde novos fenómenos sociais, anteriormente inexistentes, revelem agora a emergência de novos bens jurídicos para cuja proteção se torna indispensável fazer intervir a tutela peal em detrimento de um paulatino desenvolvimento de estratégias não criminais de controlo social. 2.1.2. Posição da prof. Maria Fernanda Palma quanto ao conceito material de crime Segundo a prof. Maria Fernanda Palma, o conceito material de crime observa quatro etapas conclusivas^5 : i. Bem jurídico surge como conceito exploratório de critérios limitadores das normas incriminadoras, que permitirá, em última análise, reconhecer algumas características de que depende a legitimidade das mesmas. Deste modo, o bem jurídico apelaria à necessidade de as normas penais terem um referente relacional, inter-individual ou individuo-comunidade (valor constitutivo da realidade social), e à necessidade de as normas penais terem como referente o binómio pessoa-sociedade, pessoa-Estado ou mesmo pessoa-mundo, como expressão de uma responsabilidade pelos outros ou compromisso para com uma comunidade que potencie desenvolvimento da subjetividade num plano de iguais oportunidades ii. Princípios^6 , que presidem à realização prática das normas do Direito Penal, à sua interpretação e à sua aplicação i. Princípio da legalidade – proposição jurídica fundamental do sistema penal; segundo este principio, os tribunais estão vinculados a não aplicar sanções penais sem lei anterior que as preveja ( nulla poena sine lege ) e a não aplicar as sanções penais prevista sem que se realizem determinados pressupostos, igualmente descritos na lei ( nullum crimen sine lege ) _ art.29º/1 e 3 CRP e 1º CP. Ou seja, não se poderá aplicar uma sanção penal sem que se verifique um caso para o qual está previamente determinada na lei a aplicação dessa sanção, (^4) Esta implicação está na base do movimento de descriminalização prosseguido pela legislação penal portuguesa codificada (^5) O modelo argumentativo proposto não se baseia exclusivamente na proteção de bens jurídicos, entendidos como interesses substanciais concreto, associados a condições existenciais individuais e coletivas, mas apela a uma relação com o Estado democrático, a uma lógica de preservação da subjetividade e do reconhecimento dos interesses essenciais dos outros, o que ultrapassa, em certos casos, a utilização rígida do conceito de bem jurídico como necessidade ou interesse subjetivo histórica e culturalmente concretizado (^6) Legitimação ≠ Princípios: enquanto a legitimação tem de ser, pela própria natureza das coisas, constituída por razoes que explicam a instituição histórica do sistema, a sua continuidade e a sua vigência o momento presente, os princípios são mera expressão de uma racionalidade inerente a um conjunto de normas ou objetivos gerais do sistema
Regência: Augusto Silva Dias 8 se se verificarem todos os pressupostos previstos, sendo a ratio deste principio a proteção da liberdade do individuo face ao poder do Estado. As legitimações das normas incriminadoras consistem em que a função de controlo da aplicação da lei desempenhada pelo princípio da legalidade ultrapassa o conteúdo das proposições tradicionalmente utilizadas na formulação deste princípio, englobadas na proibição da retroatividade e da analogia. Tal função pressupõe que a aplicação da lei resulte de um processo lógico identificável, dirigido à descoberta do sentido da lei, e requer uma certa configuração descritiva, factual e precisa das normas incriminadoras ii. Princípio da culpa – princípio deduzido da essencial dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade (art.1ºe 27º CRP). Atualmente, este princípio assume os seguintes significados:
- Fundamento da pena (a doutrina tem vindo a discutir este significado; quem se opõe a esta função do principio da culpa utiliza um argumento de que não é racional atribuir à culpa como desvalor ético-social derivado da prática de certo comportamento, a função de legitimar a realização de fins do Estado, como a proteção de bens jurídicos ou a efetivação de prestações sociais, argumento este que resulta do facto deste principio pressupor uma ideia de responsabilidade penal alheia aos fins do Estado de Direito democrático e social. A prof. Maria Fernanda Palma defende que um Direito Penal é legitimo porque os seus comandos e proibições, assim como o processo que conduz à sua aplicação, realizam ideias culturais de justiça que enformam as expetativas dominantes na sociedade, sendo aqui que o princípio da culpa encontra o seu lugar como fundamento do Direito Penal)
- Fator de determinação da medida da pena
- Princípio da responsabilidade subjetiva (contrapõe-se ao princípio versari in re ilicita , segundo o qual seriam imputáveis a um agente todas as consequências do seu comportamento ilícito ainda que meramente objetivas; tem como pressuposto a crença na liberdade e no poder de ação) Os comportamentos incriminados têm de ter uma configuração que os torne aptos a que no processo de atribuição de responsabilidade sejam cumpridas estas funções do princípio da culpa, para que haja legitimação das normas incriminadoras. iii. Princípio da necessidade da pena – traduz a ideia de que a utilização pelo Estado de meios penais de ser limitada, ou mesmo excecional, só se justificando pela proteção de direitos fundamentais. O apelo a tal princípio justifica-se pela preensão de subordinar a intervenção penal do Estado à realização de fins necessários à subsistência e desenvolvimento da sociedade; este princípio assume quase sempre uma perspetiva social do Direito Penal, estando associado ao pensamento sobre os fins do Estado. Na discussão sobre a legitimidade da incriminação, o apelo ao principio da necessidade surge na discussão sobre a carência de proteção do bem jurídico (que será contrariada quando se tratar de um mero valor moral sem expressão num bem jurídico determinado, como, por exemplo, a vida), sobre a falta de alternativas à penalização da conduta (não se afirma quando os meios penais não forem absolutamente indispensáveis, existindo outros meios capazes de evitar determinados comportamentos), e sobre a eficácia concreta da incriminação (não se verifica quando o Direito Penal não evita a prática de certas condutas e chega a ter um papel criminógenos)
Regência: Augusto Silva Dias 10 correspondência entre o crime praticado e a pena a infligir deve basear-se numa igualdade aritmética a realizar pelos poderes públicos; o critério da punição é o principio da igualdade de não pender mais para um lado do que para o outro, ou seja, segundo este autor, o mal indesculpável que se inflige a um outro do povo, o que pratica tal facto indesculpável inflige-se a ele próprio (“se o injurias, injurias-te; se o furtas, furtas-te; se o matas; matas-te”), e tal direito de retaliação diante da barra do tribunal, e não em juízo privado, pode indicar com precisão a qualidade e quantidade da pena. Sendo a pena um imperativo categórico, quando a justiça desaparece, não tem mis valor que os homens vivam na terra. Quando o Estado e a Sociedade devessem desaparecer, teria o ultimo assassino que se encontrasse na prisão de ser previamente enforcado, para que cada um sinta aquilo de que são dignos os seus atos e o sangue derramado não caia sobre o povo que não decidiu pela punição, porque ele poderia então ser considerado como comparticipante nesta violação pública da justiça.
- Hegel – considerava o crime como a negação do direito, e consequentemente, a pena como negação da negação do direito, isto é, a pena como anulação do crime, que de outro modo continuaria a valer e, por isso, como restabelecimento do Direito (a Ordem Jurídica e a sua inviolabilidade é a tese; a negação dela através do crime, é a antítese; e a negação dessa negação, ou seja, a pena, será a síntese) De que forma deve ser determinada a compensação/igualação a operar entre o “mal do crime” e o “mal da pena”? após o período da lei de talião, chegou-se à conclusão que a pretendida igualação teria de ser normativa. A compensação de que a retribuição se nutre só pode ser função da ilicitude do facto e da culpa do agente, visto que as exigências da Justiça implicam que cada pessoa seja tratada segundo a sua culpa. CRÍTICAS: i. Não é uma verdadeira teoria dos fins das penas. Isto porque visa justamente o contrário, isto é, a consideração da pena como entidade independente de fins, como entidade que existe na sua majestade dissociada de fins ii. É inadequada à legitimação, fundamentação e ao sentido da intervenção penal (a legitimação, fundamentação e sentido da intervenção penal resultam da necessidade de proporcionar as condições de existência comunitária, que incumbe ao Estado satisfazer, assegurando a cada pessoa o mínimo indispensável de direitos, liberdades e garantias para assegurar os direitos dos outros e, com eles, da comunidade; ora, o Estado democrático, pluralista e laico dos nossos dias não pode basear-se em entidade sancionadora do pecado e do vicio, tal como uma qualquer instância os define, mas tem de limitar-se a proteger bens jurídicos, o que significa que não pode servir-se de uma pena conscientemente dissociada de fins) iii. Doutrina puramente social-negativa que acaba por se revelar estranha e intimida de qualquer tentativa de socialização do delinquente e de restauração da paz jurídica da comunidade afetada pelo crime Apesar destas criticas, a conceção retributiva teve o mérito irrecusável de ter tornado o principio da culpa (não pode haver pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa) em principio absoluto de toda a aplicação da pena e, deste modo, ter levantado um veto incondicional à aplicação de uma pena criminal que viole a eminente dignidade da pessoa. ➢ Teorias relativas (reconhecem, assim como as teorias absolutas, que a pena se traduz num mal para quem a sofre. Diferem das teorias absolutas por considerarem que a pena
Regência: Augusto Silva Dias 11 não pode bastar-se com essa característica; a pena justifica-se por usar esse mal para alcançar a finalidade principal de toda a política criminal: a prevenção criminal)^8
- Doutrina da prevenção geral – trata a pena como instrumento político- criminal destinado a atuar, psiquicamente, sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efetividade da sua execução. O seu ponto de partida liga-se direta e imediatamente à função do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídicos, que exige da pena uma atuação preventiva sobre a generalidade dos membros da comunidade, quer no momento da sua ameaça abstrata, quer no momento da sua concreta aplicação, quer no momento da sua efetiva execução. Esta doutrina pode se dividir em duas vertentes: i. Positiva (forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico- penal) ii. Negativa (forma estatalmente acolhida de intimidação das outras pessoas através do sofrimento que com ela se inflige ao delinquente e cujo receio as conduzirá a não cometerem factos puníveis) A primeira formulação desta doutrina deve-se à doutrina da coação psicológica (Feuerbach), segundo a qual a finalidade principal da pena residiria em criar no espírito dos potenciais criminosos um contra motivo suficientemente forte para os afastar da prática do crime. Quando considerada apenas na sua vertente negativa, a doutrina da prevenção geral aponta uma indiscutível fragilidade teórica e prática, porque não se torna possível determinar o quantum da pena necessário para alcançar o efeito de intimidação pretendido, e também porque, não alcançando a erradicação do crime, fica próxima a tendência para se usarem para o efeito penas cada vez mais severas e desumanas. Já quanto à doutrina da prevenção geral na sua vertente positiva, esta permite que se encontre uma pena que, em principio, se revelará também uma pena justa e adequada à culpa do delinquente, e embora a medida concreta da pena a aplicar a um delinquente seja fruto de considerações de prevenção geral positiva, deve ter limites inultrapassáveis ditados pela culpa, que se inscrevem na vertente liberal do Estado de Direito e se erguem justamente em nome da inviolável dignidade pessoal. Posto isto, poder-se-á concluir que a doutrina da prevenção geral oferece um entendimento racional e político-criminalmente fundado ao problema dos fins das penas, e um entendimento suscetível de se fazer frutificar para a solução de muitos e complexos problemas dogmáticos.
- Doutrina da prevenção especial (ou individual) – considera a pena um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do delinquente com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes. Podemos falar de prevenção especial: (^8) Os adeptos da teoria absoluta criticam as teorias relativas, dizendo que ao serem aplicadas as penas a seres humanos em nome de fins utilitários ou pragmáticos que se pretende alcançar no contexto social, elas transformariam a pessoa humana em objeto, servindo-se dela para a realização de finalidades heterónomas e, nesta medida, violando por absoluto a dignidade pessoal No entanto, esta critica é destituída de fundamento, visto que, caso tal critica fosse aceitável, ter-se-ia de concluir pela ilegitimidade total de todos os instrumentos destinados a atuar no campo social e a realizar finalidades, socialmente úteis
Regência: Augusto Silva Dias 13 personalidade de cada um enquanto individuo e enquanto membro da comunidade, o que só pode ser atingido com uma prevenção à prática de futuros crimes. Como é que o professor determina, então, os limites da pena?
- Construção de uma moldura de prevenção, fornecida pela prevenção geral positiva, finalidade primeira da pena, e que dá conteúdo ao princípio da necessidade da pena (art.18º/2 CRP). a. Dentro da moldura da prevenção geral positiva, a prevenção geral negativa (ou de intimidação) é um efeito a considerar, e não uma finalidade autónoma da pena. A prevenção geral negativa pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos
- Dentro da moldura (ou dos limites consentidos pela prevenção geral positiva), atuam, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção especial, sendo assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena. Ou seja, a medida da necessidade de socialização do agente é, em principio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje o vetor mais importante daquele pensamento, só entrando em jogo se o agente se revelar carente de socialização (caso tal carência não se verifique, tudo se resumirá em, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência, o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da moldura da prevenção, ou mesmo que com ele coincida) Qual o papel da culpa na perspetiva deste professor? A culpa constitui o pressuposto necessário e o limite inultrapassável da pena. Isto significa que a culpa tem como função estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito Democrático. ➢ Maria Fernanda Palma – segundo a professora, a pena surge como modo de substituição da necessidade de vingança psicológica gerada pelo crime, necessidade esta racionalizada pelo principio da culpa (derivado da dignidade da pessoa humana – art.1º CRP – e da liberdade – art.27º CRP), e pelo princípio da necessidade da pena (art.18º/ CRP), o que se mostra incompatível com uma visa retributiva dos fins das penas. A prof. Maria Fernanda Palma constrói o seu modelo de finalidade da pena do seguinte modo:
- Construção de uma moldura oferecida pela culpa, enquanto manifestação do direito penal do facto, como critério de responsabilidade subjetiva e materialização do poder de motivação pela norma em termos de liberdade e igualdade
- Dentro da moldura, a prevenção apresenta-se como princípio restritivo, e funciona no quadro dos limites máximo e mínimo da culpabilidade que o comportamento justifica
2.3. Medidas de segurança
Finalidade das medidas de segurança: visam a finalidade genérica de prevenção do perigo de cometimento, no futuro, de factos ilícitos-típicos pelo agente. Ou seja, as medidas de segurança visam obstar, no interesse da segurança da vida comunitária, a prática de factos ilícitos-típicos futuros através de uma atuação especial-preventiva sobre o agente perigoso. Da finalidade da pena, podemos concluir que para que se possa aplicar uma medida de segurança a um agente, é necessário que haja: i. Prática de um facto ilícito-típico ii. Perigosidade do agente (art.40º/3 CP) – associada à perigosidade, temos a finalidade de prevenção geral positiva
Regência: Augusto Silva Dias 14 Medidas de segurança: art.91º e ss. CP Como proceder nos casos em que se pode aplicar tanto uma pena como uma medida de segurança ao agente? À luz do monismo, a solução é que se aplica penas para os imputáveis, e medidas de segurança para os inimputáveis; à luz do dualismo, poderíamos aplicar penas e medidas de segurança aos imputáveis (casos de imputabilidade diminuída) – art.99º CP Normalmente os autores posicionam-se ou de um lado ou de outro: ➢ Prof. Paulo Pinto de Albuquerque admite que estamos perante um sistema dualista, atentando no art.99º CP; ➢ Prof. Figueiredo Dias entende que o nosso sistema é tendencialmente monista, mas integra o sistema do vicariato da execução (ou seja, regra geral, as penas são para os imputáveis e as medidas de segurança para os inimputáveis; no entanto, o prof. reconhece que excecionalmente a um imputável podem ser aplicadas medidas de segurança, sendo o seu tempo descontado no tempo da pena que lhe tenha sido aplicado, tal como resulta no art.99 CP); ➢ Prof. Silva Dias (inspirado pelo regime da pena relativamente indeterminada e pelo pensamento do prof. Eduardo Correia defende o dualismo em sentido próprio (isto é, as medidas de segurança tanto podem ser aplicadas aos imputáveis como aos inimputáveis) e em sentido impróprio (o que significa que de certa forma a aplicação deste regime exige culpa, mas assenta numa logica de perigosidade, portanto, quando se admite o aumento da pena em relação a medida de perigosidade, não estamos perante uma aplicação da pena).
3) Lei penal e a sua intervenção
3.1. Fontes do Direito Penal português
3.1.1. Lei Art.29º CRP e 1º a 3º CP – daqui resulta o princípio segundo o qual só a lei pode ser fonte de Direito Penal, estabelecendo-se uma reserva relativa de competência da Assembleia da República (art.165º/1, al.c) CRP), o que significa que só a AR ou o Governo, desde que tenha autorização legislativa daquele, sob pena de inconstitucionalidade orgânica dos DL que aprovar, têm competência em matéria penal. Princípio da legalidade ( nullum crimen, nulla poena sine lege ) – visa evitar a possibilidade de arbítrio ou de excesso. Segundo este princípio, não pode haver crime nem sanção criminal que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa. Este princípio tem como teleologia e razão de ser a proteção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão face a possibilidade de arbítrio e de excesso do poder estatal. Fundamentos: ➢ Externos (ligados à conceção fundamental do Estado): avultam aqui o princípio liberal (toda a atividade intervencionista do Estado na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas tem de se ligar à existência de uma lei geral, abstrata e anterior _ art.18º/2 e 3 CRP), o princípio democrático e o princípio da separação de poderes (só têm legitimidade, para intervenção penal, o Parlamento e o Governo, mediante autorização legislativa _ art.165º/1, al.c) CRP) ➢ Internos (natureza especificamente jurídico-penal): aponta-se, aqui, a ideia da prevenção geral e do princípio da culpa, visto que não se pode esperar que a norma cumpra a sua função motivadora do comportamento da generalidade dos cidadãos se
Regência: Augusto Silva Dias 16 desaparecendo o pressuposto da legitima defesa _ agressão ilícita e atual, art.32º CP (ex.: é aprovada uma lei que exclui a ilicitude do facto nos casos em que o homicídio negligente seja praticado no exercício da condução de veículos; imagine-se que A, aquando da condução do seu automóvel ligeiro de passageiros, dentro de uma localidade, muda de via de transito, sem certezas de que nessa via os restantes veículos circulavam no mesmo sentido em que este circulava, entrando, negligentemente, em contramão, e em consequência de um acidente rodoviário, mata B, que circulava na via de trânsito correta. Neste caso, os familiares de B nunca poderiam opor à conduta de A, porque tal facto não era ilícito). Nos casos em que a permissão prevista decorre de uma ideia geral, de um princípio geral da Ordem Jurídica, a reserva de lei é dispensável, pois o legislador ordinário nada mais fará do que corporizar direitos latentes no ordenamento jurídico iii. As circunstâncias atenuantes da responsabilidade, apesar de requererem um controle democrático em função do conteúdo essencial da culpa, dispensam de reserva de lei, porque tais circunstâncias não são suscetíveis de promover uma restrição indireta dos direitos das vítimas de crimes O Tribunal Constitucional, no ac.173/85, de 9 de outubro, ao interpreta o art.165º/1, al.c) CRP no sentido de abranger tanto a função de criminalização (ou de maior criminalização), como a de descriminalização (ou de menor criminalização. MARIA FERNANDA PALMA: onde a analogia não é proibida não deverá valer a reserva de lei 3.1.1.2. Nullum crimen, nulla poena sine lege certa No plano da determinabilidade do tipo legal ou tipo de garantia, importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos. A lei penal fundamentadora ou agravadora da responsabilidade tem de ser uma lei certa e determinada. Princípio da determinação das normas penais incriminadoras: o Todos os pressupostos da incriminação e da responsabilidade penal têm de estar descritos na lei o As normas penais têm de ser descrições de figuras ou tipos, isto é, determinações do conteúdo de certas imagens sociais relativamente concretas de comportamentos humanos, que prefigurem com exatidão o âmbito do proibido e a respetiva consequência (sanção) o Implica o máximo preenchimento possível das figuras através de verdadeiros conceitos de espécie o Justifica o desmembramento do ilícito criminal através das várias figuras de infrações criminais _ tipos legais de crime. Por força da tipicidade (exigência de adequação do facto a um tipo legal de crime), nenhum comportamento humano pode ser considerado criminoso se não corresponder a um tipo legal de crime, descrito com precisão por um preceito legal A violação dos princípios da determinação e da tipicidade opera quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor expresso no tipo legal de crime deixa de existir, e não quando o legislador utiliza conceitos menos precisos ou quando o intérprete excede um sentido puramente lógico-formal das palavras.
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3.1.1.2.1. Normas penais em branco Norma em branco – a norma incriminadora que remete parte da sua concretização para outra fonte normativa, que assim a integra. Ou seja, a norma em branco contém, desta forma, uma norma incompleta, cuja inteireza normativa só é dada à interpretação, e ao conhecimento pelos destinatários, por via da conjunção da norma em branco e da disposição complementar à qual aquela, por reenvio, cometa a função especificadora (lei penal em branco em sentido amplo) Quando remete parte da sua concretização para uma fonte normativa hierarquicamente inferior, ou para regras técnicas de uma determinada profissão, estamos perante uma norma penal em branco stricto sensu^9. Em que medida é que uma norma penal que não define todo o seu conteúdo remetendo para uma outra viola o princípio da reserva de lei? Quanto às normas penais em branco, sucedem duas situações:
- Situações em que o núcleo do comportamento proibido pela norma depende totalmente da noma para qual se remete, não sendo previsível para os destinatários sem essa norma o que deles se espera
- Situações em que a remissão é puramente para um critério técnico, não estando o objeto da norma remissiva, o interesse fundamentalmente protegido, dependente do conteúdo concreto deste critério. A distinção entre normas que violam a reserva de lei e as que com ela são compatíveis depende de saber se a função da norma penal é estabelecer direta e materialmente a fronteira entre o proibido e o permitido, ou apenas sinalizar que um certo efeito material dependente da obediência à regulação legal devido á natureza ou grau de risco da atividade é o contudo fundamental da proibição (Maria Fernanda Palma) As normas penais em branco põem em causa dois corolários do princípio da legalidade:
- Nullum crimen, nulla poena sine lege scripta O problema aqui suscitado é o facto de, por força do princípio da legalidade, se impor sempre a intervenção vinculante dos órgãos constitucionais competentes para criar normas penais. As normas penais em branco pode levantar o problema, em virtude de os critérios da incriminação serem vistos á luz do ordenamento penal e do ordenamento extrapenal, onde tal competência reservada da AR raramente se verifica. Segundo o prof. Figueiredo Dias, a exigência de lei formal não precisa, necessariamente, de radicar no ato de fundamentação constitutiva da punibilidade, bastando apenas que este seja válido por ter tido lugar em virtude de uma autorização legal. Contrariamente, a prof. Maria Fernanda Palma considera que as normas penais em branco constituem obstáculo precisamente na reserva de lei estabelecida na CRP, que impede as normas penais em branco quer na sua vertente de reserva de controlo democrático, obrigando a que a lei incriminadora provenha da AR ou do Governo com autorização, quer na sua vertente de reserva de segurança, porquanto as normas penais deverão configurar o ilícito como lesão de bens jurídicos, então como desobediência.
- Nullum crimen, nulla poena sine lege certa (^9) Há autores que, numa perspetiva restritiva, consideram só caber com propriedade a qualificação de norma penal em branco àquela que remete para uma disposição de nível inferior, e não aquela que remete para um preceitos contido na lei penal ou em lei distinta da penal (Jorge Miranda e Miguel Nuno Pedrosa Machado; posição adotada pelo Tribunal da Relação de Évora no acórdão de 17 de abril de 2001); outros reservam aquela qualificação apenas para a norma penal que remete para ordenamento diferente do penal, de nível igual ou inferior, achando-se aí a norma ou parte da norma de comportamento (Oliveira Ascensão)
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- Castanheira Neves – não é logicamente possível, nem metodologicamente legítimo, distinguir entre interpretação e analogia, visto que a proibição da analogia constitui um “erro legislativo”, e a analogia já não tem que ver com a lei, mas com a realização do direito. Propõe quatro condições de validade como critério distintivo entre a interpretação proibida e a permitida em Direito Penal: a) Condição legal (necessidade de o concreto juízo incriminatório ter fundamento efetivo numa norma penal positiva, isto é, ser secundum legem ) b) Determinação dogmática dos fins (necessidade de os tipos legais serem construídos pelo legislador de tal modo que seja possível apreender o “núcleo axiológico-normativo fundamentador”, com apreciável relevo para o bem jurídico tutelado, não bastando uma conceitualização lógico-formal e genérico- abstrata) c) Adequação sistémica^11 (exclui a incoerência sistemática, de modo que a interpretação adotada para o caso possa ser generalizada relativamente a outros casos sem prejuízo para a coerência do sistema) d) Garantia de cumprimento do nullum crimen (garantia jurisprudencial da unidade do Direito que compete ao STJ^12 ) Isto significa que a interpretação permitida será não só aquela que cabe no sentido logicamente possível das palavras da lei, mas também a que revele os valores jurídicos que a lei pretende atingir e seja compatível com outros valores do sistema e com a unidade do Direito definida pelas instâncias que a devem assegurar´
- Maria Fernanda Palma: o texto jurídico, cujo significado seja determinável pela linguagem comum, torna-se, nessa perspetiva, a condição essencialmente pré- determinante da interpretação permitida em Direito Penal, a que se adicionam outras condições que contribuem para a fixação do sentido jurídico definitivo do texto, para a delimitação da intenção normativa que ele objetivamente revela, mas não são elas que constituem o texto ou o produzem. Caso o sentido normativo em que a norma revele a expressão concretizada do sistema seja contrário às normas ou princípios constitucionais, estar-se-á perante uma interpretação proibida com fundamento na CRP, e não perante a proibição da analogia do art.1º CP
- Tribunal Constitucional (ac. 205/99): a fronteira entre interpretação proibida e permitida passaria por saber se o resultado da interpretação se equipararia a uma opção normativa entre outras concebíveis, em face do sistema legal. O critério da diferenciação depende da possibilidade de uma ponderação constitutiva de soluções jurídicas pelo intérprete, com implicação na configuração das consequências do crime, que compete ao legislador tomar e não ao intérprete: se, pragmaticamente, a interpretação adquire uma função tipicamente legislativa, estaremos no terreno da analogia, de uma norma indevidamente criada pelo juiz; caso contrário, ainda permanecemos no âmbito da interpretação. Interpretação extensiva ≠ Analogia. Segundo a doutrina tradicional:
- Interpretação extensiva – possibilidade de referir um certo caso não expressamente considerado pela letra da lei ao seu pensamento (ex.: a palavra “veneno” não abrange só as substâncias designadas como tal, mas também aquelas que produzam os efeitos tóxicos próprios do veneno; a letra da lei, neste caso, abrange menos do que o (^11) MFP: não é um conhecimento dos valores estáticos do sistema, mas depende de redefinições atualistas, que só estão ao alcance das instâncias de discussão pública e parlamentar (^12) MFP: tarefas realizáveis através de um juízo de constitucionalidade e consequentemente própria do controlo de constitucionalidade efetuado, em última instância, pelo Tribunal Constitucional; a mera inconstitucionalidade da interpretação de determinada norma não é confundível com uma interpretação contrária à Unidade Material do Direito
Regência: Augusto Silva Dias 20 pensamento do legislador possibilita, pois este pretende agravar a responsabilidade criminal com fundamento na indefensabilidade da vítima devido à ministração de substância especialmente perigosa para a vida humana)
- Analogia – enquadrar na norma um caso real meramente semelhante aos casos considerados pela lei, mas que não foi por ela pensado Esta distinção assenta numa perspetiva da interpretação jurídica como subsunção, segundo a qual seriam separáveis os momentos de pura investigação do sentido e âmbito da lei e da sua aplicação a casos concretos. Este modelo pressupõe que: i. A interpretação jurídica nunca é constitutiva ou criativa e que a própria analogia é subtraída ao pensamento inspirador do caso legal ii. A interpretação vise apenas esclarecer a coincidência com aquele sentido dos elementos não literais, visto que este modelo se baseia na existência prévia ou pré- determinante de um sentido literal que se impõe à interpretação Maria Fernanda Palma:
- A distinção entre interpretação extensiva e analogia não permite traçar as fronteiras da interpretação que não ofende a segurança jurídica; a própria interpretação extensiva, embora atribuível num plano lógico e objetivo ao pensamento do legislador, pode não corresponder a um entendimento juridicamente aceitável e previsível das palavras.
- Não é de excluir que se ultrapasse o pensamento do legislador, na sua formulação histórica, interpretando-se a norma de acordo com u significado plausível e juridicamente válido das palavras
- A categoria da interpretação extensiva não tem, em si mesma, força suficiente para resolver o problema da fronteira da interpretação permitida, devendo procurar-se um critério fundamentado na racionalidade da proibição de analogia e desligado dessas categorias tradicionais (elementos de interpretação) A interpretação extensiva é igualmente proibida no Direito Penal?
- Maria Fernanda Palma: a interpretação extensiva não é necessariamente proibida ou permitida em Direito Penal, visto que: o A norma que proíbe a analogia no Direito Penal (art.1º/3 CP) circunscreve excecionalmente a atividade interpretativa, isto é, a analogia só é proibida, em geral, quanto às normas excecionais que podem ser objeto de interpretação extensiva, nos termos do art.11º CCiv. Uma limitação da atividade interpretativa mais ampla do que a do art.11º CCiv só se justificaria na medida requerida pela legalidade e pela reserva de lei; a interpretação extensiva tal como é definida tradicionalmente não contende, necessariamente com estes princípios constitucionais do Direito Penal, apenas porque é difícil praticamente delimitá- los da analogia à luz dos critérios tradicionais da interpretação o Se pode entender que a interpretação extensiva se refere a um pensamento expresso, embora imperfeitamente, o que significa que não se deve deduzir a proibição de interpretação extensiva do art.29º/3 CRP (preceito constitucional que exige a expressa cominação legal das penas e medidas de segurança) Ou seja, para a professora, tudo depende da enunciação de outros critérios, que derivam diretamente da ideia de segurança jurídica inerente ao princípio da legalidade e reconduzíveis, em última instância, ao princípio do Estado de Direito Democrático.
- Sousa e Brito: a interpretação extensiva é inconstitucional, porque sustenta que entre o sentido possível das palavras e o mínimo de correspondência verbal há ainda um espaço a ser percorrido, incompatível com o fundamento de segurança jurídica do princípio da legalidade