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Cidadania: Conceitos e Evolução Histórica, Manuais, Projetos, Pesquisas de Direito Civil

Este trabalho aborda a cidadania, sua concepção moderna e a mudança de sentido ocorrida com a globalização, resgatando o valor das constituições nacionais e a importância do sentimento constitucional. Além disso, é apresentada a evolução histórica da cidadania, sua relação com o estado e a sociedade, e as diferentes formas como ela se manifestou em diferentes contextos culturais. A hermenêutica jurídica é apresentada como uma possibilidade para a cidadania efetiva no brasil.

O que você vai aprender

  • Qual é a relação entre Estado e cidadania?
  • Qual é a importância das Constituições e do sentimento constitucional?
  • Como é a concepção moderna de cidadania?
  • Como a globalização influenciou o sentido de cidadania?
  • Quais são as diferentes formas como a cidadania se manifestou historicamente?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2021

Compartilhado em 03/06/2021

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1. Introdução
O presente trabalho tem por fim apre-
sentar ponderações sobre a cidadania,
iniciando a partir da concepção moderna,
do século XVIII, bem como vislumbrar se
a mudança de sentido que nela ocorreu
com a globalização corroborou com seu
significado maior: garantir às pessoas con-
dições de sobrevivência digna, tendo como
valor-fonte a plenitude da vida (CORRÊA,
2000, p. 217).
Nesse sentido, o primeiro capítulo abor-
da o desvelamento da cidadania, citando-se
especificamente o caso brasileiro. É resga-
tado o valor que tiveram as Constituições
do país, desde o descobrimento até a atual
Carta Maior; esta chamada de Constituição
A cidadania e a Constituição
Uma necessária relação simbólica
Valéria Ribas do Nascimento
José Luis Bolzan de Morais
Valéria Ribas do Nascimento é Doutoranda
em Direito Público pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (UNISINOS); Mestre em Direito
Público pela Universidade de Santa Cruz do Sul
(UNISC); Graduada em Direito pela Universida-
de de Santa Maria (UFSM); Professora de Direito
Constitucional da Faculdade de Direito de Santa
Maria (FADISMA) e UNISINOS, advogada.
José Luis Bolzan de Morais é Doutor UFSC/
Universitè de Montpallier I – em Direito do
Estado e Pós-Doutor em Direito Constitucional
pela Universidade de Coimbra; Mestre PUC/RJ;
Coordenador e professor do PPGD/UNISINOS;
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul;
Professor da UNILE – Lecce – Itália; Consultor
da Escola Doutoral Túlio Ascareli – Roma Tre e
professor convidado das Universidades de Roma
“La Sapienza”, Roma Tre, Napoli e Salerno;
Pesquisador do CNPq, FAPERGS; Consultor
ad hoc do MEC/SESu/INEP, CAPES e CNPq;
Coordenador do Círculo Constitucional Euro-
Americano (CCEUAM).
Acorda, eis o mistério ao pé de ti!
E assim pensando riu amargamente,
Dentro em mim riu como se chorasse!
(Fernando Pessoa)
Sumário
1. Introdução. 2. Considerações acerca da
cidadania. 2.1. O desvelar da cidadania no Brasil:
sobreintegração e subintegração. 2.2. A Cons-
tituição Cidadã: um “acontecimento” cultural.
3. O fenômeno da globalização e a cidadania
mundial. 3.1. A “nova cidadania”: reinvenção do
território. 3.2. O bem-estar em sociedade: ilusão
ou possibilidade? 4. Conclusão.
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Brasília a. 44 n. 175 jul./set. 2007 163

1. Introdução

O presente trabalho tem por fim apre- sentar ponderações sobre a cidadania, iniciando a partir da concepção moderna, do século XVIII, bem como vislumbrar se a mudança de sentido que nela ocorreu com a globalização corroborou com seu significado maior: garantir às pessoas con- dições de sobrevivência digna, tendo como valor-fonte a plenitude da vida (CORRÊA, 2000, p. 217). Nesse sentido, o primeiro capítulo abor- da o des velamento da cidadania, citando-se especificamente o caso brasileiro. É resga- tado o valor que tiveram as Constituições do país, desde o descobrimento até a atual Carta Maior; esta chamada de Constituição

A cidadania e a Constituição

Uma necessária relação simbólica

Valéria Ribas do Nascimento José Luis Bolzan de Morais

Valéria Ribas do Nascimento é Doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS); Mestre em Direito Público pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC); Graduada em Direito pela Universida- de de Santa Maria (UFSM); Professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA) e UNISINOS, advogada. José Luis Bolzan de Morais é Doutor – UFSC/ Universitè de Montpallier I – em Direito do Estado e Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra; Mestre PUC/RJ; Coordenador e professor do PPGD/UNISINOS; Procurador do Estado do Rio Grande do Sul; Professor da UNILE – Lecce – Itália; Consultor da Escola Doutoral Túlio Ascareli – Roma Tre e professor convidado das Universidades de Roma “La Sapienza”, Roma Tre, Napoli e Salerno; Pesquisador do CNPq, FAPERGS; Consultor ad hoc do MEC/SESu/INEP, CAPES e CNPq; Coordenador do Círculo Constitucional Euro- Americano (CCEUAM).

Acorda, eis o mistério ao pé de ti! E assim pensando riu amargamente, Dentro em mim riu como se chorasse! (Fernando Pessoa)

Sumário

  1. Introdução. 2. Considerações acerca da cidadania. 2.1. O desvelar da cidadania no Brasil: sobreintegração e subintegração. 2.2. A Cons- tituição Cidadã: um “acontecimento” cultural.
  2. O fenômeno da globalização e a cidadania mundial. 3.1. A “nova cidadania”: reinvenção do território. 3.2. O bem-estar em sociedade: ilusão ou possibilidade? 4. Conclusão.

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Cidadã pela proteção dirigida tanto aos direitos sociais como aos civis e políticos. Ainda, relata-se a importância da Cons- tituição cultural, evidenciada como uma soma de atitudes subjetivas e objetivas dos cidadãos em conjunto com os órgãos esta- tais. O sentimento constitucional é expres- são de uma cultura política assimilada e sentida pelas pessoas acerca dos principais alicerces jurídico-políticos de convivência, o que envolve realização de direitos funda- mentais (VERDÚ, 2004, p. 16-17). No segundo capítulo, discorre-se a respeito do fenômeno da globalização e da correspondente cidadania mundial. Trata-se da diminuição do papel central do Estado- Nação na defesa do bem-estar social e das formas alternativas criadas pela sociedade para vencer essa falta de proteção estatal. Durante esta exposição, de forma algu- ma pretende-se esgotar a matéria, tendo em vista a amplitude e a extensa bibliografia sobre o tema. Procura-se traçar algumas noções sobre a cidadania, palavra geral- mente ensinada nas faculdades de Direito, na matéria de Direito Constitucional, ape- nas no seu viés político, como um direito de votar e ser votado. Entretanto, dela há tanto mais a explorar.

2. Considerações acerca da cidadania

A cidadania^1 assumiu historicamente várias formas em função dos diferentes contextos culturais em que esteve inserida (VIEIRA, 1999, p. 213). Releva anotar que a concepção moderna^2 iniciou com a idéia de Estado-Nação e que data das Revoluções Americana de 1776 e Francesa de 1789. O conceito de cidadania, como direito a ter direitos, foi construído dentro das fronteiras geográficas e políticas do próprio Estado. Era uma luta política nacional e o ci- dadão que dela surgia era também nacional (CARVALHO, 2001, p. 12). Dessa forma, a cidadania moderna se desenvolveu à me- dida que as pessoas passavam a se sentir parte de uma Nação e de um Estado.

Ocorre que a maneira como se formaram os Estados-Nação condicionou a construção da cidadania. Em alguns países, o Estado teve mais importância e o processo de difusão dos direitos se deu principalmente com a ação estatal. Em outros, ela foi construída com a ação dos próprios cidadãos (CARVALHO, 2001, p. 12)^3. Nesse viés, pode-se afirmar que, igual- mente, o constitucionalismo^4 originou-se como o Estado-Nação, como forma de submeter o poder político ao Direito, limitar suas funções, garantir o direito de liberda- de às pessoas e estabelecer a separação dos poderes^5_._ O aparecimento das Constituições e a importância disso para a instituição e manutenção da cidadania representou verdadeira revolução, a qual estava base- ada no fato de que a Constituição denota afirmação da coletividade e, em razão dis- so, subordina o Estado (MOREIRA, 2001, p. 314-318). A mudança de modelo de Estado até então absoluto, centrado na pessoa e na vontade do príncipe, passou a curvar-se à Constituição, para, por meio dela, legitimar o poder constituinte e os poderes consti- tuídos do Estado. Com isso, pretendeu-se proteger os direitos da pessoa humana (Cf. HÄBERLE, 1998, p. 96). Assim, as Constituições do final do século XVIII, de todo século XIX e início do XX serviram para conformar a força ao Direito. Entretanto, as acentuadas altera- ções políticas e econômicas ocorridas em todo mundo sujeitaram as Constituições e o Direito Constitucional, mais do que qualquer outro ramo da ciência jurídica, a experimentar profundas transformações. Primeiramente, buscou-se a força nor- mativa da Constituição, na medida da sua aplicação eficaz ao caso em concreto^6. Nessa linha, surge a Teoria da Constituição como um “acontecer” cultural, que representa a obra de todos os intérpretes em uma socie- dade aberta, retratando a expressão viva de um povo (VERDÚ, 1998, p. 40).

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territorial, lingüística, cultural e religiosa, mas com uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um estado absolutista (SILVA, 1999, p. 71-76). À época da independência, não havia cidadãos brasi- leiros, nem pátria brasileira (CARVALHO, 2001, p. 18). Escravidão, grandes propriedades e a falta de educação superior no país não constituíam ambiente favorável à formação de futuros cidadãos. Em contraste com a Espanha, Portugal não permitia a criação de universidades em sua colônia. Os brasilei- ros somente puderam ter o direito a curso superior após a chegada da corte, em 1808 (CARVALHO, 2001, p. 23). A independência do Brasil, em 1822, não se realizou com a participação efetiva da população. Ademais, manteve a escra- vidão, o que evidencia grandes limitações aos direitos civis. A Constituição outorgada de 1824, que regeu o país até o fim da monarquia, regu- lou os direitos políticos, definindo quem teria direito de votar e ser votado. Todavia, naquela época, o voto era mercadoria a ser vendida pelo melhor preço (CARVALHO, 2001, p. 36). Do ponto de vista da representação política, a proclamação da República, em 1889, não significou grandes mudanças. E a Primeira República (1889-1930) ficou co- nhecida como república dos coronéis 7. Nesse paraíso de oligarquias, as práticas eleitorais fraudulentas não podiam desaparecer. Leonardo Boff (1996, p. 96) lembra que as elites do país construíram um tipo de sociedade organizada na espoliação do trabalho e na exclusão de grande parte da população. Dessas diferenças nasceram duas espécies de pessoas: o sobreintegrado ou sobrecidadão, que dispõe do sistema, mas a ele não se subordina, e o subintegrado ou subcida- dão, que depende do sistema, mas a ele não tem acesso (NEVES apud MORAIS; STRECK, 2006, p. 86). Surge no Brasil um padrão de subcidadania^8 , gerada e mantida até os

dias atuais, em que pese o manto simbólico e as conquistas sociais da Constituição de

Por sua vez, a Constituição republicana, de 1891, não eliminou as barreiras existen- tes para uma maior participação na política do país. Pode-se afirmar que até 1930 não havia povo organizado politicamente, nem sentimento nacional consolidado (SOUZA, 2003, p. 83). A população não tinha lugar no sistema político, seja no Império, seja na República, e a cidadania nas suas três dimensões, civil, política e social, ainda permanecia velada. A partir de 1930, o país entrou em fase de instabilidade, alterando-se ditaduras e regimes democráticos. A fase propriamente revolucionária, na qual um movimento armado dirigido por civis e militares de três estados da federação – Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba – tomou o Po- der, durou até 1934, quando a assembléia constituinte votou nova Constituição e elegeu Getúlio Vargas presidente (SOUZA, 2003). Em 1937, o golpe de Vargas, apoiado pelos militares, inaugurou um período ditatorial, com uma nova Constituição, que durou até 1945. Nesse ano, nova interven- ção militar derrubou Vargas e deu início à primeira experiência que se poderá chamar como democrática do país (SOUZA, 2003, p. 87). Com a Constituição de 1946, foi es- tabelecida a liberdade de imprensa e de organização política. O voto popular, pela primeira vez, começou a ter importância não só pela extensão, mas também pela lisura do processo eleitoral. Foi o período marcado pelo que se chamou de política populista. A experiência terminou em 1964, quando os militares intervieram mais uma vez e implantaram a ditadura (SOUZA, 2003, p. 88). Releva anotar que o período de 1930 a 1945 foi o momento da legislação social, incluindo a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943. As-

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sim, ocorreu uma inversão na ordem dos direitos, colocando os sociais à frente dos políticos e civis. Com a ditadura implantada pelos mili- tares em 1964, houve necessidade de uma nova Constituição, aprovada em 1967, sob o pretexto de devolver a democracia ao Estado brasileiro. Afirmavam os militares que iriam introduzir algumas reformas e mudanças para garantir a longevidade da democracia e a articulação do Brasil com a economia mundial (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p. 429). O período de 1964 até 1985 se caracte- rizou por repetir a tática do Estado Novo, ampliar os direitos sociais e restringir os direitos políticos. Pode-se dizer que o auto- ritarismo brasileiro pós-30 sempre procurou compensar a falta de liberdade política com paternalismo social (CARVALHO, 2001, p. 190). Vale salientar que foi a tática, dos mi- litares, de proteção social que os fez per- manecer no governo por tantos anos. Não se pode olvidar que o chamado “milagre” econômico brasileiro ocorreu durante o período de maior repressão do país (1968- 1974), no qual os direitos civis e políticos praticamente não existiam. Todavia, uma vez desaparecido o “milagre”, quando a taxa de crescimento começou a decrescer, por volta de 1975, o crédito do regime esgotou-se rapidamente (CARVALHO, 2001, p. 192). A classe média inquietou-se e os operá- rios urbanos retomaram sua luta por me- lhores salários. O movimento pelas eleições diretas em 1984 foi o ponto culminante de um movimento de mobilização política de dimensões inéditas na história do país (CARVALHO, 2001, p. 193). Ao final da ditadura militar, perce- beu-se o resultado de vinte e um anos de governo: “O habeas corpus foi suspenso para crimes políticos, deixando os cidadãos indefesos nas mãos dos agentes de segurança. A privacidade do lar e o segredo da correspondência

eram violados impunemente. Prisões eram feitas sem mandado judicial, os presos eram mantidos isolados e incomunicáveis, sem direito a defesa (...). A liberdade de pensamento era cercada pela censura prévia à mídia e às manifestações artísticas, e nas universidades, pela aposentadoria e cassação de professores e pela proibição de atividades políticas es- tudantis (...) Além disso, a legislação de exceção, como o AI-5, suspendeu a revisão judicial dos atos do governo, impedindo o recurso aos tribunais.” (CARVALHO, 2001, p. 193-194). Como conseqüência da abertura, esses direitos foram restituídos, mas continua- ram beneficiando apenas parcela reduzida da população. Foi somente com a Constitui- ção de 1988 que os direitos civis, políticos e sociais foram protegidos. Por isso, ela ficou conhecida como símbolo da cidadania. Entretanto, na prática, permaneceram in- tensos problemas sociais a serem tutelados pelo Estado. A atual Carta Maior, já em seu preâmbu- lo, revela a preocupação com o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna. Ou seja, busca a defesa da cidadania^9!

2.2. A Constituição Cidadã: um “acontecimento” cultural Existe uma relação intrínseca entre a Constituição, a cultura e os valores da sociedade, de maneira que o Texto Maior não pode ser visto apenas como uma pau- ta de regras desvinculada das influências do meio social. Impende salientar que a Constituição brasileira de 1988 está sendo desvelada, pois possui dispositivos consti- tucionais que, ainda, não têm aplicação efe- tiva. A título de exemplificação, elencam-se o mandado de injunção (art. 5o, inc. LXXI) e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1o).

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mente quando se conseguir a primazia da sociedade sobre o Estado, convertendo-o num agente da sociedade, é que será possí- vel o império pleno da Constituição, como alternativa para equilibrar a atuação dos vários atores sociais e dos vários centros de poder (VERDÚ, 1998). Dessa maneira, a compreensão de Constituição não deve se dar num espaço vazio, atemporal, justamente porque é o resultado das experiências históricas que se renovam. Todavia, deve-se atentar para o fato de o atual fenômeno econômico, chamado de globalização, não esvaziar completamente o sentido da Constituição e da própria cidadania, pois esta tem sua proteção naquela.

3. O fenômeno da globalização e

a cidadania mundial

Nas últimas décadas, falar de crise tor- nou-se referência diante da mudança de paradigmas que orientam a construção dos saberes e as instituições da modernidade (MORAIS, 2002, p. 23). Com a denominada globalização econômica^13 , foco de atenção de juristas, sociólogos, economistas, historia- dores, etc., ocorreram transformações de valores do Estado-Nação; conseqüente- mente, verificou-se uma modificação na significação da cidadania. Releva anotar que a maioria dos aspec- tos da globalização é controversa, sendo que duas idéias absolutamente contrárias emergiram, ligadas em certa medida a posições políticas divergentes. Alguns autores sustentam que a globalização é um mito ou é, no máximo, uma continuação de tendências estabelecidas há muito tempo^14. No outro pólo estão autores e formuladores de políticas que dizem que a globalização não só é real, mas já está muito avançada (GIDDENS, 1999, p. 40). A globalização leva a mudança de perfil da soberania. Esta antes era con- cebida como monopólio da força e da política sobre um determinado território,

habitado por uma população (GIDDENS, 1999, p. 25). Atualmente, devido a novas realidades, houve uma interdependência entre os Estados-Nação, o que acarretou um entrelaçamento na idéia de soberania (GIDDENS, 1999, p. 27). Outrossim, ocorreu uma nova concep- ção de cidadania, baseada não mais no laço que liga o indivíduo ao Estado, mas, sim, em um conjunto de valores e práticas só- cio-econômicos, regulados por instituições supranacionais (VIEIRA, 2001a, p. 241). A sociedade, na condição de comunidade históri- ca e política, seria substituída por uma noção econômica de uma organização de produção e redistribuição de riquezas (VIEIRA, 2001a). Contudo, não se pode esquecer que a cidadania enfatiza a idéia de igualdade contra a desigualdade econômica e social. Portanto, o padrão da cidadania é, ainda, o Estado-Nação. Dessa forma, surge a pergunta: se o Estado-Nação se enfraque- ce com a globalização, qual o destino da cidadania?

3.1. A “nova cidadania”: reinvenção do território O debate acerca do futuro da cidadania depara-se com três perspectivas diferentes. Em primeiro lugar, a visão liberal – John Rawls, Ronald Dworkin, Bruce Ackeman –, enfatizando o indivíduo que, por cima do grupo e da identidade coletiva, é sem- pre capaz de redefinir seus próprios fins. Nessa visão é exposta a idéia de cidadania passiva, baseada na concepção de Locke e nos cidadãos como anteriores ao estado, ou pré-políticos (VIEIRA, 2001a, p. 231). A visão comunitarista – Charles Taylor, Michael Walzer –, ao contrário, enfatiza a cultura e o grupo social que confere iden- tidade aos indivíduos atomizados pelas tendências desenraizadoras da sociedade liberal (VIEIRA, 2001a). O indivíduo não é anterior à sociedade, é construído em fun- ção de sua vida em contextos culturais com- partilhados na sociedade. Assim é a noção de cidadania ativa, calcada no pensamento

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de Aristóteles, tendo o indivíduo como fruto da comunidade (VIEIRA, 2001a). Daí advém, ainda, a discussão, conforme Bryan Turner (apud VIEIRA, 2001a, p. 228), sobre a cidadania passiva, a partir de cima, via Estado, e a cidadania ativa, a partir de baixo, via ativa. A globalização evidenciaria a cidadania passiva, de cima para baixo , impositiva, fa- zendo com que os Estados incentivem uma cidadania não reinvidicativa. Rompe-se a identidade nacional, seja pela formação dos blocos supranacionais, pelos fluxos migra- tórios ou pelos conflitos de nacionalidade. Em torno das modificações que estão ocorrendo no plano internacional, Canoti- lho (2006) coloca a questão da problemática que gira em tono da reinvenção do territó- rio. Acontece que a Constituição dirigente sempre foi considerada a Constituição do Estado e, agora, com a supranacionalização e internacionalização do direito, as liberdades se tornaram globalitárias. Traz como exem- plo a liberdade de pessoas, mercadorias, serviços, capitais e afirma que elas esvaziam a concepção de Estado e de Constituição (NATO, EU, MERCOSUL, NAFTA, ONU, Uruguai-Round, Schengen, Informação

  • CNN) (CANOTILHO, 2006, p. 219). Não há como deixar de salientar que Canotilho (2006) está inserido no contexto europeu. Portugal faz parte da União Euro- péia e o país realmente passou pelo Estado de Bem-Estar Social. Entretanto, com rela- ção ao Brasil e os países em desenvolvimen- to, a história é diferente. Muitas promessas do Estado Social não foram cumpridas e, na prática, nem mesmo estamos inseridos em um Mercado Comum. Por isso, deve-se ob- servar com cautela as doutrinas estrangeiras antes de aplicá-las internamente. Vale consignar uma terceira perspectiva, abordada por Habermas (1997), chamada de discursiva ou deliberativa, na qual a ci- dadania é baseada na identidade cívica, ou seja, cidadania ativa baseada na participa- ção nos negócios políticos. Salienta-se que a teoria do agir comunicativo não se caracteriza

pela visão liberal, nem pela comunitarista (VIEIRA, 2001a, p. 321). Na teoria da ação comunicativa ou do agir comunicativo^15 , o sistema social adqui- re a sua identidade a partir do consenso (ROCHA, 2001, p. 239). Nessa perspectiva, é proposta a informalização do Direito mediante o critério “procedural”, que se diferencia do formalismo normativista e do modelo hermenêutico material pelo fato de fundar a sua validade no respeito a procedimentos de elaboração discursiva das normas (ROCHA, 2001). Rocha refere que a possibilidade prática de testar a hipótese de Habermas (1997) pode ser feita por meio da análise de novos fenômenos de informalização e acesso à justiça, como é o caso da resolução de con- flitos por meio da arbitragem, negociação e mediação (ROCHA, 2001). O agir comunicativo está relacionado com integração de indivíduos socializados, atuando como participantes no processo. Esse exercício provoca a tensão entre facti- cidade e validade, embutida na linguagem e no uso da linguagem. Habermas (1997, p. 22), ao considerar o conceito de razão comunicativa, situa- o no âmbito de uma teoria reconstrutiva da sociedade. Nesse contexto, as formas de comunicação da formação política da vontade do Estado, da legislação e da ju- risprudência aparecem como partes de um processo mais amplo de racionalização dos mundos da vida^16. Percebe-se que a nova cidadania, cida- dania cosmopolita ou cidadania mundial emerge lentamente na sociedade civil or- ganizada em torno de interesses públicos. A partir daí surge a idéia de terceiro setor, movimentos sociais ou organizações não- governamentais (VIEIRA, 1999, p. 236). Atualmente, os conceitos de público e privado não se aplicam mais automatica- mente ao Estado e à sociedade, respectiva- mente. É possível dizer que existem também as esferas do estatal-privado e do incipiente social-público (VIEIRA, 1999, p. 237).

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como olvidar a importância da concepção moderna de cidadania, centrada na idéia de Estado-Nação, pois não existem, até o momento, soluções sobre quais os setores capazes de suplantar o Estado no dever de prover as condições de bem-estar. Por isso, o Estado-Nação, como unidade prática da política e morada institucional da cidadania, terá de ocupar o papel principal na regulação dos direitos e deveres da pes- soa humana.

4. Conclusão

Nos últimos anos, com a chamada globa- lização, a concepção de cidadania moderna foi alterada, pois ela não é mais entendida como um status legal, isto é, cidadão como membro pleno de uma comunidade políti- ca particular. Hoje, ressalta-se a cidadania para além das fronteiras tradicionais do Estado-Nação. Assim, surge o terceiro e quarto se- tor, que seriam movimentos sociais não centrados na figura estatal, como formas de suprir a ausência do Estado-Nação na proteção dos direitos e garantias mínimos à população, principalmente a de baixa ou nenhuma renda. Ocorre que não há como negar a relação entre cidadania e igualdade. E, com isso, evidencia-se a importância de que o Es- tado-Nação mantenha um papel ativo na implementação de políticas voltadas para a proteção social. Mesmo que haja meios alternativos de promover o bem-estar social, em nível nacional e internacional, por meio da soli- dariedade e do amor (atuação da família, religião, associações de bairro, ONGs, etc.), não há como esquecer o conceito moderno de cidadania que coloca no Estado-Nação a responsabilidade pela proteção do cidadão. Ainda mais quando se está diante de países em desenvolvimento, como é o caso brasi- leiro, que passou do Estado Social para o Estado Democrático de Direito sem ter efeti- vamente vivenciado o Estado Providência.

Notas (^1) A própria palavra cidadão, em seu sentido etimológico, deriva da noção de cidade, daquele que habita a cidade (CRUANHES, 2000, p. 25). (^2) Na cidadania antiga, dos séculos V e VI a.C., os direitos eram reservados aos cidadãos, mas nem todos os homens eram cidadãos (VIEIRA, 1999, p. 217). (^3) No decorrer do trabalho, será exposta a diferença que ocorreu entre a formação da cidadania brasileira, americana e de alguns países europeus. (^4) Constitucionalismo é a teoria que ergue o prin- cípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade (...) é no fundo uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo (CANOTILHO, 1999, p. 47). Ainda sobre o constitucionalismo, é im- portante salientar a obra de Nicola Matteucci (1998, p. 318), a qual recupera a evolução histórica das Constituições. (^5) Sobre a separação dos poderes, Cf. Montesquieu (2002, p. 165), quando o mesmo refere que, para não se abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder. (^6) Consoante Konrad Hesse (1991, p. 19), “a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente”. (^7) O coronel da Guarda era sempre a pessoa mais poderosa do município (CARVALHO, 2001, p. 41). (^8) Para aprofundar o tema, Cf. Souza (2003). (^9) Vale observar que, nos manuais de direito consti- tucional brasileiros, a concepção de cidadania é abor- dada apenas na sua concepção política, pois cidadão é o indivíduo que seja titular de direitos políticos de

A atual Constituição Cidadã apareceu como símbolo das conquistas democráticas. Assim, mesmo que falte um longo caminho para a efetiva cidadania em território bra- sileiro, não há como negar que o primeiro passo foi trilhado em 1988. Por isso, a ne- cessidade de defesa das suas normas. Nesse contexto, em que pese o reco- nhecimento da subcidadania, bem como a carência na concretude de muitas normas constitucionais, é necessário reconhecer as palavras de Fernando Pessoa que constam na epígrafe do texto: Acorda, eis o mistério ao pé de ti! Dentro o povo chora, enquanto a Constituição pede efetividade!

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votar e ser votado (Cf. SILVA, 1999, p. 347; BASTOS, 1999, p. 272; MORAES, 2002, p. 233 et seq.). (^10) O Dasein pode ser traduzido como ser aí ( Da = aí; sein = ser) e como pré-sença (Cf. STRECK, 2000, p. 178). (^11) A expressão é de Peter Häberle (1998, 2000, p. 161), elencada na obra já mencionada. (^12) Para Darcísio Corrêa (2000, p. 217), o conceito de cidadania confunde-se com os direitos humanos. (^13) Consoante Anthony Giddens (1999, p. 38), atu- almente, nenhum discurso político está completo ou manual de negócios é aceitável sem referência à globa- lização. Para Otfried Höffe (2005, p. 5), a globalização é uma palavra de ordem da filosofia política revestida de emoções contraditórias, em parte contendo espe- ranças e temores. Além disso, vem sendo empregada de maneira inflacionária e, ao mesmo tempo, em contornos tão tênues que se prefere evitá-la. Na sua primeira definição, apresenta a globalização como cresci- mento e consolidação das relações internacionais. Também, Zygmunt Bauman (1999, p. 7) refere que a globalização para alguns é o que se deve fazer para ser feliz; para outros, é a causa da infelicidade. Para todos, porém, globalização é o destino irremediável do mundo. (^14) Essa é a posição de Philip McMichael e Boaven- tura de Souza Santos, elencada no artigo de Beilharz (2001, p. 177-205). Para eles, a globalização é uma invenção dos neoliberais. (^15) Para uma leitura mais aprofundada a respeito da teoria do “agir comunicativo”, Cf. Habermas (1997, p. 354). (^16) Esse termo, utilizado por Habermas (1997) na obra referida, significa o ambiente no qual estão inseridos os sistemas, entre eles o Direito. (^17) A expressão ONG inclui uma grande diversi- dade de organizações leigas e religiosas, políticas e não-políticas. Diferenciam-se por seu grau de depen- dência de fundos externos e de pessoal administrativo estrangeiro. Além disso, há diferenças entre ONGs cujos serviços são coordenados a partir do exterior e aquelas que trabalham de comum acordo com a população local, procurando fortalecer a capacidade de iniciativa das comunidades. Uma questão muito relevante consiste em saber se as organizações que mantêm vínculos externos e não precisam prestar contas de suas atividades contribuem de fato para desenvolver um sentimento nacional de igualdade de direitos sociais (Cf. ROBERTS, 1997, p. 5-21).

Referências

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