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Tipologia: Resumos
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Antropologia Portuguesa 28, 2011: 95‑
Fernando Florêncio CRIA Departamento de Ciências da Vida Universidade de Coimbra, Portugal fjpf@ci.uc.pt
Resumo Com o fim dos regimes de Estado-Partido e de monopartidarismo centra- lista, dos finais da década de 1980, e com as transições para o multipartidarismo, os estados africanos, passaram, a partir de meados da década de 1990, a incorporar formas de organização social derivadas de sectores sociais até então “marginaliza- dos”, tradicionais ou não, tentando sempre no entanto enquadrá-las e controlá-las no processo de construção do estado, sobretudo ao nível local de base, ou seja, no chamado Estado Local. É neste novo contexto que o pluralismo social voltou a ganhar espaço e contexto. À semelhança dos estados coloniais, os estados independentes passaram a reconhecer a existência, no espaço nacional, de diversas ordenações jurídicas, no que se pode denominar de neo-indirect rule. Este artigo pretende discutir criticamente as vantagens e os limites do pluralismo jurídico em África, em contextos políticos de weak states , a partir do caso de estudo do Município do Bailundo, na Província do Huambo em Angola.
Palavras-chave Pluralismo jurídico; autoridades tradicionais; estado local; Angola; Bailundo.
Abstract With the end of the centralized Party-State African political regimes, in late 1980’s, and with the transitions for democracy and political pluralism, the African states decided to incorporate, in the 1990’s, different types of social organizations, traditional or others, in the process of State building, namely in the so called Local State. In this new political context, the African State recognized the existence of different Legal Orders within the national boundaries, and Legal Pluralism reappe- ared, much as in the same manner as for colonial State, in a process that we might call it neo-indirect rule. This article aims to discuss critically the scope and limits of Legal Pluralism in Africa, in the context of weak states political regimes, with the case study of the Município of Bailundo, in the central Province of Huambo in Angola.
Key words Legal pluralism; traditional authorities; local state; Angola; Bailundo.
96 Fernando Florêncio
Introdução
Os estados africanos independentes apresentam uma enorme heteroge- neidade nos seus processos de construção e de consolidação, resultantes de diversos factores, endógenos e exógenos. Podemos assinalar, entre outros, as formas de organização social local pré-coloniais, e suas articulações; as lógicas coloniais, quer comparativamente entre as diferentes potências, quer no seio de cada uma entre os diferentes territórios e períodos históricos; as formas de ascensão à independência; e, finalmente, os modelos de sistemas políticos e administrativos e as alianças estratégicas internacionais adoptadas pelos estados independentes. Claro que todos estes factores concorreram para uma história política plural ao nível da África subsaariana. Contudo, e apesar desta pluralidade de modelos de desenvolvimento, de sistemas administrativos e políticos, implementados desde as indepen- dências, alguns fenómenos sociais foram-se estabelecendo em comum entre os diversos estados independentes. De entre estes fenómenos, podemos des- tacar: uma tendência geral para consolidar sistemas político-administrativos fortemente estatizados e centralizados, em torno de regimes políticos de partido-único; uma forte partidarização da sociedade e concomitante asfixia da sociedade civil; uma crescente crise dos modelos de desenvolvimento; uma crescente fixação em estratégias patrimonialistas de apropriação dos recursos e das trocas internacionais, por parte das elites dirigentes; e, final- mente, uma crescente retracção social e perda de legitimidade dos estados e dos partidos-estado. Este panorama comum, caracterizado de forma excelente por autores como Jean-François Bayart (Bayart, 1989), a partir de meados da década de 1980 sofreu alterações significativas, caracterizadas, primeiro por uma necessidade generalizada de implementação de acordos com o Banco Mundial e com o FMI, e por conseguinte de adopção de políticas de desenvolvimento liberais; e, num segundo modelo, por uma necessidade, interna e externa, de alterar os sistemas políticos vigentes e adoptar modelos políticos libe- rais, democráticos e multipartidários, processo esse que ficou amplamente conhecido como “transições para a democracia”. É precisamente neste novo contexto político que, a partir ainda dos finais da década de 1980, mas substancialmente já na década de 1990, começam a desenhar-se progressivamente em toda a África subsaariana novos modelos de reconfiguração político-administrativa dos estados. As “aberturas” con-
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estatais, entre as quais se pode sublinhar os regimes jurídico-normativos das sociedades tradicionais e que são dirigidos pelas autoridades tradicionais. Em certa medida, a grande maioria dos estados pode ser caracterizada como de weak states , segundo a classificação de John Migdal (Migdal, 1988), com fraca penetração territorial e fraca legitimidade e controlo, sobre a totalidade das populações e do território. Neste sentido, pode dizer-se que os actuais processos de desconcentração e de descentralização visam pre- cisamente o reforço do estado, e sobretudo do estado central e dos partidos dominantes. Expandido o seu controlo e a sua legitimidade, e alargando a rede de estruturas administrativas à totalidade do território. Ora, no pressu- posto da construção soberana e unitária dos estados, e face às características de weak states , a co-habitação de diferentes ordens e regulações jurídicas pode causar problemas, quer à unidade do estado, quer até mesmo à sua legitimação. Tiago Fernandes, que sublinha este aspecto a propósito do caso moçam- bicano, questiona como é que,
“o Estado moçambicano consegue cumprir a missão de consolidação da sua soberania em todo o território nacional, num contexto em que: a) Existem vários actores políticos locais que não são oficialmente reconhecidos pelo Estado, mas legitimados pelas populações (…); b) Existem vários actores políticos locais oficialmente reconhecidos pelo Estado, mas que, por discordância política ou incapacidade téc- nica, desobedecem frequentemente à lei do Estado, exercendo ainda assim soberania sobre uma parcela do território nacional e sobre as populações locais; e c) Existe uma pluralidade de sistemas jurídicos originários (o sistema assente no direito positivo e os vários sistemas assentes em fontes de Direito consuetudinário).” (Fernandes, 2009: 51).
Em boa verdade, o que se pode constatar é que nas actuais condições o pluralismo jurídico, em face das “fraquezas” do estado central, pode colocar em confrontação, ao nível local, o direito estatal com o direito con- suetudinário. É nesse sentido que as autoridades tradicionais têm jogado um relevante papel, por um lado de intermediários do estado, ao nível local, mas por outro de concorrentes em termos da sua condição de reguladores das ordens jurídicas locais. Como salienta Trutz von Thotha,
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“ Chieftaincy has not only gained influence from the need of a weak state for the administrative help of the chief to reach the population (…). Chieftaincy has also established itself as a neo-traditional institution which dominates in many ways the local order and fulfils many functions. The most important function of chieftaincy is probably the legal one. (…) Contrary to the law in the books, the chief is the ‘veritable judge’ and the chiefly legal courts is the basic institution of legal dispute resolution in the colonial and postcolonial African state. The chief’s legal function is situated at the intersection of the administrative tasks of the chief as part of a unified central administration and the singularity of the local order. In the ‘shadow of the state’ the chief guarantees the orderly resolution of normative conflicts and at the same time upholds the traditional local legal system. (…) The chief and the member of his court are leading figures in the local hierarchy of social relations and are at the center of the local order of meaning. They represent the local traditions and have to handle them according to present needs, interests and values ” (Trotha, 1996: 85).
Desta proposta de Trutz von Trotha podem inferir-se dois dos assuntos mais problemáticos da integração das autoridades tradicionais nos proces- sos de formação do estado em África: o lugar ambivalente das autoridades tradicionais e a integração de ordens jurídicas controversas. Problema que os estados coloniais, mesmo com a criação do sistema de indirect rule , sempre se confrontaram, e que os estados independentes acabam por her- dar e perpetuar. No primeiro caso, o sistema de indirect rule , que durante muito tempo era encarado como uma relação de dominação-subordinação dos estados coloniais sobre as autoridades tradicionais^1 , começa agora a ser encarado como uma relação muito mais complexa e ambivalente, em que ambos os actores usam as suas capacidades e legitimidades, ora reforçando- se mútua e estrategicamente, quer em termos de legitimidade quer de fontes de dominação, ora degladiando-se, pela dominação da relação (Florêncio, 2003; 2005; 2008; 2009).
(^1) Um dos expoentes desta leitura é sem dúvida Trutz von Trotha que no artigo de 1996, “From Administrative to Civil Chieftaincy. Some Problems and Prospects of African Chieftaincy”, argumenta precisamente que os estados coloniais esvaziaram as autoridades tradicionais ao ponto de as encapsularem em tarefas meramente administrativas. Uma possível crítica a esta postura pode-se encontrar em Florêncio (2005; 2008)
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Neste artigo, que se centra em dados empíricos recolhidos em 2004 e 2007 no município do Bailundo, na província do Huambo 4 , pretende-se assim equacionar através das práticas e das representações dos actores locais, nomeadamente das autoridades do reino do M´Balundu e dos agentes do estado municipal, a mise en scéne desta diferenciação entre modelo monista e dualista, e, no fundo avaliar em que medida as duas ordens jurídicas locais, a tradicional e a estatal, se complementam ou se, pelo contrário, se contradizem. Enquanto problema teórico mais amplo, pretende-se deste modo discutir quais as vantagens e desvantagens, ou perigos, que o plura- lismo jurídico afronta num weak state como Angola, ainda em processo de reconstrução e de consolidação nacional.
O estado colonial e o pluralismo jurídico
Muitos teóricos e defensores do colonialismo português sempre defenderam a tese da vocação civilizacional, enquanto princípio basilar^5 do próprio projecto colonial, e de que os indígenas e suas “culturas” deveriam ser progressiva e selectivamente assimilados na civilização portuguesa. Esta política assimilacionista defendia que, no entanto, enquanto tal não sucedesse cabalmente os indígenas deveriam ser mantidos e respeitados nas suas tradições e costumes. Neste sentido, desde finais do século XIX, a produção legislativa colonial, nos seus vários domínios, vai acentuando progressivamente a existência de dois tipos de sociedades dentro do mesmo espaço colonial, a sociedade colonizadora (branca, europeia, conforme as designações), e as sociedades indígenas (gentias, nativas)^6. Essa distinção aprofundou-se, legislativamente na década de 1930, com a publicação de três documentos fundamentais do colonialismo português, com especial incidência para o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indí-
(^4) Neste sentido, o presente artigo é subsidiário da investigação do autor no projecto “Dinâmicas Sociais na Estruturação dos Espaços Políticos em Contextos Rurais Africanos”, pelo Centro de Estudos Africanos do ISCTE, financiado pela FCT, POCI/AFR/59228/2004. (^5) Obviamente não se discute neste texto a vacuidade desta argumentação, nem o carácter contraditório entre as teorizações colonialistas e as suas práticas locais. (^6) São inúmeros os projectos e códigos legislativos sobre o direito penal indígena , nesse sentido podemos, apenas a título de exemplo salientar o Projecto de Regulamento de Justiça Penal Indígena , de António Cabral, de 1925; o Projecto de Código de Milandos , do mesmo autor e do mesmo ano.
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genas da Guiné, Angola e Moçambique, publicado em 1929; a Constituição da República, de 1933; o Acto Colonial, de 1933^7 ; a Carta Orgânica e a Lei da Reforma Administrativa Ultramarina, ambas publicadas também em
“ No fenómeno colonial verifica-se precisamente a circunstância de as sociedades indígenas terem perdido a sua independência e ficarem politica- mente subordinadas a um Estado de que passam a fazer parte integrante ” (Moreira, 1955: 70).
Segundo Adriano Moreira é precisamente na administração da justiça aos “indígenas” que se efectiva essa subordinação, pois como adianta este autor:
“ Estabelecida esta situação de facto [a dominação colonial] é desde logo aparente que o sentido do Estado colonizador será o de chamar a si a admi- nistração da justiça, porque se trata do critério mais evidente da soberania e do mais importante dos fins do Estado ” (Moreira, 1955: 70).
A perda de direitos para os “indígenas” fica bem patente no Artigo 7.º do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas, que adianta “ não serão concedidos aos indígenas direitos políticos em relação a instituições de
(^7) Apesar de publicado pela primeira vez em 1930, o Acto Colonial foi posteriormente revisto, devido à nova Constituição de 1933, e declarado matéria constitucional nesse mesmo ano de 1933.
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Moçambique (Decreto Lei, 39.666), que no essencial mantém as caracterís- ticas anteriores, reforçando apenas a ideia de uma progressiva harmonização dos direitos costumeiros ao direito português, com vista à integração dos indígenas na civilização portuguesa. Finalmente, em 1961, com o Decreto Lei 48.893, revogou-se o Estatuto de 1954, terminando com a classificação de indígena e a distinção com os não indígenas. No que respeita às autoridades tradicionais, este duplo papel de que se falava anteriormente, foi formalmente institucionalizado em 1933, com estabelecimento da Reforma Administrativa Ultramarina, Decreto Lei 23:229, de 15 de Novembro, que, entre outros assuntos, define a integração das autoridades tradicionais no aparelho administrativo colonial. A RAU, como ficou conhecida, define a divisão administrativa das colónias portuguesas e as funções de cada categoria de funcionários administrativos, e assume igualmente uma importância fulcral uma vez que define e institucionaliza o modelo de relacionamento entre o Estado colonial e as autoridades tra- dicionais. No capítulo dos deveres e das funções das autoridades tradicionais^11 , destacam-se os seguintes pontos: 1) a obrigação de obedecer fielmente às autoridades administrativas portuguesas (Artigo 99.º, § 1.º); 2) publicitar as ordens da Administração (Artigo 99.º, § 2.º); 3) manter a ordem na sua regedoria (Artigo 99.º, § 3.º); 4) fornecer homens para a polícia e o exército, sempre que solicitado (Artigo 99.º, § 4.º); 5) participar à Administração sobre qualquer ocorrência extraordinária na regedoria, como crimes, falecimentos, doenças endémicas, comércio ilegal e demarcações de terrenos (Artigo 99.º, § 5.º); 6) participar e registar casamentos, nascimentos e óbitos (Artigo 99.º, § 6.º); 7) impedir o comércio e fabrico de bebidas alcoólicas, e venenos (Artigo 99.º, § 7.º); 8) impedir a prática de feitiçaria e adivinhações (Artigo 99.º, § 9.º); 9) prender criminosos ou suspeitos e entregá-los às autoridades administrativas, (Artigo 99.º, § 14.º); 9) incitar as populações a praticarem o tipo de agricultura que a Administração aconselhar (Artigo 99.º, § 16.º). No que respeita às suas atribuições de manutenção da ordem, é proibido às autoridades tradicionais a competência de julgarem qualquer tipo de cri- mes, mas apenas as de prender os suspeitos e relatar os factos à administração (Artigo 99.º, § único). As autoridades tradicionais podiam também pedir à
(^11) Designadas na RAU por autoridades gentílicas. No caso de Angola estas autoridades denominavam-se de sobas, e em Moçambique e na Guiné, de régulos.
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Administração a expulsão dos seus territórios dos indivíduos perturbadores da ordem pública (Art. 100.º). Importa neste ponto realçar que, o modelo do indirect rule , ou de gover- nação indirecta, descrito sobretudo na literatura colonial britânica, como tendo na sua génese o respeito pelas tradições e costumes das sociedades tradicionais africanas, na verdade nunca foi aplicado na íntegra em nenhuma colónia afri- cana, dado que as administrações coloniais, incluindo a britânica, sempre o usaram de modo mais ou menos coercivo e manipulador (cf. Lombard, 1967). Nesse sentido, o termo serve essencialmente para descrever sobretudo uma forma de governação na qual a potência colonial usa os sistemas políticos tradicionais africanos como alicerces mais baixos do sistema administrativo. Deste modo, face à ausência de recursos significativos, humanos e econó- micos, e face à falta de legitimidade das administrações coloniais juntos das populações africanas, o sistema de indirect rule permitiu aos estados coloniais controlar os territórios e as populações africanas através do recurso, controlo e manipulação das suas autoridades políticas africanas. No caso português, a incapacidade do Estado em controlar os territó- rios e as populações africanas, sobretudo no período anterior à 2ª Grande Guerra Mundial, é bem conhecida^12 , e no presente caso de Angola importa sublinhar o exemplo adiantado por Fola Soremekun que, citando um rela- tório da American Board, de 1911, atesta que o governo colonial não tem capacidade de governação e que no “mato” são os pequenos comerciantes quem governa verdadeiramente (Soremekun, 1965: 171). É precisamente neste quadro que as instituições políticas tradicionais africanas assumem um papel de relevo. Elas constituem, paradoxalmente, a salvaguarda da continuidade do modelo de organização “indígena” e do modelo de admi- nistração colonial, e a intermediação institucional entre esses dois universos, entre colonizados e colonizadores. No que diz respeito às atribuições jurídicas, e sobretudo no caso dos julgamentos, as autoridades tradicionais não só jogavam um importante papel, como eram fundamentais^13. Em Angola, como em Moçambique, estes tribunais existiam em todos os escalões da estrutura das autoridades tradi-
(^12) Sobre este assunto, e reportando-se ao caso moçambicano cf. Florêncio, 2003; 2005; 2008. (^13) Sobre a importância do papel jurídico das autoridades tradicionais para a Adminis- tração colonial portuguesa, e sobre a sua concepção de uma espécie de pluralismo jurídico, bem patente na imposição do Estatuto do Indígena, cf Florêncio (2003: 241-243).
Pluralismo Jurídico e Estado Local em Angola 107
a partir do final da guerra civil em 2002, a obra de Marques Guedes e Maria José Lopes torna-se um marco incontornável (Guedes e Lopes, 2007). De acordo com Marques Guedes, o Estado angolano já sentia a necessidade de incorporar as autoridades tradicionais no processo de controlo do terri- tório e das populações, desde o final da década de 1980, e a partir de 1992 atribuiu fardamentos, em tudo semelhantes ao que o Estado colonial tinha atribuído às autoridades tradicionais, um subsídio mensal, e, em certos casos, até mesmo veículos ou motorizadas (Guedes, 2007: 31). Marques Guedes, retomando algumas das propostas teóricas já avançadas pela literatura, fala do papel de intermediários das autoridades tradicionais^19 , ou como estando “ half- way points between the ‘local’ and the ‘central ” (Guedes, 2007: 31). Na obra citada, e a partir de quatro exemplos recolhidos na província do Huambo, o autor analisa algumas dimensões das relações entre as autoridades tradicionais angolanas e o Estado. No primeiro caso, ocorrido em Novembro de 2002, na comuna de Sambo, um homem, acusado de prática de feitiçaria, foi seviciado pela população local, facto que não resultou em homicídio devido à intervenção do ossoma local. O caso foi depois apresentado ao administrador da comuna, sob a acusação de feitiçaria. O administrador decidiu não dar provimento ao assunto. A população e o ossoma decidiram levar o acusado ao ossoma inene do Sambo, Cipriano Kaningi. Este finalmente decidiu “exilar” o acusado para uma comuna distante, em Chipeio, no município de Ecunha. Analisando o caso numa perspectiva legal, Marques Guedes avança com a ideia de que o administrador mostrou uma ambivalência sobre o caso, não o recusando nem o resolvendo, e que o ossoma inene mostrou igualmente estar “ on the path to internalizing legal hybridism (…)”(Guedes, 2007: 43). No final, a actuação do administrador resultou “ in a curtailing of the rights of circulation of the man accused of witchcraft. ” (Guedes, 2007: 43). O segundo caso apresentado ocorreu em 1999, na comuna do Mungo, que à época estava ocupada pela UNITA. O ossoma , simpatizante do MPLA, fugiu para Luanda, e a UNITA elegeu três mulheres para ocuparem o lugar vazio do ossoma. Com o fim da ocupação pela UNITA, e quando o Estado- MPLA assumiu o controlo do município, o anterior ossoma regressou e com a ajuda do governador reassumiu a chefia da ombala e as mulheres foram destituídas. Segundo Marques Guedes, este caso constituí uma “ narrative
(^19) Sobre o papel de intermediários ver por exemplo Rouveroy van Neuwaal (1996;
108 Fernando Florêncio
about pragmatic power politics in a situation of exceptional need ” (Guedes, 2007: 45), e uma “desvalorização positiva” “(…) as a normative fact, by the destitution carried out by the returning soma ” (Guedes, 2007: 45). Já no terceiro caso, o autor apresenta-nos uma situação que ocorria no campo de refugiados de Casseque, perto da cidade do Huambo, na qual o líder do campo era o Coordenador para a Cultura, António Pinho, um elemento do MPLA. Este elemento levava a cabo as suas funções políticas e jurídicas num modelo híbrido entre tradicionalismo e “participação popular”, combinando duas modalidades de regulação da ordem jurídica local, assumindo o papel de ossoma e, por conseguinte de chefe do tribunal costumeiro, mas sujei- tando a sua decisão final à participação da assembleia, ou seja, imiscuindo um princípio da participação popular no sistema tradicional de julgamentos. Segundo Marques Guedes, este modus operandi do coordenador da Cultura, resulta num “ jural and judicial hybridity ” (Guedes, 2007: 45). O quarto caso desenrola-se no ano de 2002, na província de Cuando- Cubango. Um conjunto de sobas, liderados pelo rei Bingo-Bingo apresenta ao governador provincial oito sobas acusados de feitiçaria, pedindo a sua detenção. O governador, alegando que o caso não se consignava com a lei, recusou a sua detenção. Contudo, o governador decretou a criação de uma comissão para “julgar” o caso. A comissão julgou e condenou os oito acusados à pena de morte por fuzilamento. A execução, que ocorreu uns meses depois foi pública. Quando o facto se soube no governo central em Luanda, os membros da comissão e do pelotão, assim como o governador foram igualmente julgados e detidos. Segundo Marques Guedes, este caso demonstra bem a ambivalência com que as autoridades angolanas lidam com as autoridades tradicionais e com as leis costumeiras. Segundo o autor, “ From the State’s angle, the recognition- integration of local power figures fulfills two main functions: it allows for an extention of its implantation, even if only in indirect terms; and generates and gives off dreamy images of a return to national forms of organization(…)” , por sua vez, para as autoridades tradicionais “ such a recognition-integration also fills various functions, by widening its territory and implantation, augmenting its means for the exercise of power (…) ”(Guedes, 2007: 47). Este último caso conduz-nos amplamente para o cerne da discussão sobre o pluralismo legal, e das suas consequências, sobretudo no caso dos estados fracos^20. Para o caso de Angola, é bastante interessante a análise que
(^20) Tomando de empréstimo o conceito de weak state de John Migdal.
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África, nas décadas de 1970 e 1980^22 , a miraculosa solução surgiu nos anos 1990 com a introdução das agendas sobre a democracia, a descentralização, ou a community based development e a good governance , enquanto panaceias retemperadoras dos malefícios provocados pelo centralismo e autoritarismo estatal. No âmbito da procura da autenticidade comunal africana, as “ traditional authorities was ready candidates as community representatives ” (Orre, 2007: 140). Nesse sentido, no pós-guerra civil o Estado angolano tem seguido uma prática em tudo semelhante a outros estados africanos, nomeadamente, como sublinha Aslak Orre, ao caso moçambicano (Orre, 2007: 184). No caso angolano, ainda segundo Aslak Orre, podem demarcar-se duas tendências contraditórias: a de centralização dos processos de construção do Estado, durante as décadas de 1970 e 1980, fortemente marcadas con- tudo pela ineficácia e incompletude do processo, ao nível nacional, devido à guerra civil e à tri-administração do território 23 ; e a actual tendência de desconcentração e de descentralização. Segundo este autor, esta nova fase inaugura-se a partir da criação do Decreto Lei 17/99 que define os papéis e competências do governo local (Orre, 2007: 185). Na verdade, e segundo Aslak Orre, o que está em jogo nesta lei é a implementação de um processo de desconcentração dos serviços e funções estatais, aos níveis provinciais, municipais e comunais, mas sem preconizar uma descentralização efectiva do Estado, antes um reforço da autoridade e hierarquização do Estado central ao nível da globalidade do território nacional (Orre, 2007: 186). Esta tendência de controlo e autoridade do Estado central angolano, ou mais concretamente do Partido-Estado 24 , que se pretende hegemónico, revela-se também no modo de relacionamento e de integração das autorida- des tradicionais no actual processo de formação do Estado local. Processo marcado por uma fortíssima ambivalência, pois por um lado, assenta numa tendência dirigista hegemónica do tipo top-down , todo o processo é contro-
(^22) De destacar, na imensa literatura sobre o assunto, a imprescindível obra de Jean- François Bayart, de 1989, L’État en Afrique. La politique du ventre , Paris, Fayard. (^23) Durante o período do conflito armado angolano, basicamente entre 1975 e 2001, o território era controlado pelos dois movimentos beligerantes, UNITA e Estado-MPLA, mas existiam bolsas territoriais que não eram controladas por nenhum destes movimentos e que, durante certos períodos “viviam” numa espécie de auto-gestão. (^24) Apesar das profundas alterações constitucionais de 1992, no caso angolano ainda é perfeitamente plausível a aplicação, em termos pragmáticos e de agencialidade, da noção de Partido-Estado ou de Estado-MPLA.
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lado a partir do MAT (Ministério da Administração do Território); mas com sinergias e dinâmicas muito variadas e pragmáticas ao nível local. Por outro lado, a ambivalência também se faz notar ao nível da natu- reza da própria aliança estratégica entre Estado e autoridades tradicionais. Se por um lado o Estado tenta instrumentalizar as autoridades tradicionais enquanto funcionários administrativos e partidários, ao nível local, como parte do processo de extensão, consolidação e legitimação para as popula- ções, sobretudo rurais, por outro lado, como sublinha Aslak Orre,
“ the traditional authorities are also themselves suffering (…) a legitimacy crisis. (…) Due to enormous demographic changes associated with the war refugees and urbanization, traditional authorities’s power is waning. Many are also afraid of the consequences of raising their heads as traditional authorities, due to previous alliances with UNITA during the war ” (Orre, 2007: 191).
A referida tendência monista com que o Estado angolano pretende enquadrar as autoridades tradicionais nacionais fica bem expressa num relatório de 1996, realizado a pedido do MAT, e coordenado por André Sunda Dialamikua. Neste relatório, assume-se claramente a necessidade de enquadrar as autoridades tradicionais angolanas debaixo da alçada da administração central, pois como afirmam os autores,
“(…) a necessidade de enquadrar, integrar e modernizar as Autorida- des Tradicionais, reconhecê-las, respeitá-las e torná-las mais adequadas e operacionais, constitui um assunto ao qual a política administrativa e o saber científico nacional não podem, nem devem escapar .” (Dialamikua, 1996: 1).
Aqui fica bem expresso que, o reconhecimento e o respeito que o Estado deve prestar às autoridades tradicionais concretiza-se nesse cenário de inte- gração e enquadramento. Por outro lado, a leitura do relatório também nos revela um aspecto interessante, e esquecido pela generalidade da literatura sobre o tema, nomeadamente sobre o reconhecimento dos conflitos exis- tentes, ao nível local, entre as autoridades tradicionais e os coordenadores dos Comités do Bairro^25. Pode então ler-se neste relatório,
(^25) Estrutura do partido MPLA e do Estado, um pouco à semelhança dos secretários de bairro, em Moçambique. Sobre o conflito entre as autoridades tradicionais em Moçambique e os secretários de bairro, cf. Florêncio (2003; 2005).
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posteriormente da criação de autarquias. Nas suas próprias palavras “ (…) um programa global, faseado e gradualista de, num primeiro momento, reforma da administração local do Estado, e, depois, de institucionalização de um poder local autónomo autárquico e tradicional” (Grupo Técnico para as Questões Jurídico-Legais, 2001: 10). O que se concebe como poder local autónomo autárquico e tradicional não é cabalmente definido, o que pode significar que, em 2001, ainda não existia uma ideia clara do lugar e tipo de papel que as autoridades tradicionais poderiam jogar neste processo. Nesta aparente confusão, os autores defendem que “o princípio da autono- mia local não pode ser sinónimo de autarquias locais mas deve, no plano orgânico, ter como manifestação não só as autarquias locais mas, também as instituições organizatórias tradicionais” (Grupo Técnico para as Questões Jurídico-Legais, 2001: 14-15). Aliás, os autores enfatizam mesmo que as autoridades tradicionais são,
“ uma das manifestações da autonomia local e desde logo, como um elemento estruturante e qualitativo do nosso conceito de poder local (…). O reconhecimento do poder tradicional como uma instituição autónoma é um imperativo do princípio do Estado democrático de direito aplicado a uma realidade específica como a nossa .” (Grupo Técnico para as Questões Jurídico-Legais, 2001: 29).
Nesse âmbito, o relatório defende que as competências das autoridades tradicionais deve confinar-se ao espaço territorial-administrativo das povo- ações e comunas, e que as suas funções se enquadrem na,
“ administração de bens próprios, na promoção do desenvolvimento e da actividade produtiva; abertura e manutenção de vias de acesso; recense- amento da população; protecção do meio ambiente, do património físico e cultural; divulgação e implementação das decisões dos órgãos autárquicos e do Estado , (…)”(Grupo Técnico para as Questões Jurídico-Legais, 2001: 30).
Por este relatório pode depreender-se que para os autores as autoridades tradicionais, assim como as autarquias, fariam parte desse poder local, a ser institucionalizado ao nível das comunas e das povoações. No entanto, o plano estratégico é bastante ambíguo, ou pelo menos bastante impreciso, na definição do que seria o “poder local autárquico e tradicional”. Muito mais
114 Fernando Florêncio
preciso é o texto de Carlos Feijó, produzido ainda em 2000. Nesse texto o autor precisa o que entende por poder local, diferenciando as relações entre o Estado, as autarquias e as autoridades tradicionais. Essencialmente centrado sobre as questões da descentralização, neste texto de Carlos Feijó interessa preferencialmente retirar a noção de poder local, pois ela virá a influenciar alguma da produção legislativa consequente, até pelo papel do autor nessa mesma produção. Desde logo, o autor refere que o poder local se encontra relacionado com a auto-determinação, e que ele deve ser constituído por órgãos representativos das populações, e que o poder local se diferencia da descentralização administrativa, por exemplo,
“(…) o poder local não é operacionalizado por qualquer descen- tralização territorial. É necessário que a descentralização administrativa seja encarada no plano jurídico e político, isto é, não é, pelo facto de, por exemplo, existirem autarquias locais, no plano jurídico, que se deve aferir a existência de um verdadeiro poder local. É necessário, ainda, apurar se no plano político, os órgãos das autarquias locais são, livremente, eleitos pela população locais ” (Feijó, 2000: 3).
Avança depois para uma definição de poder local, que,
“ deve ser definido como aquele poder político originário ou derivado exercido, nos termos da lei, a nível das comunidades locais através de órgãos descentralizados, de instituições organizatórias tradicionais e de outras formas de participação democrática das população visando a satisfação dos seus interesses próprios ” (Feijó, 2000: 3).
Carlos Feijó apresenta assim uma visão autonómica do poder local, englobando nele as autarquias, as autoridades tradicionais e outras organiza- ções de base, como as comissões de moradores, por exemplo (Feijó, 2000: 4). Neste contexto, a visão do autor poderia definir-se mais no sentido de uma integração dualista das autoridades tradicionais, pois o próprio autor define este tipo de poder local como “anterior do Estado ou até mesmo desenvolver-se fora dele”, e ainda de que esta instituição deveria ter um reconhecimento constitucional, mas que “trata-se de apenas de reconheci- mento de uma realidade pré e extra-estadual (…)” (Feijó, 2000: 4).