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O Currículo Oculto na Educação: Dimensões Socio-Políticas e Implicações na Prática Escolar, Manuais, Projetos, Pesquisas de Pedagogia

Este texto discute o conceito de currículo oculto nas práticas escolares, que tem uma dimensão socio-política inegável relacionada às funções de socialização da escola na sociedade. O currículo oculto caracteriza-se por duas condições: o que não se pretende e o que é obtido naturalmente. Atender a esta dimensão oculta significa abordar a cultura escolar em termos antropológicos e intervir no currículo real, que depende das condições do ambiente escolar. A mudança curricular consiste em alterações em todas as práticas relacionadas aos contextos por meio das quais adquire significado real.

O que você vai aprender

  • Que é o currículo oculto nas práticas escolares?
  • Por que é importante abordar o currículo oculto em termos antropológicos?
  • Como podemos intervir no currículo real para promover mudanças significativas?
  • Como as condições do ambiente escolar afetam o currículo real?
  • Como a sociedade influencia o currículo oculto?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2020

Compartilhado em 09/10/2020

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S123c Sacristán, J. Gimeno Compreender e transformar o ensino / J. Gimeno Sacristán e A. I. Pérez Gómez; tradução Ernani F. da Fonseca Rosa – 4. ed. – Artmed, 1998. 400 p. ; 25 cm.

ISBN 978-85-7307-374-

  1. Educação - Observações pedagógicas. I. Gómez, A.I. Pérez. II. Título

CDU 37.

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto - CRB 10/

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subterraneamente, que se denomina oculto. N experiência prática que os alu- nos/as têm se misturam ou interagem ambos; é nessa experiência que encontraremos o currículo real. Para compreender o currículo da perspectiva de quem aprende convém entendê-lo como o conteúdo de toda a experiência que o aluno/a tem nos ambientes escolares. O aluno/a, enquanto está na situação de escolarização, tem experiências muito diversas: aprende conhecimentos, habilidades, comportamentos diversos, a sentir, a se adaptar e sobreviver, a pensar, a valorizar, a respeitar, etc. Jackson (1975), em sua obra A vida nas aulas, que tão decisivamente marcou o pensamento pedagógico atual, descrevia e analisava a importância de um ambiente como o escolar, no qual as relações sociais, a distribuição do tempo e do espaço, as relações de autoridade, o uso de prêmios e castigos, o clima de avaliação, consti- tuíam todo um currículo oculto que o aluno/a deve superar se quer avançar com sucesso pelos cursos; uma dimensão não evidente contraposta ao que ele chamou de “currículo oficial”, que nos revela toda sua importância quando o aluno/a não responde como se espera às exigências que colocam a ele, resistindo a ser e se comportar como as situações escolares lhe pedem. O currículo oculto tem uma relação mais estreita com as dificuldades do aluno/a do que com seus sucessos, afirmava esse autor (p. 51), porque é aí que melhor se apreciam as exigências de adaptação aos requerimentos que propõe aos estudantes. Esta análise do que se depreende de forma oculta da experiência nas escolas é, por sua vez, parcial se não observamos que seu significado vai além dessa experiência. As normas de comportamento escolar não foram geradas como algo autônomo, ainda que a escola elabore seus próprios ritos, mas têm relação com valores sociais e com formas de entender o papel dos indivíduos nos processos sociais. O currículo oculto das práticas escolares tem uma dimensão sócio-política inegável que se relaciona com as funções de socialização que a escola tem dentro da sociedade. Realmente, as análises mais objetivas sobre o currículo oculto provêm do estudo social e político dos conteúdos e das experiências escolares. Hábitos de ordem, pontualidade, correção, respeito, competição-colaboração, docilidade e conformidade são, entre outros, aspectos inculcados consciente ou incons- cientemente pela escola que denotam um modelo de cidadão/dã (Apple, 1986; Dreeben, 1983; Giroux e Penna, 1981; Giroux,1990; Jackson, 1975; Lynch, 1989; Torres, 1991; Young, 1971). Portanto, a socialização do cidadão/dã nas escolas não se reduz à reprodução que se produz pela transmissão da cultura explicitamente declarada nos currículos aos conhecimentos e às disciplinas. Quando todos esses valores fazem parte dos objetivos pretendidos e das atividades pedagógicas são parte do currículo explícito da educação social e moral, e não cabe dizer que sejam propriamente componentes de sua dimensão oculta. Embora a grande maioria dessas influências seja imposta como norma de fato, aceita sem discussão, como parte do que consideramos normal, e por isso são os elementos de uma socialização oculta. A escola não é um meio isolado dos conflitos sociais externos a ela, ainda que uma espécie de pudor leve muitos à recomendação de não tratar em seu seio os problemas conflitantes da sociedade. Ao querer esquecê-los, os reproduz acriticamente na maioria das vezes. As mensagens derivadas do currículo oculto, estejam à margem, coerentes ou em contradição com as intenções declaradas, não são alheios aos conflitos sociais: os papéis dos sexos na cultura, o exercício da autoridade e do poder, os mecanismos de distribuição da riqueza, as posições de grupos sociais, políticos, raciais, religiosos, etc. Por exemplo: se na sociedade existem discriminações contra o sexo feminino, as relações entre meninos e meninas nas aulas ou no pátio de recreio, a interação dos professores/as com uns e outros, a visão que se pode obter nos textos escolares, etc. não são senão

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manifestações desse conflito social. É um aspecto que pode ser analisado não apenas na dimensão oculta, mas também na explícita (Apple, 1975 e 1986; Apple e King, 1983; Lynch, 1989; Torres, 1991). Assimila-se esse clima de socialização por osmose e passa mais inadvertido quanto menos atritos provoca, embora não sejam poucos os conflitos que gera entre alunos/as e professores/as, porque é nessa relação que se manifesta melhor a existência de tais normas. O que se denominam problemas de inadaptação ou de conduta são provocados em boa medida pela resistência a essas submições exigidas. Certos casos de abandono escolar, parte do fracasso escolar, são manifestações de resistência passiva e ativa à normativa do currículo oculto, o fracasso da socialização que impõe. Porque não se vai à escola aprender de modo abstrato, mas a fazê-lo de uma determinada forma e a viver num ambiente muito característico. Eggleston (1980, p. 27) afirma que as obrigações que o currículo oculto impõe aos alunos/as são tão importantes ou mais para eles, para sua sobrevivência e sucesso na escola, do que as do programa oficial ou explícito, como o são também para os próprios professores/as. O que importa não é o que se diz que se faz, mas o que verdadeiramente se faz; o significado real do currículo não é o plano ordenado, seqüenciado, nem que se definam as intenções, os objetivos concretos, os tópicos, as habilidades, valores, etc., que dizemos que os alunos/as aprenderão, mas a prática real que determina a experiência de aprendizagem dos mesmos. A diferenciação entre o explícito ou oficial e o oculto do currículo real serve para entender muitas incongruências nas práticas escolares. Não é infreqüente nos depararmos com declarações de objetivos explícitos, que dizem pretender algo dos alunos/as, que depois se mostram contraditórios com o que realmente se faz para consegui-los. O currículo explícito diz buscar a apre- ndizagem da escrita e o gosto por se expressar, ou o prazer da ciência, por exemplo, e depois vemos os alunos/as ocupados em exercícios tediosos de repe- tição que geram atitudes negativas e contrárias aos objetivos declarados. A distinção entre a faceta oculta – condições da experiência educativa – e a manifesta – pretensões declaradas e aceitas – permite também entender melhor os processos de mudança ou o imobilismo das instituições e das práticas escolares: ainda que mudem as pretensões, as idéias ou os currículos explícitos, o currículo real muda pouco para os alunos/as porque as condições da escolarização que o traduzem se modificam muito mais lentamente. Só tratando de entender o currículo manifesto ou oficial dentro das condições escolares, e estas e aquele dentro do contexto político, social e econômico exterior à escola, entende-se a escolarização e os educadores podem desenvolver esquemas de pensamento mais apropriados para compreender o ensino e elaborar com mais realismo propostas de modificação da mesma (Giroux e Penna, 1981, p. 210). Este esquema de compreensão da rea- lidade explica a razão de que as mudanças de disciplinas ou de conteúdos dentro das mesmas – as reformas curriculares em geral – tenham pouca incidência na experiência real dos alunos/as, na maioria dos casos, ao não se alterar as condições nas quais decorre a experiência. Ampliar o sentido do currículo real para todas essas dimensões ocultas é fundamental para explicar a resistência das instituições e das práticas escolares às mudanças promovidas desde fora, e como as reformas curriculares fracassam na transformação da prática (Giroux, 1990, p. 63). A escola, a mudança, o currículo, os conteúdos da escolaridade, em suma, não podem ser explicados pelo discurso idealista que não se fixa nas condições reais nas quais trabalham professores/as e alunos/as. O currículo, nessa perspectiva, já não é um plano que expressa o que se quer alcançar, senão que é preciso analisá-lo como parte dos processos de socialização a que os alunos/as estão submetidos durante a experiência escolar. Dito de outro modo: o significado

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mais complicada de dirigir ou de mudar. Torna mais obscuro e impreciso o conceito, mas mais adequado para compreender a realidade. Uma conceitua- lização tão ampla tem suas vantagens. Como Cherryl Holmes (1988, p. 133) destaca: a) Pode acolher a idéia mais comum de que o currículo é um guia para planejar, ensinar e avaliar o currículo oficial. b) Inclui as aprendizagens incidentais cuja fonte é a estrutura escolar como organização, com suas normas de funcionamento. c) Observam-se as aprendizagens que têm sua origem nos companheiros do aluno/a. d) Aceita-se que aquilo que não fica compreendido no que explicitamente se pretende – o currículo nulo, como diria Eisner – também faz parte do discurso, pois é evidente que não apenas se ensina, mas que também se ocultam outras coisas. Às vezes, devido a argumentos de que para determinadas idades tra- tar de certas coisas parece inadequado – sexualidade, pobreza, guerra, fome, etc. –, ou devido ao predomínio de certas visões sobre outras – ocultação de etapas “pouco gloriosas” da própria história nacional, etc. –, o certo é que existe uma parte da realidade que se anula na cultura escolar. e) Evita ter de distinguir entre currículo (o previsto) e instrução (o que se faz, o desenvolvimento prático), ou seja, nos obriga a ver a continuidade-des- continuidade entre intenções e realizações.

Ao que chamamos currículo? A um processo ou a alguma representação do mesmo? Desde a retórica das declarações, dos propósitos e das idéias até a prática

O que foi dito no trecho anterior nos ajudará a compreender melhor a necessidade de um enfoque processual dos problemas curriculares. A educa- ção é um campo de pensamento e prática no qual projetamos ideais diversos, utopias individuais e coletivas, ideologias globais ou valores concretos que pretendemos que se desenvolvam e que outros compartilhem, por meio de propostas, ou por meio de imposições e também por manipulações ocultas. Tan- ta projeção e carga ideológica gera por si mesma um discurso, uma lingua- gem que costuma, com demasiada freqüência, desligar-se da realidade e ganhar autonomia própria. Nessa medida nem sempre dá conta da realidade, e até pode ocultá-la e manipulá-la. O discurso muda e se remodela, porque, como afirma Cherryholmes (1988, p. 3), tem relação com um tempo e lugar, mas essas mudanças não deveriam confundir-se com outros correlativos na prática à qual se referem. Não se pode dizer que o que se diz e o que acontece sejam realidades totalmente independentes, mas sim que gozam de certa autonomia. Daí ser evidente que, para conhecer a realidade, é preciso ir além do discurso que se elabora sobre a mesma. O político e o administrador da educação dizem empreender programas que em muitos casos coincidem pouco com o que fazem ou, simplesmente, supervalorizam suas ações pontuais. Se solicitamos a um grupo de especialistas que elabore um projeto de currículo, ele colocará no papel as aspirações mais louváveis e racionais para seu ponto de vista. Tudo isso bem fundamentado e ordenado, e não se atreverá a dizer que, sob as condições reais de trabalho das escolas e dos professores/as, se poderá fazer pouco do que disse. Talvez esse desajuste em políticos e especialistas se deva à falta do conhecimento da prática concreta, mas isso não atinge apenas eles. Se perguntamos a um grupo de professores/as de uma escola ou a cada um deles sobre sua filosofia educativa,

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seu projeto global, ou seus planos docentes imediatos, suas “programações”, obteremos visões otimistas em geral, bem mais completas e positivas do que depois poderiam nos dizer os alunos/as do que ocorre na realidade das aulas. O significante – as declarações de intenções, os projetos – substitui o significado da prática, ocultando a realidade. Se se quer saber o que é verdadeiramente a educação, conviria muito mais analisar as práticas nas aulas do que se deter muito no discurso embelezado. Claro que arrancaríamos muitas lembranças más e além do mais se dispõe de poucos dados elaborados com rigor meto- dológico sobre a realidade educativa; esta é bastante nebulosa e nos desenvol- vemos geralmente a partir de impressões pouco examinadas. Se pensassem nas conseqüências de cada conceito pedagógico que se maneja na legislação educativa, por exemplo, para ver que condições são necessárias para sua implantação real, que formação de professores/as se requer, que condições de trabalho, materiais, organização de classes e escolas, etc. são precisos, certamente se seria mais cauteloso no uso da linguagem. Faça-se a prova com os conceitos de aprendizagem significativa, uso crítico da informação, fomento da iniciativa dos alunos/as, ensino disciplinar, flexibilidade do currículo, atenção integral ao aluno/a, avaliação formativa e contínua, professores/as pesquisadores em sua aula, etc. O manejo dos conceitos sem o compromisso com a prática cumpre com o rito de mudar aparentemente a realidade baseando- se na manifestação de boas intenções ocultando as misérias. Nisso consiste man- ter uma perspectiva crítica em educação: em descobrir essas incongruências para sanear o discurso educativo e manter viva a utopia, forçando a mudança da realidade. Apenas dessa forma os conceitos pedagógicos não se desgastam e mantêm seu poder de apresentar ideais com que pressionar a realidade e as forças que a governam. O currículo é um campo privilegiado para apreciar essas contradições que destacamos, a separação entre intenções e prática. Que país se arriscaria a pôr em seu currículo oficial aquilo que realmente se faz nas escolas? Que pro- fessor/a assumiria o risco de afirmar que a cultura e os importantes e atrativos conhecimentos que diz ensinar se reduzem ao conhecimento memorizado de alguns conceitos sem relação, trabalhados com atividades rotineiras, que para serem aprendidos devem ser submetidos a avaliações constantes, pois do contrário os alunos/as não os estudariam? As declarações e as propostas que compõem o discurso curricular formam o que Sirotnik (1988) chamou de expectativas curriculares, cuja função é recortar desejos que querem se levar para a prática, que têm muito pouca correspondência com as análises da realidade, e que, em muitos casos, são meros rituais, artifícios simbólicos que costumam proliferar em momentos de reformas, mudanças legislativas, introdução de modismos pedagógicos, projetos de inovação curricular, etc. Na pior das hi- póteses são cortinas de fumaça que ocultam, confundindo o que deveria acontecer com o que realmente acontece. Quando são fruto de debates e reflexões intelectuais e políticas autênticas, confrontados com a realidade e como arquitetura de propostas reais de mudança, essas expectativas fomentam uma certa tensão ideológica que ajuda a pensar e decidir práticas, porque colaboram na articulação de tais propostas. O que acontece é que, depois de uma história de boas intenções declaradas, já se compreende como o discurso caminha independente dos progressos da prática. Depois de tantos conceitos e orientações inovadoras, a prática muda pouco. E é aqui que se torna útil um esquema explicativo para entender o currículo; porque a realidade tem a ver com contextos escolares e extra-escolares, com hábitos de comportamento, com meios e condições reais, com professores/as de “carne e osso”, com determinada sociedade. Um argumento aparentemente banal deveria

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texto). Geralmente o plano estruturado que mais se impõe a ser conside- rado como tal é o currículo oficial, como denominava Jackson, porque é o que se conhece mais e o que com procedimentos mais efetivos trata de se impor e monopolizar o discurso. O currículo é mais um processo social, que se cria e passa a ser experiên- cia através de múltiplos contextos que interagem ente si (Cornbleth, 1990, p. 13; Gimeno, 1988). A realidade do mesmo não se mostra em suas modelagens documentais – prescrições ou livros-texto –, mas na interação de todos os con- textos práticos que destacamos anteriormente. Para tornar claro o processo curricular e tomar referências concretas objetivas podemos aproveitar modelos de fases do processo que expressam, com diferente definição, o que denominá- vamos de expectativas curriculares, mas que por si mesmas não são o currículo real. Possuem, no entanto, diferentes graus de aproximação ao que é a prática curricular. São como fotos fixas de um processo. A análise dos livros-texto, por exemplo, nos aproxima mais da realidade educativa do que os documentos oficiais que regulam e prescrevem o currículo. Os planos reais dos professo- res/as nos aproximariam mais do que os livros-texto. Pode-se captar o processo em diferentes modelos ou representações diversas, que são os pontos de apoio na investigação curricular. As mais concretas são as seguintes:

  • O currículo como compêndio de conteúdos ordenados nas disposições administrativas – os documentos curriculares (na Espanha, os chamados mínimos curriculares e mais recentemente o Plano Curricular Base). É o currículo prescrito e regulado.
  • Os livros-texto, os guias didáticos ou materiais diversos que o elaboram ou pla- nejam. É o currículo criado para ser consumido pelos professores/as e alunos/as.
  • As programações ou planos que as escolas fazem. O currículo no contex- to de práticas organizativas.
  • O conjunto de tarefas de aprendizagem que os alunos/as realizam, das quais extraem a experiência educativa real, que podem ser analisadas nos cadernos e na interação da aula e que são, em parte, reguladas pelos planos ou programações dos professores/as – é o chamado currículo em ação. Este nível de análise ou concepção, junto com a concepção seguin- te, é o conteúdo real da prática educativa, porque é onde o saber e a cultura adquirem sentido na interação e no trabalho cotidianos.
  • O que os professores/as exigem em seus exames ou avaliações, como o exigem e como o valorizam.

Documentos, textos, planos e tarefas são as “fotos fixas” aproximadas de um processo que as liga. De certa forma, refletem o currículo, mas o estudo e com- preensão deste deve fixar-se no processo entre as “fotos”. Todas essas mani- festações ou representações do projeto pedagógico e dos conteúdos do ensino são cortes que representam a realidade processual, mas esta é composta pela interação de tudo isso. São imagens que se supõem conectadas, ao menos no plano das intenções, aos mesmos objetivos; porém cada âmbito prático em que se realizam têm uma certa independência. Desde uma mentalidade administrativa, hierar- quizada, foram entendidas como fases de um processo de desenvolvimento linear com dependências ordenadas (da intenção até a prática, como se cada escalão se comportasse tal como o anterior designa, como se cada nível de decisão obedecesse cegamente ao anterior), mas, na realidade, têm uma certa margem de autonomia. Por exemplo: duas editoras diferentes oferecem versões ou desenvolvimentos das mesmas diretrizes curriculares, mas qualquer professor/a sabe que são peculiares

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quando desenvolvem os conteúdos prescritos para uma disciplina num nível ou curso. Dois professores/as com as mesmas diretrizes curriculares, ou ma- nejando um mesmo material didático, não ensinam exatamente a mesma coisa em suas classes. As diferenças indicam que intervêm fatores peculiares em cada fase da representação do currículo. Poderia se analisar um currículo a partir dos documentos legais ou orien- tações que a administração elabora, nos moldes que uma editora de livros-texto faz do conhecimento e dos objetivos educativos, por exemplo. Um retrato mais real do que é a prática nos darão os planos que as equipes de professores/as elaboram numa escola ou os que estes professores/as fazem em suas aulas para seus alunos/as. Os trabalhos acadêmicos que estes realizam, os exames que o professor/a impõe, nos quais se valorizam certos conhecimentos adquiridos e reproduzidos de forma singular, ou os que se valorizam em provas externas, serão um indicador muito decisivo para saber o que se sugere e obriga a aprender e como fazê-lo. Uma coisa não é independente totalmente da outra, mas o certo é que são fases no processo de concretização das expectativas curriculares que dão significados particulares às idéias e às propostas. Em que modelos são concretizadas essas transformações quando nos referimos ao currículo? Em todas elas se expressa de forma distinta o currículo, a rea- lidade deste é o resultado das interações em todo esse processo, tal como de- monstra a Figura 6.2.

CURRÍCULO COMO PROCESSO

Práticas de controle internas e externas:

O currículo AVALIADO

Práticas organizativas:

O currículo ORGANIZADO no contexto de uma escola

Reelaboração na prática: transformação no pensamento e no plano dos professores/as, e nas tarefas acadêmicas:

O currículo EM AÇÃO

Figura 6.2. O currículo como processo.

Âmbito de decisões políticas e administrativas:

O currículo PRESCRITO E REGULAMENTADO

Práticas de desenvolvimento, modelos em materiais, guias, etc:

O currículo PLANEJADO para professores e alunos

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potencialidade tem para fazer com que os professores/as ensinem de outra maneira e os alunos/as aprendam mais adequadamente conteúdos culturais ou outros quaisquer. Potencialidade que está nos processos de mediação a que é submetida a proposta, não em suas próprias declarações de intenção. A pergunta-chave em nosso contexto concreto é: o que os professores/as ensinam e o que os alunos/as aprendem depende de forma estrita de uma proposta elaborada pela administração ou de um projeto confeccionado por especialistas? Depende do grau de controle que se exerça sobre a prática para obrigar seu cumprimento, da assimilação que os professores/as façam dessas orientações, de que os materiais didáticos que se aproximam mais da prática traduzam adequadamente as propostas, de que as condições materiais, organizativas, etc. não o impeçam, de que variem os métodos e as tarefas acadêmicas, de que se modifiquem os procedimentos de avaliação. Para que a mudança curricular tenha sucesso é preciso começar por todas as condições práticas que vão mediatizar a proposta; do contrário, esta necessariamente vai ser traduzida a partir do que existe e, portanto, empobrecida, se é que potencialmente era inovadora. A perspectiva processual não só serve para conectar ou se observar desconexões entre modelações pontuais do currículo, mas tambem passa a ser um modelo de explicação também da mudança e das resistências ao mesmo. Numa perspectiva tecnocrática, a inovação dos currículos se reduz à mudança de propostas ou modelos curriculares; numa ótica processual a mudança cur- ricular consiste em (e exige) alterações em todas as práticas próprias dos contextos por meio das quais adquire significado real, porque o importante é produzir mudanças reais na prática do currículo que alunos/as e professores/as experimentam.

“Partindo da concepção do currículo como processo social contextualizado, a mudança curricular necessariamente implica mudanças contextuais. Já que currículo e contexto são mutuamente determinantes, a mudança no primeiro é mais provável que venha depois e não que preceda à mudança do segundo” (Cornbleth, 1990, P. 9). (...) “Se o currículo se reduz a um produto aproximado, mudá-lo significa então construir e implantar um documento ou um pacote diferente do mesmo”(idem, p. 14).

Se mudar o ensino e a aprendizagem dos alunos/as é substituir alguns temas por outros, acrescentar ou tirar conteúdos ou disciplinas, modificar os livros-texto, etc., a mudança tem probabilidade de acontecer e pode-se chegar a pensar que os novos currículos foram implantados na prática com essas modificações. Esta seria uma concepção de mudança curricular ou de melhora da qualidade do ensino pouco exigente, entendida desde uma perspectiva hierárquica. Se, em troca, os novos conteúdos ou as substituições implicam melhoras na atitude frente ao conhecimento, entender seu valor formativo de outra maneira, atender à assimilação que os alunos/as fazem, ver na apren- dizagem um processo de construção de significados, conectar as experiências e aprendizagens prévias dos alunos/as com o conhecimento elaborado, ou realizar novas atividades para aprender de outra forma, então a mudança requerida é mais exigente e a simples modelagem das expectativas curriculares num plano tem efeitos pouco significativos. É preciso ver que fatos e condicionantes devem mudar, para que essas práticas se transformem de verdade. Evidentemente, podem se desencadear alguns efeitos de qualquer proposta, do debate sobre as mesmas, se vão acompanhadas de uma melhora sensível da formação dos professores/as e das condições da prática, mas o certo

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é que os mecanismos que a regulam, nessa hipótese mais exigente, são outros bem diferentes. Quanto mais radicais forem as inovações propostas, quanto mais cheio de novidades for um currículo, quanto mais se proponha em profundidade uma reforma afetando a qualidade do ensino, tanto mais depende seu sucesso dos mecanismos que operam em todo o processo de concretização e desen- volvimento do currículo e menos do plano explicitado. Como se vê, a concepção da transformação do currículo é imprescindível na análise de como pode melhorar a qualidade da educação e de que conceitos de qualidade ou de mudança entram em discussão. Um exemplo: mudar o ensino de idiomas modernos para “melhorar a aprendizagem dos mesmos” é suscetível de diversas análises curriculares. Uma medida pode ser começar a lecioná-los antes na escolaridade ou aumentar as possibilidades de opção entre idiomas. A regulamentação administrativa dessas medidas com os meios necessários levaria ao êxito em relação à expectativa curricular proposta. Se, pelo contrário, entende- se que mudar esse ensino significa que os alunos/as melhorem o conhecimento real do idioma e seu uso falado e escrito, a reforma curricular tem outras exigências e de pouco serve que exista um currículo oficial bem estruturado, ordenado seqüencialmente e apresentado. Isso significa que os mecanismos para que esses currículos tornem-se realidade na prática dependem de uma mudança por parte dos professores/as, dos recursos materiais e do número de alunos/as por grupo e professor/a como exigências fundamentais. Em resumo, não adianta analisar os fatos tal como parece que se apre- sentam, porque o sistema educativo é formado fundamentalmente por uma série de hábitos de comportamento e de práticas que, ao tê-las vivido e experi- mentado, nos parecem dados da própria realidade e, talvez por isso, não obser- vamos em que são opções possíveis. Desde uma perspectiva fenomenológica e crítica, a realidade deve ser vista em sua dimensão holística, dialética e histó- rica, englobando as ações, os agentes e as práticas que se misturam nos proces- sos educativos, como processos sociais que são. Desta condição se deduz, para efeitos de métodos de análise da realidade, que as metodologias para analisar e investigar o currículo incorporem recursos muito variados.