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Olga: A Mulher Abandonada - Ruptura Linguística e Autodescoberta, Notas de aula de Literatura

Este texto analisa a obra 'dias de abandono' de elena ferrante, onde se explora a experiência de olga, uma mulher abandonada por seu marido. A mudança sofrida por olga é fundamentalmente apresentada através da linguagem, que se liberta das amarras do dialeto e da língua materna. O texto também discute as renúncias da vida de olga, que se estendem à própria linguagem, e as questões importantes que ela enfrenta, como o divórcio, a maternidade e a vida profissional em choque com as obrigações domésticas. Olga busca reprimir-se linguisticamente e fisicamente, mas ao mesmo tempo se esforça para manter o autocontrole, evitando 'exceder-se'.

O que você vai aprender

  • Quais são as questões importantes que Olga enfrenta na obra?
  • Como a mudança sofrida por Olga é apresentada no texto?
  • Quais são as renúncias da vida de Olga que se estendem à própria linguagem?
  • Como Olga se esforça para manter o autocontrole e evitar 'exceder-se'?
  • Como a literatura no contorno do caos ajuda Olga a reorientar sua energia psíquica?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tucano15
Tucano15 🇧🇷

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Revista Entrelaces • V. 11 • Nº 04 • Out. - Dez. (2021) • ISSN 2596-2817
Revista Entrelaces • V. 11 • Nº 04 • Out. - Dez. (2021) • ISSN 2596-2817
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Dias de abandono: da contenção
à libertação pela linguagem
Aline Vargas Stawinski73
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Mélany Dias da Silveira74
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Resumo
O texto do presente artigo não é mais do que um efeito de nossa leitura da obra de Elena
Ferrante. Em vista disso, começamos por uma breve apresentação da autora e do livro
Dias de abandono (2016) a partir do qual passamos a colocar em movimento algumas de
nossas reflexões sobre a escrita empreendida por Ferrante. Na trama das reflexões que
buscamos fazer, lidamos, principalmente, com temas do feminismo e da psicanálise.
Portanto, em um primeiro momento, fazemos uma ponte entre os escritos de Virginia
Woolf, Simone de Beauvoir e Elena Ferrante, como meio para poder pensar sobre o
contexto da escrita feminina que subsiste apesar das contrariedades. Uma escrita imposta
e, ao mesmo tempo, possível através da linguagem e suas tantas possibilidades de se fazer
expressar: voz e corpo, a fala e os gestos. É na última seção que arriscamos uma
aproximação entre literatura e psicanálise como forma de pensar a criação literária no
contorno do caos.
Palavras-chave
Elena Ferrante. Literatura e psicanálise. Dias de abandono.
73 Doutora em Estudos da Linguagem com ênfase em Análises textuais, discursivas e enunciativas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
74 Mestra em Estudos da Linguagem com ênfase em Análises textuais, discursivas e enunciativas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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Dias de abandono: da contenção

à libertação pela linguagem

Aline Vargas Stawinski Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Mélany Dias da Silveira Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Resumo O texto do presente artigo não é mais do que um efeito de nossa leitura da obra de Elena Ferrante. Em vista disso, começamos por uma breve apresentação da autora e do livro Dias de abandono (2016) a partir do qual passamos a colocar em movimento algumas de nossas reflexões sobre a escrita empreendida por Ferrante. Na trama das reflexões que buscamos fazer, lidamos, principalmente, com temas do feminismo e da psicanálise. Portanto, em um primeiro momento, fazemos uma ponte entre os escritos de Virginia Woolf, Simone de Beauvoir e Elena Ferrante, como meio para poder pensar sobre o contexto da escrita feminina que subsiste apesar das contrariedades. Uma escrita imposta e, ao mesmo tempo, possível através da linguagem e suas tantas possibilidades de se fazer expressar: voz e corpo, a fala e os gestos. É na última seção que arriscamos uma aproximação entre literatura e psicanálise como forma de pensar a criação literária no contorno do caos. Palavras-chave Elena Ferrante. Literatura e psicanálise. Dias de abandono. (^73) Doutora em Estudos da Linguagem com ênfase em Análises textuais, discursivas e enunciativas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). (^74) Mestra em Estudos da Linguagem com ênfase em Análises textuais, discursivas e enunciativas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Página | 134 Introdução “a força da literatura, sua força propriamente semiótica, consiste em jogar com os signos em vez de destruí-los, em colocá-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança arrebentaram.” (Roland Barthes). Mulheres que escrevem (por profissão, estudo ou desabafo) são recorrentes na obra de Elena Ferrante. Lenu, da célebre tetralogia A amiga genial (2015), narra a história de sua amizade com Lila, que escreve como uma espécie de revanche após o desaparecimento da amiga – uma forma de resgatar sua presença a partir da materialidade das palavras digitadas no computador. Em A filha perdida (2016), nos deparamos com um trecho que expõe a aflição de Leda na tentativa de escrever um ensaio acadêmico enquanto divide a atenção com suas duas filhas pequenas. Já em Dias de abandono (2016), Olga também é uma escritora que, como Lenu, não apenas deixou Nápoles: afastou-se do dialeto, dos modos e das palavras julgados extravagantes, dos gritos e gestos turbulentos atribuídos por ambas as narradoras à cidade de origem e aos seus conterrâneos. Neste artigo, buscamos nos debruçar sobre a relação de Olga com as palavras – sejam elas escritas ou faladas (e por vezes contidas, silenciadas). Com o intuito de aprofundarmos a discussão aqui empreendida, dialogaremos com textos de perspectiva feminista e da psicanálise. Também contamos com o apoio de estudos dedicados à obra de Ferrante, além dos seus escritos não ficcionais, tais como ensaios e entrevistas. Antes de nos lançarmos ao debate proposto, vale contextualizar brevemente a obra foco de nosso estudo. Dias de abandono (2016) é o segundo romance de Elena Ferrante, publicado originalmente em 2002^75 , uma década após sua estreia em Um amor incômodo (2016)^76. A tradução brasileira foi publicada em 2016 pela Biblioteca Azul. Assim como seu primeiro livro, Dias de abandono foi adaptado para o cinema. Sob direção de Roberto Faenza, a adaptação estreou em 2005, evento que relançou holofotes ao texto literário e ao nome de Ferrante^77. No livro, conhecemos Olga, uma mulher de 38 anos – dos quais 15 foram compartilhados com Mario, com quem teve dois filhos. A narradora introduz a história de seus dias recentes assim: (^75) Título original: I giorni dell'abbandono, publicado em 2002 pela editora Edizioni e/o. (^76) Título original: L’amore molesto, publicado em 1992 pela mesma editora. (^77) Após receber o roteiro do filme, Elena Ferrante escreve uma carta a Roberto Faenza, datada de 03 de junho de 2003, a qual pode ser lida em Frantumaglia (FERRANTE, 2017, cf. p. 193-6) pela primeira vez.

Página | 136 O pensamento feminista e as práticas feministas libertaram energias, colocaram em movimento a transformação mais radical e mais profunda dentre as que permearam o século passado. De maneira que eu não saberia reconhecer a mim mesma sem lutas de mulheres, ensaios de mulheres, literatura de mulheres: tudo isso me tornou adulta. (FERRANTE, 2017, p. 286-7) A liberdade para escrever é fruto dessas transformações e tem implicações diversas: Acima de tudo, não devemos abrir mão da máxima liberdade [...] devemos evitar qualquer obediência ideológica, qualquer encenação de pensamento ou linha certa, qualquer cânone. Quem escreve deve se preocupar apenas em narrar da melhor maneira o que sabe e sente, o belo, o feio e o contraditório, sem obedecer a nenhuma prescrição (FERRANTE, 2017, p. 287) O comentário de Ferrante está longe de ser apenas teoria: a narração do belo, feio e contraditório é marcante em seus romances – com Dias de abandono não seria diferente. Vale ressaltar que o posicionamento da autora acerca da máxima liberdade ecoa ensaios de Virginia Woolf. Em “Profissões para mulheres” (2019 [1942]), a escritora inglesa aborda a importância da liberdade para a prática da escrita ao narrar seu confronto com o “Anjo da Casa”, figura cerceadora onipresente nos lares femininos: Quer dizer, assim que pus a mão na caneta para resenhar aquele romance de autoria de um homem famoso, ela [Anjo da Casa] se esgueirou pelas minhas costas e cochichou: “Minha querida, você é uma jovem mulher. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja boazinha; seja meiga; lisonjeie; iluda; use todas as artes e astúcias de nosso sexo. Nunca deixe que adivinhem que você pensa por conta própria. Sobretudo, seja pura”. E ela como que guiava minha pena. Registro agora o único ato pelo qual reivindico algum mérito, embora o mérito se deva, na verdade, a alguns formidáveis ancestrais que me deixaram uma certa quantia – digamos, umas quinhentas libras por ano? – de maneira que não precisei depender apenas da sedução para me sustentar. Voltei-me contra ela e a agarrei pela garganta. Fiz o que pude para matá-la. Minha desculpa, se tivesse que comparecer diante de um tribunal, seria a de que agi em legítima defesa. Se não a tivesse matado, ela teria me matado. Ela teria arrancado a alma de minha escrita. (WOOLF, 2019 [1942], p. 31) As semelhanças ou aproximações entre Woolf e Ferrante não permanecem apenas na opinião sobre a necessidade da liberdade de quaisquer amarras para a escrita. Em “Virginia Woolf, Elena Ferrante and The Angry Modern/ist Woman”, Rosenberg (2018) estabelece uma relação entre as duas escritoras que, apesar de estarem situadas em contextos geográficos e históricos diferentes, dialogam: Tempo histórico, nação e personalidade distinguem Woolf e Ferrante, mas construtos ideológicos feministas evoluem e se desenvolvem enquanto são

Página | 137 compartilhados ou transmitidos de uma geração de escritora para a próxima através da influência (ROSENBERG, 2018, n. p., tradução nossa)^78 Certamente, é inegável a importância daquelas e daqueles que “vieram antes” para a produção de todo o conhecimento, seja na literatura, nas artes ou nas ciências. Como já sublinhava Woolf, “as obras-primas não são frutos isolados e solitários; são o resultado de muitos anos de pensar em conjunto, de um pensar através do corpo das pessoas, de modo que a experiência da massa está por trás da voz isolada.” (WOOLF, 2019 [1929], p. 56). Não por acaso, encontramos ressonâncias de Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo (2016 [1949]), nos conflitos enfrentados por Olga que, após sentir- se em total abandono, resgata memórias do colegial lembrando de quando contou à professora que desejava tornar-se escritora: “Leia isto”, e eu, de forma diligente, li. Mas quando lhe entreguei de volta o livro me veio uma frase soberba: essas mulheres são idiotas. Senhoras cultas, de boa condição social, quebrando-se feito bibelôs nas mãos de seus homens distraídos. Pareciam-me emocionalmente burras, eu queria ser diferente, queria escrever histórias de mulheres com muitos recursos, mulheres com palavras indestrutíveis, não um manual da esposa abandonada com o amor perdido como o primeiro pensamento da lista. Eu era jovem, tinha minhas pretensões. Eu não gostava da página muito fechada, como uma persiana abaixada. Eu gostava da luz, gostava do ar entre as ripas. Eu queria escrever histórias cheias de correntes de ar, raios filtrados pelos quais dança o pó. E depois eu amava a escrita de quem te faz olhar por baixo de cada linha deixando sentir a vertigem da profundidade, a escuridão do inferno. Eu disse isso sem ar, de uma só vez como nunca tinha feito, e minha professora deu um sorrisinho irônico, um pouco vingativo. Ela também devia ter perdido alguém, ou alguma coisa. (FERRANTE, 2016, p. 18) Olga, vinte anos mais tarde, acaba identificando-se tanto com a antiga professora de francês quanto com as personagens que desprezava. É certamente irônico comparar as pretensões adolescentes da narradora, que amava correntes de ar, com o aprisionamento atual no qual se encontra. Além disso, Olga, em crescente sofrimento pelo abandono, reconhece em suas rememorações que deixou sua vida profissional e até mesmo pessoal em segundo plano para dedicar-se à vida doméstica: Somente dois anos antes eu tinha dito que queria voltar a ter os meus horários, um trabalho que me fizesse sair de casa por algumas horas. Eu tinha encontrado trabalho numa pequena editora, sentia-me muito curiosa, mas ele me forçou a deixar de lado. Mesmo dizendo-lhe que eu precisava ganhar o meu próprio dinheiro, ainda que pouco, muito pouco, ele tinha desaconselhado, dizendo: por que bem agora, o pior já passou, não precisamos de dinheiro, se você quer tentar escrever, escreva. Eu dei razão a ele, pedi demissão depois de poucos (^78) “Historical time, nation, and personality distinguish Woolf and Ferrante, but feminist ideological constructs evolve and develop as they are shared or passed from one generation of woman writer to the next through affect.” (ROSENBERG, 2018, n. p.).

Página | 139 recompensada, porque, guiada, protegida pela força do homem, escapará ao abandono original; se tornará necessária. (BEAUVOIR, 2016 [1945], p. 582) Apesar de toda a renúncia, a protagonista se dá conta de que o investimento jamais foi recíproco: “Meu marido tinha retirado de mim pensamentos e desejos para transferi-los para outro local.” (FERRANTE, 2016, p. 17). Entrega-se, assim, à escrita obsessiva de longas cartas a Mario, mesmo sem saber para onde enviá-las, pois sente a necessidade de compreender a razão de não ter escapado ao abandono. Do endereçamento a Mario, passou a escrever a si mesma: Sentia-me assustada com torções bruscas, não controladas. Mario, escrevia para me dar coragem, não levou consigo o mundo, levou consigo somente a si mesmo. E você não é uma mulher de trinta anos atrás. Você é de hoje, segure- se no hoje, não regrida, não se perca, se segure. Sobretudo não se abandone aos monólogos absortos ou maldizentes ou odiosos. Apague as exclamações. Ele foi, você fica. Você não terá mais a luz dos seus olhos, suas palavras, mas e daí? Organize as defesas, conserve sua inteireza, não se faça quebrar como um objeto de decoração, como um joguete, mulher nenhuma é um joguete. La femme rompue, ah, rompue, rompe o caralho. A minha tarefa, eu pensava, é mostrar que é possível permanecer sã. Demonstrá-lo a mim mesma, a mais ninguém. Se for exposta aos lagartos, combaterei lagartos. Se for exposta às formigas, combaterei formigas. Se for exposta aos ladrões, combaterei ladrões. Se for exposta a mim mesma, combaterei a mim. (FERRANTE, 2016, p. 60) A escrita para si busca atuar como uma forma de não sucumbir ao “desejo obscuro de destruição” (FERRANTE, 2016, p. 73). As renúncias da vida de Olga podem ser estendidas à própria linguagem: voz e corpo parecem romper amarras que foram fortalecidas ao longo da vida de casada; frente ao sentimento de abandono Olga cede, pouco a pouco – com momentos de ruptura mais acentuados – à linguagem obscena, aos gestos quase irrefletidos, à busca consciente de confronto. A seguir, veremos algumas menções sobre a contenção da linguagem, manifestada através da voz (falada ou escrita) e do corpo. 2 “Longe de mim as mulheres quebradas”: a contenção do corpo feminino As referências de Olga à voz e aos gestos contidos é recorrente ao longo da narrativa. Aqui, buscamos ressaltar algumas passagens que ilustram o recalque da linguagem, também observado por Secches em seu livro dedicado à obra de Elena Ferrante: o embate entre uma essência “mais bruta”, anterior à educação formal, e uma identidade forjada, lapidada. Nas personagens de Ferrante, esse conflito está intimamente ligado à linguagem. Nos momentos extremos, o que está

Página | 140 recalcado retorna e o dialeto napolitano ressurge das fissuras, tomando o lugar do italiano culto. (SECCHES, 2020, p. 42) Podemos relacionar a aversão aos tons de voz alta e o zelo pelos gestos contidos a uma imagem que a protagonista gostaria de refletir àqueles a sua volta. A contenção da voz e do corpo é um dos temas abordados pelo pensamento feminista, e Olga acaba espelhando uma mulher que, apesar da consciência e de já ser um efeito da emancipação feminina, reconhece a sua dificuldade em lidar com algumas questões bastante importantes, como o divórcio, a maternidade e a vida profissional em choque com as obrigações domésticas^79. Olga, assim como tantos outros corpos de mulheres, busca reprimir-se linguística e fisicamente. Vejamos como tais amarras são expostas no romance. “Eu odiava os tons de voz alta, os movimentos muito bruscos” (FERRANTE, 2016, p. 8). Até para discutir, Olga se esforça para manter o autocontrole, evitando “exceder-se” – mas exceder-se em que medida? Para além daquilo que esperam de uma mulher educada, casada, mãe. A narradora mostra sem rodeios que procurava conter-se na frente de Mario com o intuito de não o afastar ainda mais: Discutimos isso, mas calmamente. Eu odiava os tons de voz alta, os movimentos muito bruscos. Minha família de origem era de sentimentos ruidosos, exibidos, e eu, sobretudo na minha adolescência, até mesmo quando ficava muda com as mãos tapando os ouvidos num canto da casa em Nápoles, oprimida pelo tráfego da rua Salvatore Rosa, sentia-me dentro de uma vida estrondosa, e tinha a impressão de que qualquer coisa poderia, de repente, se abrir por causa de uma frase dita de forma muito penetrante, de um movimento pouco contido do corpo. Por isso havia aprendido a falar pouco e de forma muito pensada, a não ter pressa, a não correr nem para pegar o ônibus, a encompridar ao máximo meu tempo de reação, preenchendo-os com olhares confusos, sorrisos incertos. (FERRANTE, 2016, p. 8, grifos nossos) A origem familiar – napolitana – é seguidamente associada à expressão exacerbada pela linguagem verbal e corporal; Olga procura manter distância da família ao sair da cidade natal, mas especialmente pelo controle quase obsessivo que parece querer exercer sobre o que fala e sobre aquilo que demonstra através de seus gestos. Quando percebe que a contenção se afrouxa, seguidamente repreende a si própria: “Para longe de mim aquelas imagens, aquele linguajar. Longe de mim as mulheres quebradas.” (FERRANTE, 2016, p. 20). (^79) Olga é uma mulher branca de origem humilde que ascendeu socialmente com o marido. A emancipação feminina da qual a personagem é privilegiada não pode, certamente, ser desvinculada das questões de classe e raça, problematizações que merecem um estudo particular com maior profundidade.

Página | 142 com os alfinetes, o gesso, e repetia a mim mesma o que eu ouvia, eram palavras entre a aflição contida e a ameaça, quando você não sabe segurar um homem perde tudo, relatos femininos de fins de caso, o que acontece quando, plena de amor, você não é mais amada, é deixada sem nada. A mulher perdeu tudo, até o nome, se tornou para todos “a pobre coitada”, começamos a falar dela chamando-a desse jeito. (FERRANTE, 2016, p. 12) O fantasma da pobre coitada causa em Olga o pavor de se tornar ela também mais uma poverella, uma mulher quebrada pelo abandono. Para além dela, a preocupação estende-se à própria filha, que em determinado ponto da narrativa desempenha o papel determinante de não permitir que a mãe se perca no abismo de si. Ao perceber Ilaria carregando o peso de algumas responsabilidades, Olga conta: Imaginei-a velha, os traços deformados, próxima à morte ou já morta, e ainda assim, um pedaço de mim, a aparição da menina que fui, que teria sido, por que aquele “teria sido”? [...] O tempo é um respiro, pensei, hoje sou eu, daqui a pouco minha filha, tinha acontecido com a minha mãe, com todas as minhas antepassadas, talvez ainda acontecesse a elas – a elas e a mim, simultaneamente. (FERRANTE, 2016, p. 85) Parece transgeracional o sofrimento feminino. Em Frantumaglia: os caminhos de uma escritora, Elena Ferrante escreve a respeito das personagens de Um amor incômodo e Dias de abandono: Delia e Olga contam a história de dentro desse vórtice. Mesmo quando desaceleram, não se afastam, não contemplam, não reservam para si espaços externos de consideração. São mulheres que contam a própria história estando no centro de uma vertigem. Portanto, não sofrem pelo conflito entre o que elas gostariam de ser e o que suas mães foram, não são o ponto de chegada sofrido de uma genealogia feminina de ordem cronológica que avança a partir do mundo arcaico dos grandes mitos mediterrâneos, para chegar até elas como o cume visível do progresso. A dor deriva do fato de que, em volta delas, simultaneamente, em uma espécie de acronia, amontoam-se o passado de suas precursoras e o futuro daquilo que elas procuram ser, sombras, fantasmas; até o ponto em que, por exemplo, Delia, depois dos trajes do presente, pode vestir o velho tailleur da mãe como o traje resolutivo; e Olga pode reconhecer no espelho, no rosto, o perfil da pobre coitada-mãe que se matou como parte constitutiva de si mesma (FERRANTE, 2017, p. 115). Ao sentir o desespero da sensação de perder-se de si, Olga passa a analisar o passado de sua mãe e o futuro da filha, como uma experiência atemporal de confundir os tempos. Sobretudo, os tempos da vida feminina. Em excerto intitulado “A imagem da mãe”^80 , a autora comenta sobre sua relação com os estudos da psicanálise. Apesar de pontuar algumas críticas à teoria, a (^80) O subtítulo pertence ao capítulo 16, intitulado “A frantumaglia” (FERRANTE, 2017). A autora escreve uma “carta-ensaio” em respostas a perguntas de Giuliana Olivero e Camilla Valleti, na qual aborda diversos temas motivados pelos questionamentos das entrevistadoras.

Página | 143 escritora reconhece a potência da teoria psicanalítica em lançar o olhar para além de qualquer ordem estabelecida. Com esse propósito, cita o ensaio escrito por Freud, “Sobre a sexualidade feminina” (1931), e o debate sobre a infância feminina e o apego das meninas em relação à mãe que a leitura do ensaio proporcionou em suas reflexões. Apesar da bagagem teórica, a escrita de Elena Ferrante sobre o tema da relação mãe-filha insiste em se aprofundar na crueza das experiências vividas. Na narrativa de Dias de abandono, a autora quis que pelo menos três coisas básicas fossem intuídas: primeiro, que para as mulheres cada relação de amor matrimonial ou não, se baseia na reativação do vínculo primitivo com a mãe; segundo, que os casamentos não conseguem expulsar da vida feminina o amor incômodo pela imago materna, único amor-conflito que dura para sempre em todos os casos; terceiro, que o que impede Olga de trair Mario é o fato de ele ter se tornado para ela, desde o início e inadvertidamente, o casulo de fantasias ligadas à mãe, e será sobretudo isso que tornará o abandono tão devastador. (FERRANTE, 2017, p. 149) Olga mergulha nas lembranças que carrega da mãe, nas situações compartilhadas com a filha Ilaria, no fantasma da pobre coitada – “uma noite me lembrei de uma figura obscura em minha infância napolitana, uma mulher grande, enérgica, que vivia em nosso prédio, atrás da Piazza Mazzini. Trazia sempre consigo, junto às compras, pelas ruelas abarrotadas, seus três filhos.” (FERRANTE, 2016, p. 12). Olga lembra que essa mulher perdeu tudo, até o nome, “tinha aspecto e modo de ser de uma mulher contente com seus cansaços” (FERRANTE, 2016, p. 12). Para romper com o destino da pobre coitada, que a assombra cada vez mais, Olga conta com a filha, a quem incumbe a tarefa de espetar-lhe a carne com um abridor de cartas; a certeza da concretude do corpo pelas mãos da filha é sua garantia para não sucumbir ao vazio. Tal gesto mostra que Olga “pretende resistir de todas as maneiras à perda de si mesma; e que, para reagir, só pode contar com aquela pequena criatura de sexo feminino” (FERRANTE, 2017, p. 195) – “Vou fazer passar tudo”, diz a filha ao massagear suas têmporas, “Eu te ajudo” (FERRANTE, 2016, p. 139). 3 A literatura no contorno do caos Sentei à escrivaninha. Precisava reter alguma coisa, mas já não lembrava mais o quê. Nada estava detido, tudo escorregava. Olhei meu caderno, os traços vermelhos sob as perguntas de Anna [Karenina] como uma ancoragem. Li e reli, mas os olhos passaram sobre as perguntas sem entender. Havia algo que não funcionava em meus sentidos. Uma intermitência do sentir, dos sentimentos. Às vezes me abandonava a eles, às vezes me assustavam. Aquelas palavras, por exemplo: eu não sabia encontrar uma resposta para a interrogação, qualquer resposta possível parecia-me absurda. Eu estava

Página | 145 fora da malha de certezas e ter de aprender outra vez a vida sem a segurança de saber fazê-lo.” (FERRANTE, 2016, p. 137). Se antes Olga viveu uma anulação do eu feminino, à espera da implosão das emoções, aos poucos passa a experimentar uma rebentação linguageira há tanto encoberta: “ouvia na minha cabeça todos os protestos que havia até então contido, muitas palavras já tinham passado por aquela linha divisória além da qual já não se sabe mais o que é ou não oportuno de se dizer.” (FERRANTE, 2016, p. 15). Uma linguagem reprimida desde a época da infância: Quando eu era novinha gostava do linguajar obsceno, me dava uma sensação de liberdade masculina. Agora sabia que a obscenidade podia causar centelhas de loucura, se nascia de uma boca controlada como a minha. Fechei os olhos, por isso, tomei a cabeça entre as mãos comprimindo as pálpebras. (FERRANTE, 2016, p. 19) Talvez o que não se queira enxergar seja, justamente, o que de tão aparente não pôde ser visto, e que por isso retorna. No caso da narradora, as vozes violentas da infância, o linguajar “das mulheres quebradas”. É nesse sentido, no sentido do inquietante, que recortamos aqui outro trecho de um texto escrito por Freud, desta vez lido em “Escritores criativos e devaneio”: A relação entre a fantasia e o tempo é, em geral, muito importante. É como se ela flutuasse entre três tempos – os três momentos abrangidos pela nossa ideação. O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une. (FREUD, 1996, p. 82) Mas que desejo seria esse? Talvez o desejo de encontrar a própria voz? Talvez. Comecei a mudar. Em poucos meses perdi o hábito de me maquiar cuidadosamente, passei do uso de uma linguagem elegante, atenta a não ferir o próximo, a um modo de me expressar sempre sarcástico, interrompido por risadas desmedidas. Devagar, apesar da minha resistência, cedi à linguagem obscena. (FERRANTE, 2016, p. 24) Neste ponto, Olga conta de forma aguda uma espécie de sentimento assustador que remonta ao que antes lhe era familiar. A experiência do luto, do abandono, faz manifestar em Olga a aspereza do contexto materno onde cresceu. Citada no livro de

Página | 146 Fabiane Secches, “Elena Ferrante: uma longa experiência de ausência”, foi a poeta Ana Martins Marques quem escreveu: “entre tantas coisas / numa separação / é também uma língua / que se extingue”. Ao perder a referência de sua relação com Mario, Olga vive também a perda de um lugar subjetivo e, a partir disso, narra uma experiência de desmarginação: desmarginação é a palavra que carrega consigo o ponto em que “a realização da linguagem coincide com o seu desaparecimento, em que tudo se fala, tudo é fala, mas em que a fala já não é mais do que a aparência do que desapareceu, é o imaginário, o incessante e o interminável. (BLANCHOT, 2011, p. 38 apud DANTAS, 2019, p. 10) O termo “desmarginação” aparece na verdade no primeiro livro da tetralogia napolitana publicada por Elena Ferrante, A amiga genial (2015). É desde a série, que narra a vida das personagens Elena Greco e Lila Cerullo da infância até a velhice, que temos acesso a um uso da linguagem que descreve muito rigorosamente experiências fronteiriças, limítrofes. No texto de Dantas, encontramos uma descrição: “na história da tetralogia, a desmarginação é uma sensação que Lila experimenta, mais de uma vez, de perder as margens, de dissolver as fronteiras entre si e seu entorno.” (DANTAS, 2019, p. 22). Em Dias de abandono, a narradora passa a descrever a experiência limítrofe que vivenciou nos meses pós-separação. Da primavera ao outono, Olga parece caminhar no sentido oposto: primeiro tudo seca e desmorona; depois, a vida se impõe novamente. Entre as estações, o enredo se desenrola oscilando entre uma busca por equilíbrio e outra por ruptura. É nesse espaço de ambivalências que se instaura o conflito, que Olga narra com riqueza de detalhes. (SECCHES, 2020, p. 40-

A vivência do trauma e o sofrimento da separação feita abandono parecem causar um importante efeito de cisão na personagem de Elena Ferrante, um corte subjetivo feito em profundidade. É dessa ferida que transborda a vulgaridade do dialeto materno, o descuido de si e a violência há tanto reprimida. Não é sem assombro que Olga enxerga o surgimento daquilo que estava oculto. Foi a partir desta situação borderline que a narradora se deparou com a inquietante estranheza de cair para dentro de sua infância: A reconstrução de eventos marcantes de sua infância retorna como assombro. Mas o que norteia Olga e o leitor é a busca por uma forma para que as coisas sejam ditas, pronunciadas, chamadas pelos seus nomes, às vezes com a necessária crueza. Encontrar na língua o conforto necessário como uma roupa da própria medida. (CRICELLI apud SECCHES, 2020, p. 45)

Página | 148 próprio tom de voz e se reencontrar com o desejo antigo de escrever histórias. Parece ser a partir de seu encontro com a escrita e com as personagens de suas leituras que Olga compõe a trama que no final a segura firme, como uma ferramenta que contribui na abertura das portas antes blindadas, uma espécie de chave para todas as portas. Encaminhamentos finais O presente texto é efeito, antes de tudo, do desassossego que a leitura da obra de Elena Ferrante nos faz sentir. Dias de abandono abre diferentes possibilidades de diálogo com tantas leitoras e leitores que se aventuram por suas páginas. Cientes disso, operamos um recorte, ainda que breve e pontual, a partir de leituras da crítica feminista e da psicanálise a fim de refletirmos sobre “aquilo que ressoa entre nós” (FERRANTE, 2017, p. 219). Na primeira seção, Libertar-se das amarras: mulheres que escrevem, buscamos destacar a relação do empoderamento feminino com a prática da escrita. Em Frantumaglia^82 , Elena Ferrante escreveu a seguinte reflexão: somos cada vez mais obrigadas a nos submetermos a provas duríssimas de reestruturação de nossa vida privada e de admissão na vida pública. Não é uma escolha, não é o efeito de uma mutação: é uma necessidade. Furtar-nos a essas provas significaria voltarmos a ser engolidas pela subalternidade, abrir mão de nós mesmas e de nossa especificidade, ser novamente absorvidas pelo Homem Universal. (FERRANTE, 2017, p. 94) De certa forma, a trama narrada por Olga reflete essa luta contra o abrir mão de nós mesmas: a personagem passa do sentimento de desestruturação ao viver a separação até a necessidade de se reerguer e superar o abandono. Movimento possível a partir de sua entrega, mesmo inconsciente, à escrita, ao desejo antigo de escrever histórias, ao retorno à vida profissional – e sem esquecer, certamente, de sua pequena criatura, Ilaria, sua filha, que ajudou, mesmo sem saber, sua mãe a retornar a si – espelho do seu eu passado e dos possíveis futuros. Na segunda seção, “Longe de mim as mulheres quebradas”: a contenção do corpo feminino, revisitamos algumas passagens de Dias de abandono nas quais Olga relata um encurtamento da distância que existia entre os seus modos, gestos e jeitos de falar comparados às mulheres de sua infância, no contexto de Nápoles. Aos poucos a narradora nos leva a considerar esse sofrimento transgeracional vivido pelas mulheres, (^82) “Uma história de desestruturação”, entrevista publicada em 17 de agosto de 2003 no semanário Weekendavisen.

Página | 149 principalmente, ao recordar sua relação com a mãe, ao mesmo tempo em que analisa seu vínculo com a filha. Por fim, na última seção, A literatura no contorno do caos, procuramos entender um pouco melhor o sentimento de desordem vivido pela narradora e refletir sobre a maneira com que Olga encontra, no exercício da escrita, um meio através do qual se torna possível reorientar sua energia psíquica, antes relacionada absolutamente ao marido. Tivemos, especialmente, a intenção de perceber de que maneira, nessa obra ficcional, a literatura opera um contorno do caos. Não por acaso, demos início à escrita deste texto a partir de uma citação de Barthes, a qual retomamos aqui. Para além de indicar a literatura como forma de trapacear a ordem da língua, o autor reconheceu que “a força da literatura, sua força propriamente semiótica, consiste em jogar com os signos em vez de destruí-los, em colocá-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança arrebentaram.” (BARTHES, 1980, p. 29). Talvez o que tenha atravessado nossa escrita no presente artigo tenha sido a intenção de considerar os movimentos de contenção e libertação vividos pela narradora de Dias de abandono, possíveis através da linguagem e suas tantas possibilidades de expressão. Referências BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução Sérgio Millet. 2 Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016 [1945]. CRICELLI, Francesca. “Ler e traduzir Elena Ferrante: tradução e a íntima transgressão da linguagem”. In: Deriva, ed. 3, abr. 2018, n.p. Disponível em: https://derivaderiva.com/ler-e-traduzir-elena-ferrante/. Acesso em: 10 jun. 2021. DANTAS, Tatianne Santos. “Ali onde está o assombro”: desmarginação e criação literária na tetralogia de Elena Ferrante. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Instituto de Psicologia, UFRGS. 2019. Disponível em: [http://hdl.handle.net/10183/194381] FERRANTE, Elena. A amiga genial. Tradução de Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2015.

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THE DAYS OF ABANDONMENT: FROM CONSTRAINT TO

LIBERATION THROUGH LANGUAGE

Abstract The text of this article is nothing more than an effect of our reading of Elena Ferrante's work. Due to that, we begin with a brief presentation of the author and the book The Days of Abandonment. From the novel, we start to put into motion some of our considerations on the writing undertaken by Ferrante. In the weft of thoughts that we seek to draw, we consider mainly the themes of feminism and psychoanalysis. At first, we build a bridge between some writings of Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, and Elena Ferrante as a means of thinking about the context of female writing that subsists despite the setbacks. In the last section of this paper, we venture an approximation between literature and psychoanalysis as a way of thinking about literary creation in the outline of chaos. Keywords Elena Ferrante. Literature and psychoanalysis. The Days of Abandonment.


Recebido em: 31/07/ Aprovado em: 04/12/