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Guias e Dicas
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Educação: liberdade e complexidade em diálogo (Paulo Freire e Edgar Morin), Manuais, Projetos, Pesquisas de Pedagogia

Este texto explora as ideias de paulo freire e edgar morin sobre a educação, enfatizando suas contribuições para ampliar o horizonte do campo educacional. Ao longo deste trabalho, a autora busca articular as semelhanças e diferenças entre as perspectivas de ambos sobre a educação, complexidade e liberdade.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Roxana_Br
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Da educação como prática da liberdade à inteligência
da complexidade: diálogo de saberes
entre Freire e Morin
Robéria Nádia Araújo Nascimento
Índice
1 Para (re)construir um “diálogo com-
plexo” 2
2 Consciência e democracia: caminhos
para a liberdade e “passagens” para o
pensamento complexo 3
3 Entrelaçando os dizeres, reinventando
os saberes: a educação da complexi-
dade ou a complexidade da educação? 6
4 A dimensão da complexidade no hori-
zonte da educação popular 9
5 (In)Conclusão: a falta do ponto final 11
6 Referências 12
Resumo
O texto articula as idéias de Paulo Freire
e de Edgar Morin, enfatizando suas con-
tribuições para o horizonte do campo
educacional. Na ótica de Freire, o diálogo
rompe com o verticalismo que produz a
hegemonia do saber. À luz de Morin, o
viés da complexidade aponta a educação
Professora da UEPB (Universidade Estadual da
Paraíba), mestre em Ciência da Informação (UFPB)
e doutoranda em Educação (UFPB), desenvolvendo
pesquisa sobre educação e complexidade.
como um projeto de reconstrução perma-
nente, através da pluralidade de saberes.
Dessas concepções, emerge a necessidade
de se formar um novo educador para que
a premissa de um novo homem seja possível.
Palavras-chave: Paulo Freire, Edgar Mo-
rin, educação, diálogo, complexidade.
Abstract
This work addresses and explores Paulo
Freire’s and Edgar Morin’s ideas, stressing
their contribution to broaden the horizon
of the educational field. From Freire’s
point of view, this dialogue breaks with the
authoritarian position which brings about
the hegemony of knowledge. According to
Morin’s thinking, the complexity of this new
trend points to education as a permanently
innovative project, through the plurality of
knowledge. Out of these two conceptions,
rises the necessity of building a new edu-
cation that could enable the formation of a
new and insightful individual.
Key-words: Paulo Freire, Edgar Morin,
education, dialogue, complexity.
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Da educação como prática da liberdade à inteligência

da complexidade: diálogo de saberes

entre Freire e Morin

Robéria Nádia Araújo Nascimento∗

Índice

1 Para (re)construir um “diálogo com- plexo” 2 2 Consciência e democracia: caminhos para a liberdade e “passagens” para o pensamento complexo 3 3 Entrelaçando os dizeres, reinventando os saberes: a educação da complexi- dade ou a complexidade da educação? 6 4 A dimensão da complexidade no hori- zonte da educação popular 9 5 (In)Conclusão: a falta do ponto final 11 6 Referências 12

Resumo

O texto articula as idéias de Paulo Freire e de Edgar Morin, enfatizando suas con- tribuições para o horizonte do campo educacional. Na ótica de Freire, o diálogo rompe com o verticalismo que produz a hegemonia do saber. À luz de Morin, o viés da complexidade aponta a educação

∗Professora da UEPB (Universidade Estadual da

Paraíba), mestre em Ciência da Informação (UFPB) e doutoranda em Educação (UFPB), desenvolvendo pesquisa sobre educação e complexidade.

como um projeto de reconstrução perma- nente, através da pluralidade de saberes. Dessas concepções, emerge a necessidade de se formar um novo educador para que a premissa de um novo homem seja possível.

Palavras-chave: Paulo Freire, Edgar Mo- rin, educação, diálogo, complexidade.

Abstract

This work addresses and explores Paulo Freire’s and Edgar Morin’s ideas, stressing their contribution to broaden the horizon of the educational field. From Freire’s point of view, this dialogue breaks with the authoritarian position which brings about the hegemony of knowledge. According to Morin’s thinking, the complexity of this new trend points to education as a permanently innovative project, through the plurality of knowledge. Out of these two conceptions, rises the necessity of building a new edu- cation that could enable the formation of a new and insightful individual.

Key-words: Paulo Freire, Edgar Morin, education, dialogue, complexity.

2 Robéria Nascimento

“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa. Como aprender a discutir e a debater com uma educação que impõe?” (Paulo Freire)

“Tenho em mente um ensino educativo. A missão desse ensino é transmitir não o mero saber, mas uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver; que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre.” (Edgar Morin)

1 Para (re)construir um “diálogo

complexo”

Frente aos múltiplos desafios da contempo- raneidade, o processo de formação dos indi- víduos – a esfera educacional – assume sig- nificativa relevância, uma vez que se cons- titui numa ferramenta básica para a partici- pação cidadã na vida coletiva. Nesse sen- tido, apresenta-se como um trunfo indispen- sável para fazer surgir, em meio a condições adversas, indivíduos culturalmente íntegros e conscientes de sua responsabilidade sócio- política. Assim, faz-se necessário e urgente pensar- mos a educação como uma força motriz para a reconstrução do sujeito social ativo, capaz de apontar novos caminhos no tecer contínuo do conhecimento. Em momentos permeados de incertezas, próprios da época contempo- rânea, o pensamento educacional requer um diálogo crítico e uma constante abertura para o novo. Isso significa desenvolver outras for- mas de inteligibilidade, como propósito de resgatar os valores essenciais do ser humano,

mediante um aprendizado ininterrupto anco- rado no questionamento da realidade. Na perspectiva de propormos uma refle- xão a esse respeito, a abordagem que deli- neamos ao longo deste texto busca articular algumas idéias de Paulo Freire e Edgar Mo- rin, enfatizando suas contribuições e a simi- litude de seus postulados para o horizonte do campo educacional. Entre suas palavras, lo- calizamos elos e interfaces proveitosas que podem oferecer nova luz à temática da edu- cação popular (EP). Na discussão aqui empreendida, acredita- mos ser útil sublinhar que não realizamos uma análise exaustiva das concepções on- tológicas, epistemológicas e metodológicas freireanas e morinianas. Até mesmo porque a riqueza teórica dos trabalhos de ambos não pode ser desvelada nos limites de um artigo. Dos escritos freireanos, sobressai a espe- rança de um mundo livre e mais justo, a par- tir da desalienação dos sujeitos. Aliás, a con- dição da humanização, para Freire, depende do resgate histórico da liberdade. Nesse con- texto, a educação passa a ser compreendida como o canal pontencializador da consciên- cia crítica dos indivíduos. A EP, como um processo político- pedagógico que visa fortalecer a consciên- cia da cidadania, busca emancipar os sujeitos sociais, através da auto-reflexão de sua histó- ria, tendo Paulo Freire como seu maior expo- ente. Assinalando a necessidade do processo “ação-reflexão-ação”, a pedagogia freireana possibilita o rompimento com a educação vertical e a imposição do saber dominante sobre os dominados. Opondo-se ao autorita- rismo deste saber, a proposta de Freire con- sidera a complexidade do saber popular e o entende como possibilidade de transforma- ção.

4 Robéria Nascimento

Neto (2003) ressalta o surgimento de uma nova razão, capaz de promover a comunica- ção pelo diálogo e valorizar os princípios éti- cos do ser humano, através de novos patama- res de civilização. Educar para a liberdade significa partilhar o saber e promover uma “vontade” coletiva em direção à democracia. Este é um dos pressupostos da pedagogia freireana. No plano da “realização”, há que se fomentar novos espaços comunicacionais para acolher novos sujeitos em fase de agregação. Nesse âmbito, um novo modelo de democracia par- ticipativa pode ser gestado, tornando a pro- dução do conhecimento e a sua disseminação em molas propulsoras de sociedades livres. Em “Educação como prática da liberdade” e “Pedagogia do oprimido”, encontramos ei- xos norteadores que podem sintetizar o pen- samento freireano: a alteridade, a comunica- ção, a cultura, a ética, a política e o amor.

  • Alteridade – a “revolução” por uma sociedade igualitária pressupõe a re- volução nas subjetividades individuais. Uma educação que acolhe e respeita o “outro” como possibilidade de emanci- pação, aceitando diferenças e peculia- ridades, pode inspirar sonhos de liber- dade e de justiça social. Se não pode- mos enxergar o outro, enquanto exten- são de nós mesmos, como será possí- vel pensarmos em cidadania”? É a di- ferença que perpassa o outro que cons- titui a vida social e sua dinâmica. As diferenças fazem surgir, por intermé- dio da educação, forças de cooperação, de solidariedade, de amizade. Apon- tar a categoria “alteridade” como parti- cipante da pedagogia freireana permite compreender que individualidade e uni-

versalidade são conceitos complemen- tares sob o signo da liberdade. A educa- ção que enfoca uma alteridade “profe- rida”, mas não “praticada”, transforma- se numa retórica vazia e relega “o ou- tro” a uma vida permeada por injusti- ças;

  • Comunicação – é a matéria-prima do diálogo; processo de interação social, através do qual os indivíduos comparti- lham (tornam “comuns) suas experiên- cias sob condições de acesso livre e par- ticipação. Um dos objetivos do diálogo é “comunicar” o entendimento da reali- dade para não se exercer influência do- minadora sobre os outros. O exercício do diálogo possibilita ambientes sócio- culturais favoráveis à construção da li- berdade. Paulo Freire critica qualquer tipo de estratégia educativa que se li- mite apenas à transformação individual dos educandos, esquecendo-se de trans- formar, coletivamente, as estruturas so- ciais, mediante o diálogo que liberta;
  • Cultura – o conceito de cultura em Freire é apontado como a conseqüência da práxis humana e de sua relação com o trabalho. Três expressões sobressaem deste conceito: a cultura do silêncio, a noção antropológica de cultura e a ação cultural. A cultura do silêncio se refere ao mutismo brasileiro, à falta de auto- nomia política, à acomodação e à pas- sividade dos setores oprimidos. É uma cultura que não indica ausência de fala, de respostas, mas que engloba uma es- pécie de “resposta” que carece de criti- cidade (Teoria da dependência). A no- ção antropológica de cultura relaciona-

Da educação como prática da liberdade à inteligência da complexidade 5

se ao papel do homem no mundo e com o mundo enquanto ser transformador. Trata-se de uma concepção que rompe com a “tese da adaptação ao meio”. A ação cultural, por sua vez, fomenta a ação política, na medida em que Freire identifica a ação humana com o traba- lho. Se lembrarmos o sentido objetivo do termo cultura, vislumbramos uma re- ferência a todo o conjunto de criações pelas quais o espírito humano insere sua presença na história. Nessa ótica, cul- tura é um fenômeno social, criado pelos grupos e transmitido por estes através dos tempos. A cultura, no entender de Freire, é uma ação transformadora das condições de opressão, à medida que o homem age sobre o seu destino;

  • Ética – a ética universal defendida pelo educador popular concerne ao respeito dos valores e comportamentos históri- cos. Dotado de particularidades e sin- gularidades, o ser humano compreende o mundo a partir de seus referenci- ais, num processo dialético de desvela- mento da realidade. Educar é sempre um ato ético e a prática educativa con- tém em si a eticidade como condição de existência. A prática formadora neces- sita da responsabilidade ética dos edu- cadores através da mobilização de cada um no esforço de superá-las;
  • Política – a luta pela educação que li- berta é um ato político; o engajamento em prol dos oprimidos é uma atitude política. Não ficar indiferente perante à exclusão e à miséria é fazer política por intermédio da educação. A nega- ção do imobilismo, a busca pela auto-

nomia dos sujeitos, a possibilidade da mudança social como bandeiras de um mundo mais digno representam a con- cepção “política” que perpassa os escri- tos freireanos. Fazer política com refle- xão é um processo educativo que impul- siona a liberdade e educa para a vida. A pedagogia freireana é, em função disso, uma pedagogia da esperança;

  • Amor – Paulo Freire salienta: “o amor é uma dimensão do ser vivo e que ao nível do ser humano alcança uma trans- cendência espetacular. Neste sentido é que eu digo que a revolução é um ato de amor”. O desafio maior dos sujeitos é conviver com a mesquinhez que se pro- lifera no cotidiano e com os demônios que perturbam e confundem as consci- ências dos mais fracos. Educar é um ato de amor, sobretudo porque não pode- mos ser inimigos/opressores dos outros, se habitamos o mesmo planeta e dividi- mos o mesmo céu. Para Morin (1995), o mundo avança sem submergir na barbá- rie porque existem famílias que “amam, amizades, caridade, compaixão, impul- sos do coração. São esses sentimentos que tornam a vida possível e a morte indesejável; que fomentam o que há de mais precioso e o que é mais ameaçado: o amor” (MORIN, 1995, p. 231).

Em razão do exposto, Paulo Freire e Edgar Morin partilham os alicerces de uma pedago- gia libertária e afetiva. Partilham com a opi- nião de Alves (1998), ao defenderem a pre- missa de que educação e ciência requerem “alma e consciência”, “vida e comunhão”:

A vida é muito mais que a ciência. Ci- ência é uma coisa entre outras, que em-

Da educação como prática da liberdade à inteligência da complexidade 7

formação educativa requer, segundo o pen- samento de ambos, uma consciência “refor- madora”. Sem a reforma do pensamento, ar- gumenta Morin, não há reforma educacional. A pedagogia freireana é uma pedagogia da vida, que respeita as “leituras de mundo” próprias de cada sujeito. O pensamento com- plexo não constitui uma inteligência que se reduza à ciência ou à filosofia: mas fomenta uma inteligência aberta capaz de articular a comunicação entre esses campos, como se fosse uma naveta que se empenha para “unir os fios”. Paulo Freire fala de uma educação popular pautada no ensino da condição humana e no respeito à alteridade dos sujeitos. Edgar Mo- rin entende a educação como um espaço vivo apto a formar tanto competências técnicas, com morais e éticas, através da partilha do conhecimento; um caminho que minimiza a exclusão social e conscientiza os indivíduos. O enfoque freireano difunde a idéia de que a educação deve ser contemporânea da soci- edade, subsistindo no seu interior o velho e o novo, o estático e o dinâmico, a possibilidade da transformação. A inteligência da comple- xidade proposta por Morin analisa as especi- alidades educacionais como “complementa- res” através de métodos que possam religar os conhecimentos. A desconstrução e a re- construção dos modelos cognitivos existen- tes também foram objetivos de Paulo Freire. Partindo de princípios metodológicos di- ferentes, ambos buscam compreender a edu- cação como um processo passível de gerar um homem em sintonia com seu tempo, gra- ças à esfera do diálogo. Educar para a liber- dade e educar para a complexidade signifi- cam atitudes que questionam a disciplinari- dade fechada, inerte, não comunicante que

impossibilita um diálogo enriquecedor nos ambientes educativos. Na ótica de Morin (1991), a inteligência da complexidade se instala pela pulsão cog- nitiva que dá vida à historicidade humana. A cultura, nesse raciocínio, é organizada pelo veículo cognitivo que é a linguagem, alma do diálogo social:

A partir do capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, dos saberes – fazeres apreendidos, das experiências vi- vidas, da memória histórica, das crenças míticas de uma sociedade manifestam- se representações coletivas, consciências coletivas, imaginário coletivo... (MO- RIN, 1991, p. 17).

À luz de tal argumento, a articulação da palavra, a aferição de significados, o exercício das trocas lingüísticas, a criação dos métodos educativos sinalizam a relação homem-natureza-cultura, que fomenta pro- blemas novos e instigantes que desafiam os educadores. Os autores supracitados enfatizam que é o conhecimento do conhecimento que cria o comprometimento e favorece o diálogo. Por isso, devemos conservar a responsabili- dade por tudo que conhecemos. Os nossos atos educativos contribuem para dar forma ao mundo que habitamos e assim precisamos criar um movimento complexo para permitir o trânsito dos saberes. Para que esse movimento ocorra, é neces- sário que as competências se fundam e haja a troca de experiências decorrentes de domí- nios diversos, que não se restringem às suas especialidades. A síntese desse movimento dialógico e inclusivo é denominado de inte- ligência da complexidade por Edgar Morin.

8 Robéria Nascimento

Não se trata de extinguir as disciplinas no âmbito educativo, mas de fazê-las dialogar e compartilhar os conhecimentos produzidos. Em razão disso, Morin sublinha a necessi- dade de se repensar a formação dos educa- dores em prol da humanização do ensino, te- mática tão cara ao educador Paulo Freire. A partir da hegemonia do saber vão sendo multiplicadas separações sucessivas entre natureza e cultura, mundo real e imaginá- rio, produção popular e intelectual, teoria e prática, reflexão e ação. A educação passa a acentuar o caráter utilitário do conheci- mento, restringindo a criatividade humana a campos demarcados e limitados. Nesse cenário, a fragmentação do pensa- mento é privilegiada, através da formação mecânica de competências. A incomunica- bilidade dos saberes populares e eruditos, da tradição e da ciência, gera um tipo de saber especializado. O saber popular, valorizado pela tradição da EP, é excluído, numa educa- ção que separa o científico do humano, valo- rizando a hiper-especialização. Diante dessa realidade, os eixos propos- tos por Edgar Morin para o pensamento com- plexo são similares aos pilares que sustentam a pedagogia freireana: o diálogo e o huma- nismo, numa aliança entre a cultura huma- nística e a cultura científica. Os seus escritos buscam articular as bases de um novo espí- rito científico, considerando os saberes pro- duzidos pelas tradições populares. Para es- tes autores, a transformação social depende diretamente da transformação cognitiva dos indivíduos. No raciocínio de Morin, os temas mundo, terra, vida, humanidade, arte, história, cul- tura e conhecimento são fundamentais para se compreender o processo do conheci- mento, a identidade dos sujeitos e a ética do

gênero humano. Ensinar a viver a condição humana é, portanto, a maior premissa da in- teligência complexa. A “razão complexa” considerada na dis- cussão moriniana é, na verdade, uma ra- zão dialético-dialógica, que apresenta como princípio o ir e vir da realidade social na di- reção do vir a ser da transformação dos su- jeitos. Em Paulo Freire, o “fazer saber” edu- cativo também é uma forma de intervenção crítica no mundo. Daí porque entendemos a educação como prática da liberdade uma dimensão política da inteligência complexa discutida pelo pensador francês. Ensina-nos Freire que a educação sem base popular atua como mera reprodutora da discriminação e da seletividade sociais. Edu- car não é somente perceber a realidade, mas agir em prol da sua transformação, criar uma práxis desveladora e reflexiva do mundo re- pleto de injustiças. Nessa linha de raciocínio, Morin entende o indivíduo como uma unidade complexa: física, biológica, psíquica, cultural, social e histórica, tendo papel fundamental para transcender a condição ainda primitiva da pseudo-civilidade humana. Nesse ponto, Morin analisa em profundidade a identidade terrena e a sua dimensão cósmica. O homem é visto, na sua concepção, como uma auto- organização viva. No nosso entender, a preocupação com a identidade terrena também é percebida na obra de Freire, principalmente nas suas aná- lises sobre a exclusão provocada pelo glo- balismo dominante. Um ser complexo, que exerce sua autonomia através da cultura e da historicidade, está presente na visão dos dois pensadores aqui tratados. Ambos con- sideram a unidade na diversidade e a cultura

10 Robéria Nascimento

ocupação se não o empenho para compreen- der a complexidade das relações humanas? Desde Kuhn (1990), fomos alertados de que a ciência caminha face à troca de pa- radigmas, idéias que surgem para questio- nar os pilares até então estabelecidos e vistos como inabaláveis. Emergem, assim, outras perspectivas para a práxis científica, englo- bando técnicas, métodos, hipóteses, teorias, num ciclo conjunto e inesgotável, cuja pala- vra de ordem é “renovação”. Sob o fio deste argumento, a educação pode se renovar através de um pensamento que agregue competências e especialidades. Porém, como construir as bases de um pen- samento com tais propósitos? Segundo Mo- rin, não basta olhar na direção da interdis- ciplinaridade ou sobrepor conhecimentos de diversas áreas do saber. É preciso perceber a transdisciplinaridade inerente ao ato edu- cativo, contextualizando, religando teorias e educadores. Em nome dessa idéia, a epistemologia da complexidade pode oferecer algumas pro- postas para o campo da educação popular:

  • Recontextualização do princípio de uni- versalidade, determinado pelo para- digma da simplificação proposto pela ciência tradicional, na direção de um paradigma humanista. Adota-se, então, estratégias educativas que respeitem o local e o singular dos setores populares;
  • O princípio de reconhecimento e de in- tegração, com a necessidade de inter- venção histórica nos acontecimentos e situações de reivindicação;
  • A não separação de elementos das par- tes e do todo que os compõem, aliada às

necessidades comunitárias de desenvol- vimento;

  • O princípio da causalidade complexa, que pressupõe problemáticas mútuas e inter-relacionadas;
  • A consideração da perspectiva dialógica sob as bases da ordem, desordem, in- terações, organização e movimento in- verso dos saberes apreendidos;
  • O princípio de distinção, mas não de se- paração entre a realidade a ser conhe- cida, ou entre o ser e seu ambiente;
  • A relação entre o observa- dor/concebedor e o objeto obser- vado/concebido nos espaços populares;
  • A possibilidade de se elencar categorias do campo analisado para construir uma teoria próxima para explicá-lo a partir de suas próprias categorias;
  • A construção de uma noção prática de autonomia, mediante a utilização dos elementos da autoprodução e da auto- organizaçao;
  • A consideração das tradições, contradi- ções ou aporias impostas pela observa- ção/experimentação que o ambiente su- gere;
  • A propagação do pensamento dialó- gico, interligando contribuições eventu- almente antagônicas de modelos já tes- tados anteriormente;
  • Educar para a superação das incompre- ensões e do conhecimento esfacelado. A complexidade demonstra o impera- tivo de se “aprender” constantemente

Da educação como prática da liberdade à inteligência da complexidade 11

o estar no mundo, através de novas articulações teórico-metodológicas que possam valorizar a prática educativa. Quando os educadores reformulam suas ações existe a real possibilidade de se imprimir um outro significado à cida- dania e à emancipação, construindo um “conhecimento pertinente”, evitando a fragmentação do saber, para que a rela- ção disciplinar seja ultrapassada.

A constatação de Fleuri (1998) oferece um reforço ao nosso pensamento:

O salto de qualidade no processo edu- cativo (a superação da relação discipli- nar) estaria na elaboração da consciência e da complexidade das relações humanas e na capacitação para gerir cooperativa- mente a reciprocidade entre sujeitos (com a inerente tensão entre identidade e di- ferença, autonomia e cooperação) e dos processos comunicativos (ativando múl- tiplos canais de percepção, linguagens, valores e técnicas) articulados organica- mente com o ambiente natural, cultural e social (FLEURI, 1998, p. 103).

Abordar a educação popular à luz do para- digma da complexidade implica considerar a importância do “contexto” no qual as rela- ções ocorrem e a urgência de se analisar con- juntamente algumas questões que permeiam as práticas educativas. Adverte Morin (2000) que o sistema de ensino privilegia a “separa- ção” em vez de exercitar a “ligação”. O co- nhecimento, segundo sua consciência, apre- senta uma necessidade de “complemento”: as teorias não são prontas e acabadas, mas provisórias. No âmbito da EP, observar a inter-relação (individual, contextual e metacontextual) e

a integração dos saberes significa perceber a complexidade do real e do conhecimento. Argumenta Fleuri, numa leitura de Kosik: “levar em conta a analogia estrutural entre os vários sistemas e, ao mesmo tempo, reconhe- cer a especificidade de cada um é condição para se conhecer a complexidade das estru- turas e das formas do movimento da própria realidade” (FLEURI, 1998, p. 111).

5 (In)Conclusão: a falta do

ponto final

Com a identificação dos pressupostos da complexidade, os educadores populares po- dem construir propostas de ação que am- pliem a qualidade do processo pedagógico, de modo a fortalecer as interações afeti- vas, sociais, psicológicas e culturais. Edgar Morin e Paulo Freire entendem a educação como instrumento capa de reverter as injus- tiças e as exclusões. Freire, especificamente no que concerne à educação como prática da liberdade; Morin, no que se refere à dinâ- mica do conhecimento e sua multidimensi- onalidade. Como síntese do que pretendemos esboçar neste texto, destacamos:

  • A EP pode ser exercida nos múltiplos espaços da vida cotidiana, colaborando no sentido de capacitar os sujeitos para a luta contra a opressão, sem utilizar, para isso, métodos unicamente linea- res; a Complexidade é um pensamento ancorado numa inteligência multiface- tada, que recusa a organização linear;
  • A EP pretende conscientizar os seg- mentos populares para a percepção do

Da educação como prática da liberdade à inteligência da complexidade 13

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