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A Lei Maria da Penha foi publicada em 2006, portanto, já são mais de quinze anos de vigência. Nesse período, tem salvado vidas e atuado na desigualdade entre homens e mulheres, evidenciada pela violência, nas relações afetivas, domésticas e familiares. Os índices dessa violência são alarmantes e coloca o Brasil entre os cinco países do mundo mais perigosos para as mulheres viverem. Esperamos, nesse ambiente virtual, junto com você, refletir sobre esse grave problema enfrentado em todo o mundo: a violência doméstica e familiar contra as mulheres. O nosso estudo será realizado a partir de uma abordagem introdutória da Lei Maria da Penha, tendo por foco as estratégias levadas a efeito na questão da violência contra as mulheres em nosso pais. O curso foi planejado com uma carga de 60 horas, distribuídas em três módulos desdobrados em nove unidades. Durante a realização dos módulos, você terá oportunidade de aprofundar seus conhecimentos sobre os temas tratados nas unidades e, ao final, d
Tipologia: Resumos
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Saberes.senado.leg.br Curso a Distância Cadernos EaD – ILB Curso: Dialogando sobre a Lei Maria da Penha Realização: Instituto Legislativo Brasileiro, Senado Federal
Estamos iniciando o curso: Dialogando sobre a Lei Maria da Penha! Seja bem-vindo(a)! O curso on-line “Dialogando sobre a Lei Maria da Penha” tem por objetivo disseminar conhecimentos sobre a Lei nº 11.340, de 2006, considerada a terceira melhor lei do mundo na questão da violência doméstica e familiar contra as mulheres. Diz-se que é uma lei que “pegou”, pois é amplamente conhecida pelas mulheres que dela fazem uso, quando em situação de violência. A Lei Maria da Penha foi publicada em 2006, portanto, já são mais de quinze anos de vigência. Nesse período, tem salvado vidas e atuado na desigualdade entre homens e mulheres, evidenciada pela violência, nas relações afetivas, domésticas e familiares. Os índices dessa violência são alarmantes e coloca o Brasil entre os cinco países do mundo mais perigosos para as mulheres viverem. Esperamos, nesse ambiente virtual, junto com você, refletir sobre esse grave problema enfrentado em todo o mundo: a violência doméstica e familiar contra as mulheres. O nosso estudo será realizado a partir de uma abordagem introdutória da Lei Maria da Penha, tendo por foco as estratégias levadas a efeito na questão da violência contra as mulheres em nosso pais. O curso foi planejado com uma carga de 60 horas, distribuídas em três módulos desdobrados em nove unidades. Durante a realização dos módulos, você terá oportunidade de aprofundar seus conhecimentos sobre os temas tratados nas unidades e, ao final, deverá realizar exercícios objetivos. Após cada módulo, haverá uma atividade avaliativa. Durante a leitura dos conteúdos, você será levado à reflexão dos assuntos abordados e encontrará dicas para aprofundamento em determinados temas. Você, também, encontrará materiais para leituras complementares, links de interesse e glossário de termos técnicos. A leitura desse material complementar é facultativa e não está computada na carga horária do curso.
No módulo I, faremos um percurso pela legislação brasileira e internacional de direitos humanos visando conhecer, no contexto histórico e social dessas leis e suas interpretações, como atos abusivos e maus-tratos contra as mulheres transpuseram a esfera privada, da família, para a esfera de interesse público; como surgiu o conceito de violência contra a mulher nos estudos brasileiros e visibilizadas as diferentes formas de violência que atingem as mulheres. Pelo módulo II, daremos início à discussão sobre o novo paradigma criado pela Lei Maria da Penha aos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres, conhecendo o seu processo de elaboração, as inovações, avanços e desafios. Na sequência, vamos conhecer as diversas estratégias de abordagem do problema, os serviços de atendimento, a concepção de rede e sua importância para dar conta da complexidade da violência contra as mulheres. Finalizando, o módulo III será dedicado ao estudo sobre a especificidade da lei às mulheres, os conceitos e as formas de violência, bem como as medidas protetivas e o papel da delegacia, ministério público e juizados especializados de violência doméstica e familiar; após, disponibilizaremos um estudo de caso para a sua reflexão, tendo por base o conteúdo estudado.
Iniciando o nosso diálogo sobre a Lei Maria da Penha, vamos conhecer, nas próximas três unidades deste primeiro módulo, como atos abusivos contra as mulheres, naturalizados no espaço da família como algo sem importância e de interesse privado, passaram a ser considerados de interesse público, integrando o sistema normativo brasileiro e internacional de direitos humanos. Além desse percurso pelo campo normativo, na unidade 3, vamos nos deter especificamente sobre a construção do conceito de violência contra a mulher, no âmbito dos estudos teóricos e empíricos brasileiros.
Ao final do Módulo, você deverá ser capaz de:
nossa sociedade e do papel reservado às mulheres nesse processo. Assista, em especial, dos 27 minutos e 22 segundos até os 36 minutos e 10 segundos. Vídeo Mulheres em Movimento, link externo. Este vídeo é ilustrativo quanto à realidade das mulheres no período colonial, mostrando alguns caminhos trilhados por elas, a partir do século XIX, para romper as barreiras nos campos da educação e da vida política (direito de votar e ser votada). No que tange aos abusos e maus-tratos contra as mulheres, a história nos dá conta de sua existência desde a época do Brasil Colônia. Curiosidade : Pesquisas realizadas em processos de divórcio na época do Brasil Colônia indicam que as mulheres não eram passivas em relação às desavenças e maus-tratos. Eram elas que, muitas vezes, abriam processo de divórcio ou separação de corpos no tribunal eclesiástico (Del Priore, 2013). É importante destacar o racismo que imperava na sociedade colonial e imprimia contornos mais severos à violência contra as mulheres negras, conforme pontua Del Priore (2013, p. 24): “Temperadas por violência real ou simbólica, as relações eram vincadas por maus-tratos de todo tipo, como se veem nos processos de divórcio. Acrescente-se à rudeza atribuída aos homens o tradicional racismo, que campeou por toda parte: estudos comprovam que os gestos mais diretos e a linguagem mais chula eram reservados a negras escravas e forras ou mulatas; às brancas se direcionavam galanteios e palavras amorosas. Os convites diretos para fornicação eram feitos predominantemente às negras e pardas, fossem escravas ou forras. Afinal, a misoginia – ódio das mulheres – racista da sociedade colonial as classificava como fáceis, alvos naturais de investidas sexuais, com quem se podiam ir direto ao assunto sem causar melindres”. A violência contra as mulheres, em razão do gênero, geralmente está correlacionada a outros marcadores de desigualdade como raça e etnia, geração (idade), classe social, orientação sexual, região, entre outros. O Mapa da Violência 2015 mostra maior impacto da violência sobre as mulheres
negras. Considerando os dados de 2003 e 2013, houve uma queda de 9,8% no total de homicídios de mulheres brancas e um aumento de 54,2% no número de homicídios de mulheres negras. Em relação ao local da agressão, cerca de 27,1% dos homicídios de mulheres ocorre no domicílio, em contraposição a 10,1% dos homicídios masculinos; os homens são assassinados na grande maioria por arma de fogo (73,2%); e as mulheres, por arma de fogo (48,3%), estrangulamento/sufocação, cortante/penetrante e objeto contundente, “indicando maior presença de crimes de ódio ou por motivos fúteis/banais” (Waiselfisz, 2015, p. 30-39). Mapa a Violência 2015, em pdf, link externo. Observação : Segundo Del Priore (2013, p. 6), “não importa a forma como as culturas se organizaram”, a diferença entre masculino e feminino sempre foi hierarquizada. No Brasil Colônia vigorava o patriarcalismo brasileiro que conferia aos homens uma posição hierárquica superior às mulheres, de domínio e poder, sob o qual os “castigos” e até o assassinato de mulheres pelos seus maridos eram autorizados pela legislação. Saiba Mais : Sobre o patriarcalismo brasileiro: Desde a chegada dos portugueses à costa brasileira, a instalação das plantações de cana de açúcar e a importação de milhões de escravos africanos para trabalhar nos engenhos que se espalharam pelo litoral, a mulher no papel de companheira, mãe ou filha se destacou. No início não se tratava exatamente da mulher branca. Caramuru, na Bahia, unido a Paraguaçu, e João Ramalho, fundador de Santo André da Borda do Campo, casado com Mbici ou Bartira, deram o exemplo. (..) A dispersão dos núcleos de povoação reforçou as funções da família no interior da qual a mulher era mantida enclausurada. Ela era herdeira das leis ibéricas que a tinha na conta de imbecilitas sexus: incapaz, como crianças ou os doentes. Só podia sair de casa para ser batizada, enterrada ou se casar. Sua honra tinha de ser mantida a qualquer custo. O casamento, quando havia bens a se preservar, era organizado para manter a paz entre vizinhos e parentes, estes últimos sendo os escolhidos com mais frequência como maridos.
As mulheres estavam sujeitas ao poder disciplinar do pai ou marido, assim, constava da parte criminal das Ordenações Filipinas que eram isentos de pena aqueles que ferissem as mulheres com pau ou pedra, bem como aqueles que castigassem suas mulheres, desde que moderadamente (Livro V, Título 36, § 1º). Os homens tinham também o direito de matar suas mulheres quando encontradas em adultério, sendo desnecessária prova austera; bastava que houvesse rumores públicos (RODRIGUES, 2003). Após mais de 300 anos de vigência das Ordenações Filipinas no Brasil, o Código Criminal de 1830 afasta parte dessas normas, entre as quais, aquelas que autorizam os castigos e a morte de mulheres, por adultério, seguindo tendência de substituição da vingança privada pela mediação do Estado (CORREIA, 1981). Contudo, o Código Criminal de 1830, refletindo os costumes da sociedade patriarcal brasileira dessa época, tratou desigualmente homens e mulheres quando tipificou o adultério, não obstante a primeira Constituição brasileira de 1824, instituir a igualdade formal “para todos”. Pelo Código Criminal de 1830, o adultério cometido pela mulher casada seria crime em qualquer circunstância. No entanto, para o homem casado, apenas constituiria crime se o relacionamento adulterino fosse estável e público. Segundo juristas do Brasil Império, era patente o caráter de maior gravidade e maior reprovabilidade da conduta da mulher, quando se tratava de adultério, tanto na esfera penal quanto na cível. O modelo de família patriarcal que legitima o homem como chefe de família, delega poder disciplinar sobre os filhos e a mulher, persiste no século XIX, na época do Brasil Império e se estende para meados do século XX. Curiosidade : Para se ter uma ideia da força do modelo de família dessa época, Rodrigues (2003, p. 72) conta que na consolidação das leis civis, realizada por Teixeira de Freitas - destacado jurista do Império, havia um artigo que permitia ao marido requerer diligências policiais, caso fosse necessário obrigar a mulher a coabitar, dando garantias ao poder marital. Esse trabalho não resultou em Código e o artigo não foi adiante, mas, na contramão do avanço dos direitos das mulheres, o Código Civil de 1916,
garantiu a continuidade da hierarquização na família, mediante a instituição do pátrio poder e a incapacidade da mulher casada, enquanto subsistisse o casamento. O marido era o chefe da sociedade conjugal e a ele eram conferidos os poderes para a representação legal dos membros da família, administração dos bens, fixação de domicilio, autorização para o trabalho da mulher, entre outros. Conforme se observa dos comentários às disposições do Código Civil de 1916, na família hierárquica, a tentativa de assassinato e os maus-tratos eram considerados motivos que justificam a separação conjugal. Contudo, o interesse maior era a preservação da instituição do casamento: “ Tanto a respeito de excessos (tentativa de assassinato) como a respeito das injurias (maus-tratos) cabe ao juízo dos Tribunaes decidir si os factos allegados merecem uma ou outra qualificação. Devem antes de tudo ter em conta o interesse dos conjuges que exige de um lado que não se os separe por questões leves e passageiras e de outro que não se os force a prolongar uma communidade de vida insupportavel, e o interesse da sociedade que exige ao mesmo tempo que se mantenha quanto seja possível tal comunidade entre os conjuges e que se ponha termo às discussões e escandalos domésticos”. (PEREIRA, 1918, p. 96) Conforme vimos anteriormente, o Código Criminal de 1830 extinguiu a “autorização” concedida aos maridos para matar suas mulheres, em caso de adultério ou de mera suposição de sua ocorrência. Cabe ressaltar, entretanto, que sob a vigência do Código Penal de 1890 e, posteriormente, do Código Penal de 1940, duas figuras jurídicas foram criadas pela defesa dos uxoricidas, assim chamados os noivos, namorados, maridos e amantes acusados de matar suas companheiras. Trata-se dos “crimes de paixão” ou crimes passionais e da legítima defesa da honra, que ganharam força e foram largamente popularizados pela retórica dos advogados de defesa, a incorporação das teses pelos juízes e promotores e a divulgação dos julgamentos pela mídia da época. Para refletir : Você já ouviu falar em crime passional? Pode ser motivado por amor? Paixão? Poder sobre o outro? Reflita!
Isso, entretanto, não impediu que, sob a vigência do Código de 1940, mas à margem dele, pois jamais houvera essa previsão legal, nova tese fosse construída para justificar a absolvição daqueles que matavam suas parceiras íntimas - a figura da “legítima defesa da honra”. Conforme esclarece Correia (1981, p. 61): “O período romântico acabara e, lançado o novo argumento, a absolvição tornar-se á um pouco mais complicada, parecendo passar a ser, de fato, privilégio de poucos, já que será preciso “demonstrar” não só a infidelidade da companheira, mas também a honorabilidade de seu assassino. A dupla definição desta honorabilidade, através do trabalho, do valor social do homem e da necessária fidelidade de sua companheira, passa a estar ligada de forma permanente na argumentação da legítima defesa da honra”. O argumento da “legítima defesa da honra”, utilizado pela defesa dos acusados, tinha o condão de deixar em segundo plano o crime em si e trazer para o banco dos réus a vítima, dissecando e julgando sua vida pessoal e íntima. O podcast “Praia dos Ossos”, reconstituindo o assassinato de Angela Diniz pelo seu namorado Doca Street, produzido pela Rádio Novelo, no episódio 2 “o julgamento”, ilustra o funcionamento dessa “tese”. Podcast “Praia dos Ossos”, link externo. Em 1991, foi dado um importante passo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para afastar definitivamente essa figura jurídica largamente utilizada pela defesa dos acusados de matar as mulheres, em geral, esposas, companheiras, namoradas, nas relações afetivas atuais ou passadas. Disse o STJ, no julgamento do Recurso Especial 1.517, de 11/02/1991 que a “honra” é atributo pessoal e, no caso, a honra ferida é a da mulher, quem cometeu a conduta tida por reprovável (traição), e não a do marido ou companheiro que poderia ter recorrido à esfera civil da separação ou divórcio. O Enunciado nº. 26 (008/2015), da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (COPEVID), no âmbito do Ministério Público, informa que: "Argumentos relacionados à defesa da honra em contexto de violência de gênero afrontam o princípio da dignidade da pessoa humana, o disposto no artigo 226, § 8º, da Constituição Federal e o
disposto na Convenção CEDAW da ONU e na Convenção de Belém do Pará". Ainda assim, essa “tese” continuou a permear os julgamentos de assassinatos de mulheres, razão pela qual foi interposta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, em 2021, no Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de banir de vez a utilização desse argumento. Em síntese, decidiu o Supremo Tribunal Federal que a tese da “legítima defesa da honra” é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Todas as justificativas, tanto para o tratamento desigual no campo do direito penal quanto no direito civil, vão sendo desconstruídas ao longo dos anos, a partir das “resistências” das mulheres às diversas práticas de opressão e abusos e, mais recentemente, da segunda metade do século 20 para cá, aos movimentos de mulheres e feministas que incorporaram em suas pautas a violência doméstica e o direito de as mulheres viverem sem violência onde quer que estejam, na família, nas ruas, no trabalho, nas escolas, etc. Assim, até então, os maus-tratos e castigos infligidos às mulheres, especialmente no âmbito doméstico e familiar, não eram entendidos como forma de violência. Esses atos passam a ser nomeados de violência no final da década de 1970, a partir da indignação do movimento de mulheres e feministas contra a absolvição dos maridos ou companheiros que assassinavam as mulheres, sob a justificativa da legítima defesa da honra. Nas próximas unidades deste Módulo, vamos conhecer um pouco mais sobre a construção do conceito de violência contra a mulher. Definição dos termos “movimento de mulheres e feministas” na plataforma SABERES. Continuando o nosso percurso pela legislação brasileira, cabe aqui considerar que uma das estratégias eleitas pelos movimentos de mulheres foi o campo das reformas legais. Nesse sentido, no que tange ao campo penal, gradativamente, leis discriminatórias foram sendo alteradas ou excluídas do ordenamento jurídico, como é exemplo o crime de adultério, inscrito em todos
circunstância agravante o agente ter cometido o crime prevalecendo-se das relações de coabitação, não foi suficiente, por si só, para visibilizar a gravidade do crime cotidianamente cometido contra as mulheres. Como será visto nas unidades seguintes, fazia falta uma lei específica nesse sentido, que só ocorrerá muito mais tarde, em 2006 com a Lei Maria da Penha. Em 1995, foi publicada a Lei nº 9.099, que instituiu os Juizados Especiais Criminais para julgar as infrações de menor potencial ofensivo. No entanto, a aplicação dessa Lei aos casos de violência doméstica contra as mulheres, desde logo, se revelou incompatível com as especificidades da violência cometida contra as mulheres e voltava no tempo em que a prática era tolerada e a impunidade era a tônica nesses casos. Convém explicitar, desde logo, que essa Lei não foi criada para os casos de violência nas relações domésticas e familiares contra a mulher, mas atendeu ao chamado constitucional do artigo 98 que estabeleceu a criação de juizados especiais criminais, para o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo. Você deve estar se perguntando... Então, como essa lei passou a reger os casos de violência contra as mulheres? Essa discussão vai estar presente ao longo do nosso diálogo, mas, de imediato, podemos adiantar que por um critério objetivo, definiu-se que as infrações de menor potencial ofensivo seriam aquelas com pena fixada na lei, até um ano, posteriormente alterada para dois anos, cumulada ou não com multa. Ora, a maioria das “queixas” de violência, relatadas pelas mulheres, referiam-se a delitos que se enquadravam nessa definição legal (lesão corporal, ameaça, injúria, difamação, vias de fato), e, por essa razão, desaguavam nos Juizados Especiais Criminais. Os casos de violência doméstica contra as mulheres eram submetidos aos mesmos procedimentos dos demais, como se fossem iguais a qualquer outro tipo de delito. Definição do termo “delitos” na plataforma SABERES. O resultado da aplicação da Lei nº 9.099/95 a esses casos, culminando em pagamento de cestas básicas ou prestação de serviço comunitário, banalizava a violência e colocava em maior risco a segurança das mulheres em situação de violência. Essa constatação, a partir de estudos nas
delegacias e juizados, levou o movimento de mulheres a propor a criação de uma lei específica, com foco na proteção às mulheres em situação de violência. No campo da saúde, a Lei nº 10.778, de 2003, que instituiu a notificação compulsória nos serviços de saúde, e alterações posteriores, definiu violência contra a mulher como qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, inclusive decorrente de discriminação ou desigualdade étnica, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado. Assim, em conformidade com a Convenção de Belém do Pará, sobre a qual vamos discutir na próxima unidade, essa lei incorporou à legislação brasileira o conceito da violência contra a mulher como violência de gênero. Posteriormente, foram feitas alterações no crime de lesão corporal pela Lei nº. 10.886, de 2004, criando o tipo especial de “Violência Doméstica”, quando a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. No entanto, as alterações anteriores à Lei Maria da Penha, na esfera penal, foram pontuais, em geral, na questão da majoração da pena, e não produziram o efeito esperado tanto na responsabilização dos autores quanto na prevenção e assistência às mulheres em situação de violência. Assim, no que tange à temática da violência contra as mulheres, muitos anos depois da inclusão do artigo que trata da criação de mecanismos contra a violência nas relações familiares no texto constitucional de 1988 (artigo 226, § 8º), surgem leis específicas contra a violência que atinge as mulheres pelo fato de serem mulheres: a Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 2006) e a Lei do Feminicídio (nº 13.104, de 2015). Somam-se à legislação brasileira os documentos internacionais de direitos humanos, incormporado ao nosso sistema normativo. Na próxima unidade, vamos conhecer como o sistema de proteção internacional de direitos humanos encampou as demandas das mulheres quanto ao direito de viver sem violência e a resposta dos Estados nessa questão. 14
Saiba m ais: Para a garantia dos direitos a todos os seres humanos, o sistema de proteção internacional de direitos humanos ao longo do tempo adota diversos documentos tais como Pactos, Protocolos, declarações, Planos de Ação, Tratados e Convenções. Aqui, vamos nos reportar especialmente às Convenções, tendo em vista a adoção desse modelo de proteção na especificidade da violência contra as mulheres. Nesse cenário histórico, surge a Organização das Nações Unidas (ONU) e os seus primeiros documentos protetivos:
número mínimo de 20 (vinte) ratificações. O Brasil ratificou essa Convenção em 1984, mas com reservas. A declaração de “reserva” significa, em linhas gerais, que a Convenção não será integralmente aplicada. O Brasil fez reservas a essa Convenção, no que tange à obrigação de eliminar a discriminação no casamento e na família, as quais só foram suprimidas em 1994. Afinal, quando foram apostas reservas, ainda remanesciam vigentes normas discriminatórias contra as mulheres, especialmente no Código Civil de 1916, no capítulo da Família. Na atualidade, mais de 200 países ratificaram essa Convenção. Para compreender a relevância desses documentos na questão da violência contra as mulheres, é importante trazer a origem dessas Convenções no sistema de proteção internacional de direitos humanos, sob o aspecto da iniciativa e também dos objetivos de transformação social da desigualdade. O primeiro aspecto a se levar em conta é que, sendo essas Convenções específicas na garantia dos direitos de igualdade das mulheres, elas não surgem “naturalmente” no sistema de proteção internacional de direitos humanos. São impulsionadas pelos movimentos de mulheres que levaram para a pauta de discussões dos organismos internacionais a violência contra as mulheres e os mais diversos tipos de violação à sua condição humana. Os primeiros documentos internacionais de direitos humanos adotando o paradigma do sujeito universal “homem”, bem como a família como entidade inviolável (artigo 12) não contemplaram a violência contra as mulheres no espaço público, privado e nas relações familiares. Quando a ONU declarou o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, os movimentos de mulheres passaram a reivindicar uma Convenção específica com objetivo de obrigar os Estados-Parte a tomar todas as medidas necessárias para a promoção da igualdade entre homens e mulheres na família e em outros campos da vida pública e privada. A Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), adotada em 1979 e amplamente ratificada por vários Países, vem em resposta a essa reivindicação. Logo no artigo 1º. define a discriminação contra a mulher como sendo: Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará