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Uma análise literária sobre o romance 'memórias de um sargento' de manuel antônio de almeida. O texto discute as características do livro, como a narrativa em terceira pessoa, a presença de dois protagonistas contrastantes, e a descrição de uma sociedade coerente ligada à do rio de janeiro do começo do século xix. Além disso, o autor aborda a presença de escravos na sociedade descrita e a interconexão entre ordem e desordem.
Tipologia: Exercícios
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Em 1894 José Veríssimo definiu as
Memórias de um sargento de
milícias
como romance de costumes que, pelo fato de descrever lugares e cenas do Rio de Janeiro no tempo de D. João VI, secaracterizaria por uma espécie de realismo antecipado; emconseqüência, falava bem dele, como homem de um momentodominado pela estética do Naturalismo. Praticamente nada se disse de novo até 1941, quando Mário deAndrade reorientou a crítica, negando que fosse umprecursor.
Seria antes um continuador atrasado, um romance de tipo marginal, afastado da corrente
média das literaturas, como
os de Apuleio e Petrônio, na Antigüidade, ou o
Lazarillo de Tormes
no Renascimento -, todos com personagens anti-heróicos que sãomodalidades de pícaros. Uma terceira etapa foi aberta em 1956 por Darcy Damasceno, que abordou a análise estilística, tendo como pano de fundo umaexcelente rejeição de posições anteriores:^ Não há que considerar-se picaresco um livro pelo fato de nelehaver um pícaro mais adjetival que substantival, mormente se aeste livro faltam as marcas peculiares do gênero picaresco; nemhistórico seria ele, ainda que certa dose de veracidade hajaservido à criação de tipos ou à evocação de época; menos aindarealista, quando a leitura mais atenta nos torna flagrante opredomínio do imaginoso e do improvisado sobre a retratação oua reconstituição histórica. E depois de mostrar com pertinência como são reduzidas asindicações documentárias, prefere o designativo de romance decostumes. (1) Concordo com estas opiniões oportunas e penetrantes(infelizmente muito breves), que podem servir de ponto de pa
rtida
para o presente ensaio.
A única dúvida seria referente ao
realismo, e talvez nem esta, se Darcy Damasceno estiver sereferindo especificamente ao conceito usual das classificaçõesliterárias, que assim designam o que ocorreu na segunda metadedo século XIX, enquanto o meu intuito é caracterizar uma modalidade bastante peculiar, que se manifesta no livro de Manual Antônio de Almeida.
1.^ Romance picaresco? O ponto de vista segundo o qual ele é um romance picaresco,muito difundido a partir de Mário de Andrade (que todavia não dizbem isto), recebeu um cunho de aparente rigor da parte de JosuéMontello, que pensa ter encontrado as suas matrizes em obrascomo^
La vida de Lazarillo de Tormes
(1554) e
Vida y hechos de
Estebanillo González
Se fosse exato, estaria resolvido o problema da filiação e, com ele, grande parte do de caracterização crítica.
Mas na verdade Josué
Montello fundou-se numa petição de princípio, tomando comoprovado o que restava provar, isto é, que as
Memórias
são um
romance picaresco. A partir daí, supervalorizou algumas analogias fugazes e achou o que tencionava achar, mas não o que um cotejo objetivo teria mostrado.
De fato, a análise da picaresca espanhola
faz ver que aqueles dois livros nada motivaram de significativo no de Manuel Antônio de Almeida, embora seja possível que este haja recebido sugestões marginais de algum outro romance espanhol ou feito à maneira dos espanhóis, como ocorreu por toda a Europa no século XVII e parte do XVIII.
O que se pode fazer de mais
garantido é comparar as características do "nosso memorando"(como diz o romancista do seu personagem) com as do típicoherói ou anti-herói picaresco, minunciosamente levantadas porChandler na sua obra sobre o assunto (3). Em geral, o próprio pícaro narra as suas aventuras, o que fecha avisão da realidade em torno do seu ângulo restrito; e esta voz naprimeira pessoa é um dos encantos para o leitor, transmitindouma falsa candura que o autor cria habilmente e já é recursopsicológico de caracterização.
Ora, o livro de Manuel Antônio é
contado na terceira pessoa por um narrador (ângulo primário) que não se identifica e varia com desenvoltura o ângulo secundário -,trazendo-o de Leonardo Pai a Leonardo Filho, deste ao Compadreou à Comadre, depois à Cigana e assim por diante, de maneira aestabelecer uma visão dinâmica da matéria narrada. Sob esteaspecto o herói é um personagem como os outros, apesar depreferencial; e não o instituidor ou a
ocasião
para instituir o
mundo fictício, como o Lazarillo, Esteba
nillo, Guzman de Alfarache,
a Pícara Justina ou Gil Braz de Santilhana. Em compensação, Leonardo Filho tem com os narradorespicarescos algumas afinidades: como eles, é de origem humilde e,como alguns deles, irregular, "filho de uma pisadela e umbeliscão".
Ainda como eles é largado no mundo, mas não
abandonado, como foram o Lazarillo ou o Buscón, de Quevedo; pelo contrário, mal os pais o deixam o destino lhe dá um pai muito melhor na pessoa do Compadre, o bom barbeiro que toma contadele para o resto da vida e o abriga da adversidadematerial.
Tanto assim que lhe falta um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade, que leva à mentira, àdissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das"picardias".
Na origem o pícaro é ingênuo; a br
utalidade da vida é
que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quasecomo defesa; mas Leonardo, bem abrigado pelo Padrinho, nascemalandro feito, como se se tratasse de uma qualidade essencial,não um atributo adquirido por força das circunstâncias. Mais ainda: a humildade da origem e o desamparo da sorte setraduzem necessariamente, para o protagonista dos romancesespanhóis e os que os seguiram de perto, na condição servil.
Em
algum momento da sua carreira ele é criado, de tal modo que jáse supôs erradamente que a sua designação proviesse daí -, otermo "pícaro" significando um tipo inferior de servo, sobretudoajudante de cozinha, sujo e esfarrapado.
E é do fato de ser criado
que decorre um princípio importante na estruturação do romance,pois passando de amo a amo o pícaro vai-se movendo, mudandode ambiente, variando a experiência e vendo a sociedade noconjunto.
Mas o nosso Leonardo fica tão longe da condição servil, que o Padrinho se ofende quando a Madrinha sugere que lhemande ensinar um ofício manual; o excelente
homem quer vê-lo
padre ou formado em direito, e neste sentido procura encaminhá-lo, livrando-o de qualquer necessidade de ganhar a vida.
Por isso,
nunca aparece seriamente o problema da subsistência, mesmoquando Leonardo passa de raspão e quase como jogo pelo serviço das cozinhas reais, o que o aproximaria vagamente da condição de pícaro no sentido acima referido. Semelhante a vários pícaros, ele é amável e risonho, espontâneonos atos e estreitamente aderente aos fatos, que o vão rolandopela vida.
Isto o submete, como a eles, a uma espécie de causalidade externa, de motivação que vem das circunstâncias etorna o personagem um títere, esvaziado de lastro psicológico ecaracterizado apenas pelos solavancos do enredo. O sentimentode um destino que motiva a conduta é vivo nas
Memórias,
onde a
Comadre se refere à
sina^ que acompanha o afilhado, acumulando
contratempos e desmanchando a cada instante as combinaçõesfavoráveis. Como os pícaros, ele vive um pouco ao sabor da sorte, sem plano
nem reflexão; mas ao contrário deles nada aprende com a experiência.
De fato, um elemento importante da picaresca é essa espécie de aprendizagem que amadurece e faz o protagonistarecapitular a vida à luz de uma filosofia desencantada.
Mais
coerente com a vocação de fantoche, Leonardo nada conclui, nada aprende; e o fato de ser o livro narrado na terceira pessoa facilita esta inconsciência, pois cabe ao narrador fazer as poucas reflexões morais, no geral levemente cínicas e em todo o caso otimistas, aocontrário do que ocorre com o sarcasmo ácido e o relativopessimismo dos romances picarescos.
O malandro espanhol
termina sempre, ou numa resignada mediocridade, aceita comoabrigo depois de tanta agitação, ou mais miserável do que nunca,no^ universo do desengano e da desilusão, que marca fortemente a literatura espanhola do Século de Ouro. Curtido pela vida, acuado e batido, ele não tem sentimentos, masapenas reflexos de ataque e defesa. Traindo os amigos,enganando os patrões, não tem linha de conduta, não ama e, sevier a casar, casará por interesse, disposto inclusive àsacomodações mais foscas, como o pobre Lazarillo.
O nosso
Leonardo, embora desprovido de paixão, tem sentimentos maissinceros neste terreno, e em parte o livro é a história do seu amorcheio de obstáculos pela sonsa Luisinha, com quem termina casado, depois de promovido, reformado e dono de cinco heranças que lhe vieram cair nas mãos sem que movesse uma palha.
Não
sendo nenhum modelo de virtude, é leal e chega a comprometer-se seriamente para não lesar o malandro Teotônio.
Um antipícaro,
portanto, nestas e outras circunstâncias, como a de não procurar e não agradar os "superiores", que constituem a meta suprema domalandro espanhol. Se o protagonista for assim, é de esperar que o livro, tomado noconjunto, apresente a mesma oscilação de algumas analogias emuitas diferenças em relação aos romances picarescos. Estes são dominados pelo senso do espaço físico e social, pois opícaro anda por diversos lugares e entra em contacto com váriosgrupos e camadas, não sendo raros os destinos internacionais,como o do "galego-romano" Estebanillo.
O fato de ser um
aventureiro desclassificado se traduz pela mudança de condição,cujo tipo elementar, estabelecido no primeiro em data, o
Lazarillo
de Tormes
, é a mudança de patrões.
Criado de mendigo, criado
de escudeiro pobre, criado de padre, o pequeno vagabundopercorre a sociedade, cujos tipos vão surgindo e se completando,de maneira a tornar o livo uma sondagem dos grupos sociais e
arranjos da famosa trempe, como:
Astúcias de Bertoldo;
Simplicidadesde Bertoldinho, filho do sublime e astuto Bertoldo, eagudas respostas de Marcolfa, sua mãe; Vida de Cacasseno, filhodo simples Bertoldinho e neto do astuto Bertoldo.
Nas^ Memórias
de um sargento de milícias
, livro culto e ligado apenas
remotamente a arquétipos folclóricos, simplório é o pai e esperto é o filho, não havendo além disso qualquer vestígio de adivinhaçãognômica, própria da série dos Bertoldos e d'
A Donzela Teodora
outra sabe-tudo muito viva em nosso populário. Como não há motivo para contestar a tradição, segundo a qual amatéria do livro foi dada, ao menos em parte, pelos relatos de umvelho sargento de polícia, (5) podemos admitir que o primeironível de estilização consistiu, da parte do romancista, em extrairdos fatos e das pessoas um certo elemento de generalidade, queos aproximou dos paradigmas subjacentes às narrativasfolclóricas.
Assim, por exemplo, um determinado oficial de justiça, chamado ou não Leonardo Pataca, foi desbastado, simplificado,reordenado e submetido a uma cunhagem fictícia, que o afastouda sua carne e do seu osso, para transformá-lo em ocorrênciaparticular do amoroso desastrado e, mais longe, do bobalhãouniversal das piadas.
Noutras palavras, a operação inicial do
ficcionista teria consistido em reduzir os fatos e os indivíduos asituações e tipos gerais, provavelmente porque o seu caráterpopular permitia lançar uma ponte fácil para o universo dofolclore, fazendo a tradição anedótica assumir a solidez dastradições populares. Poderíamos, então, dizer que a integridade das
Memórias
é feita
pela associação íntima entre um
plano voluntário (a representação
dos costumes e cenas do Rio) e um plano talvez na maior parteinvoluntário (traços semi-folclóricos, manifestados sobretudo noteor dos atos e das peripécias).
Como ingrediente, um realismo
espontâneo e corriqueiro, mas baseado na intuição da dinâmicasocial do Brasil na primeira metade do século XIX.
E nisto reside
provavelmente o segredo da sua força e da sua projeção notempo. Há também, é claro, eventuais influências eruditas e traços que oaparentam às correntes literárias que, naquele momento,formavam com as tendências peculiares ao Romantismo umdesenho mais complicado do que parece a quem ler asclassificações esquemáticas.
Por este lado é que ele se entronca
em linhas de força da literatura brasileira de então, que oesclarecem tanto ou mais do que a invocação de modelos
estrangeiros e mesmo de um substrato popularesco. De fato, para compreender um livro como as
Memórias
convém
lembrar a sua afinidade com a produção cômica e satírica daRegência e primeiros anos do Segundo Reinado -, no jornalismo,na poesia, no desenho, no teatro.
Escritas de 1852 a 1853, elas
seguem uma tendência manifestada desde o decênio de1830,quando começam a florescer jornalzinhos cômicos e satíricos,como^
O Carapuceiro
, do Padre Lopes Gama (1832-34; 1837-43;
O Novo Carapuceiro
, de Gama e Castro (1841-
42). Ambos
se ocupavamm de análise política e moral por meio da sátira doscostumes e retratos de tipos característicos, dissolvendo aindividualidade na categoria, como tende a fazer ManuelAntônio.
Esta linha que vem de La Bruyère, mas também do nosso velho poema cômico, sobretudo do exemplo de NicolauTolentino, manifestava-se ainda na verdadeira mania do retratosatírico, descrevendo os tipos da vida quotidi
ana, que, sob o nome
de "fisiologia"(por "psicologia"), pupulou na imprensa francesaentre 1830 e 1850 e dela passou à nossa. Embora Balzac a tenhacultivado com grande talento, não é preciso recorrer à suainfluência, como faz um estudioso recente(6), para encontrar afonte eventual de uma moda que era pão quotidiano dos jornais. Pela^ mesma altura, surge a caricatura política, nos primeiros
desenhos de Araújo Porto-Alegre (1837) (7), e de 1838 a 1849 desenvolve-se a atividade de Martins Pena, cuja conce
pção
da vida e da composição literária se aproxima da de ManuelAntônio -, com a mesma leveza de mão, o mesmo sentidopenetrante dos traços típicos, a mesma suspensão de juízomoral.
O amador de teatro que foi o nosso romancista não poderia ter ficado à margem de uma tendência
tão bem
representada; e que apareceria ainda, modestamente, na obranovelística e teatral de Joaquim Manuel de Macedo, cheia de infra-realismo e caricatura. Os próprios poetas, que hoje consideramos uma série plangentede carpidores, fizeram poesia cômica, obscena e maluca, porvezes com bastante graça, como Laurindo Rabelo e BernardoGuimarães, cujas produções neste setor chegaram aténós.^ Álvares de Azevedo foi poeta divertido, e alguns retardatários mantinham a tradição bem humo
rada da velha sátira
social, como é o caso d'
A festa de Baldo
(1847), de Álvaro Teixeira
de Macedo, cuja linguagem enferrujada não abafa inteiramenteum discernimento saboroso dos costumes provincianos.
3.^ Romance documentário? Dizer que o livro de Manuel Antônio de Almeida é eminentementedocumentário, sendo reprodução fiel da sociedade em que a açãose desenvolve, talvez seja formular uma segunda petição deprincípio -, pois restaria provar, primeiro, que reflete o Riojoanino; segundo, que a este reflexo deve o livro a suacaracterística e o seu valor. O romance de tipo realista, arcaico ou moderno, comunica sempre uma certa visão da sociedade, cujo aspecto e significado procuratraduzir em termos de arte.
É mais duvidoso que dê uma visão
informativa, pois geralmente só podemos avaliar a fidelidade darepresentação através de comparações com os dados quetomamos a documentos de outro tipo.
Isto posto, resta o fato que
o livro de Manuel Antônio sugere a presença viva de umasociedade que nos parece bastante coerente e existente, e queligamos à do Rio de Janeiro do começo do século XIX, tendoAstrojildo Pereira chegado a compará-lo às gravuras de Debret,como força representativa (8). No entanto, o panorama que ele traça não é amplo.
Restrito
espacialmente, a sua ação decorre no Rio, sobretudo no que sãohoje as áreas centrais e naquele tempo constituíam o grosso dacidade.
Nenhum personagem deixa o seu âmbito e apenas uma ou duas vezes o autor nos leva ao subúrbio, no episódio doCaboclo do Mangue e na festa campestre da família de Vidinha. Também socialmente a ação é circunscrita a um tipo de gente livre modesta, que hoje chamaríamos pequena burguesia.
Fora daí, há
uma senhora rica, dois padres, um chefe de polícia e, bem derelance, um oficial superior e um fidalgo, através dos quaisvislumbramos o mundo do Paço.
Este mundo novo, despencado
recentemente na capital pacata do Vice-Reinado, era então agrande novidade, com a presença do rei e dos ministros, ainstalação cheia de episódios entre pitorescos e odiosos de uma nobreza e uma burocracia transportadas nos navios da fuga, entre máquinas e caixotes de livros.
Mas dessa nota viva e saliente,
nem uma palavra; é como se o rio continuasse a ser a cidade dovice-rei Luis de Vasconcelos e Sousa. Havia, porém, um elemento mais antigo e importante para oquotidiano, que formava a maior parte da população e sem o qualnão se vivia: os escravos.
ora, como nota Mário de Andrade, não
há 'gente de cor", no livro -, salvo as baianas da procissão dos
Ourive
s, mero elemento decorativo, e as crias da casa de Dona Maria, mencionadas de passagem para enquadrar o Mestre deReza. Tratado como personagem, apenas o
pardo
livre Chico-
Juca, representante da franja de desordeiros e marginais queformavam boa parte da sociedade brasileira. Documentário restrito, pois, que ignora as camadas dirigentes, deum lado, as camadas básicas, de outro.
Mas talvez o problema
deva ser proposto noutros termos, sem querer ver a ficção comoduplicaçào -, atitude freqüente na crítica naturalista que teminspirado a maior parte dos comentários sobre as
Memórias
, e que
tinha do realismo uma concepção que se qualificaria de mecânica. Na verdade, o que interessa à análise literária é saber, neste caso, qual a função exercida pela realidade social historicamentelocalizada para constituir a estrutura da obra -, isto é, umfenômeno que se poderia chamar de formalização ou reduçãoestrutural dos dados externos. Para isso, devemos começar verificando que o romance de ManuelAntônio de Almeida é constituído por alguns veios descontínuos, mas discerníveis, arranjados de maneira cuja eficácia varia: (1) os fatos narrados, envolvendo os personagens; (2) os usos ecostumes descritos; (3) as observações judicativas do narrador ede certos personagens.
Quando o autor os organiza de modo
integrado, o resultado é satisfatório e nós podemos
sentir a
realidade. Quando a integração é menos feliz, parece-
nos ver uma
justaposição mais ou menos precária de elementos nãosuficientemente fundidos, embora interessantes e por vezesencantadores como quadros isolados.
Neste último caso é que os
usos e costumes aparecem como
documento
, prontos para a ficha
dos folcloristas, curiosos e praticantes da
petite histoire
É^ o que ocorre, por exemplo, no capítulo 17 da 1ª Parte, "DonaMaria", onde reina a desintegração dos elementosconstitutivos.
Temos nele uma descrição de costumes (procissão dos Ourives); o retrato físico e moral de um novo personagem,que dá nome ao capítulo; e a ação presente, que é o debate sobreo menino Leonardo, com participação de Dona Maria, doCompadre, da Vizinhança.
Apesar de interessante, tudo nele está
desconexo.
A procissão descrita previamente como foco autônomo de interesse não é a procissão-fato, isto é, umadeterminada procissão, concreta, localizada, pormenorizada efazendo parte da narrativa.
Embora se vincule à ação presente,
ela só aparece
um instante, no fim; o que domina o capítulo é a procissão-uso, a procissão indeterminada, com o caráter de
essencia
lmente os leitores. Esta afirmativa só pode ser esclarecida pela descrição do sistemade relações dos personagens, que mostra: (1) a construção, nasociedade descrita pelo livro, de uma ordem comunicando-se comuma desordem que a cerca de todos os lados; (2) a suacorrespondência profunda, muito mais que documentária, a certosaspectos assumidos pela relação entre a ordem e a desordem nasociedade brasileira da primeira metade do século XIX. Veremos então que, embora elementares como concepção de vidae caracterização dos personagens, as
Memórias
são um livro
agudo como percepção das relações humanas tomadas emconjunto.
Se não teve consciência nítida, é fora de dúvida que o autor teve maestria suficiente para organizar um certo número depersonagens segundo intuições adequadas da realidade social. Tomemos como base o personagem central do livro, LeonardoFilho, imaginando que ocupa no respectivo espaço uma posiçãotambém central; à direita está sua mãe, à esquerda seu pai, ostrês no mesmo plano.
Com um mínimo de arbítrio podemos
dispor os demais personagens, mesmo alguns vagos figurantes,acima e abaixo desta linha equatorial por eles formada.
Acima
estão os que vivem segundo as normas estabelecidas, tendo noápice o grande representante delas, major V
idigal; abaixo estão os
que vivem em oposição ou pelo menos integração duvidosa emrelação a elas. Poderíamos dizer que há, deste modo, umhemisfério positivo da ordem e um hemisfério negativo dadesordem, funcionando como dois ímãs que atraem Leonardo,depois de terem atraído seus pais.
A dinâmica do livro pressupõe
uma gangorra dos dois pólos, enquanto Leonardo vai crescendo eparticipando ora de um,
ora de outro, até ser finalmente
absorvido pelo pólo convencionalmente positivo. Sob este aspecto, pai, mãe e filho são três nódulos de relações, positivas
(pólo da ordem) e
negativas
(pólo da desordem), sendo
que os dois primeiros constituem uma espécie de prefiguração dodestino do terceiro. Leonardo Pataca, o pai, faz parte da ordem,como oficial de justiça; e apesar de ilegítima, sua relação com Maria da Hortaliça é habitual e quase normal segundo os costumes do tempo e da classe. Mas depois de abandonado por ela, entranum mundo suspeito por causa do amor pela Cigana, que o levaàs feitiçarias proibidas do Caboclo do Mangue, onde o majorVidigal o surpreende para metê-lo na cadeia.
Ainda por causa da
Cigana promove o sarilho em sua festa, contratando o desordeiroChico-Juca, o que motiva nova intervenção de Vidigal e expõe a
vergonha pitoresca de um pad
re, o Mestre de Cerimônias.
Mais
tarde a Cigana passa a viver com Leonardo Pataca, até quefinalmente, já maduro, ele forme com a filha da Comadre,Chiquinha, um casal estável, embora igualmente desprovido debênção religiosa, como (repitamos) podia ser quase normalnaquele tempo entre as camadas modestas.
Assim, Leonardo Pai,
representante da ordem, desce a sucessivos círculos da desordeme volta em seguida a uma posição relativamente sancionada,tangido pelas intervenções pachorrentas e brutais do major
Vidigal
-, personagem que existiu e deve ter sido fundamental numa cidade onde, segundo um observador da época, "há que evitar sair sozinho à noite e ser mais atento à sua segurança do que emqualquer outra parte, porque são freqüentes os roubos e crimes,apesar de a polícia ser lá tão encontradiça
como areia do mar".
(10) A vida de Leonardo Filho será igualmente uma oscilaçao entre osdois hemisférios, com maior variedade de situações. Se analisarmos o sistema de relações em que está envolvido,veremos primeiro a atuação dos que procuram encaminhá-lo paraa ordem: seu padrinho, o Compadre; sua madrinha, aComadre.
Através deles, entra em contacto com uma senhora bem posta na vida, Dona Maria, que se liga por sua vez a umpróspero intrigante, José Manuel, acolitado pelo cego que ensinadoutrina
às crianças, o Mestre de Reza; que se liga sobretudo à sobrinha Luisinha, herdeira abastada e futura mulher de Leonardo, depois de um primeiro casamento com o dito José Manuel.Estamos
no mundo das alianças, das carreiras, das heranças, da gente de posição definida; em nível modesto, o Padrinho barbeiroe a Vizinha; em nível mais elevado, Dona Maria. Todos estão dolado^ positivo
que a polícia respeita e cujas festas o major Vidigal não vai rondar. Vista deste ângulo, a história de Leonardo Filho é a velha históriado herói que passa por diversos riscos até alcançar a felicidade,mas expressa segundo uma constelação social peculiar, que atransforma em história do rapaz que oscila entre a ordemestabelecida
e as condutas transgressivas, para finalmente integrar-se
na primeira, depois de provido da experiência das outras.
O cunho especial do livro consiste numa certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do "homem como ele é",mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor uma relativaequivalência entre o universo da ordem e o da desordem; entre oque se poderia chamar convencionalmente o bem e o mal.
Na construção do enredo esta circunstância é representadaobjetivamente pelo estado de espírito com que o narrador expõeos momentos de ordem e de desordem, que acabam igualmentenivelados ante um leitor incapaz de julgar, porque o autor retirouqualquer escala necessária para isto.
Mas há algo mais profundo,
que ampara as camadas superficiais de interpretação: aequivalência da ordem e da desordem na própria economia dolivro, como se pode verificar pela descrição das situações e dasrelações.
Tomemos apenas dois exemplos. Leonardo gosta de Luisinha desde menino, desde o belo episódiodo "Fogo no Campo', quando vê o seu rostinho acanhado deroceira transfigurado pela emoção dos rojões coloridos.
Mas como
as circunstâncias (ou, nos termos do livro, a "sina") a afastam dele para o casamento convencional com José Manuel, ele, semcapacidade de sofrer (pois ao contrário do que diz o narrador não tem a fibra amorosa do pai), passa facilmente a outros amores e à encantadora Vidinha.
Esta lembra, pela espontaneidade dos
costumes, a moreninha "amigada" com o tropeiro, que amenizou a estadia do mercenário ale
mão Schlichthorst no Rio daquele tempo,
cantando modinhas sentada na esteira, junto com a mãecomplacente(11). Luisinha e Vidinha constituem um par admiravelmentesimétrico.
A primeira, no plano da ordem, é a mocinha burguesa com quem não há relação viável fora do casamento, pois ela trazconsigo herança, parentela, posição e deveres.
Vidinha, no plano
da desordem, é a mulher que se pode apenas amar, semcasamento nem deveres, porque nada
conduz além da sua graça
e da sua curiosa família sem obrigação n
em sanção, onde todos se
arrumam mais ou menos conforme os pendores do instinto e doprazer.
É durante a fase dos amores
com Vidinha, ou logo após,
que Leonardo se mete nas encrencas mais sérias
e pitorescas,
como que libertado dos projetos respeitáveis que o padrinho e amadrinha tinham traçado para a sua vida. Ora, quando o "destino"o reaproxima de Luisinha,providencialmente viúva, e ele retoma o namoro que levará diretoao casamento, notamos que a tonalidade do relato não fica maisaprovativa e, pel
o contrário, que as seqüências de Vidinha têm um
encanto mais cálido.
Como Leonardo, o narrador parece
aproximar-
se do casamento com a devida circunspecção, mas sem entusiasmo. Nessa altura, comparamos a situação com tudo o que sabemos
dos seres no unive
rso^ do livro e não podemos deixar de fazer
uma extrapolação.
Dada a estrutura daquela sociedade, se
Luisinha pode vir a ser uma esposa fiel e caseira, o mais provávelé que Leonardo siga a norma dos maridos e, descendoalegremente do hemisfério da ordem, refaça a descida peloscírculos da desordem, onde o espera aquela vidinha ou outraequivalente, para juntos formarem um casal suplementar, que sedesfará em favor de novos arranjos, segundo os costumes dafamília brasileira tradicional.
Ordem e desordem, portanto,
extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis, que fazem do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças, doprofessor de religião um agente de intrigas, do pecado do Cadetea mola das bondades do Tenente-Coronel, das uniões ilegítimassituações honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas. "Tutto nel mondo è burla'-, cantam Falstaff e o coro, para resumiras confusões e peripécias no final da ópera de Verdi.
"Tutto nel
mondo è burla",
parece dizer o narrador das
Memórias de um
sargento de milícias
, romance que tem traços de ópera
bufa.^
Tanto assim (e chegamos ao segundo exemplo), que a conclusão feliz é preparada por uma atitude surpreendente domajor Vidigal, que no livro é a encarnação da ordem, sendomanifestação de uma consciência exterior, única prevista no seuuniverso.
De fato, a ordem convencional a que obedecem os comportamentos, mas a que no fundo permanecem indiferentes as consciências, é aqui mais do que em qualquer outro lugar o policial na esquina, isto é, Vidigal, com a sua sisudez, seus guardas, suachibata e seu relativo
fair-play.
Ele é delegado de um mundo apenas entrevisto durante anarrativa, quando a Comadre sai a campo para obter a soltura deLeonardo Pataca.
Como todos sabem, vai pedir a proteção do
Tenente-Coronel, membro da guarda caricata de velhos oficiais,que cochilam numa sala do Palácio Real.
O Tenente-Coronel por
sua vez busca o empenho do Fidalgo (que vive com o seu capote e os seus tamancos numa casa fria e mal guarnecida), para que
este
fale ao Rei.
O Rei, que não aparece mas sobrepaira como fonte de tudo, é que falará com Vidigal, instrumento da sua vontade. Maisdo que
um personagem pitoresco, Vidigal encarna toda a ordem; por isso, na estrutura do livro é um fecho de abóboda e, sob oaspecto dinâmico, a única força reguladora de um mundo solto,pressionando de cima para baixo e atingindo um por um osagentes da desordem.
Ele prende
Leonardo Pai na casa do
Caboclo e o Mestre de Cerimônias na da Cigana.
Ele ronda o baile
do batizado de Leonardo Filho e intervém muitos anos depois na
sorte ou do roubo miúdo.
Suprimindo o escravo, Manuel Antônio
suprimiu quase totalmente o trabalho; suprimindo as classesdirigentes, suprimiu os controles do mando.
Ficou o ar de jogo
dessa organização bruxuleante
fissurada pela anomia, que se
traduz na dança dos personagens entre lícito e ilícito, sem quepossamos afinal dizer
o que é um e o que é o outro, porque todos
acabam circulando de um para outro com uma naturalidade
que
lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, dasfortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade doséculo XIX.
Romance profundamente social, pois, não por ser documentário, mas por ser construído segundo o ritmo geral dasociedade, vista através de um dos seus setores.
E sobretudo
porque dissolve o que há de sociologicamente essencial nosmeandros da construção literária. Com efeito, não é a representação dos dados concretosparticulares que poduz na ficção o senso da realidade; mas sim asugestão de uma certa generalidade, que olha para os dois lad
os e
dá consistência tanto aos dados particulares do real quanto aosdados particulares do mundo fictício.
No esquema abaixo, sejam
OD o fenômeno geral da ordem e da desordem, como foi indicado; AB os fatos particulares quaisquer da sociedade joanina do Rio;A'B' os fatos particulares quaisquer da sociedade descrita nas Memórias:
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OD, dialética da ordem e da desordem, é um princípio válido degeneralização, que
organiza em profundidade tanto AB quanto
A'B', dando-lhes inteligibilidade, sendo ao mesmo tempo real efictício -, dimensão comum onde ambos se encontram, e que
explica
tanto um quanto outro. A'B' não vem diretamente de AB, pois o sentimento da realidade na ficção pressupõe o dado realmas não depende dele.
Depende de princípios mediadores,
geralmente ocultos, que estruturam a obra
e graças aos quais se
tornam coerentes as duas séries, a real e a fictícia. Neste ponto, percebemos que a estrutura do livro sofre a tensão das duas linhas que constituem a visão do autor e se traduzem em duas direções narrativas, interrelacionadas de maneira dinâmica.De um lado, o cunho p
opular introduz elementos arquetípicos, que
trazem a presença do que há de mais universal nas culturas,puxando para a lenda
e o irreal, sem discernimento da situação
histórica particular.
De outro lado, a percepção do ritmo social
puxa para a representação de uma sociedade concreta,historicamente delimitada, que ancora o livro e intensifica o seurealismo infuso.
Ao realismo incaracterístico e conformista da sabedoria e da irreverência popular, junta-se o realismo daobservação social do universo descrito.Talvez fosse possível dizer que a característica peculiar das Memórias
seja devida a uma contaminação recíproca da série arquetípica e da série social: a universalidade quase folclóricaevapora muito do realismo; mas, para compensar, o realismodá^ concreção e eficácia aos padrões incaracterísticos.
Da tensão
entre ambos decorre uma curiosa alternância de erupções dopitoresco e de reduções a modelos socialmente penetrantes,evitando o caráter accessório de anedota, o desmando banal dafantasia e a pretenciosa afetação, que comprometem a maiorparte da ficção brasileira daquele tempo. 5.^ O mundo sem culpa Diversamente de quase todos os romances brasileiros do séculoXIX, mesmo os que formam a pequena minoria dos romancescômicos, as
Memórias de um sargento de milícias
criam um
universo que parece liberto do peso do erro e do pecado.
Um
universo sem culpabilidade e mesmo sem repressão, a não ser arepressão exterior que pesa o tempo todo por meio do Vidigal ecujo desfecho já vimos.
O sentimento do homem aparece nele
como uma espécie de curiosidade superficial, que põe emmovimento o interesse dos personagens uns pelos outros e doautor pelos personagens, formando a trama das relações vividas edescritas.
A esta curiosidade corresponde uma visão muito tolerante, quase amena. As pessoas fazem coisas que poderiamser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outrasdignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos,
ninguém merece censura. A madrinha levanta um falso contra José Manuel, mas para ajudara causa simpática dos namorados; além disso José Manuel é umpatife.
A compensação vem com a reação dele por intermédio do Mestre de Reza -, Dom Basílio de fancaria -, que
consegue
destruir a calúnia.
As coisas entram nos eixos, mas nós
perguntamos se não teria sido melhor deixar a calúnia de pé... Como vimos, o Compadre "se arranja" pelo perjúrio.
Mas o
narrador só conta isto depois que a nossa simpatia já lhe estáassegurada pela dedicação que dispensou ao afilhado.
Para nós,
ele é tão bom que o traço
sinistro não pode comprometê-
lo.^ Tanto mais quanto o ouro mal adquirido nada tem de maldito e se torna uma das heranças que vão garantir a prosperidade deLenardo. Um dos maiores esforços das sociedades, através da suaorganização e das ideologias que a justificam, é estabelecer aexistencia objetiva e o valor real de pares antitéticos, entre osquais é preciso escolher, e que significam lícito ou ilícito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral, justo ou injusto, esquerda ou direita política e assim por diante.
Quanto mais rígida a
sociedade, mais definido cada termo e mais apertada a opção.
Por
isso mesmo desenvolvem-se paralelamente as acomodações detipo casuístico, que fazem da hipocrisia um pilar da civilização.
uma das grandes funções da literatura satírica, do realismodesmistificador e da análise psicológica é o fato de mostrarem,cada um a seu modo, que os referidos pares são reversíveis,não^ estanques, e que fora da racionalização ideológica asantinomias convivem num curioso lusco-fusco. Pelo que vimos, o princípio moral das
Memórias
parece ser,
exatamente
como os fatos narrados, uma espécie de balanceio entre o bem e o mal, compensados a cada instante um pelo outrosem jamais aparecerem em estado de inteireza. Decorr
e a idéia de
simetria ou equivalência, que, numa sociedade meio caótica,restabelece incessantemente a posição por assim dizer normal decada personagem.
Os extremos se anulam e a moral dos fatos é
tão equilibrada quanto as relações dos homens. De tudo se desprende um ar de facilidade, uma visão folgada doscostumes, que pode ou não coincidir com o que ocorria "no tempodo Rei", mas que fundamenta a sociedade instituída nas
Memórias
como produto de um discernimento coerente do modo de ser doshomens.
O remorso não existe, pois a avaliação das ações é feita
segundo a sua eficácia.
Apenas um personagem de segundo
plano, o velho Tenente-Coronel, tem a consciência pesada pelomalfeito de seu filho, o Cadete, em relação à mãe do"memorando"; e esta consciência pesada fica divertida porcontraste. Se assim for, é claro que a repressão moral só pode existir, comoficou dito, fora das consciências.
É uma "questão de polícia" e se
concentra inteiramente no major Vidigal, cujo deslizamentocômico para as esferas
da transgressão acaba, no fim do romance,
por baralhar definitivamente a relação dos planos. Nisto e por tudo isto, as
Memórias de um sargento de milícias
contrastam com a ficção brasileira do tempo.
Uma sociedade
jovem, que procura disciplinar a irregularidade da sua seiva parase equiparar às velhas sociedades que lhe servem de modelo,desenvolve normalmente certos mecanismos ideais de contensão,que aparecem em todos os setores.
No campo jurídico, normas
rígidas e impecavelmente formuladas, criando a aparência e a ilusão de uma ordem regular que não existe e que por isso mesmo constitui o alvo ideal.
Em literatura, gosto acentuado pelos
símbolos repressivos, que parecem domar a eclosão dosimpulsos.
É o que vemos, por exemplo, no sentimento de conspurcação do amor, tão freqüente nos ultra-românticos.
É o
que vemos em Peri, que se coíbe até negar as aspirações quepoderiam realizá-lo como ser autônomo, numa renúncia que lhepermite construir em compensação um ser alienado, automático,identificado aos padrões ideais da colonização.
N' O Guarani,
a
força do impulso vital, a naturalidade dos sentimentos, só ocorrecomo característica dos vilões ou, sublimados, no quadroexuberante da natureza -, isto é, as forças que devem serdobradas pela civilização e a moral do conquistador, das quais D.Antônio de Mariz é um paradigma e o índio romântico umhomólogo ou um aliado. (Lembremos o "índio tocheiro. O índiofilho^ de Maria , afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz", do
Manifesto antropófago
, de Oswald de
Andrade). Repressão mutiladora da personalidade é ainda o que encontramos noutros romances de Alencar, os chamados urbanos, como^
Lucíola
e^ Senhora
, onde a mulher opressa da sociedade
patriarcal confere ao enredo uma penumbra de forças recalcadas.Em meio de tudo, a liberdade quase feérica do espaço ficcional deManuel Antônio, livre de culpabilidade e remorso, de repressão esanção interiores, colore e mobiliza o firmamento do Romantismo,como os rojões do "Fogo no Campo"ou as baianas dançando nasprocissões.
que tende a matar lugar e tempo, pondo os objetos que toca além da fronteira dos grupos.
É pois no plano do estilo que se entende
bem o desvinculamento das
Memórias
em relação à ideologia das
classes dominantes do seu tempo -, tão presente na retóricaliberal e no estilo florido dos "beletristas".
Trata-se de uma
libertação, que funciona como se a neutralidade moralcorrespondesse a uma neutralidade social,
misturando as
pretensões das ideologias no balaio da irreverência popularesca.Esta se articula com uma atitude mais ampla de tolerânciacorrosiva, muito brasileira, que pressupõe uma realidade válidapara lá, mas também para cá da norma e da lei, manifestando-sepor vezes no plano da literatura sob a forma de piadadevastadora, que tem certa nostalgia indeterminada de valoresmais lídimos, enquanto agride o que, sendo hirto e cristalizado,ameaça a labilidade, que é uma das dimensões fecundas do nossouniverso cultural. Essa comicidade foge às esferas sancionadas da norma burguesa e vai encontrar a irreverência e a amoralidade de certas expressõespopulares.
Ela se manifesta em Pedro Malasarte no nível folclórico e encontra em Gregório de Matos expressões rutilantes,que^ reaparecem de modo periódico, até alcançar no Modernismoas suas expressões máximas, com
Macunaíma
e^ Serafim Ponte
Grande
.^ Ela amaina as quinas e dá lugar a toda a sorte de acomodações (ou negações), que por vezes nos fazem parecerinferiores ante uma visão estupidamente nutrida de valores puritanos, como a das sociedades capitalistas; mas que facilitará a nossa inserção num mundo eventualmente aberto.Com muito menos virulência e estilização que os dois livroscitados, o de Manuel Antônio pertence a um entroncamento dessalinha, que tem várias modalidades. Nem é de espantar que sódepois do Modernismo encontrasse finalmente a glória e o favordos leitores, com um ritmo de edições que nos últimos vinte ecinco anos ultrapassa uma por ano, em contraste com o anterior,de uma cada oito anos.Na limpidez transparente do seu universo sem culpa, entrevemoso contorno de uma terra sem males definitivos ou irremediáveis,regida por uma encantadora neutralidade moral.
Lá não se
trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia. Nasociedade parasitária e indolente, que era a dos homens livres doBrasil de então, haveria muito disto, graças à brutalidade do
trabalho escravo, que o autor elide junto com outras formas de violência.
Mas como ele visa ao tipo e ao paradigma, nós vislumbramos através das situações sociais concretas uma espécie de mundo arquetípico da lenda, onde o realismo écontrabalançado por elementos brandamente
fabulosos:
nascimento aventuroso, numes tutelares, dragões, escamoteaçãoda ordem econômica, inviabilidade da cronologia, ilogicidade dasrelações.
Por isso, tomemos com reserva a idéia de que as Memórias
são um panorama documentário do Brasil joanino; e depois de ter surgido que são antes a sua anatomia espectral,muito mais totalizadora, não pensemos nada e deixemo-nosembalar por essa fábula realista composta em tempo de
allegro
vivace. _________________ (1) José Veríssimo, "Um velho romance brasileiro",
Estudos brasileiros,
2ª série, Rio de
Janeiro, Laemmert, 1894, pp. 107-124; Mário de Andrade, "Introdução", ManuelAntônio de Almeida,
Memórias de um sargento de milícias.
Bibliotecas de literatura
brasileira, I, São Paulo, Martins, 1941, pp. 5-19; Darcy Damasceno, "A afetividadelingüística nas
Memórias de um sargento de milícias"
,^ Revista brasileira de filologia,
vol. 2, tomo II, Dezembro 1956, pp. 155-177, especialmente pp. 155-177,especialmente pp. 156-158 (a citação é da p. 156). (2) Josué Montello, "Um precursor: Manuel Antônio de Almeida",
A literatura no Brasil
,
Direção de Afrânio Coutinho, vol. II, Rio de Janeiro, Editorial Sul Americana S.A., 1955,pp. 37-45. (3) Frank Wadleigh Chandler,
La novela picaresca en España,
Trad. do inglês por P.A.
Martín Robles, Madrid, La España Moderna, s.d. (Trata-se de apenas uma parte da obraoriginal de Chandler,
The Literature of Roguery,
3 vols., New York, Houghton Miffin,
1907). Ver também Angel Valbuena y Prat, "Estudio preliminar",
La novela picaresca
española,
4ª ed., Madrid, Aguilar, 1942, pp. 11-79. Trata-se de uma edição dos principais romances picarescos espanhóis utilizada neste ensaio. (4) "É desse modo que Manuel Antônio de Almeida caracteriza o personagem Leonardo,que resulta num
herói sem nenhum caráter,
ou melhor, que apresenta os traços
fundamentais do estereótipo do brasileiro. Manuel Antônio de Almeida é o primeiro afixar em literatura o caráter nacional brasileiro, tal como terá longa vida em nossasletras (...) Creio que se pode saudar em Leonardo o ancestral de
Macunaíma."
Walnice
Nogueira Galvão, "No tempo do rei", in
Saco de gatos.
Ensaios críticos, São Paulo,
Duas Cidades, 1976, p. 32. Este belo ensaio, um dos mais penetrantes sobre o nossoautor, saiu inicialmente com o título "Manuel Antônio de Almeida" no "SuplementoLiterário" de
O Estado de S. Paulo,
17.3.1962.
(5) Marques Rebelo,
Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida,
2ª ed., São Paulo,
Martins, 1963, pp. 38-39 e 42. (6) Alan Carey Taylor, "Balzac, Manoel Antonio de Almeida et les débuts du réalisme auBrésil", resumo de comunicação,
Le réel dans la littérature et le langage,
Actes du Xe.
Congrès de la Fédération des Langues et Littératures Modernes, publiés par PaulVernois, Paris, Klincksieck, 1967, pp. 202-203.
(7) Herman Lima,
História da caricatura no Brasil
, 4 vols., Rio de Janeiro, José
Olympio, 1963, vol. I, pp. 70-85. (8) Astrojildo Pereira, "Romancistas da cidade: Macedo, Manuel Antônio e LimaBarreto",
O romance brasileiro
(De 1752 a 1930), Coordenação etc. de Aurélio Buarque
de Holanda, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1952, pp. 36-73. Ver p. 40. (9) Marques Rebelo,
ob.cit.,
pp. 40-41.
(10) T.von Leithold e L. von Rango.
O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em
1819. Trad. e anotações de Joaquim de Sousa Leão Filho, São Paulo, Editora Nacional,1966, p. 166. (11) C. Schlichthorst,
O Rio de Janeiro como é.
1824-
(Huma vez e nunca mais)
etc. Trad. de Emy Dodt e Gustavo Barroso, Rio de Janeiro, Getúlio Costa, s.d., pp. 77-80. _______________"Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias)" in:Revista do Instituto de estudos brasileiros, nº 8, São Paulo, USP, 1970, pp. 67-89.