






Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Neste documento, analisamos os filmes 'deus não está morto' (2014, 2016 e 2018) da franquia americana e discutimos a presença pública da religião na sociedade contemporânea. Através da análise dos filmes, levantamos questões sobre a inclusão de debates teológicos em obras artísticas, a liberdade de expressão de crenças e a propaganda religiosa em filmes. Além disso, examinamos as intenções dos diretores e o papel dos filmes na produção de conversões.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
1 / 12
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Orivaldo Pimentel Lopes Júnior^1
(^1) Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, com pós-doutorado na Università Degli Study di Padova , Editor da CRONOS. Endereço CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4767289H0. Email: orivaldojr@yahoo.com.br
Os três filmes da franquia “Deus não está morto” trazem a oportunidade de se discutir a presença pública da religião na sociedade contemporânea. Mas ao abordarem o tema por um viés religioso enfraquecem o argu- mento. A forma como a religião se apresenta nos filmes como pretensos produtos artísticos já é por si só uma denúncia das dificuldades a serem enfrentadas. O caráter apologético dos dois primeiros filmes traz um ar anti- quado de debates não atualizados. O terceiro filme, sob outra direção, supera alguns dos problemas dos dois primeiros e avança na possibilidade de uma autocrítica da religião no mundo moderno.
Palavras chave: Esfera Pública da religião. Intolerância. Religião no Cinema.
The three films of “God’s not dead” fran- chising bring the opportunity to discuss the public presence of religion in contemporary society. Nevertheless, to approach this theme by a religious perspective they awaken the argument. The way as religion presents itself in these films, as supposed artistic products is in itself a denunciation about the difficul- ties to be faced. The apologetic character of the two first films has an old fashioned air of not updated debates. The third film, under another direction, overcome some of those problems presented in the two first and go further in the possibility of a religious auto critic in the Modern world.
Keywords: Religious public sphere. Intolerance. Religion and Cinema.
UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE I 53
Deus Não Está Morto ( God’s Not Dead) , Dirigido por: Harold Cronk, EUA, 2014. Drama, 113 min, colorido. 2 Josh Wheaton é um jovem estudante univer- sitário habituado a viver segundo os preceitos cristãos. A sua fé é inabalável e sempre lhe mostrou o caminho para a vida. Um dia, numa aula de Filosofia, vê-se numa discussão acesa com o professor Jeffrey Radisson, um ateu convicto que, irritado com a devoção de Josh, o desafia a comprovar a existência de Deus. Inicia-se assim uma batalha intelectual entre professor e aluno, que se mostram dispostos a tudo para justificar o seu ponto de vista e a provar ao outro a falsidade dos seus argumentos.^3 Deus Não Está Morto 2 Quando Grace (Melissa Joan Hart), uma professora cristã, é questionada por sua aluna Brooke (Hayley Orrantia) sobre Jesus dentro da sala de aula, sua resposta inicia uma perseguição ao direito à crença. Sua fé é colocada à prova ao enfren- tar um processo judicial épico que poderá custar-lhe a carreira que ela ama e expulsar Deus da sala de aula de uma vez por todas. God’s Not Dead 2 ( Deus Não Está Morto 2) é um filme de drama da indústria cinematográfica cristã de 2016, dirigido por Harold Cronk e estrelado por Melissa Joan Hart, Jesse Metcalfe, David A. R. White, Hayley Orrantia e Sadie Robertson. É a sequência do filme homônimo, que foi lançado em 2014^4_._ Deus Não Está Morto 3: Uma Luz na Escuridão Pastor Dave enfrenta uma tragédia inima- ginável de ter sua igreja, localizada no terreno da
(^2) Ver Fichas Técnicas no final do artigo. (^3) Adaptado de: http://cinecartaz.publico.pt/ Filme/352867_deus-nao-esta-morto. Acesso em: 24 out. 2017). (^4) Adaptado de: https://pt.wikipedia.org/wiki/ God%27s_Not_Dead_2. Acesso em: 31 jan. 2019.
universidade Hadleigh, queimada num suposto ato terrorista. Os líderes da Universidade usam a tragédia para expulsar a congregação do campus. Isso força a igreja a defender seus direitos e reagrupa dois irmãos que trazem feridas abertas, forçando-os a enfrentar as questões que os separa- ram. Mesmo nos vales mais escuros, uma pequena chama pode iluminar o caminho para a cura e a esperança. John Corbett (Sex and the City) é o ator mais conhecido do novo elenco. Harold Cronk, diretor do longa original e da primeira continua- ção, é substituído pelo estreante Michael Mason. Estreou no Brasil em 30 de agosto de 2018^5_._
A interação entre o universo mítico- -religioso e o universo estético-artístico é muito antiga, quase original, e extremamente fecunda. No que tange ao cinema propria- mente dito, fica impossível elaborar uma lista de tantos filmes como “Os dez manda- mentos” (Cecil B. DeMille, 1956), “Jesus Cristo Superstar” (Norman Jewison, 1973), “A paixão segundo São Mateus” (Pier Paolo Pasolini, 1964), “A última tentação de Cristo” (Martin Scorsese, 1988) etc. etc. Que os dire- tores desses filmes tenham tido motivações religiosas ao realizarem seus filmes, o que parece improvável, tais motivações não atro- pelaram a liberdade estética de seu labor. Por outro lado, quando vemos filmes como “A paixão de Cristo” (Mel Gibson,
(^5) Adaptado de: https://www.imdb.com/title/ tt6652708/?ref_=fn_al_tt_1. Acesso em: 31 jan. 2019.
UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE I 55
aceitar verdades absolutas divinizadas como a do professor, que na prática age como o deus da metafísica que, felizmente, já morreu. Fico tentado a cair na provocação do filme e discuti-lo teologicamente, isto é, debater certas perspectivas trazidas. Por exemplo, é interessante o modo como o filme define um teísta: alguém que não apenas crê em Deus, mas que necessariamente deve crer de um modo determinado, caso contrário é melhor ficar sem crer mesmo. Outra questão: o tipo de soteriologia cristã (o modo como se define uma pessoa salva) apresentada no filme, tida como a standard de todos os cren- tes, é extremamente situada no tempo e no espaço, isto é, na religiosidade evangélica norte-americana contemporânea. Talvez essa delimitação geográfica seja inadequada, pois ela se espalhou por todo o planeta, e em alguns lugares fora dos Estados Unidos ela tem adotado um formato mais real que a do rei. No entanto, o foco são os Estados Unidos onde o filme acontece, e ali adquire status de senso comum^6. Entretanto, não creio que devamos aqui aceitar essa provocação. Uma discussão dessa natureza ficaria muito bem num seminário, faculdade teológica ou curso de Ciência(s) da Religião. Se uma ideia teológica, política, filosófica, biológica… ou qualquer que seja é repassada por um filme, ela pode e deve ser discutida nos âmbitos apropriados, mas não enquanto determinante estética da obra. Por exemplo, a trilogia Matrix de Lilly e Lana Wachowski gerou uma enormidade de artigos, livros e debates no âmbito filosófico, psica- nalítico, sociológico, político, tecnológico
(^6) Essa expressão aqui nada tem de pejorativo como sendo um senso carente de racionalidade, mas no sentido de ser um senso tão generalizado num dado ambiente que adquire status de verdade indiscutível.
etc., mas nenhum desses debates acrescenta ou diminui um milímetro do filme enquanto obra de arte. Certamente que na prática é impossível fazer um corte purificador entre os dois tipos de discussão: a mensagem, e a estética, mas se amamos ou detestamos um filme somente pelas ideias que abriga, não estamos sendo honestos com ele enquanto obra de arte. Nesse caso é necessário fazer um esforço para não cair em debates teológicos, embora para isso o filme possa ser um pouco útil, e até deva ser aproveitado criticamente. Isso porque, no meu entendimento, um debate teológico aqui seria interno a uma comuni- dade de fé, e para fazê-lo publicamente só seria possível se fosse colocada entre parên- tesis (no sentido fenomenológico) a crença na revelação. Isso feito, as questões teológicas adquiririam um status cultural localizado, e passariam a ser discutidas no sentido que possuem para as pessoas que as adotam. O mesmo eu diria com relação à missão principal à qual o filme se propõe que é de defender o direito à crença, e à sua mani- festação no espaço acadêmico. Trata-se de uma questão existencial humana, de inte- resse público e universal, e que, portanto, se enquadraria perfeitamente no contexto de uma obra de arte. É muito interessante a lista apresentada nos créditos do final do filme das ações movidas em universidades norte-americanas contra e a favor do direito de manifestar sua fé numa sala de aula. Se fosse só isso, teria um certo apelo, e poderia inclusive ser pensado e dirigido por qualquer diretor independentemente da fé ou não fé que professasse. É um debate interessante, e provavelmente muitas injustiças, precon- ceitos e manifestações de intolerância tem acontecido. Mas não é isso que ocorre, e sim uma apologia a favor do teísmo enquanto
UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE I 56
tal, e dentro de um determinado formato. O teísmo do pai muçulmano que aparece no filme, por exemplo, não vale. Gilles Deleuze (2010, p. 38) disse que “as atrizes medíocres tem tem a necessidade de chorar para indicar que seu papel comporta a dor”, e eu extrapolaria essa frase dizendo que “um mal filme tem que defender a exis- tência de Deus para mostrar a necessidade de liberdade da crença”. Essa foi a armadilha, ou o caminho fácil em que o filme caiu. Mas não é só isso que o faz ruim, existem outros pecados (desculpem o troca- dilho) decorrentes dessa Queda original: em primeiro lugar, encontramos uma caricaturi- zação exagerada dos personagens. O Prof. ateu é, como se diz no Nordeste, “o cão chupando uma manga”: grosseiro, autoritário, incoe- rente, machista, superficial, arrogante… Parece até com as figuras medievais (e não só medievais) do Diabo, ou do bicho-pa- pão: pintado de uma forma tão horripilante que todos deveriam odiá-lo. De lá para cá, o cinema transformou isso num clichê, do qual nosso filme não soube escapar. Acionada a fórmula, o script já está determinado: malda- des, mau-caratismo, derrota final. É inaceitável outro clichê perigosíssimo: os povos de tradição islâmica são convoca- dos para acionar sua crueldade contra os perseguidos cristãos. Sei que perseguição a cristãos e até martírio existem em muitos lugares, infelizmente. Um mal que deve ser combatido juntamente com todas as formas de perseguição religiosa, inclusive contra o Islã, e contra as religiões de matriz afri- cana, entre outras. Como também deve ser combatida a perseguição contra aqueles que fizeram uma opção pelo ateísmo. As escolhas de crença, desde que não impliquem no dano a outras pessoas, animais, meio ambiente,
obras artísticas ou religiosas, não podem ser criminalizadas. Se o filme fosse por aí, pelo menos no que tange às ideias que apresenta, seria um pouco melhor. Por outro lado, coloca na condição de herói um empresário cristão, Willie Robertson, chefe da Duck Dynasty, um programa de reality show , com evidentes opções direitistas. A tentativa da pobre repórter devastada pela notícia de estar com câncer e de ter, ainda por cima, perdido seu namorado, de fazer uma reportagem crítica contra o empresário termina num candente testemunho cristão por parte dele. No final, Willie reaparece em off ao se congratular com a banda de “ Christian Rock ”, e com o herói da sala de aula na “defesa de Deus”. A banda em questão é The Newsboys , que curiosamente nas legendas é chamada de uma banda “Gospel”, reforçando um equívoco produzido no Brasil: a música Gospel, como estilo de música popu- lar e secular norte-americana, é uma música que usa temas e ideias do mundo religioso cristão, mas que é produzida e executada no âmbito profano. No Brasil acontece justa- mente o contrário: uma música profana no formato ou até mesmo na letra, e que é utili- zada no ambiente religioso. O filme aqui avaliado é um típico filme “gospel” no sentido em que a banda The Newsboys é uma banda “gospel” conforme o emprego dessa palavra no Brasil: em vez de produzir uma peça cultural profana com material sagrado, o filme e a música gospel brasileira produzem peças sagradas com material profano^7. Ao terminar o filme com a banda The Newsboys , o diretor está assi- nando sua obra como um Christian film , do
(^7) Giorgio Agamben desenvolve o conceito de “profanação” no livro Profanações (2007). Aqui temos o inverso, uma des-profanação.
UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE I 58
provoca um curto-circuito interpretativo difícil de superar. É uma coisa completamente diferente quando uma música do U2 faz refe- rência à fé cristã sem, no entanto, perder a carga estética bem situada que tal referência tem no contexto. O mesmo pode-se dizer de centenas de músicas populares brasilei- ras que utilizam elementos do candomblé e produzem obras válidas em si mesmas, sem que exijam do ouvinte semelhante crença. Infelizmente, perdeu-se aqui uma boa opor- tunidade de se produzir algo que fecundasse discussões no âmbito público em troca de se produzir um filme “doméstico”. Apesar do fracasso perante a crítica, o filme foi um sucesso comercial, tendo sido feito com 2 milhões de dólares e arrecadado 110, sendo o mais lucrativo filme de 2014^10. No Brasil foi distribuído pela Igreja Internacional da Graça de Deus, acentuando ainda mais seu caráter propagandístico e privado, mas que por aqui não significa muita coisa.
Não existem mudanças substanciais entre o 1º e o 2º filme da franquia no que tange ao blefe de se fazer um filme com uma intenção propagandística da fé mas dar a ele uma aparência de uma obra artística como tal. As mesmas críticas se aplicam aqui, só que outras se agregam, como de praxe ocor- rem em sequências. O exemplo mais claro dessa estratégia é a inserção de Pat Boone, um cantor evangélico que fez muito sucesso nos anos 1970 como esposo da protagonista central. Ela comenta numa conversa no sofá
(^10) h t t p s : / / p t. w i k i p e d i a. o r g / w i k i / Deus_N%C3%A3o_Est%C3%A1_Morto
de seu lar sobre o sofrimento que Brooke, sua aluna, está passando, e ele sem qualquer contexto para isso diz: “este é o problema com o ateísmo”. Um momento do mais puro merchandising religioso que, como todo merchandising , ofende uma obra ficcional, supostamente artística. Ao longo do filme pipocam citações bíblica ipsis literis que se constituem em enorme dificul- dade para os atores e as atrizes falarem, pois carecem de naturalidade. Nem todos são maus atores ou más atrizes, mas ter que encaixar uma citação exata da Bíblia, ou mesmo de outro livro, no meio de uma fala é praticamente impossível para qualquer atriz ou ator. Destaco a presença do ator Ray Wise como o promotor Peter Kane, um grande ator que sofre o problema de uma direção que não está a sua altura e que, como resultado, a transforma numa caricatura da maldade, com direito a risadinhas maliciosas, e uma frase bombástica totalmente fora de contexto: “– Vamos provar de uma vez por todas que Deus não está morto”. Esse papel maligno foi desempenhado pelo Prof. Radisson no primeiro filme, com os mesmos clichês. Essa tendência de insinuar certa malignidade diabólica num personagem que representa o ataque à fé mostra não só o dualismo tão característico do primeiro filme, mas a ideia que o mal do sistema está nas pessoas que dele se servem, e não nele próprio. A vítima com a qual todos somos indu- zidos a nos simpatizar neste filme não é um aluno universitário massacrado por um tirano ateu, mas uma professora do ensino médio vítima de um sistema injusto. A arena do enfrentamento das forças teístas e ateístas é o indefectível tribunal americano. Deve ser mais fácil contar quantos filmes americanos não tem uma cena de tribunal do que os que tem. É
UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE I 59
bonito ver o orgulho do povo norte-americano de seu sistema jurídico, especialmente quando vivemos um caos nessa área no Brasil. Outra coisa bonita no filme é ver a intensidade das manifestações públicas de posições políticas diversas: pontos para a democracia. O que está em julgamento é uma ques- tão aparentemente legal acerca da permissão ou não de um professor fazer uma declaração de fé em sala de aula. Pelo que tudo indica, a liberdade de cátedra não existe nos Estados Unidos, e a escola sem partido (no caso reli- gião) lá alcançou seus objetivos. Isso não me parece muito plausível, de modo que, penso ter sido apenas um pretexto para colocar no banco dos réus o próprio teísmo. Como desfile de métodos apologéticos, o recurso até que é interessante, mas destrói o clima ficcional do filme. A questão à qual o defensor da professora se apega – aliás, uma nota positiva para o filme ter colocado como defensor um advogado agnóstico – é de que, sendo Jesus um personagem histórico, não é crime algum qualquer citação de seu nome ou seus dizeres numa sala de aula. Não foi dito, mas eu acrescentaria que mesmo que não houvesse qualquer comprovante histórico da existência de Jesus, seus ditos e ações vem afetando todo o planeta por milhares de anos, e isso sim é um fato mais contundente do que qualquer suposta certeza de sua existência. De qualquer forma, a apologética, isto é, o acionamento de cientistas e historiadores, pensadores e filósofos para a demonstra- ção inequívoca da verdade cristã, tudo feito num tribunal, coloca a religião em geral e o cristianismo em particular numa situação desconfortável. Sua veracidade espiritual está sujeita a uma validação científica e judicial. Sempre que um filme americano utili- za-se de um tribunal, já sabemos que tudo
vai caminhar para um impasse insolúvel para o protagonista, seguido de uma solução inesperada que cai do céu (novo trocadilho). Geralmente é uma testemunha nova, a reve- lação de uma mentira, uma nova denúncia etc. Neste filme a solução inesperada foi a inversão da atitude do advogado de defesa. O recurso foi usado com uma dramaticidade um tanto exagerada, mas cumpriu bem o papel climático, de modo que o bem vence o mal e a conclusão é que “Deus não está morto”. No final, uma questão que vem sendo alinhavada desde a metade do filme produz um anticlímax que serve de gancho para o próximo filme da franquia. Trata-se, na verdade, de uma questão muito implausível numa sociedade minimamente democrática: os pastores são obrigados a levar num escri- tório governamental as transcrições de todos os seus sermões pregados naquele mês. O Pastor Dave se recusa a entregar as transcri- ções e é preso assim que chega do hospital, e o filme termina. Há aqui uma denúncia um tanto estapafúrdia de que aquela sociedade está caminhando para um totalitarismo ateu, e que os cristãos precisam se precaver e lutar. Aliás, a frase “Estamos em guerra”, é dita explicitamente no filme. Difícil dizer quem nessa guerra está atacando quem: a religião cristã ou a democracia.
Antes de assistir o terceiro filme da fran- quia, dei um passeio nos sites da internet que falavam sobre ele e os anteriores. Impressiona a quantidade de notícias e propagandas veicu- ladas por igrejas evangélicas e organizações
UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE I 61
do emaranhado de conflitos tão bem cons- truído no filme. O templo queimado que fica incrustado no meio de uma universidade secular é o objeto central da polêmica, e a luta por esse templo é a própria luta pelo lugar da religião na esfera pública, aqui representada pela Universidade. A solução trazida pelo filme surpreende porque não é a solução tradi- cional, e é, do meu ponto de vista, a melhor definição do lugar da religião na sociedade contemporânea. A associação de Deus a um espaço delimitado me parece mais com um engaiolamento do que com uma vitória, mesmo que simbólica. Especialmente quando esse lugar é restringido a uma visão particu- lar de Deus. A universidade na qual leciono tem uma bela capela cristã. Durante anos, os cris- tãos não católicos lutamos para que a capela fosse, pelo menos ecumênica, isto é, que abrangesse todas as manifestações cristãs da cidade. Isso foi conquistado, e eu mesmo fui capelão protestante por vários anos. Entretanto, ainda existem passos a serem dados no sentido de desvincular a capela a uma manifestação religiosa apenas cristã. Os atos ecumênicos já incluem celebrantes não cristãos, mas até hoje não foi realizado ali nenhum rito exclusivamente não cristão, e eu me pergunto: qual seria a reação dos cristãos se isso acontecesse? A questão que mais me incomoda, no entanto é: será que eu gostei mais desse filme do que dos anteriores porque a solução tenha me agradado mais? Isso me trouxe o seguinte questionamento pessoal: os dois filmes eram mais inadequados do que este porque na linha de argumentação que eu vinha seguindo, eu acredito mais na sugestão trazida pelo terceiro? Em outras palavras, será que estou
adotando um critério teológico específico para dizer se um filme é bom ou ruim? Primeiramente devemos aceitar o fato de que a visão de mundo de cada pessoa é o resultado do conjunto de suas experiências, incluindo as religiosas. Porém, mais do que um argumento subjetivo, gostaria de dizer que não se trata aqui do fato do filme três ter trazido uma solução de natureza teológica (embora tenha aspectos teológicos), mas de uma solução mais condizente com a ordem pública. São valores objetivos que podem ser discutidos por religiosos das mais diversas tradições e não religiosos em geral. Refiro-me especificamente à tolerância dos religiosos para com os não religiosos, a disposição de fazer valer em ações aquilo que defendem com palavras, a busca por soluções irenistas, o diálogo aberto etc. Por isso que o filme três se constitui, na minha maneira de ver, uma crítica aos dois anteriores, e uma ampliação considerável do alcance da religião na socie- dade contemporânea.
UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE I 62
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
CASANOVA, José. Public Religion in the Modern World. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.
DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
GIRARD, René; VATTIMO, Gianni. Verità o fede debole? Dialogo su cristianesimo e relativismo. Milano: Feltrinelli, 2015.
LATOUR, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA, 2012.
LOPES JR., Orivaldo P. O espelho de Procrusto: Ciência, Religião e Complexidade. Natal: EDUFRN, 2013.
Ficha Técnica Deus não está morto: Diretor: Harold Cronk; Roteiristas: Hunter Dennis, Chuck Konzelman, Cary Solomon. Elenco: Kevin Sorbo (Professor Radisson), Shane Harper (Josh Wheaton), David A.R. White (Reverendo Dave), Dean Cain (Marc Shelley), Willie Robertson (Willie Robertson), Korie Robertson (Korie Robertson), Hadeel Sittu (Ayisha), Paul Kwo (Martin Yip), Trisha LaFache (Amy), Cory Oliver (Mina), Benjamin A. Onyango (Reverendo Jude como Benjamin Oyango), Marco Khan (Misrab), Cassidy Gifford (Kara), Jesse Wang (Martin’s Father), Lenore Banks (Mina’s Mother), Russell Wolfe (Dr. Stevens), Alex Aristidis (Fahid), Michael Tait (Michael Tait), Jody Davis (Jody Davis), Jeff Frankenstein (Jeff Frankenstein), etc. Lançado nos cinemas norte-america- nos em 21 de março de 2014 pela Pure Flix Entertainment e, em 21 de agosto do mesmo
ano, nos circuitos brasileiros pela Graça Filmes, distribuidora ligada à Igreja Internacional da Graça de Deus. Com um investimento de US$ 2 milhões, o filme arrecadou mais de US$ 110 milhões, sendo o mais lucrativo filme de 2014. Produção: Michael Scott, Russell Wolfe, Anna Zielinski. Edição; Vance Null; Companhias produtoras; Pure Flix Entertainment, Red Entertainment Group (extraído do IMDb). Deus não está morto 2: Dirigido por Harold Cronk; roteiro: Chuck Konzelman, Cary Solomon; Elenco: Maria Canals-Barrera (Catherine Thawley - mãe de Brook); Pat Boone (Walter Wesley); Robin Givens (Principal Kinney); Melissa Joan Hart (Grace Wesley); Brad Heller (Advogado da Escola); Ernie Hudson (Juiz Robert Stennis); Hayley Orrantia (Brooke Thawley); Paul Kwo (Martin Yip); Trisha LaFache (Amy Ryan); Jon Lindstrom (Superintendente Jim Powell); Jesse Metcalfe