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Guias e Dicas
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Desenho: entre escrita e imagem, Manuais, Projetos, Pesquisas de Desenho

Este artigo discute o desenho e sua interconexão com a escrita, explorando o diálogo entre eles através de linhas, traços e imagens. O texto aborda como o desenho pode ser origem, caminho, memória, corpo e imagem, e como ele se relaciona com a escrita e a linguagem. Além disso, o artigo reflete sobre a importância do desenho na construção da memória e na compreensão do mundo.

O que você vai aprender

  • Qual é a importância do desenho na construção da memória?
  • Como o desenho pode ser considerado origem, caminho, memória, corpo e imagem?
  • Como o desenho se relaciona com a escrita?
  • Como o desenho pode ser entendido como um todo migratório?
  • Quais são as formas mais antigas de escrita observadas pelos sumérios e como elas se relacionam com o desenho?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

EmiliaCuca
EmiliaCuca 🇧🇷

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DESENHO, TRAÇO, REGISTRO: DA ESCRITA À IMAGEM
Camila Rodrigues Moreira Cruz1
RESUMO
O artigo discute o desenho e seu intrínseco diálogo com a escrita,
por linhas construídas pelo corpo, traços e imagens, que produzem re-
gistros cartográficos e históricos. Propõe-se indagar o desenho como
ponto de convergência estruturante e conflitante na contemporaneida-
de, a partir de uma análise deste como fim em si mesmo ou como meio
interlocutório de ações expandidas para o hibridismo de linguagens.
Apresentamos questionamentos do desenho construídos da escrita à
imagem, do traço ao registro, analogamente ao pensamento de Jac-
ques Derrida. O desenho é então pensado como origem, caminho, me-
mória, corpo e imagem.
Palavras- chave: Desenho. Origem. Traço. Contemporâneo.
ABSTRACT
The article discusses drawing and its intrinsic dialogue with writing,
through lines constructed by the body, lines and images, which produce
cartographic and historical records. It is proposed to investigate drawing
as a structuring and conflicting point of convergence in contemporaneity,
based on an analysis of it as an end in itself or as a means of dialogue
for expanded actions for the hybridity of languages. We present questions
about drawing constructed from writing to image, from line to record, si-
milarly to Jacques Derrida’s thought. The drawing is then thought like
origin, path, memory, body and image.
Keywords: Drawing. Origin. Trace. Contemporary.
1 Artista Plástica. Doutora em Arts Plastiques pela Université Paris 1 – Panthéon
Sorbonne, mestre em Arts Plastiques pela mesma universidade e graduada em
Artes Plásticas pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente é professo-
ra adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Desenho/
Escola de Belas Artes. Atua como artista visual com mostras no Brasil e no exte-
rior. É coordenadora do NEDEC / UFMG (Núcleo de Estudos e Ensino em Desenho
Contemporâneo), das linhas de pesquisa: Desenho e Hibridismo de Linguagens e
Desenho Contemporâneo; pesquisadora do NUPPE/UFU (Núcleo de Pesquisa em
Pintura e Ensino), linhas de pesquisa: Pintura e Interfaces com outras linguagens
(coordenadora) e Estudos Cromáticos. É membro da Associação de Artistas (Art)
ère (Paris). Participa de exposições nacionais e internacionais. Possui obras no
acervo do MACRS e MAC Dragão do Mar. E-mail: camilarmcruz@hotmail.com.
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DESENHO, TRAÇO, REGISTRO: DA ESCRITA À IMAGEM

Camila Rodrigues Moreira Cruz^1

RESUMO

O artigo discute o desenho e seu intrínseco diálogo com a escrita,

por linhas construídas pelo corpo, traços e imagens, que produzem re-

gistros cartográficos e históricos. Propõe-se indagar o desenho como

ponto de convergência estruturante e conflitante na contemporaneida-

de, a partir de uma análise deste como fim em si mesmo ou como meio

interlocutório de ações expandidas para o hibridismo de linguagens.

Apresentamos questionamentos do desenho construídos da escrita à

imagem, do traço ao registro, analogamente ao pensamento de Jac-

ques Derrida. O desenho é então pensado como origem, caminho, me-

mória, corpo e imagem.

Palavras-chave: Desenho. Origem. Traço. Contemporâneo.

ABSTRACT

The article discusses drawing and its intrinsic dialogue with writing,

through lines constructed by the body, lines and images, which produce

cartographic and historical records. It is proposed to investigate drawing

as a structuring and conflicting point of convergence in contemporaneity,

based on an analysis of it as an end in itself or as a means of dialogue

for expanded actions for the hybridity of languages. We present questions

about drawing constructed from writing to image, from line to record, si-

milarly to Jacques Derrida’s thought. The drawing is then thought like

origin, path, memory, body and image.

Keywords : Drawing. Origin. Trace. Contemporary.

1 Artista Plástica. Doutora em Arts Plastiques pela Université Paris 1 – Panthéon

Sorbonne, mestre em Arts Plastiques pela mesma universidade e graduada em

Artes Plásticas pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente é professo-

ra adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Desenho/

Escola de Belas Artes. Atua como artista visual com mostras no Brasil e no exte-

rior. É coordenadora do NEDEC / UFMG (Núcleo de Estudos e Ensino em Desenho

Contemporâneo), das linhas de pesquisa: Desenho e Hibridismo de Linguagens e

Desenho Contemporâneo; pesquisadora do NUPPE/UFU (Núcleo de Pesquisa em

Pintura e Ensino), linhas de pesquisa: Pintura e Interfaces com outras linguagens

(coordenadora) e Estudos Cromáticos. É membro da Associação de Artistas (Art)

ère (Paris). Participa de exposições nacionais e internacionais. Possui obras no

acervo do MACRS e MAC Dragão do Mar. E-mail: camilarmcruz@hotmail.com.

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho,

O desenho é o encontro do desejo com a experiência. Logo, é possível

reconhecer o percurso do pensamento que afronta um limite, reconhece a

passagem temporal da transitoriedade corporal e insere como cicatriz sua

reflexão no mundo. Desenhar torna-se assim o registro de uma narrativa

e interação do sujeito face àquilo que o circunda. Jacques Derrida apresen-

ta a palavra como discurso migratório e inteligível do corpo e como reco-

nhecimento do mesmo. Como opera então o desenho sua ação translúcida

que liga memória, experiência e registro? Como pensar o desenho?

Assim como a descoberta do fogo, a escrita foi uma experiência que

aconteceu pelo mundo. No filme A guerra do fogo (1981), de Jean-Jacques

Annaud, há uma cena em que o fogo é apresentado por um homem com

seu corpo pintado, coberto de desenhos expandidos sobre sua pele. Certo

de seu feito, ele docemente insere um bastão sobre uma madeira, provo-

cando ruídos a partir de um encontro em movimento constante e circular.

Dessa ação, origina-se o calor que, ao ser associado a outros galhos e ra-

mos, trará o fogo. Do outro lado, há um homem que contempla a cena e,

ainda que não balbucie uma só palavra, seu corpo, gestos e seus movimen-

tos desordenados narram a grande experiência fenomenológica advinda

do reluzente fogaréu que se impõe à sua face. Seu corpo então fala e com

gestos desenha no espaço o registro de um momento único, vibrante, sur-

preendente e desconhecido. A experiência do nascimento do fogo se comi-

nava aos seus olhos de forma soberana.

Nos primórdios, o homem caminhava curvado sobre seu eixo, tendo

como referência apenas a circunferência de seu próprio corpo, ignorando

todo seu entorno. Ao erguer-se, ele não só liberou suas mãos para criar

como também pode observar o horizonte e seguir seu próprio traço deixa-

do após a sua passagem. E todo esse processo construiu e constrói ainda

hoje sua trajetória pelo mundo. Com as mãos livres, o corpo se deslocou.

O espaço tornou-se ilimitado e infinito. O tempo começou a ser percebido

pelo deslocamento. A história foi narrada a partir da viva experiência dos

novos e inesperados encontros com o outro, mas, acima de tudo, com o seu

próprio eu no mundo. O corpo delineou e impôs sua forma e limite, seus

desejos e descobertas, seus fracassos e suas conquistas. De um encontro

rompeu-se o silêncio absoluto do desconhecido, incidindo lugar ao constan-

te vir a ser da origem, proposto por Walter Benjamin. O desenho assume

então o instante primeiro imposto para que nascesse a luz e o calor, de

um necessário encontro de duas matérias. Assim o desenho é pensamento

primeiro de todas as formas, escritas, narrativas e leituras. O desenho do

registro inesperado onde seu caminhar delineante não encontra fim, pois

nele o fim nunca terá fim. Desse processo nasce a escrita, nascem corpos

em conflito.

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho, totalidade de sua história. A origem, portanto, não se destaca dos fatos, mas se relaciona com sua pré e pós-história. (BENJAMIN, 1984, pp. 67-8.)

Logo, se o desenho pode ser pensado como origem , o que seria um de-

senho? Pode ser um objeto, normalmente feito sobre papel. Ele também

pode ser executado em diversas superfícies e matérias/materialidades. É o

resultado da ação de desenhar, na qual o sujeito experimenta as coisas e o

mundo. Pode ser definido pela sua cor ou pela ausência da mesma. É tam-

bém a representação da sombra, da projeção e reflexão de uma imagem

da contemplação selecionada e guardada. Está ligado ao desejo de reter o

movimento, um ato, um corpo ou uma ação. Ele é a expressão de uma re-

presentação mental conduzida pelo corpo.

O disegno do Renascimento, donde originou-se a palavra para todas as línguas ligadas ao latim, tem os dois conteúdos entrelaçados. Um signi- ficado e uma semântica, dinâmicos, que agitam a palavra pelo conflito que ela carrega consigo ao ser a expressão de uma linguagem para a técnica e de uma linguagem para a arte. (ARTIGAS, 1975 [1967], p. 27.)

O desenho é uma extensão do pensamento selecionado, domesticado,

registrado, revelado, velado, endereçado; saindo do corpo pelas pontas dos

dedos, abraçado com o desejo, seduzido pelo tempo… ele é também escri-

ta, e a escrita é um desenho. O desenho é imagem itinerante, que pode

ter fim em si mesmo ou ser meio para outros fins. Ele torna visível o pen-

samento, a reflexão, a experiência, podendo ser organizado em palavras.

Das palavras à escrita e da escrita à língua. Do grafismo à fonética e à

imagem, o desenho é posto como ponto de encontro e elo entre o humano

e o inteligível.

Quando observamos sua construção, vislumbramos também sua pri-

meira insurreição através das mãos, essas mesmas que se tornaram li-

vres quando o homem se colocou ereto. Mãos que conduzem, selecionam,

modelam e constroem o punctum entre o homem e o universo que o cir-

cunda. Não obstante ao olhar voltado para a linha, o traço e o contorno,

e considerando uma das formas de conduzir e apresentar, as mãos foram

retratadas por diversos artistas desenhistas, entre os quais citamos Leo-

nardo da Vinci.

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho,

Leonardo da Vinci. Estudo das Mãos (1485–1492).

Fonte: The Royal Collection, Windsor.

Através de suas mãos, o artista insere no mundo o que ele absorve do

mesmo. Podemos entender então o corpo como esse grande locutor de de-

sejos e ações, mas também como fronteira para a expressão. Seria então o

corpo um todo unificado e denominado “mão”, universalizado e potencia-

lizado em si mesmo como o narrador de sua história? O corpo que toca o

mundo, que o percebe e o consome, que escreve sobre si. O corpo como es-

crita e registro de memórias e tempo, de suas ações e interlocuções. Logo,

o corpo posto como estrutura visível de reluzentes ações invisíveis torna

latente o discurso. O desenho é a experiência do viver, transitando entre

a arte, o fazer e o pensamento. O desenho seria então a palavra tornada

visível, a sonoridade escrita? Fala-se aqui da mão que conduz a experiên-

cia, do toque que sente e absorve o que é posto e construído junto ao corpo

e sua natureza. Fala-se também da mão que é silêncio e escuta, que não é

apenas um ponto, mas a ramificação de um todo.

A busca pelo entrelaçamento do desenho entre criatura e espaço de

criação permitiu que o encontro entre eles fosse também o rastro de sua

união. Imagina-se o branco do papel, ou o instante primeiro da criação.

Ele só será percebido quando houver a união de um outro corpo inserido

sobre ele, transcorrendo o movimento e a experiência sobre o mesmo. De -

senhar é então encontrar. É dar origem ao originário que estará em cons-

tante processo. Desenhar é o vir a ser.

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho,

Estamos cada vez mais emaranhados por não-lugares. Transitamos no

tempo e no espaço direcionando, redirecionando ou criando uma nova re-

lação com o mesmo. Acreditando na presença do desenho em tudo que nos

circunda, a partir da multiplicidade de formas, conceitos e materialidades

que o mesmo pode apresentar, ressaltam-se as relações de lugar, território

e fronteira. Investiga-se a intima interação do fazer com a permanência

da inteligibilidade humana. O desenho é então visto como caminho.

Desenhar, traçar e registrar, criar marcas e afetos, construir me-

mórias e delimitar lugares. O desenho como caminho e processo é aqui

compreendido como precursor e essencial para a permanência do homem

no mundo.

Camila Moreira. Registros. Série de 20 desenhos. 2013. 16 x 21 cm. Paris.

DESENHO MEMÓRIA

O desenho participa da construção da memória, seja ela recente, me-

mória lembrada, armazenada, acessada ou esquecida. Há então o desejo

de se pesquisar o início da escrita, da construção da expressão e do diá-

logo entre corpo e memória. Como analisar a íntima presença do desenho

na construção, corrosão ou sobreposição da memória? Em qual ponto o de-

senho pode ser o limiar entre corpo e memória, conceber o mundo e estar

nele concretamente?

O desenho é exigente. Ele exige o encontro. Um encontro entre um ob-

jeto desenhante, que pode ser um lápis, uma caneta, uma pedra, o dedo,

e seu “lugar” de acolhida que se apresenta como: o papel, o chão, a pare-

de, um tecido, um corpo, um objeto, o espaço. Necessita-se da percepção

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho,

sensorial de todos os sentidos para que esse encontro aconteça. A contem-

plação, a observação do sujeito versus o mundo “real” perpassa o corpo

capacitando o mesmo a absorver com seus múltiplos sentidos o desenho.

Desenhamos com a totalidade do corpo, criando os gestos da escrita, os

rastros e traços.

Há desenho em tudo. No movimento dos braços, das pernas, do corpo

que caminha, nos olhos que contemplam, nos ouvidos que escutam, nos

pés e mãos que tocam. Há desenho na paisagem, no objeto, na escrita, na

palavra, na sombra e na luz. Há desenho no desenho, na história, na ciên-

cia, na filosofia e na memória. Há desenho porque existe percepção, encon-

tro, diálogo e experiência.

Observando o desenvolvimento sensorial, psíquico e motor humano,

notamos o desenrolar da percepção somada ao traçar dos gestos e à pre-

sença do movimento. Narramos nossas descobertas para entendermos o

processo de existência das coisas. Traçamos nossos caminhos e territórios

para nos localizarmos no espaço. Desenhamos o visível para dialogar com

o invisível. Narramos, escrevemos e recitamos para compreendermos e

construirmos a memória e a história.

Um recém-nascido percebe o universo a partir dos encontros e expe-

riências por ele absorvidos. Ele começa assim a construir sua memória,

repleta de cheiros, sons, toques e visualidades, de imagens e vozes, de

sentidos. Porém, somente no encontro com o mundo inteligível no qual

ele está inserido é que percebe seu registro, através da incisão de traços,

rastros e das diversas formas de escrita. Logo, desse registro nasce a me-

mória. Aquela que acessamos, resgatamos. A memória, que é constante

diálogo e descoberta, acontece concomitantemente aos primeiros ensejos

de desenho e escrita. Seria o desenho o código da memória, o percursor do

registro imaginário? O desenho desenha mais em mim do que no mundo,

porque ele permite que estejamos em harmonia.

Jacques Derrida, a respeito da escrita, disserta:

Há, agora, a tendência a designar por “escritura” tudo isso e mais algu- ma coisa: não apenas os gestos físicos da inscrição literal, pictográfica ou ideográfica, mas também a totalidade do que a possibilita; e a seguir, além da face significante, até mesmo a face significada; e, a partir daí, tudo o que pode dar lugar a uma inscrição em geral, literal ou não, e mesmo que o que eia distribui no espaço não pertença à ordem da voz: cinematografia, coreografia, sem dúvida, mas também “escritura” pic- tural, musical, escultural etc. Também se poderia falar em escritura atlética e, com segurança ainda maior, se pensarmos nas técnicas que

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho,

inapreensível? O traço que não é rastro, que não é passado, nem presente,

nem futuro é pensado somente como traço (ação e experiência).

O que temos então da memória no desenho? O que temos de rastro e

escrita, de imagem e imaginário, de entendimento e história, de corpo e

de tempo? O que desenha o desenho?

Camila Moreira. Ranger. 2008, Série de 9 desenhos. Tecido, lápis, 44 x 33 cm.

Fonte: Coleção Museu de Arte Contemporânea Dragão do Mar, Brasil.

O desenho desenha pensamentos, sentimentos, reflexões. O desenho

desenha alma e corpo. Ele desenha experiências e expectativas. Ele de-

senha linhas, pontos, curvas, objetos e paisagens. Ele também desenha

dúvidas. Há no desenho poesia e narrativa como se tudo que fosse urgen-

te pudesse esperar o tempo do acontecimento. Desenho é acontecimento.

Desenho também é solo e é solitude. Desenho é terra.

DESENHO CORPO

Desenhe. Desenhe a cena e o corpo, a alma e o sonho, o desejo e a dú-

vida. Apenas desenhe o traço. Circule as palavras. Deixe sair o grito. Ape-

nas desenhe, sempre e enquanto dure. Desenhe enquanto você estiver vivo

e também enquanto estiver dormindo. Desenhe sonhos, viagens e percur-

sos. Desenhe dúvidas, territórios e narrativas. Desenhe com o corpo, para

o corpo e sobre ele, pois, segundo Jean-Luc Nancy, o corpo toca tudo.

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho, O corpo é o inconsciente: os germes dos antepassados sequenciados em suas células, os sais minerais inseridos, os moluscos acariciados, os to- cos de madeira rompidos e os vermes banqueteando-se em cadáver sob a terra ou, senão, a chama que o incinera e a cinza que daí se deduz e o resume em impalpável poeira, e as pessoas, as plantas e os animais que ele encontra e nos quais esbarra, as lendas de antigas babás, os mo- numentos desmoronados e cobertos de líquen, as enormes turbinas das usinas que lhe fabricam as ligas inauditas com as quais ele fará próte- ses, os fonemas ásperos ou sibilantes com os quais sua boca emite ruí- dos ao falar, as leis gravadas nas estelas e os secretos desejos de matar ou de imortalidade. O corpo toca tudo com as pontas secretas de seus dedos ossudos. E tudo acaba por ganhar corpo, até o corpus de pó que se ajunta e que dança um vibrante bailado no estreito feixe de luz onde vem acabar o último dia do mundo. (NANCY, 2012, p. 53 [indício 42].)

Camila Moreira. Desenho corpo, 2020, 16 x 21 cm. Fonte: Coleção da artista.

Falar de desenho é aludir ao corpo, pois ele faz, contempla e percebe

o mesmo. “Um corpo é imaterial. É um desenho, um contorno, uma ideia"

(ibidem, p. 43 [indício 5]). Jean-Luc Nancy discorre a respeito da imateria-

lidade do corpo, talvez próximo a sua efêmera existência. Um corpo sendo

percebido como um grande desenho. De uma só linha? De muitas linhas e

ramificações? Um corpo rizom ático, segundo Deleuze?

Desenha-se primeiro com a percepção, com os olhos, com as mãos, com

a totalidade do corpo. Em seguida, insere-se no mundo o que do mundo

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho,

DESENHO IMAGEM

Durante muito tempo o desenho foi também a forma de registrar, cata-

logar, e tornar visível as relações sociais e expedicionárias, os corpos e po-

deres de reis e rainhas, as formas das frutas, plantas e animais, o traçado

de planos, territórios e fronteiras. Ele foi também concebido como meio

para pinturas, esculturas, gravuras e outras formas de expressão. O dese-

nho iniciático. Com a inserção e permanência das tecnologias, o desenho

começou a se libertar de suas funções para se tornar desenho com fim em

si mesmo. A autonomia permitiu ao desenho a liberdade e a transitorieda-

de dele inseparáveis. O desenho começou seu trajeto sobre um percurso ili-

mitado, que transborda o campo da visão, apresentando-se como vestígio.

Jean-Luc Nancy, ao falar sobre arte, apresenta a ideia de vestígio:

O que resta da arte? Talvez apenas um vestígio. (…) supondo-se que não reste com efeito senão um vestígio — ao mesmo tempo um rastro evanescente e um fragmento quase inapreensível —, isso mesmo po- deria ser apropriado para nos colocar na pista da própria arte, ou pelo menos, de alguma coisa que lhe seria essencial, se pudermos levantar a hipótese de que o que resta é também o que resiste mais. Em seguida, teremos de nos perguntar se essa alguma coisa de essencial não seria, por sua vez, da ordem do vestígio, e se a arte toda não manifesta da me- lhor forma possível sua natureza ou sua aposta quando se torna vestígio de si mesma: quando, retirada da grandeza das obras que fazem advir mundos, parece passada, mostrando apenas sua passagem. (NANCY, 2012b, p. 289.)

O que resta é o que resiste mais. Transcorrendo sobre o sensível, mas

também sobre seu caráter de resistência e logo permanência, observa-se

no desenho sua potencialidade de resistir e apresentar-se como vestígio de

si mesmo. Ora, se em tudo há desenho e se tudo pode ser desenho, este é

eminente vida que resiste.

O desenho contemporâneo assume cada vez mais a contemplação do

mundo e a resistência ao mesmo. As linhas podem ser matérias ou luzes.

O papel migra para o espaço, paredes, teto e chão. O desenho contempla a

totalidade de sua real existência sendo a escrita da memória, da história,

da ciência e das imagens. O desenho do sensível que o cerca, das imagens

e da construção destas é alusivo ao sensível, assim proposto por Emanuele

Coccia.

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho, O sensível, o ser das imagens, não é algo meramente psíquico: caso fos- se, bastaria fechar os olhos para ver e observar qualquer coisa. Não precisaríamos do mundo para poder ouvir nem deveríamos lançar-nos pele a pele nos objetos para poder perceber suas superfícies ou para sentir seus gostos. Não é a luz que existe no fundo do nosso olho, não é o esplendor que percebemos toda vez que adormecemos, o que ilumina o mundo. Esse esplendor tem uma natureza outra e provém de fora de nós. A existência do sensível não coincide perfeitamente nem mesmo com a existência do mundo e das coisas. Se os intermináveis debates so- bre a possibilidade de deduzir a existência do real a partir da sensação preocuparam a filosofia por tanto tempo é porque as coisas não são per- ceptíveis por si mesmas. Elas precisam devir perceptíveis. (COCCIA,

  1. p. 17.)

Pensar o devir perceptível das coisas apresenta-se próximo ao desenho

como pensamento. Nos organizamos no mundo desenhando nele e para

ele. Emanuele Coccia aponta que “a imagem nasce e vive sempre depois do

fim, do término do corpo de que era forma, e antes da consciência onde é

percebida. É exatamente esse o lugar e o tempo em que as formas são sen-

síveis” (ibidem, p. 22). Seria então o desenho essa intrínseca relação entre

o sensível e o corpo, na qual a imagem ocuparia o lugar de simbiose entre

ambos? Onde na imagem mora o desenho, onde no desenho mora o sujeito

e onde no sujeito há imagem?

Entender as imagens como desenho contínuo é entender que este é um

todo migratório. Somos todos desenhos e seres migrantes. O movimento

nos pertence de forma inata porque a vida depende disso, de um ciclo su-

cessivo de ações que culminam na sua existência, permanência e morte.

Pensar o homem como sujeito migrante permite pensar sobre seu tra-

jeto. Para cada deslocamento carregamos e deixamos um pouco do lugar,

criando e potencializando uma imagem dele. Refletir sobre migração é re-

fletir também sobre a multiplicidade e transitoriedade das coisas. É pen-

sar na possibilidade de um hibridismo constante de linguagens e corpos.

Seríamos então sujeitos migrantes e mestiços, que carregam em seu corpo

e história a heterogenia?

De cada lugar visitado, em pensamento ou não, um desenho se ex-

pande sobre o corpo. Somos todos mestiços, feitos de linhas sobrepostas e

tensionadas.

Na arte, os lugares da mestiçagem são espaços de tensão: tensão entre o original e sua cópia, entre espaços de representação diferenciados, entre

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho, Que relação pode ter o desenho com o que acontece? Ou com quem che- ga? O que no desenho pode dar conta dessa irrupção imprevisível do que (de quem) acontece/chega? O desenhista é alguém, e temos aqui uma grande testemunha disso, alguém que vê vir, que pré-desenha, que trabalha o traço, que calcula etc., mas o momento em que isso traça, o movimento em que o desenho inventa, em que ele se inventa, é um mo- mento em que o desenhista é de algum modo cego, em que ele não vê, ele não vê vir, ele é surpreendido pelo próprio traço que ele trilha, pela trilha do traço, ele está cego. É um grande vidente, ou mesmo um visio- nário que, enquanto desenha, se seu desenho constitui acontecimento, está cego. (DERRIDA, 2012. p. 71.)

O desenho percorre hoje o espaço que o cerca, rompendo com a sua en-

tão recorrente ação de lápis e papel, abrigando lugares e corpos, em um

campo expandido da linguagem. O desenho escultórico, o desenho linha

matérica, o desenho luz e sombra, a partir de um trânsito entre ação e

imagem. O desenho é pensado e deslocado de suas estruturas rígidas, as-

sumindo por momentos uma atitude performática que absorve e consume

do mundo sua estrutura como um todo.

Logo, pensar o desenho hoje é pensar ainda mais no deslocamento

sensível, visível, perceptível. É pensar para além do corpo do artista e

do espectador. É pensar no desenho em trânsito constante, em estado

migratório, de um lado para o outro, refletindo lugares de intimidade entre

o interior e o exterior da imagem. É falar de cruzamentos e percursos

entre força e leveza, registro e apagamento. Desenhar também é esquecer.

É reinventar um mundo sensível para a realidade. Desenhar também

pode ser uma forma de apagar a memória e romper com o caminho. Talvez

o desenho seja um mundo autônomo onde sua existência esteja além de

sua compreensão. O desenho rompe assim com o corpo, em um constan-

te hibridismo de linguagens estruturantes, visuais e fenomenológicas. O

desenho é desenho. Uma ação viva e de constante diálogo. O desenho é

forma colocada para fora. Ele é ponto em expansão, linha em movimento.

É recorte, forma, densidade e matéria. O desenho é um ato migratório. É

gesto acabado e inacabado. Desenho é forma vibratória. É Corpo autônomo

criado. Desenho é experiência que olha e observa. Desenho é linha no

horizonte, barulho no mar, nuvem no céu, letras nos livros, costura nas

roupas. Desenho é cheiro que desloca o corpo, é grito que constrói pala-

vras, é escrita que tem corpo.

Desenhar é estar constantemente no mundo. Desenhar é tudo, ou qua-

se tudo entre ação, imagem e obra. E para que o desenho exista e resista à

agemdaescritaàimegistro:traço,r Desenho,

sua própria estrutura, apenas desenhe, arrisque. Desenhar é necessidade

constante. Enquanto houver corpo, consciência e vida, haverá desenho.

REFERÊNCIAS

ARTIGAS, João Batista Vilanova. “O desenho”. In Sobre desenho e desígnio. Texto da aula inaugural pronunciada na FAU-USP em 1967. São Paulo: Centro de Estudos Brasileiros do Grêmio da FAU-USP, 1975. AUGÉ, Marc. Non-lieux : Introduction à une anthropologie de la surmodernité. Paris: Seuil, 1992. BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense,

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